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terça-feira, 7 de abril de 2009

Simbolismo


Simbolismo
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O Simbolismo é um estilo literário, do teatro e das artes plásticas que surgiu na França, no final do século XIX, como oposição ao Realismo e ao Naturalismo.

Índice [esconder]
1 Histórico e características
1.1 Principais características
2 Literatura do simbolismo
2.1 Literatos simbolistas
2.1.1 Portugal
2.1.2 Brasil
3 Simbolismo nas Artes Plásticas
3.1 Les Nabis
4 Simbolismo no teatro
5 Ver também



[editar] Histórico e características
A partir de 1881, na França, pintores, autores teatrais e escritores, influenciados pelo misticismo advindo do grande intercâmbio com as artes, pensamento e religiões orientais - procuram refletir em suas produções a consonância a estas diferentes formas de olhar sobre o mundo, de ver, e demonstrar o sentimento.

Marcadamente individualista e místico, foi com desdém apelidado de "decadentismo" - clara alusão à decadência dos valores estéticos então vigentes. Mas em 1886 um manifesto traz a denominação que viria marcar definitivamente os adeptos desta corrente: simbolismo.


[editar] Principais características
Subjetivismo
Os simbolistas terão maior interesse pelo particular e individual do que pela visão mais geral. A visão objetiva da realidade não desperta mais interesse, e sim a realidade focalizada sob o ponto de vista de um único indivíduo. Dessa forma, é uma poesia que se opõe à poética parnasiana e se reaproxima da estética romântica, porém mais do que voltar-se para o coração, os simbolistas procuram o mais profundo do "eu", buscam o inconsciente, o sonho.

Musicalidade
A musicalidade é uma das características mais destacadas da estética simbolista, segundo o ensinamento de um dos mestres do simbolismo francês, Paul Verlaine, que em seu poema "Art Poétique", afirma: "De la musique avant toute chose..." (" A música acima de tudo...") Para conseguir aproximação da poesia com a música, os simbolistas lançaram mão de alguns recursos, como por exemplo a aliteração, que consiste na repetição sistemática de um mesmo fonema consonantal, e a assonância, caracterizada pela repetição de fonemas vocálicos.

Transcendentalismo
Um dos princípios básicos dos simbolistas era sugerir através das palavras sem nomear objetivamente os elementos da realidade. Ênfase no imaginário e na fantasia. Para interpretar a realidade, os simbolistas se valem da intuição e não da razão ou da lógica. Preferem o vago, o indefinido ou impreciso. Por isso, gostam tanto de palavras como: névoa, neblina, bruma, vaporosa.


[editar] Literatura do simbolismo
Os temas são místicos, espirituais. Abusa-se da sinestesia, sensação produzida pela interpenetração de órgãos sensoriais: "cheiro doce" ou "grito vermelho", das aliterações (repetição de letras ou sílabas numa mesma oração: "Na messe que estremece") e das assonâncias, repetição fônica das vogais: repetição da vogal "e" no mesmo exemplo de aliteração, tornando os textos poéticos simbolistas profundamente musicais.

O Simbolismo em Portugal liga-se às atividades das revistas Os Insubmissos e Boêmia Nova, fundadas por estudantes de Coimbra, entre eles Eugênio de Castro, que ao publicar um volume de versos intitulado Oaristos, instaurou essa nova estética em Portugal. O movimento simbolista durou aproximadamente até 1915, altura em que se iniciou o Modernismo.


[editar] Literatos simbolistas
Pode-se dizer que o precursor do movimento, na França, foi o poeta francês Charles Baudelaire com "As Flores do Mal", ainda em 1857.

Mas só em 1881 a nova manifestação é rotulada, com o nome decadentismo, substituído por Simbolismo em manifesto publicado em 1886. Espalhando-se pela Europa, é na França, porém, que tem seus expoentes, como Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé.


[editar] Portugal
Os nomes de maior destaque no Simbolismo português são: Camilo Pessanha, Cesário Verde, António Nobre, Augusto Gil e Eugênio de Castro.


[editar] Brasil
No Brasil, dois grandes poetas destacaram-se dentro do movimento simbolista: Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens. No primeiro, a angústia de sua condição, reflete-se no comentário de Manuel Bandeira: "Não há (na literatura brasileira) gritos mais dilacerantes, suspiros mais profundos do que os seus".


[editar] Simbolismo nas Artes Plásticas
Ver artigo principal: Pintura do simbolismo

Gauguin impressionista
Gauguin simbolistaOriundo do impressionismo, Paul Gauguin deixa-se influenciar pelas pinturas japonesas que aparecem na Europa, provocando verdadeiro choque cultural - e este artista abandona as técnicas ainda vigentes nas telas do movimento onde se iniciou, como a perspectiva, pintando apenas em formas bidimensionais. A temática alegórica passa a dominar, a partir de 1890. Ao artista não bastava pintar a realidade, mas demonstrar na tela a essência sentimental dos personagens - e em Gauguin isto levou a uma busca tal pelo primitivismo que o próprio artista abandonou a França, indo morar com os nativos da Polinésia francesa.

Em França outros artistas, como Gustave Moreau, Odilon Redon, Maurice Denis, Paul Sérusier e Aristide Maillol, aderem à nova estética. Na Áustria, usando de motivos eminentemente europeus do estilo rococó, Gustav Klimt é outro que, assim como Gauguin, torna-se conhecido e apreciado. O norueguês Edvard Munch, autor do célebre quadro "O grito", alia-se primeiro ao simbolismo, antes de tornar-se um dos expoentes do expressionismo.

No Brasil, o movimento simbolista influenciou a obra de pintores como Eliseu Visconti e Rodolfo Amoedo. A tela "Recompensa de São Sebastião", de Eliseu Visconti, medalha de ouro na Exposição Universal de Saint Louis, em 1904, é um exemplo da influência simbolista nas artes plásticas do Brasil.

Já na literatura, o simbolismo tem início no Brasil em 1893 com a publicação de dois livros: Missal (prosa) e Broquéis (poesia), ambos de Cruz e Sousa. Estende-se até o ano de 1922, data da Semana da Arte Moderna.

O início do simbolismo não pode, no entanto, ser identificado com o termino da escola antecedente, Realismo. Na realidade, no final do seculo XIX e início do século XX três tendências caminhavam paralelas: O Realismo e suas manifestações (romance realista, romance naturalista e poesia parnasiana); O simbolismo, situado à margem da literatura acadêmica época; e o pré-Modernismo, com o aparecimento de alguns autores preocupado em denunciar a realidade brasileira, como Euclides da Cunha, Lima Barreto e Monteiro Lobato, entre outros.


[editar] Les Nabis
Ver artigo principal: Les Nabis
Como conseqüência do Simbolismo, apareceu o grupo de Les Nabis. Tem a particularidade de ter formas mais simplificadas e cores mais puras. A arte torna-se desta forma uma realidade autónoma (autônoma) do real, pois nela estão patentes emoções, sentimentos e ideologias.


[editar] Simbolismo no teatro
Buscaram os autores, dentre os quais o belga Maeterlinck, o italiano Gabriele D'Annunzio e o norueguês Ibsen, levar ao palco não personagens propriamente ditos, mas alegorias a representar sentimento, idéia - em peças onde o cenário (som, luz, ambiente, etc.) tenham maior destaque


Simbolismo em Portugal

Com a publicação de Oaristos, de Eugenio de Castro, em 1890, inicia-se oficialmente o Simbolismo português, durando até 1915, época do surgimento da geração Orpheu, que desencadeia a revolução modernista no país, em muitos aspectos baseada nas conquistas da nova estética.

Conhecidos como adeptos do Nefelibatismo (espécie de adaptação portuguesa do Decadentismo e do Simbolismo francês), e, portanto como nefelibatas (pessoas que andam com a cabeça nas nuvens), os poetas simbolistas portugueses vivenciam um momento múltiplo e vário, de intensa agitação social, política, cultural e artística. Com o episódio do Ultimatum inglês, aceleram-se as manifestações nacionalistas e republicanas, que culminarão com a proclamação da República, em 1910.

Portanto, os principais autores desse estilo em Portugal seguem linhas diversas, que vão do esteticismo de Eugênio de Castro ao nacionalismo de Antônio Nobre e outros, até atingirem maioridade estilística com Camilo Pessanha: o mais importante poeta simbolista português.

Estudo dos principais autores e obras

Além de Raul Brandão, um dos raros escritores de prosa simbolista, na verdade prosa poética, representada pela trilogia que compreende as obras A farsa, Os pobres e Húmus, Eugênio de Castro, Antônio Nobre e Camilo Pessanha são os poetas mais expressivos deste estilo em Portugal.



Camilo Pessanha (1867-1926)

Autor de apenas um livro, Clepsidra, publicado em 1922, Camilo Pessanha exerceu grande influência, particularmente na geração de Orpheu, que iniciou o Modernismo em Portugal.

Considerado um poeta de leitura pouco acessível para o grande público, um criador que inspirou outros criadores, passou grande parte da vida em Macau (China), onde conheceu o ópio e conviveu com a poesia chinesa, de que foi tradutor para o português.

Os poemas de Camilo Pessanha caracterizam-se por um forte poder de sugestão e ritmo, apresentando imagens estranhas, insólitas, não lineares, isto é, repletas de rupturas e cores – elementos tipicamente simbolistas.

Neles predomina o tema do estranhamento entre o eu e o corpo; o eu e a existência e o mundo, cujos elementos mais familiares ao mesmo tempo tornam-se esquivos, perante uma sensibilidade poética fina e sutil, mas na qual não se encontram os derramamentos emocionais, a subjetividade egocêntrica.

O Simbolismo no Brasil

Iniciado oficialmente em 1893, com a publicação de Missal (prosa poética) e Broquéis, de Cruz e Souza, considerado o maior representante do movimento no país, ao lado de Alphonsus de Guimarães, o Simbolismo brasileiro, segundo alguns autores, não foi tão relevante quanto o europeu. Em outras palavras, não conseguiu substituir os cânones da literatura oficial, predominantemente realista e parnasiana.

Esse fenômeno não é difícil de entender: a ênfase no primitivo e no inconsciente desta poesia, seu caráter universalizante e ao mesmo tempo intimista, não respondiam às questões nacionais.

Por outro lado, entretanto, pelas mesmas características mencionadas, as manifestações simbolistas no Brasil, especialmente no Sul, terra de Cruz e Souza, possuem uma aura de "seita", com verdadeiras sociedades secretas cujos ritos, jargões e nomes sugerem os traços essenciais do movimento (por exemplo: "Romeiros da Estrada de São Tiago", "Magnificentes da palavra de escrita", etc).

Movimento de cunho idealista, o Simbolismo teve que enfrentar no Brasil a atmosfera de oposição e hostilidade criada pelo Zeitgeist realista e positivista dominante desde 1870. O prestígio do parnasianismo não deixou margem para que se reconhecesse o movimento simbolista e avaliasse o seu valor e alcance, tão importantes que a sua repercussão e influência remotas são notórias em relação à literatura modernista. O Simbolismo foi abafado pela ideologia dominante e os adeptos do simbolismo sofreram sob forte oposição.


SIMBOLISMO EM PORTUGAL
Surge num momento em que a crise espiritual e o decadentismo de certos meios filosóficos e artísticos europeus no final do século coincidem o sentimento de pessimismo e frustração do povo português, relacionada com algumas causas históricas (ameaças da Inglaterra, queda da monarquia, instauração da república, por exemplo).

Oaristos, de Eugênio de Castro => marco do simbolismo Português => causou escândalos nos meios artísticos portugueses e abriu um caminho novo à produção poética local.

ANTÔNIO NOBRE - A rigor, não pertence a nenhum movimento literário. Sua poesia liga-se à tradição românticas, em virtude de certas características, como: egocentrismo, interesse pela cultura e pela língua popular, saudosismo em rela-
ção à infância e pelo pessimismo advindo da doença. Porém, certas atitudes como a tristeza, o sofrimento e a fatalidade da desventura e da desgraça associam-no ao Simbolismo e ao decadentismo do final do século. Por outro lado, as inovações que incorpora à poesia portuguesa - fragmentação, coloquialidade lingüística, fluxo de consciência, imagens surpreendentes - aproximam o poeta do Modernismo. Principal obra: Só (1892). Foram publicados postumamente: Despedidas (1904), Primeiros versos (1921) e Alicerces (1983)

CAMILO PESSANHA - poeta português que melhor atendeu aos pressupostos teóricos do movimento simbolista, tanto do ponto de vista formal quanto ideológico. Viciado ópio (professor do Liceu na China), marcado por doenças, profundamente pessimista perante a vida e o mundo, Camilo Pessanha não se preocupava em reunir seus poemas em obra. Enviava alguns deles, de vez em quando, a revistas portuguesas, e´só em 1916 foi “descoberto” pela revista Centauro. Com a publicação de Clepsidra, o autor passou a ser difundido e valorizado (1920). Tem como características:

Forma

musicalidade
elipses, sinestesias, metáforas, símbolos, ambigüidade
fragmentação e riqueza de imagens auditivas e visuais
Temas: relacionados à sua concepção pessimista desistente e e cética da vida.

A mágoa, a dor, a morte
Clepsidra = relógio de água (grego) - utilizado para marcar o tempo atribuído aos oradores - o que sugere tanto a fluidez e a liquidez do tempo quanto a sua irreversibilidade. Também pode significar “Hidra” (serpente gigantesca com inúmeras cabeças que nascem e se desenvolvem à medida que são cortadas), sibolizando a impotência humana perante o que é exterior e adverso. Simboliza a fragilidade da condição e do saber humanos

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Antero de Quental (1842-1891) nasceu em Ponta Delgada, Açores. Freqüentou a Universidade de Coimbra, tendo passado depois algum tempo em Paris. Viajou pelos Estados Unidos e Canadá, fixando-se em Lisboa. Pertenceu à à chamada Geração de Setenta, grupo que pretendia renovar a mentalidade portuguesa, e participou nas Conferências do Casino. Foi amigo, entre outros, de Eça de Queirós e Oliveira Martins. Atacada por uma doença do foro psiquiátrico, regressa aos Açores onde se suicida. As suas obras vão da poesia à reflexão filosófica: Raios de Extinta Luz, Odes Modernas, Primaveras Românticas, Sonetos, Prosas e Cartas.

ODES MODERNAS (extracto)
À HISTÓRIA
VI
Se um dia chegaremos, nós, sedentos,
A essa praia do eterno mar-oceano,
Onde lavem seu corpo os pustulentos,
E farte a sede, enfim, o peito humano?
Oh! diz-me o coração que estes tormentos
Chegarão a acabar: e o nosso engano,
Desfeito como nuvem que desanda,
Deixará ver o céu de banda a banda!

Felizes os que choram! alguma hora
Seus prantos secarão sobre seus rostos!
Virá do céu, em meio de uma aurora,
Uma águia que lhes leve os seus desgostos!
Há-de alegrar-se, então, o olhar que chora...
E os pés de ferro dos tiranos, postos
Na terra, como torres, e firmados,
Se verão, como palhas, levantados!

Os tiranos sem conto - velhos cultos,
Espectros que nos gelam com o abraço...
E mais renascem quanto mais sepultos...
E mais ardentes no maior cansaço...
Visões de antigos sonhos, cujos vultos
Nos oprimem ainda o peito lasso...
Da terra e céu bandidos orgulhosos,
Os Reis sem fé e os Deuses enganosos!

O mal só deles vem - não vem do Homem.
Vem dos tristes enganos, e não vem
Da alma que eles invadem e consomem,
Espedaçando-a pelo mundo além!
Mas que os desfaça o raio, mas que os tomem
As auroras, um dia, e logo o Bem,
Que encobria essa sombra movediça,
Surgirá, como um astro de Justiça!

E, se cuidas que os vultos levantados
Pela ilusão antiga, em desabando,
Hão-de deixar os céus despovoados
E o mundo entre ruínas vacilando;
Esforça! ergue teus olhos magoados!
Verás que o horizonte, em se rasgando,
É porque um céu maior nos mostre - e é nosso
Esse céu e esse espaço! é tudo nosso!

É nosso quanto há belo! A Natureza,
Desde aonde atirou seu cacho a palma,
Té lá onde escondidos na frieza
Vegeta o musgo e se concentra a alma:
Desde aonde se fecha da beleza
A abóbada sem fim - fé onde a calma
Eterna gera os mundos e as estrelas,
E em nós o Empíreo das ideias belas!

Templo de crenças e de amores puros!
Comunhão de verdade! onde não há
Bonzo à porta a estremar fiéis e impuros,
Uns para a luz... e outros para cá.
A li parecerão os mais escuros
Brilhantes como a face de Jeová,
Comungando no altar do coração
No mesmo amor de pai e amor de Irmão!

Amor de Irmão! oh! este amor é doce
Como ambrosia e como um beijo casto!
Orvalho santo, que chovido fosse,
E o lírio absorve como etéreo pasto!...
Dilúvio suave, que nos toma posse
Da vida e tudo, e que nos faz tão vasto
O coração minguado... que admira
Os sons que solta esta celeste lira!

Só ele pude a ara sacrossanta
Erguer, e um templo eterno para todos...
Sim, um eterno templo e ara santa,
Mas com mil cultos, mil diversos modos!
Mil são os frutos, e é só uma a planta!
Um coração, e mil desejos doudos!
Mas dá lugar a todos a Cidade,
Assente sobre a rocha da Igualdade.

É desse amor que eu falo! e dele espero
O doce orvalho com que vá surgindo
O triste lírio, que este solo austero
Está entre urze e abrolhos encobrindo.
Dele o resgate só será sincero...
Dele! do Amor!... enquanto vais abrindo,
Sobre o ninho onde choca a Unidade,
As tuas asas de águia, ó Liberdade!

PANTEÍSMO
I
Aspiração... desejo aberto todo
Numa ânsia insofrida e misteriosa...
A isto chamo eu vida: e, deste modo,

Que mais importa a forma? silenciosa
Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço
Cm homem igualmente e astro e rosa!

A própria fera, cujo incerto passo
Lá vaga nos algares da devesa,
Por certo entrevê Deus - seu olho baço

Foi feito para ver brilho e beleza...
E se ruge, é que a agita surdamente
Tua alma turva, ó grande natureza!

Sim, no rugido há vida ardente,
Uma energia íntima, tão santa
Como a que faz trinar a ave inocente...

Há um desejo intenso, que alevanta
Ao mesmo tempo o coração ferino,
E o do ingénuo cantor que nos encanta...

Impulso universal! forte e divino,
Aonde quer que irrompa! e belo e augusto,
Quer se equilibre em paz no mudo hino

Dos astros imortais, quer no robusto
Seio do mar tumultuando brade,
Com um furor que se domina a custo,

Quer durma na fatal obscuridade
Da massa inerte, quer na mente humana
Sereno ascenda à luz da liberdade...

É sempre a eterna vida, que dimana
Do centro universal, do foco intenso,
Que ora brilha sem véus, ora se empana...

É sempre o eterno gérmen, que suspenso
No oceano do Ser, em turbilhões
De ardor e luz, envolve, ínfimo e imenso!

Através de mil formas, mil visões,
O universal espírito palpita
Subindo na espiral das criações!

Ó formas! vidas! misteriosa escrita
Do poema indecifrável que na Terra
Faz de sombras e luz a Alma infinita!

Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!
Rolai, ondas sem praia, confundindo
A paz eterna com a eterna guerra!

Rasgando o seio imenso, ide saindo
Do fundo tenebroso do Possível,
Onde as formas do Ser se estão fundindo

Abre teu cálix, rosa imarcescível!
Rocha, deixa banhar-te a onda clara!
Ergue tu, águia, o voo inacessível!

Ide! crescei sem medo! não é avara
A alma eterna que em vós anda e palpita
Onda, que vai e vem e nunca pára!

Semeador de mundos, vai andando
E a cada passo uma seara basta
De vidas sob os pés lhe vem brotando!

Essência tenebrosa e pura... casta
C todavia ardente... eterno alento!
Teu sopro é que fecunda a esfera vasta...
Choras na voz do mar... cantas ao vento...

II

Porque o vento, sabei-o, é pregador
Que através dos soidões vai missionando
A eterna Lei do universal Amor.

Ouve-o rugir por essas praias, quando,
Feito tufão, se atira das montanhas,
Como um negro Titã, e vem bradando...

Que imensa voz! que prédicas estranhas!
E como freme com terrível vida
A asa que o livra cm extensões tamanhas!

Ah! quando em pé no monte, e a face erguida
Para a banda do mar, escuto o vento
Que passa sobre mim a toda a brida,

Como o entendo então! e como atento
Lhe escuto o largo canto! e, sob o canto,
Que profundo e sublime pensamento!

Ei-lo, o Ancião-dos-dias! ei-lo, o Santo,
Que já na solidão passava orando,
Quando inda o mundo era negrume e espanto!

Quando as formas o orbe tenteando
Mal se sustinha e, incerto, se inclinava
Para o lado do abismo, vacilando;

Quando a Força, indecisa, se enroscava
Às espirais do Caos, longamente,
Da confusão primeira ainda escrava;

Já ele era então livre! e rijamente
Sacudia o Universo, que acordasse...
Já dominava o espaço, omnipotente!

Ele viu o Princípio. A quanto nasce
Sabe o segredo, o germe misterioso.
Encarou o Inconsciente face a face,
Quando a Luz fecundou o Tenebroso.

III

Fecundou!... Se eu nas mãos tomo um punhado
Da poeira do chão, da triste areia,
E interrogo os arcanos do seu fado,

O pó cresce em mim... engrossa... alteia...
E, com pasmo, nas mãos vejo que tenho
Um espírito! o pó tornou-se ideia!

Ó profunda visão! mistério estranho!
Há quem habita ali, e mudo e quedo
Invisível está... sendo tamanho!

Espera a hora de surgir sem medo,
Quando o deus encoberto se revele
Com a palavra do imortal segredo!

Surgir! surgir! - é a ânsia que os impele
A quantos vão na estrada do infinito
Erguendo a pasmosíssima Babel!

Surgir! ser astro e flor! onda e granito!
Luz e sombra! atracção e pensamento!
Um mesmo nome em tudo está escrito...

...........................................

Eis quanto me ensinou a voz do vento.

1865-1874

TENTANDA VIA
I

Com que passo tremente se caminha
Em busca dos destinos encobertos!
Como se estão volvendo olhos incertos!
Como esta geração marcha sozinha!

Fechado, em volta, o céu! o mar, escuro!
A noite, longa! o dia, duvidoso!
Vai o giro dos céus, vem vagaroso...
Vem longe ainda a praia do futuro...

É a grande incerteza, que se estende
Sobre os destinos dum porvir, que é treva...
É o escuro terror de quem nos leva...
O futuro horrível que das almas pende!

A tristeza do tempo! o espectro mudo
Que pela mão conduz... não sei aonde!
- Quanto pode sorrir, tudo se esconde...
Quanto pode pungir, mostra-se tudo. -

Não c a grande luta, braço a braço,
No chão da Pátria, à clara luz da História...
Nem o gládio de César, nem a glória...
É um misto de pavor e de cansaço!

Não é a luta dos trezentos bravos,
Que o solo amado beijam quando caem...
Crentes que traz um Deus, e à guerra saem,
Por não dormir no leito dos escravos...

É a luta sem glória! é ser vencido
Por uma oculta, súbita fraqueza!
Um desalento, uma íntima tristeza
Que à morte leva... sem se ter vivido!

Não há aí pelejar... não há combate...
Nem há já glória no ficar prostrado -
São os tristes suspiros do Passado
Que se erguem desse chão, por toda a parte...

É a saudade, que nos rói e mina
E gasta, como à pedra a gota d'água...
Depois, a compaixão, a íntima mágoa
De olhar essa tristíssima ruína...

Tristíssimas ruínas! Entristece
E causa dó olhá-las - a vontade
Amolece nas águas da piedade,
E, em meio do lutar, treme e falece.

Cada pedra, que cai dos muros lassos
Do trémulo castelo do passado,
Deixa um peito partido, arruinado,
E um coração aberto em dois pedaços!

II

A estrada da vida anda alastrada
De folhas secas e mirradas flores...
Eu não vejo que os céus sejam maiores,
Mas a alma... essa é que eu vejo mais minguada!

Ah! via dolorosa é esta via!
Onde uma Lei terrível nos domina!
Onde é força marchar pela neblina...
Quem só tem olhos para a luz do dial

Irmãos! irmãos! amemo-nos! é a hora...
É de noite que os tristes se procuram,
E paz e união entre si juram...
Irmãos! irmãos! amemo-nos agora!

E vós, que andais a dores mais afeitos,
Que mais sabeis à Via do Calvário
Os desvios do giro solitário,
E tendes, de sofrer, largos os peitos;
Vós, que ledes na noite... vós, profetas...
Que sois os loucos... porque andais na frente...
Que sabeis o segredo da fremente
Palavra que dá fé - ó vós, poetas!

Estendei vossas almas, como mantos
Sobre a cabeça deles... e do peito
Fazei-lhes um degrau, onde com jeito
Possam subir a ver os astros santos...

Levai-os vós à pátria-misteriosa,
Os que perdidos vão com passo incerto!
Sede vós a coluna de deserto!
Mostrai-lhes vós a Via-dolorosa!

III

Sim! que é preciso caminhar avante!
Andar! passar por cima dos soluços!
Como quem numa mina vai de bruços
Olhar apenas uma luz distante!

É preciso passar sobre ruínas,
Como quem vai pisando um chão de flores!
Ouvir as maldições, ais e clamores,
Como quem ouve músicas divinas!

Beber, em taça túrbida, o veneno,
Sem contrair o lábio palpitante!
Atravessar os círculos do Dante,
E trazer desse inferno o olhar sereno!

Ter um manto da casta luz das crenças,
Para cobrir as trevas da miséria!
Ter a vara, o condão da fada aérea,
Que em ouro torne estas areias densas!

É, quando, tem temor e sem saudade,
Puderdes, dentre o pó dessa ruína,
Erguei o olhar à cúpula divina,
Heis-de então ver a nova-claridade!

Heis-de então ver, ao descerrar do escuro,
Bem como o cumprimento de um agouro,
Abrir-se, como grandes portas de ouro,
As imensas auroras do Futuro!
SONETOS (extracto)


IDÍLIO

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.

A UM POETA
(surge et ambula)

Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares…
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno…

Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções…
Mas de guerra… e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

HINO À RAZÃO

Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça
De astros, sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.

Por ti, na arena trágica, as nações
buscam a liberdade entre clarões;
e os que olham o futuro e cismam, mudos,

Por ti podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

O PALÁCIO DA VENTURA

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

CONSULTA

Chamei em volta do meu frio leito
As memórias melhores de outra idade,
Formas vagas, que às noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito…

E disse-lhes: No mundo imenso e estreito
Valia a pena, acaso, em ansiedade
Ter nascido? Dizei-mo com verdade,
Pobres memórias que eu ao seio estreito.

Mas elas perturbaram-se - coitadas!
E empalideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena…

E cada uma delas, lentamente,
Com um sorriso mórbido, pungente,
Me respondeu: - Não, não valia a pena!

LACRIMAE RERUM

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!

Aonde são teus sóis, como coorte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vão busca a certeza que o conforte?

Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas…

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas…

A GERMANO MEIRELES

Só males são reais, só dor existe:
Prazeres só os gera a fantasia;
Em nada[, um] imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.

Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há [aí] senão ser triste?

Oh! Quem tanto pudera que passasse
A vida em sonhos só. E nada vira…
Mas, no que se não vê, labor perdido!

Quem fora tão ditoso que olvidasse…
Mas nem seu mal com ele então dormira,
Que sempre o mal pior é ter nascido!

O CONVERTIDO

Entre os filhos dum século maldito
Tomei também lugar na ímpia mesa,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
Duma ânsia impotente de infinito.

Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza…
Mas um dia abalou-se-me a firmeza,
Deu-me um rebate o coração contrito!

Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!

Amortalhei na Fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e esquecimento…
Só me falta saber se Deus existe!

MORS-AMOR

Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável mas plácido no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz «Eu sou a morte»,
Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor».

EVOLUÇÃO

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta…
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo…

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo…

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade…

Interrogo o infinito e às vezes choro…
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

ESPIRITUALISMO

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas vagamente…

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão onde se esconde
O inconsciente imortal só me responde
Um bramido, um queixume e nada mais.

COM OS MORTOS

Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos…

E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos…

Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.

NOX

Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos...

Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia...
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos...

Oh! Antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,

E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!

SOLEMNIA VERBA

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.




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Antero de Quental (1842-1891) nasceu em Ponta Delgada, Açores. Freqüentou a Universidade de Coimbra, tendo passado depois algum tempo em Paris. Viajou pelos Estados Unidos e Canadá, fixando-se em Lisboa. Pertenceu à à chamada Geração de Setenta, grupo que pretendia renovar a mentalidade portuguesa, e participou nas Conferências do Casino. Foi amigo, entre outros, de Eça de Queirós e Oliveira Martins. Atacada por uma doença do foro psiquiátrico, regressa aos Açores onde se suicida. As suas obras vão da poesia à reflexão filosófica: Raios de Extinta Luz, Odes Modernas, Primaveras Românticas, Sonetos, Prosas e Cartas.

ODES MODERNAS (extracto)
À HISTÓRIA
VI
Se um dia chegaremos, nós, sedentos,
A essa praia do eterno mar-oceano,
Onde lavem seu corpo os pustulentos,
E farte a sede, enfim, o peito humano?
Oh! diz-me o coração que estes tormentos
Chegarão a acabar: e o nosso engano,
Desfeito como nuvem que desanda,
Deixará ver o céu de banda a banda!

Felizes os que choram! alguma hora
Seus prantos secarão sobre seus rostos!
Virá do céu, em meio de uma aurora,
Uma águia que lhes leve os seus desgostos!
Há-de alegrar-se, então, o olhar que chora...
E os pés de ferro dos tiranos, postos
Na terra, como torres, e firmados,
Se verão, como palhas, levantados!

Os tiranos sem conto - velhos cultos,
Espectros que nos gelam com o abraço...
E mais renascem quanto mais sepultos...
E mais ardentes no maior cansaço...
Visões de antigos sonhos, cujos vultos
Nos oprimem ainda o peito lasso...
Da terra e céu bandidos orgulhosos,
Os Reis sem fé e os Deuses enganosos!

O mal só deles vem - não vem do Homem.
Vem dos tristes enganos, e não vem
Da alma que eles invadem e consomem,
Espedaçando-a pelo mundo além!
Mas que os desfaça o raio, mas que os tomem
As auroras, um dia, e logo o Bem,
Que encobria essa sombra movediça,
Surgirá, como um astro de Justiça!

E, se cuidas que os vultos levantados
Pela ilusão antiga, em desabando,
Hão-de deixar os céus despovoados
E o mundo entre ruínas vacilando;
Esforça! ergue teus olhos magoados!
Verás que o horizonte, em se rasgando,
É porque um céu maior nos mostre - e é nosso
Esse céu e esse espaço! é tudo nosso!

É nosso quanto há belo! A Natureza,
Desde aonde atirou seu cacho a palma,
Té lá onde escondidos na frieza
Vegeta o musgo e se concentra a alma:
Desde aonde se fecha da beleza
A abóbada sem fim - fé onde a calma
Eterna gera os mundos e as estrelas,
E em nós o Empíreo das ideias belas!

Templo de crenças e de amores puros!
Comunhão de verdade! onde não há
Bonzo à porta a estremar fiéis e impuros,
Uns para a luz... e outros para cá.
A li parecerão os mais escuros
Brilhantes como a face de Jeová,
Comungando no altar do coração
No mesmo amor de pai e amor de Irmão!

Amor de Irmão! oh! este amor é doce
Como ambrosia e como um beijo casto!
Orvalho santo, que chovido fosse,
E o lírio absorve como etéreo pasto!...
Dilúvio suave, que nos toma posse
Da vida e tudo, e que nos faz tão vasto
O coração minguado... que admira
Os sons que solta esta celeste lira!

Só ele pude a ara sacrossanta
Erguer, e um templo eterno para todos...
Sim, um eterno templo e ara santa,
Mas com mil cultos, mil diversos modos!
Mil são os frutos, e é só uma a planta!
Um coração, e mil desejos doudos!
Mas dá lugar a todos a Cidade,
Assente sobre a rocha da Igualdade.

É desse amor que eu falo! e dele espero
O doce orvalho com que vá surgindo
O triste lírio, que este solo austero
Está entre urze e abrolhos encobrindo.
Dele o resgate só será sincero...
Dele! do Amor!... enquanto vais abrindo,
Sobre o ninho onde choca a Unidade,
As tuas asas de águia, ó Liberdade!

PANTEÍSMO
I
Aspiração... desejo aberto todo
Numa ânsia insofrida e misteriosa...
A isto chamo eu vida: e, deste modo,

Que mais importa a forma? silenciosa
Uma mesma alma aspira à luz e ao espaço
Cm homem igualmente e astro e rosa!

A própria fera, cujo incerto passo
Lá vaga nos algares da devesa,
Por certo entrevê Deus - seu olho baço

Foi feito para ver brilho e beleza...
E se ruge, é que a agita surdamente
Tua alma turva, ó grande natureza!

Sim, no rugido há vida ardente,
Uma energia íntima, tão santa
Como a que faz trinar a ave inocente...

Há um desejo intenso, que alevanta
Ao mesmo tempo o coração ferino,
E o do ingénuo cantor que nos encanta...

Impulso universal! forte e divino,
Aonde quer que irrompa! e belo e augusto,
Quer se equilibre em paz no mudo hino

Dos astros imortais, quer no robusto
Seio do mar tumultuando brade,
Com um furor que se domina a custo,

Quer durma na fatal obscuridade
Da massa inerte, quer na mente humana
Sereno ascenda à luz da liberdade...

É sempre a eterna vida, que dimana
Do centro universal, do foco intenso,
Que ora brilha sem véus, ora se empana...

É sempre o eterno gérmen, que suspenso
No oceano do Ser, em turbilhões
De ardor e luz, envolve, ínfimo e imenso!

Através de mil formas, mil visões,
O universal espírito palpita
Subindo na espiral das criações!

Ó formas! vidas! misteriosa escrita
Do poema indecifrável que na Terra
Faz de sombras e luz a Alma infinita!

Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!
Rolai, ondas sem praia, confundindo
A paz eterna com a eterna guerra!

Rasgando o seio imenso, ide saindo
Do fundo tenebroso do Possível,
Onde as formas do Ser se estão fundindo

Abre teu cálix, rosa imarcescível!
Rocha, deixa banhar-te a onda clara!
Ergue tu, águia, o voo inacessível!

Ide! crescei sem medo! não é avara
A alma eterna que em vós anda e palpita
Onda, que vai e vem e nunca pára!

Semeador de mundos, vai andando
E a cada passo uma seara basta
De vidas sob os pés lhe vem brotando!

Essência tenebrosa e pura... casta
C todavia ardente... eterno alento!
Teu sopro é que fecunda a esfera vasta...
Choras na voz do mar... cantas ao vento...

II

Porque o vento, sabei-o, é pregador
Que através dos soidões vai missionando
A eterna Lei do universal Amor.

Ouve-o rugir por essas praias, quando,
Feito tufão, se atira das montanhas,
Como um negro Titã, e vem bradando...

Que imensa voz! que prédicas estranhas!
E como freme com terrível vida
A asa que o livra cm extensões tamanhas!

Ah! quando em pé no monte, e a face erguida
Para a banda do mar, escuto o vento
Que passa sobre mim a toda a brida,

Como o entendo então! e como atento
Lhe escuto o largo canto! e, sob o canto,
Que profundo e sublime pensamento!

Ei-lo, o Ancião-dos-dias! ei-lo, o Santo,
Que já na solidão passava orando,
Quando inda o mundo era negrume e espanto!

Quando as formas o orbe tenteando
Mal se sustinha e, incerto, se inclinava
Para o lado do abismo, vacilando;

Quando a Força, indecisa, se enroscava
Às espirais do Caos, longamente,
Da confusão primeira ainda escrava;

Já ele era então livre! e rijamente
Sacudia o Universo, que acordasse...
Já dominava o espaço, omnipotente!

Ele viu o Princípio. A quanto nasce
Sabe o segredo, o germe misterioso.
Encarou o Inconsciente face a face,
Quando a Luz fecundou o Tenebroso.

III

Fecundou!... Se eu nas mãos tomo um punhado
Da poeira do chão, da triste areia,
E interrogo os arcanos do seu fado,

O pó cresce em mim... engrossa... alteia...
E, com pasmo, nas mãos vejo que tenho
Um espírito! o pó tornou-se ideia!

Ó profunda visão! mistério estranho!
Há quem habita ali, e mudo e quedo
Invisível está... sendo tamanho!

Espera a hora de surgir sem medo,
Quando o deus encoberto se revele
Com a palavra do imortal segredo!

Surgir! surgir! - é a ânsia que os impele
A quantos vão na estrada do infinito
Erguendo a pasmosíssima Babel!

Surgir! ser astro e flor! onda e granito!
Luz e sombra! atracção e pensamento!
Um mesmo nome em tudo está escrito...

...........................................

Eis quanto me ensinou a voz do vento.

1865-1874

TENTANDA VIA
I

Com que passo tremente se caminha
Em busca dos destinos encobertos!
Como se estão volvendo olhos incertos!
Como esta geração marcha sozinha!

Fechado, em volta, o céu! o mar, escuro!
A noite, longa! o dia, duvidoso!
Vai o giro dos céus, vem vagaroso...
Vem longe ainda a praia do futuro...

É a grande incerteza, que se estende
Sobre os destinos dum porvir, que é treva...
É o escuro terror de quem nos leva...
O futuro horrível que das almas pende!

A tristeza do tempo! o espectro mudo
Que pela mão conduz... não sei aonde!
- Quanto pode sorrir, tudo se esconde...
Quanto pode pungir, mostra-se tudo. -

Não c a grande luta, braço a braço,
No chão da Pátria, à clara luz da História...
Nem o gládio de César, nem a glória...
É um misto de pavor e de cansaço!

Não é a luta dos trezentos bravos,
Que o solo amado beijam quando caem...
Crentes que traz um Deus, e à guerra saem,
Por não dormir no leito dos escravos...

É a luta sem glória! é ser vencido
Por uma oculta, súbita fraqueza!
Um desalento, uma íntima tristeza
Que à morte leva... sem se ter vivido!

Não há aí pelejar... não há combate...
Nem há já glória no ficar prostrado -
São os tristes suspiros do Passado
Que se erguem desse chão, por toda a parte...

É a saudade, que nos rói e mina
E gasta, como à pedra a gota d'água...
Depois, a compaixão, a íntima mágoa
De olhar essa tristíssima ruína...

Tristíssimas ruínas! Entristece
E causa dó olhá-las - a vontade
Amolece nas águas da piedade,
E, em meio do lutar, treme e falece.

Cada pedra, que cai dos muros lassos
Do trémulo castelo do passado,
Deixa um peito partido, arruinado,
E um coração aberto em dois pedaços!

II

A estrada da vida anda alastrada
De folhas secas e mirradas flores...
Eu não vejo que os céus sejam maiores,
Mas a alma... essa é que eu vejo mais minguada!

Ah! via dolorosa é esta via!
Onde uma Lei terrível nos domina!
Onde é força marchar pela neblina...
Quem só tem olhos para a luz do dial

Irmãos! irmãos! amemo-nos! é a hora...
É de noite que os tristes se procuram,
E paz e união entre si juram...
Irmãos! irmãos! amemo-nos agora!

E vós, que andais a dores mais afeitos,
Que mais sabeis à Via do Calvário
Os desvios do giro solitário,
E tendes, de sofrer, largos os peitos;
Vós, que ledes na noite... vós, profetas...
Que sois os loucos... porque andais na frente...
Que sabeis o segredo da fremente
Palavra que dá fé - ó vós, poetas!

Estendei vossas almas, como mantos
Sobre a cabeça deles... e do peito
Fazei-lhes um degrau, onde com jeito
Possam subir a ver os astros santos...

Levai-os vós à pátria-misteriosa,
Os que perdidos vão com passo incerto!
Sede vós a coluna de deserto!
Mostrai-lhes vós a Via-dolorosa!

III

Sim! que é preciso caminhar avante!
Andar! passar por cima dos soluços!
Como quem numa mina vai de bruços
Olhar apenas uma luz distante!

É preciso passar sobre ruínas,
Como quem vai pisando um chão de flores!
Ouvir as maldições, ais e clamores,
Como quem ouve músicas divinas!

Beber, em taça túrbida, o veneno,
Sem contrair o lábio palpitante!
Atravessar os círculos do Dante,
E trazer desse inferno o olhar sereno!

Ter um manto da casta luz das crenças,
Para cobrir as trevas da miséria!
Ter a vara, o condão da fada aérea,
Que em ouro torne estas areias densas!

É, quando, tem temor e sem saudade,
Puderdes, dentre o pó dessa ruína,
Erguei o olhar à cúpula divina,
Heis-de então ver a nova-claridade!

Heis-de então ver, ao descerrar do escuro,
Bem como o cumprimento de um agouro,
Abrir-se, como grandes portas de ouro,
As imensas auroras do Futuro!
SONETOS (extracto)


IDÍLIO

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.

A UM POETA
(surge et ambula)

Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares…
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno…

Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções…
Mas de guerra… e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

HINO À RAZÃO

Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz dum coração que te apetece,
Duma alma livre só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça
De astros, sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.

Por ti, na arena trágica, as nações
buscam a liberdade entre clarões;
e os que olham o futuro e cismam, mudos,

Por ti podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

O PALÁCIO DA VENTURA

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

CONSULTA

Chamei em volta do meu frio leito
As memórias melhores de outra idade,
Formas vagas, que às noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito…

E disse-lhes: No mundo imenso e estreito
Valia a pena, acaso, em ansiedade
Ter nascido? Dizei-mo com verdade,
Pobres memórias que eu ao seio estreito.

Mas elas perturbaram-se - coitadas!
E empalideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena…

E cada uma delas, lentamente,
Com um sorriso mórbido, pungente,
Me respondeu: - Não, não valia a pena!

LACRIMAE RERUM

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!

Aonde são teus sóis, como coorte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vão busca a certeza que o conforte?

Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas…

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas…

A GERMANO MEIRELES

Só males são reais, só dor existe:
Prazeres só os gera a fantasia;
Em nada[, um] imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.

Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há [aí] senão ser triste?

Oh! Quem tanto pudera que passasse
A vida em sonhos só. E nada vira…
Mas, no que se não vê, labor perdido!

Quem fora tão ditoso que olvidasse…
Mas nem seu mal com ele então dormira,
Que sempre o mal pior é ter nascido!

O CONVERTIDO

Entre os filhos dum século maldito
Tomei também lugar na ímpia mesa,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
Duma ânsia impotente de infinito.

Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza…
Mas um dia abalou-se-me a firmeza,
Deu-me um rebate o coração contrito!

Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!

Amortalhei na Fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e esquecimento…
Só me falta saber se Deus existe!

MORS-AMOR

Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável mas plácido no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz «Eu sou a morte»,
Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor».

EVOLUÇÃO

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta…
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo…

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo…

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade…

Interrogo o infinito e às vezes choro…
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

ESPIRITUALISMO

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas vagamente…

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão onde se esconde
O inconsciente imortal só me responde
Um bramido, um queixume e nada mais.

COM OS MORTOS

Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos…

E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos…

Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.

NOX

Noite, vão para ti meus pensamentos,
Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,
Tanto estéril lutar, tanta agonia,
E inúteis tantos ásperos tormentos...

Tu, ao menos, abafas os lamentos,
Que se exalam da trágica enxovia...
O eterno Mal, que ruge e desvaria,
Em ti descansa e esquece alguns momentos...

Oh! Antes tu também adormecesses
Por uma vez, e eterna, inalterável,
Caindo sobre o Mundo, te esquecesses,

E ele, o Mundo, sem mais lutar nem ver,
Dormisse no teu seio inviolável,
Noite sem termo, noite do Não-ser!

SOLEMNIA VERBA

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.




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Cesário Verde

José Joaquim Cesário Verde (1855-1886) nasceu em Lisboa. Matriculou-se no curso de Letras da Universidade de Lisboa, mas desistiu, indo trabalhar para a loja de ferragens que seu pai tinha na Rua dos Bacalhoeiros. Começou a publicar poesias no Diário de Notícias, no Diário da Tarde, no Ocidente, entre outros. Adoecendo gravemente, fixa-se na quinta da família em Linda-a-Pastora. Morreu tuberculoso ainda muito novo. Foi graças aos esforços do seu amigo Silva Pinto que as suas poesias são postumamente publicadas em volume com o título O Livro de Cesário Verde (1887). A sua estética literária anda próxima do Parnasianismo.

O LIVRO DE CESÁRIO VERDE (seleta)

O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL

I

AVE-MARIAS

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

II
NOITE FECHADA

Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e criancas,
Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!

E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

III
AO GÁS

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim!

IV

HORAS MORTAS

O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!


(Em Portugal a Camões, publicação extraordinária
do Jornal de Viagens do Porto, no dia 10 de Junho de 1880)


DESLUMBRAMENTOS

Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo de um regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas.



A DÉBIL

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

"Ela aí vem!" disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, - talvez que o não suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca,
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esvelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.


1875


DE TARDE

Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!


1887


VAIDOSA

Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces,
És tão loira e doirada como as messes,
E possuis muito amor... muito amor próprio.



NUM BAIRRO MODERNO

Dez horas da manhã; os transparentes

Matizam uma casa apalaçada;

Pelos jardins estacam-se as nascentes,

E fere a vista, com brancuras quentes,

A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados,

Abriram-se, nalguns, as persianas,

E dum ou doutro, em quartos estucados,

Ou entre a rama dos papéis pintados,

Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu aconchego,

E a sua vida fácil! Eu descia,

Sem muita pressa, para o meu emprego,

Aonde eu agora quase sempre chego

Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,

Notei de costas uma rapariga,

Que no xadrez marmóreo duma escada,

Como um retalho de horta aglomerada,

Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a:

Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos;

E abre-se-lhe o algodão azul da meia,

Se ela se curva, esguedelhada, feia,

E pendurando os seus bracinhos brancos.

Do patamar responde-lhe um criado:

«Se te convém, despacha; não converses.

Eu não dou mais.» E muito descansado,

Atira um cobre lívido, oxidado,

Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente - que visão de artista! -

Se eu transformasse os simples vegetais,

À luz do Sol, o intenso colorista,

Num ser humano que se mova e exista

Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha;

Com o cabaz às costas, e vergando,

Sobem padeiros, claros de farinha;

E às portas, uma ou outra campainha

Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia,

Um novo corpo orgânico, aos bocados.

Achava os tons e as formas. Descobria

Uma cabeça numa melancia,

E nuns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,

Negras e unidas, entre verdes folhos,

São tranças dum belo cabelo que se ajeite;

E os nabos - ossos nus, da cor dp leite,

E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Há colos, ombros, bocas, um semblante

Nas posições de certos frutos. E entre

As hortaliças, túmido, fragrante,

Como dalguém que tudo aquilo jante,

Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,

Vi nos legumes carnes tentadoras,

Sangue na ginja vívida, escarlate,

Bons corações pulsando no tomate

E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

O sol dourava o céu. E a regateira,

Como vendera a sua fresca alface

E dera o ramo de hortelã que cheira,

Voltando-se, gritou-me, prazenteira:

«Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!...»

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;

E, pelas duas asas a quebrar,

Nós levantámos todo aquele peso

Que ao chão de pedra resistia preso,

Com um enorme esforço muscular.

«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»

E recebi, naquela despedida,

As forças, a alegria, a plenitude,

Que brotam dos excessos de virtude

Ou duma digestão desconhecida.

E enquanto sigo para o lado oposto,

E ao longe rodam as carruagens,

A pobre afasta-se, ao calor de Agosto,

Descolorida nas maçãs do rosto,

E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira

Duma janela azul; e, com o ralo

Do regador, parece que joeira

Ou que borrifa estrelas; e a poeira

Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias,

Oiço um canário - que infantil chilrada! -

Lidam ménages entre as gelosias,

E o sol estende, pelas frontarias,

Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita,

O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,

Duma desgraça alegre que me incita,

Ela apregoa, magra, enfezadita,

As suas couves repolhudas, largas.

E, como grossas pernas dum gigante,

Sem tronco, mas atléticas, inteiras,

Carregam sobre a pobre caminhante,

Sobre a verdura rústica, abundante,

Duas frugais abóboras carneiras.

CRISTALIZAÇÕES

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,

Vibra uma imensa claridade crua.

De cócoras, em linha, os calceteiros,

Com lentidão, terrosos e grosseiros,

Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,

E o descoberto sol abafa e cria!

A frialdade exige o movimento;

E as poças de água, como em chão vidrento,

Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,

Disseminadas, gritam as peixeiras;

Luzem, aquecem na manhã bonita,

Uns barracões de gente pobrezita

E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!

Tomam por outra parte os viandantes;

E o ferro e a pedra - que união sonora! -

Retinem alto pelo espaço fora,

Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,

Cuja coluna nunca se endireita,

Partem penedos; cruzam-se estilhaços.

Pesam enormemente os grossos maços,

Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!

Que espessos forros! Numa das regueiras

Acamam-se as japonas, os coletes;

E eles descalçam-se com os picaretes,

Que ferem lume sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente flores,

Fundeiam, como a esquadra em fria paz,

As árvores despidas. Sóbrias cores!

Mastros, enxárcias, vergas! Valadores

Atiram terra com largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -

Carros de mão, que chiam carregados,

Conduzem saibro, vagarosamente;

Vê-se a cidade, mercantil, contente:

Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;

Em arco, sem as nuvens flutuantes,

O céu renova a tinta corredia;

E os charcos brilham tanto, que eu diria

Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,

Eu tudo encontro alegremente exacto.

Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.

E tangem-me, excitados, sacudidos,

O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem

De tão lavada e igual temperatura!

Os ares, o caminho, a luz reagem;

Cheira-me a fogo, a sílex, a ferrugem;

Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal-encarado e negro, um pára enquanto eu passo,

Dois assobiam, altas marretas

Possantes, grossas, temperadas de aço;

E um gordo, o mestre, com um ar ralaço

E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!

Que vida tão custosa! Que diabo!

E os cavadores pousam as enxadas,

E cospem nas calosas mãos gretadas,

Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas

Uma bandeira penso que transluz!

Com ela sofres, bebes, agonizas;

Listrões de vinho lançam-lhe divisas,

E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,

Surge um perfil direito que se aguça;

E ar matinal de quem saiu da toca,

Uma figura fina, desemboca,

Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento

E a quem, à noite na plateia, atraio

Os olhos lisos como polimento!

Com seu rostinho estreito, friorento,

Caminha agora para seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados

Como lajões. Os bons trabalhadores!

Os filhos das lezírias, dos montados:

Os das planícies, altos, aprumados;

Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,

Furtiva a tiritar em suas peles,

Espanta-me a actrizita que hoje pinto,

Neste Dezembro enérgico, sucinto,

E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,

Eles, bovinos, másculos, ossudos,

Encaram-na sanguínea, brutalmente:

E ela vacila, hesita, impaciente

Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,

Sem que inda o público a passagem abra,

O demonico arrisca-se, atravessa

Covas. entulhos, lamaçais, depressa,

Com seus pezinhos rápidos, de cabra!





(Ilustrações de Bernardo Marques)









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Resumo de O CRIME DO PADRE AMARO - Eça de Queirós

O Enredo:

&Romance anticlerical dos mais ferozes, é ambientado em Leiria, onde o Padre Amaro Vieira, ingênuo e psicologicamente um fraco, vai assumir sua paróquia. Hospedando-se na casa da Senhora Joaneira, acaba por se envolver sexualmente com sua filha, Amélia. Amaro conhece, então, o cinismo dos seus colegas, que em nada estranham sua relação com a jovem. Grávida, Amélia acaba por morrer no parto e Amaro entrega a criança a uma "tecedeira de anjos". Morta também a criança, Amaro, agora um cínico descarado, prossegue com a sua carreira. O romance, que critica violentamente a vida provinciana e o comportamento do clero, foi, durante décadas, leitura proibida em muitas escolas de Portugal e do Brasil.

As Personagens:

A intenção de Eça ao escrever o Crime do Padre Amaro não era apenas a denúncia dos vícios do clero devasso, mas também apresentar a vida mesquinha da cidade provinciana portuguesa. Assim, só Amaro e Amélia, as personagens centrais, são criticadas pelo narrador. Também as personagens secundárias são utilizada para revelar as mazelas da sociedade em que estão inseridas.

O Padre Amaro Vieira

O protagonista do romance era filho de dois criados do marquês de Alegros. Perde os pais ainda criança e é educado no meio da criadagem da marquesa, o que faz com se torne "enredador. Muito mentiroso." A marquesa decide que se ele tornaria padre, e assim, aos quinze anos, é mandado ao seminário.

É um fraco tanto física quanto psicologicamente. Aceita o sacerdócio passivamente. Por influência do conde de Ribamar, obtém a paróquia de Leiria, onde se hospeda na casa da S. Joaneira. Lá conhece Amélia, filha de sua hospedeira, e ela torna-se sua amante. O ambiente da casa da marquesa, onde fora criado, e o seminário moldaram o caráter de Amaro. Já sacerdote em Leiria, espanta-se, no início, com o cinismo explícito dos seus colegas de batina, mas todas essas situações, somadas ao ambiente de servilismo beato da casa onde está hospedado, fazem com que ele se atole em ações desonrosas, como entregar seu filho a uma "tecedeira de anjos" e a criança acaba por morrer. No final do romance, ele tornou-se idêntico aos seus pares. Uma conversa entre Amaro e o cônego Dias, mostra, de forma clara, como Amaro e os outros eclesiásticos representam o clero sem vocação e hipócrita. Os dois estão refletindo sobre os excessos da Comuna, afirmam que seus seguidores merecem a masmorra e a forca porque não respeitam o clero e "destroem no povo a veneração pelo sacerdócio", caluniando a Igreja. Então, uma mulher provocante passa diante deles e ambos trocam olhares cúmplices. O cônego exclama: "- Hem, seu Padre Amaro?... Aquilo é que você queria confessar" E Amaro responde: " - Já lá vai o tempo, padre-mestre - disse o pároco rindo - já as não confesso senão casadas!"

Amélia Caminha

A co-protagonista do romance concentra, em sua figura, o resultado trágico de uma formação num meio provinciano e atrasado, centrado em torno do poder eclesiástico. A sua casa é um beatério, centro de convivência dos poderosos e amorais sacerdotes da cidade, em que impera a superficialidade dos rituais e uma deformação dos conceitos religiosos cristãos. Nesta sociedade, a Igreja é parte ativa do poder político, que a utiliza nas suas manobras eleitoreiras e lhe dá privilégios sociais, prestígio e poder.

Amélia vive, portanto, rodeada de cônegos e padres. Aos 23 anos, alta, forte e "muito desejada", possui um temperamento sentimental, romântico e fortemente sensual. Órfã de pai, sua mãe é amante do cônego Dias e ela é uma devota simplória e passiva, atraída pelo ritual católico. Namora João Eduardo, escrevente de cartório. Conhece, então, o Padre Amaro, pároco da Sé de Leiria, hóspede na casa de sua mãe. Apaixona-se e entrega-se a ele com total submissão.

Fica grávida e esconde-se numa quinta próxima à cidade, acompanhada de uma fanática beata, irmã do cônego Dias. Recebe a visita do abade Ferrão, único sacerdote decente do romance. Ele tenta recuperá-la para uma vida normal e digna e quer tirá-la da influência nefasta de Amaro. No entanto, Amélia morre no parto.

Outras Personagens:

O narrador do romance, na terceira pessoa, apresenta as personagens secundárias com grande dose de ironia e uma certa antipatia. Como bem o colocou Benjami Abdala Jr:

"Fica muito clara a antipatia do narrador pelo círculo de amigos da S.Joaneira (Maria Assunção, Josefa Dias, Joaquina Gansoso e o beato homossexual Libaninho). O mesmo ocorre em relação aos colegas de Amaro (cônego Dias, padre Natário e padre Brito), pois o narrador parece convencido antecipadamente de seus vícios e grosseirias. O único religioso que se exclui desse círculo é o abade Ferrão, apresentado como uma personagem coerente com seus ideais. A ironia do narrador não é restrita aos religiosos, estendendo-se para o contexto social

de Leiria.

Várias personagens são apresentadas de forma sarcástica: o jornalista Agostinho Pinheiro; o venal Gouveia Ledesma, o burguês reacionário Carlos. Nesse ambiente, João Eduardo, noivo de Amélia, enciumado com as atenções da moça ao padre Amaro, escreveu um anônimo "Comunicado" na Voz do Distrito, criticando a covivência de padres com amantes. Rompe-se o noivado: Amélia torna-se amante do padre Amaro."



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Resumo de A Cidade e as Serras, Eça de Queirós.

O romance A Cidade e as Serras, publicado em 1901, é desenvolvimento do conto "Civilização", de Eça de Queirós. Uma personagem, José ("Zé") Fernandes, relata a história do protagonista Jacinto de Tormes. Na composição são destacados os episódios diretamente relacionados coma personagem principal, ficando os fatos da história de Zé Fernandes apenas como elos de ligação da história vivida por Jacinto. Desde o início, o narrador apresenta um ponto de vista firme, depreciando a civilização da cidade.

Na primeira parte da narrativa, Zé Fernandes justifica sua aproximação de Jacinto (o "Príncipe da Grã-Ventura"), ligando-se a ele por amizade fraternal em Paris. Jacinto nascera e sempre morara em um palácio, nos Campos Elíseos, número 202. A mudança de sua família de Tormes, Portugal, para Paris deveu-se a seu avô Jacinto Galião. Seu neto, ao contrário do pai, que morrera tuberculoso, foi sempre fisicamente forte e, além de rico, era inteligente, voltando toda sua atividade para o conhecimento. Mas detestava o campo e amontoara em seu palácio, em livros, toda a conquista das filosofias e ciências, além dos aparelhos tecnicamente mais sofisticados da época. E, para Jacinto, "o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado".

Zé Fernandes era decididamente contrário a essa orientação tecnicista e mecanizada e vai registrando como Jacinto rompe totalmente com seu passado campesino, deteriorando-se na cidade. A regeneração só ocorrerá com uma atitude assumida por Jacinto, já na segunda parte da narrativa - nas serras.

Um dia Jacinto, enfastiado da vida urbana, participa a Zé Fernandes sua partida para Portugal, a pretexto de reconstruir sua casa em Tormes, deslocando para lá os confortos do palácio. Entretanto, o criado Grilo perde-se com as bagagens, que, por engano, foram remetidas para Alba de Tormes, Espanha. Assim o supercivilizado Jacinto chega a Tormes apenas com a roupa do corpo.

Em contato estreito com a natureza, Jacinto renova-se, primeiro liricamente, numa atitude de encantamento, integrando-se depois na vida produtiva do campo, quando aplica seus conhecimentos técnicos científicos à situação concreta de Tormes.

Sem romper totalmente com os valores da "civilização", Jacinto adapta o que pode ao campo. Modernizam-se dessa forma as serras, algumas reformas sociais são introduzidas e a produtividade aumenta. Ao príncipe da Grã-Ventura, só faltava um lar, o que ocorre em seguida, por meio de seu casamento com a prima de Zé Fernandes, Joaninha. Assim completamente feliz, no cotidiano das serras, Jacinto não mais volta a Paris, e esquece as companhias parisienses, como do grã-duque Casimiro, a condessa de Tréves, o conde de Tréves, o banqueiro judeu Efraim, madame Oriol e outros.


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Primo Basílio - Eça de Queirós

COMENTÁRIO
O livro é uma crítica profunda aos padrões burgueses e tenta demonstrar, a todo momento, as características maléficas dessa classe, sobretudo a lisboeta, como afirma o próprio autor em carta a Teófilo Braga: "...e você vendo-me tomar a família como assunto, pensa que eu não devia atacar essa instituição eterna, e devia voltar o meu instrumento de experimentação social contra os produtos transitórios, que se perpetuam além do momento que os justificou, e que de forças sociais passaram a ser empecilhos públicos. Perfeitamente: mas eu não ataco a família - ataco a família lisboeta - a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo centro de bambochata. Em O Primo Basílio que apresenta, sobretudo, um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de Lisboa(...)"


Marcelo Sandes

Romance de Tese


O período naturalista foi marcado pelo desejo de redefinir as relações entre literatura e sociedade, no sentido dos leitores tomarem consciência de uma realidade que muitos não queriam ou não podiam ver (Chevrel, 1982). O escritor naturalista tem por função revelar as regras, os problemas, os comportamentos e o funcionamento inadequado da sociedade.
Um romance de tese tem sempre uma finalidade didáctica e normativa ao procurar demonstrar a validade de uma versão do mundo sedimentada numa doutrina política, social, filosófica, religiosa (Suleiman, 1983) - no caso, o positivismo, o socialismo utópico, o determinismo. É determinado por um fim específico, que existe antes e para além da história. O narrador é não só a fonte da história, mas também o intérprete do seu significado. O efeito persuasivo da história de aprendizagem passa por uma identificação virtual do leitor com o protagonista. A oposição aprendizagem positiva - aprendizagem negativa caracteriza a aprendizagem exemplar realizada no romance de tese. A aprendizagem positiva orienta o herói pelos valores propostos pela doutrina que fundamenta o romance. A aprendizagem negativa leva à punição do protagonista. O seu insucesso serve como lição e espera-se que o leitor perceba o percurso errado e não o deseje seguir.
J. Gaspar Simões (1980) refere que O Primo Basílio, enquanto romance de tese, estava dentro da arte revolucionária, que a Geração de 70 e Eça queriam promover, como um peixe na água. Embora Eça tenda a deixar de fora as condições económicas da vida social, em contrapartida evidencia os factores morais, psicológicos e educativos (Saraiva, 1982).
O "episódio doméstico" que constitui O Primo Basílio, restringe-se ao espaço social e geográfico da capital, como Eça menciona em carta a Rodrigues de Freitas, em 30 de Março de 1878, o qual se torna determinante para a própria construção das personagens:


"eu procurei que os meus personagens pensassem, decidissem, falassem e actuassem como puros lisboetas, educados entre o Cais do Sodré e o Alto da Estrela; não lhes daria nem a mesma mentalidade, nem a mesma acção se eles fossem do Porto ou Viseu; as individualidades morais variam de província a província - mas no meio lisboeta que escolhi, creio que elas são lógicas, exactamente derivadas e perfeitamente correspondentes" (Queirós, Correspondência, p.141)".


O ponto de vista omnisciente do narrador serve a óptica naturalista e a estratégia do romance de tese. A caracterização das personagens, sobretudo as principais, incide sobre a sua origem social, a sua educação, as características inculcadas pelo ambiente, ao serviço da tese social que o narrador pretende demonstrar. Embora neste romance o narrador, por vezes, permita a focalização interna, recorra ao monólogo interior, evidencie o universo onírico, estes aspectos não chegam a comprometer a predominância da estética naturalista.
Apesar de todas as preocupações de imparcialidade do narrador naturalista, há no romance inúmeras interferências da sua subjectividade ao nível do uso dos discursos valorativo, figurado, conotativo, abstracto, moralizante, e da ironia, que o narrador coloca ao serviço do romance de tese, visando influenciar o leitor no sentido de o levar a "ver verdadeiro", a aceitar a validade de uma certa visão do mundo.

Resumo :

É domingo. Jorge e Luísa encontram-se no quarto de dormir, em um momento de intimidade. Ele fuma um cigarro e considera, contrafeito, os aborrecimentos de uma viagem à serviço que deverá fazer no dia seguinte a Alentejo. Ela, ainda de roupão, lê o Diário de Notícias..

O casamento dos dois não é resultado de nenhuma grande paixão; encontra-se, antes, fundado no desejo de organização da vida quotidiana: Jorge sente-se só após a morte da mãe; Luísa realizou o desejo de toda moça solteira, assumindo a posição de mulher casada. Não obstante, ambos vivem bem. Ele encontrou o carinho do qual necessitava e ela tem, afinal, seu homem. Ao mesmo tempo que apresenta esse mundo pacato, o narrador anuncia a chegada do personagem que o irá destruir. Luísa lê a notícia que seu primo Basílio está visitando Lisboa após longo tempo de ausência .

Mal ela comenta com o marido a novidade, entra outra personagem fundamental para a trama, Juliana, a criada de dentro. Luísa não esconde sua antipatia pela figura e já a teria despedido há muito, se Jorge não teimasse em mantê-la, em gratidão por ela ter cuidado de uma tia enferma.

À tarde, Leopoldina, amiga de infância de Luísa, vem vê-la. A visita provoca uma pequena tempestade familiar. Jorge não quer Leopoldina em sua casa, considera-a má companhia. A amiga tem de fato uma justa fama de possuir muitos amantes. Mas a rusga é breve. Luísa cede às razões do marido, este se acalma ao ver sua autoridade garantida.

Apaziguam-se os ânimos. Luísa gasta a tarde entre a leitura do final do romance A Dama das Camélias e as lembranças de seu namoro com o primo, interrompido quando ele partira para o Brasil, a fim de tentar resgatar a fortuna perdida com a falência de uma firma. Na época, ela tinha 17 anos e, sofrendo com a separação, caíra de cama com febre. Depois, conhecera Jorge e não pensara mais no assunto.

O domingo termina. Como sempre, alguns amigos visitam o casal. Julião Zuzarte, parente afastado de Jorge, é um médico mal sucedido, que destila amargura em cada comentário e olha com inveja a prata do aparador. D. Felicidade, nos seus cinqüenta anos, arde de paixão e perturba-se sensualmente ante o lustro da careca do Conselheiro Acácio, um homem sério e cheio de cerimônias, sempre pronto a fazer um discurso oficial em favor da família, da pátria e da moral. Pura hipocrisia, já que sua "moral" não o impede de viver em concubinato com sua criada.

Presente está também o primo Ernestinho Ledesma, um escritor que começa a fazer sucesso e encontra-se, nesse momento, às voltas com a criação da peça Honra e paixão, na qual, uma esposa, para salvar o marido de ser preso por uma dívida de jogo, recorre ao conde de Monte-Redondo, que intercede e entrega aos guardas a quantia devida, justamente no momento em que o homem está sendo preso. O marido, no entanto, percebendo que a mulher e o conde se amam, devolve o dinheiro e mata a mulher. O problema de Ernestinho é que o editor entende que o público deve sair do teatro alegre, exige um final menos trágico, e o autor vacila. Todos discutem que destino deve ser dado à personagem. Jorge exige que o primo siga os princípios da família e mate a adúltera sem piedade. Por essa posição intransigente, todos chamam Jorge de "Otelo".

O último a chegar à reunião é o melhor amigo de Jorge, Sebastião, o único também a se diferenciar do grupo: pessoa sensível, simples, íntegra. Goza tanta confiança de Jorge, que este lhe pede para que controle as visitas de Leopoldina a Luísa durante sua ausência.

Doze dias após partida de Jorge, Luísa recebe a visita de Basílio, que fica impressionado com a beleza da prima. O encontro é carregado de sentimentalismo, principalmente porque Basílio não deixa nunca de se referir aos velhos tempos do namoro, segundo ele, o único tempo feliz de sua vida. Cauteloso, ele entremeia as alusões amorosas com histórias de suas viagens pelo mundo e de pessoas ilustres com quem conviveu. Dessa forma, quando Luísa cora com a inconveniência das alusões ao passado, ele a distrai e seduz com o relato de suas experiências exóticas. Ao final da entrevista, valendo-se da condição de parente, ele deposita um demorado beijo na mão de Luísa.

Basílio parte. Embora Luísa passe o dia pensando nas boas qualidades de Jorge, na sua boa vida de casada, a imagem do ex-namorado persiste, sugerindo uma outra existência, mais poética, mais própria para os grandes sentimentos. Mal sabe ela que Basílio também está feliz. Ficou na dúvida em visitar a prima, mas agora que a tinha visto, compara-a com a amante que deixara em Paris, magra demais, e decide que as formas arredondadas da prima valem uma aventura. Tudo parecia pronto para o adultério.

A presença de Basílio deixa Juliana alvoraçada. Ela, na esperança de viver dias melhores, anda sempre à procura de algum segredo, de algum escândalo de suas patroas.

A história de Juliana é triste. Filha de uma engomadeira e um degredado, está acostumada a trabalhar desde cedo, sem alcançar nenhum progresso. Feia demais para atrair o desejo de um homem, acabou solteira. Assim, quando a mãe morre, fica sem ninguém no mundo.

Juliana é orgulhosa. Já serve há vinte anos e não se acostuma a servir. Juntara, penosamente, dinheiro para abrir um negocinho, o sonho de sua vida, mas uma doença levou-lhe cada uma das moedas e toda a esperança, que só voltou quando a tia de Jorge, viúva e rica, adoeceu. Mas, apesar de ter suportado o mau humor da velha durante meses, desmanchando-se em cuidados, não chegou sequer a ser citada no testamento. Foi antes promovida a criada de dentro, o que lhe deu oportunidade de ver os estofados das casa serem trocados com a parte da herança que ficou com Jorge. Como se não bastasse, Juliana sofre do coração. A revolta ruminada durante anos tornou-a má, invejosa, quase incapaz de disfarçar seu ódio pelas patroas. Por isso, passa a espreitar cada movimento de Luísa, com a intenção de descobrir algum crime do qual pudesse tirar vantagem.

O que se passa na visita do primo, por detrás das portas fechadas, fica vedado a Joana e ao leitor. Mas à noite, Luísa sai ao passeio com D. Felicidade, onde se dá um encontro "casual" entre ela e o primo . Na tarde seguinte, os dois se reencontram. Vai à casa também Julião. O resultado é catastrófico. Não bastasse sentir-se diminuído pelos trajes de Basílio, Julião percebe que Luísa está visivelmente constrangida com sua aparência. Impiedosamente, Basílio passa a pedir notícias de gente ilustre, pessoas completamente fora do círculo de Julião, que sai de cena arrasado. Aparece também o Conselheiro, para uma pequena visita. Com ele, Basílio é amável e distante, levemente superior. Dá-se entre os dois uma educada divergência de opiniões: Basílio critica Portugal, o Conselheiro defende a terra. A discussão é encerrada com Basílio cantando, acompanhado por Luísa ao piano. Enquanto canta, encara a prima de maneira tão emocionada e sedutora, que ela perde os compassos da música. O Conselheiro deixa a casa encantado. Não percebeu a comoção entre os dois, não percebeu também o desprezo de Basílio que, comparando-o a Julião, tem apenas o seguinte comentário elogioso a fazer: "este, pelo menos, é limpo".

Mal sai o Conselheiro, Basílio atira-se sobre Luísa, tentando beijá-la. Ela se assusta, resiste, fraqueja e acaba se irritando. Reconhecendo que foi muito apressado, muda de tática. Diz amá-la castamente, envolve seus sentimentos de espiritualidade e retira-se com a garantia de um novo encontro.

Naquela noite, Luísa recebe uma carta de Jorge. Tomada de culpa, decide interromper aquelas visitas familiares. Mas tão logo pensa em não ver o primo, adivinha o sofrimento do rapaz sozinho no hotel, infeliz e pálido; pondera o teor fraternal e casto do relacionamento, transforma Basílio em um personagem tão parecido com um herói romântico, tão adorável, tão infeliz, tão puro, que acaba beijando o travesseiro, pensando nos fios de cabelos brancos do primo, ganhos, segundo ele, com as saudades que sentiu dela.

Sebastião esteve na casa de Luísa por três vezes e por três vezes não conseguiu vê-la, pois Basílio estava sempre com Luísa e ele intimidou-se. Era verdade que Basílio era primo, o que garantiria certa decência nessas visitas, mas a fama de farrista, irresponsável, e conquistador de Basílio preocupa Sebastião. Além disso, já há falatórios na rua.

Sebastião angustia-se. Vai pedir conselhos a Julião, cujos comentários grosseiros só o constrangem. Decide, então, falar com Luísa. Mas quando está chegando na casa, vê Basílio entrando, ouve os comentários maliciosos dos comerciantes da rua e recua.

Lá dentro, Basílio tenta, sem sucesso, convencer Luísa a fazer um passeio ao campo. Como ela resiste, muda de estratégia. No dia seguinte, diverte-a com canções, anedotas, histórias de paixões adúlteras das parisienses. Não faz juras, não insiste e comunica que está pensando em partir. O resultado é imediato: é Luísa quem lembra o passeio e os dois fazem alguns planos.

Mas, no dia seguinte, Basílio não aparece. Exasperada, Luísa inicia um bilhete para mandar ao hotel, mas tem que enfiá-lo às pressas no bolso do vestido. Sebastião acaba de chegar para alertá-la sobre os mexericos. Encolerizada, a princípio, ela acaba por cair em si e agradecer.

Sai Sebastião, chega Leopoldina para o jantar. Elogia o amante e reclama da posição subalterna da mulher na sociedade. Os contra-argumentos morais de Luzia são frouxos. No fundo, ela também está orgulhosa de ter seu amante.

Já tarde da noite, Basílio faz uma entrada tempestuosa na sala de visitas. Exausta emocionalmente de esperá-lo durante todo o dia, temerosa de perdê-lo, Luísa deixa-se seduzir. De volta ao hotel, Basílio procura Reinaldo, colega de viagem que tem exigido mais rapidez na conquista para que possam prosseguir viagem, e informa, triunfante: finalmente, a prima está caída.

No manhã seguinte, Juliana encontra o bilhete no bolso do vestido, mas controla-se e não o tira dali. Luísa recebe uma carta de Basílio, com retumbantes declarações de amor, escritas no hotel, entre dois copos de cerveja e a leitura preguiçosa de uma revista. Emocionada, beija a carta: a primeira carta de amor que recebe, como nos romances. É preciso responder. Inicia com um "Meu adorado Basílio". Está no auge de suas confissões, quando D. Felicidade irrompe sala a dentro. Aterrorizada, Luísa amassa o papel, joga-o no lixo e leva a outra para o quarto. Quando volta, Juliana já terminara a limpeza da sala e jogara o conteúdo do lixo. Luísa fica desesperada. Percebe o perigo. Lembra do bilhete no bolso do vestido e vai verificar. Como o encontra lá, tranqüiliza-se. Crê que a carta teria sido jogada fora. Juliana é quem está esperançosa de conseguir a oportunidade por que sempre esperara: chegará a hora de exigir uma recompensa por guardar segredo do adultério da patroa.

Luísa não pensa mais no assunto, mesmo porque uma mensagem vinda do hotel avisa-a do endereço do ninho de amor que Basílio providenciou para se encontrarem e que batizou de Paraíso. Ela vai ao encontro. Está excitada com a aventura. No caminho, lembra de um romance em que o herói forra de cetim e tapeçarias o interior de um casebre miserável, para receber a amante. Mas quando chega ao local depara-se com um quarto úmido num sobrado pobre e mal cheiroso. Apesar dessa decepção, vai para lá todo dia, enquanto Juliana agüenta com boa cara o aumento vertiginoso de roupas de baixo para lavar e passar.

Mas tantas saída só podem causar mexericos na vizinhança. Onde irá "a do engenheiro" todo santo dia? O que salva Luísa é D. Felicidade torcer o pé e ir parar na Encarnação. Sebastião encontra neste fato a explicação para as saídas constantes. Sua delicadeza o leva a um gesto protetor: como quem não quer nada, informa o Paula, comerciante de língua feroz, que D. Luísa vai todo dia visitar D. Felicidade, que se encontra doente. É o suficiente: aos olhos da vizinhança, ela passa de adúltera para exemplo de caridade.

De fato, alertada pelos elogios que Sebastião lhe dá pela assiduidade com que vê a amiga, Luísa passa mesmo a ir à Encarnação antes de dirigir-se ao Paraíso.

A casa de Jorge entra em fase de grande harmonia. Satisfeita, a patroa não implica com as empregadas. Joana, a criada de fora, recebe o amante nas horas mais calmas, enquanto Juliana sai quantas vezes precisa para ir ao médico ou a tia Vitória, uma inculcadeira que a está orientando a sobrinha em como proceder para tirar partido do segredo de Luísa.

Já no Paraíso, as coisas começam a ir mal. Basílio mostra-se cada vez menos disposto a manter as atenções da primeira fase da conquista. Tem momentos de rudeza. Há brigas, mas há reconciliações ardorosas e a relação, mesmo abalada, continua.

Um dia, Luísa encontra o Conselheiro Acácio na rua. O homem gruda-lhe nos calcanhares com tal insistência, que ela acaba por perder o encontro no Paraíso. Volta para casa furiosa e despeja sua raiva em Juliana, que reage: "a senhora saiba que nem todas as cartas foram para o lixo". A cena é violenta. Juliana passa muito mal do coração. Luísa desmaia. Quando volta a si, só vê uma saída: fugir com Basílio. Ao arrumar a mala, percebe que um baú fora arrombado e mais duas cartas roubadas. Enquanto isso, Juliana vai procurar a tia Vitória, que lhe diz como agir: mandarão um mensageiro até o hotel com cópias das cartas e exigirão um conto de réis.

Basílio só fica ao par da situação no Paraíso, mas nega-se a fugir com Luísa. Adivinha a chantagem e até se dispõe a pagar, desde que não seja ele a negociar com a mulher para evitar mais extorsão. Luísa fica fora de si. Nega-se a receber o dinheiro e vai embora.

Já no hotel, Basílio acata o conselho de Reinaldo: devem partir imediatamente para Madri. Ainda há um último encontro. Luísa entende a situação e nega-se a receber o dinheiro. Basílio parte.

Juliana, que estivera sumida, reaparece furiosa. O amante fugiu, mas ela quer seus 600 mil réis ou mostra a carta a Jorge.

Luísa vê em Sebastião sua única saída e manda chamá-lo. Ele vem feliz: Jorge escreveu para ambos. Infelizmente, ele troca as cartas e ela acaba sabendo de algumas conquistas amorosas do marido. Luísa irrita-se, constrange-se de falar de suas necessidades com o amigo do marido e o vê indo embora sem ter resolvido nada.

Sempre aconselhada pela tia Vitória, Juliana resolve ser mais política. Afinal, de nada lhe adianta delatar a outra e ficar de mãos abanando. Escreve um bilhete para a patroa desculpando-se e comprometendo-se a fazer seu serviço corretamente enquanto espera o dinheiro. Luzia escreve a Basílio, mas não tem resposta. Sebastião viajou. Jorge está para chegar e Luísa consegue um prazo maior com Juliana. Ela tenta até mesmo recuperar as cartas, abrindo o baú de Juliana num momento em que a empregada saíra. Mas é claro que Juliana teria guardado os papéis em lugar bem mais seguro.

Enquanto procura ganhar tempo e conseguir o dinheiro, Luísa vai ficando à mercê das exigências da criada. A situação piora com a chegada de Jorge, que começa a estranhar o comportamento de Juliana e a condescendência de Luísa para com a criada. Um vestido de seda usado, saídas livres, a mudança para o "quarto dos baús", local espaçoso onde Jorge guarda suas malas. Depois, é uma esteira para cobrir o chão, depois uma cômoda para a roupa, depois camisas de baixo para encher a cômoda e, afinal, roupas de sair, que Luísa tinge, para que Jorge não note. Joana, a criada de fora, sente-se preterida e Luísa, para não ter desavenças dentro de casa, vai também cobrindo de agrados a outra. Graças aos esforços de Luísa, mais uma vez, a casa está tranqüila. Agora que pode servir-se melhor da comida, Juliana supervisiona os pratos e trata de deixar as camisas de Jorge absolutamente engomadas. Mas Luísa vive desesperada. Sua esperança é que o aneurisma de que sofre Juliana estoure repentinamente. Mais do que nunca, sente-se apaixonada pelo marido e teme perdê-lo.

A fase cooperativa de Juliana dura pouco. Ela começa diminuir sua carga de trabalho. Para que Jorge não note o desleixo, Luísa passa a fazer o serviço escondido.

As provocações aumentam até que Luísa, desesperada, procura Leopoldina. A sugestão da amiga é que ela se deixe seduzir pelo Castro, um banqueiro que é louco por ela, e arranje o dinheiro necessário. Mas Luísa não concorda.

Um dia, Juliana passa mal e cai desmaiada. É a doença do coração que está agindo. Julião alerta para a possibilidade de eles ficarem com uma inválida em casa, melhor seria desfazer-se dela. Jorge decide despedir Juliana, sem saber que está encurralando a mulher. Era certo que Juliana contaria tudo se se sentisse ameaçada de perder o emprego. Luísa não vê outra alternativa: teria de ceder ao Castro. Leopoldina arranja o encontro, mas na hora de entregar-se, Luísa é tomada de tal repulsa, que acaba chicoteando o banqueiro. Volta-se à estaca zero.

Uma tarde, Jorge chega do trabalho mais cedo e dá com a Juliana lendo jornal na sala, enquanto Luísa engoma nos fundos. Fica irritado com a mulher, mas dado o estado nervoso dela, cala-se. Mas dias depois, estando a criada ausente na hora de servir a refeição, Jorge explode e a despede.

Mal ele sai, estoura uma verdadeira guerra na casa. Juliana ofende Luísa e é agredida por Joana, que já há tempos está irritada com seus maus modos com a patroa. Juliana exige que a outra seja despedida, mas Joana, sentindo-se injustiçada, ameaça ir queixar-se ao patrão. Luísa chora e pede à criada que parta. Então, corre para a casa de Sebastião e conta-lhe tudo.

Entendendo perfeitamente a situação, Sebastião providencia ingressos para a ópera Fausto, de forma a deixar o campo livre. Enquanto a família está fora, vai a casa na companhia de um policial e esclarece a situação com Juliana: ou entrega a carta, ou está presa. Vendo-se obrigada a ceder, a mulher é acometida de tal crise de ódio, que o aneurisma estoura e cai morta.

Tudo parece ter entrado nos eixos. No entanto, presa de tantas comoções, Luísa começa a ter febre. Em uma das manhãs em que ela está febril, chega carta de Paris. Ocupado em ir buscar o Julião, Jorge enfia-a no bolso e esquece. O médico diagnostica uma excitação nervosa e recomenda que não se contrarie a doente. Já é tarde da noite quando Jorge lembra-se da carta. É de Basílio, explicando por que ainda não mandara o dinheiro, colocando-se à disposição e relembrando as boas manhãs passadas no Paraíso. Diante da notícia da traição da esposa, Jorge chora.

Para não piorar a doença da esposa, controla-se. Durante toda a convalescença, vela por ela atormentado pelo ciúme. Conforme melhora, Luísa cobre-o de carinho e ele deseja perdoá-la e esquecer. Mas não é capaz e mostra-lhe a carta. Luísa tem uma síncope. Inicia-se uma febre que derrota todos os esforços dos médicos. Ela falece e deixa Jorge completamente aniquilado _ .
Na noite do enterro, cada e personagem ocupa-se de uma maneira. Jorge e Sebastião choram. Julião lê uma revista estendido num sofá. Leopoldina dança numa festa do Cunha. Acácio deita-se com a amante. Dona Felicidade, informada do caso do Conselheiro, prepara-se para se recolher à Encarnação.

Pela manhã, Basílio, que chegara há pouco em Lisboa, encontra-se na frente da casa de Luísa. Tinha desejos de reativar o Paraíso. Fica realmente abatido quando sabe que ela faleceu. Até porque, confiando em reatar o caso com a prima, não trouxera com ele a amante Alphonsine.


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Resumo de Os Maias, de Eça de Queirós.

Os Maias, publicado em 1888, é a mais acabada realização de Eça de Queirós. O romance se desenvolve em duas linhas de ação: a primeira, em torno dos amores incestuosos de Carlos da maia; a segunda, em torno da vida da alta burguesia lisboeta.

A narrativa inicia-se com Pedro da Maia, filho de Afonso da Maia, educado, conforme enfatiza o narrador, de acordo com padrões românticos.

Pedro da Maia casa-se com Maria Monforte, filha de um traficante de escravos. Dessa união nascem dois filhos: Maria Eduarda e Carlos. O casal se separa logo depois. A menina fica com a mãe, e o menino com o pai, que se suicida. Educado pelo avô, segundo padrões britânicos, Carlos da Maia forma-se em Medicina. Como médico, vai exercendo sua profissão apenas de forma eventual, isto é, por diletantismo; também na vida seu procedimento é o mesmo, pois, em decorrência de uma sociedade desprovida de motivações científicas e culturais, não se fixa em nada.

A adesão afetiva do narrado é maior quando fala de João da Ega, caracterizado como um revolucionário inofensivo. Essa visão simpática também aparece em outras personagens, como Afonso da Maia e Craft, modelo da fleuma britânica. Em sentido oposto, o narrador apresenta Damaso Salcede, pretenso sedutor de mulheres, de forma sarcástica e ainda Eusebiozinho Silveira, produto da debilidade moral e física do Romantismo.

O filho de Pedro da Maia, após alguns encontros amorosos com a condessa Gouvarinho, conhece madame Castro Gomes (Maria Eduarda) e apaixona-se por ela. A amada rompe com Castro Gomes, com quem não era casada, e vai viver com Carlos da Maia. Considera-se oficialmente sua "noiva": ambos aguardam apenas a morte do avô Afonso para poderem se casar.

Entretanto, um jornalista idoso, Joaquim Guimarães, entrega a João da Ega uma caixa de documentos a ele confiada por Maria Monforte em Paris, para que ele a encaminhasse a Carlos e à "irmã". Carlos julgava que a irmã, como a mãe, estivesse morta há muito tempo. Ega lê os documentos e, aterrorizado, vai mostrá-los a Carlos: ele e sua amada, Maria Eduarda, eram irmãos.

Carlos da Maia, desnorteado, volta a encontrar-se com a irmã, numa atitude de incesto consciente. Surpreendido com o reaparecimento da neta, que surgia como amante do irmão, Afonso da Maia falece. A situação entre os irmãos só é solucionada após o funeral: Maria Eduarda, com a identidade esclarecida, vai para Paris e lá se casa; Carlos viaja para a América e o Japão, em companhia de Ega. Mais tarde, Carlos acaba fixando residência também em Paris, onde alia a ociosidade ao diletantismo.

Por Benjamim Abdalla Jr.

OS MAIAS - A LITERATURA NA TELEVISÃO

Antonio da Silveira Brasil Junior(a)

Elisa da Silva Gomes(b)

Maíra Zenun de Oliveira(c)

texto parcialmente reproduzido.

Resumo: O presente artigo pretende explorar as intricadas relações que existem entre o que se convencionou denominar cultura erudita e cultura de massa. Para tal, analisaremos o caso concreto da minissérie Os Maias, especialmente no que concerne às relações que foram estabelecidas - a partir deste programa - entre os campos literário e televisivo. Ademais, exporemos brevemente a importância de um estudo sociológico da televisão e de suas obras culturais.

Palavras-chave: Sociologia da Cultura, Televisão, Literatura, Adaptação, Audiência, Cultura de Massa e Cultura Erudita.

Introdução

O presente artigo procura, através da minissérie Os Maias, exibida pela Rede Globo de Televisão em 2001, adaptada do romance de Eça de Queirós[1], refletir acerca do debate que se constrói em torno de duas esferas culturais - a erudita e a de massa. Neste sentido, visa a problematizar, sob a perspectiva da Sociologia da Cultura, a questão de um suposto antagonismo entre as referidas culturas, buscando verificar se há ou não ruptura entre as mesmas - observando as relações entre literatura e televisão tanto do ponto de vista de sua produção como de sua recepção[2]. Antes, porém, faremos uma reflexão acerca da abrangência e relevância da televisão atualmente, bem como sobre os motivos pelos quais deve ser estudada. Em seguida, percorreremos em um breve histórico as minisséries globais, e a título de ilustração, descreveremos alguns aspectos da trama de Eça de Queirós. Por fim, detendo-nos à nossa questão principal, observaremos como se dão as relações entre cultura erudita e cultura de massa, analisando o material publicado sobre a minissérie nos jornais O Globo e Folha de São Paulo.

Cabe lembrar que, no âmbito deste trabalho, o par conceitual "cultura erudita" / "cultura de massa" é aplicado relacionalmente, isto é, de acordo com suas relações mútuas. Como sustenta Bourdieu (1999), as diferentes formas culturais só podem ser entendidas enquanto inseridas num mesmo espaço relacional de posições diferenciadas, de modo que só se é possível definir o que é cultura erudita em oposição à cultura de massa e vice-versa[3]. Adotar esta postura relacional, no que concerne aos usos deste par conceitual, possui duas conseqüências fundamentais: a) pode-se romper com uma análise essencialista [4] e com as tautologias que nada explicam - como expresso nas máximas "arte pela arte" e "negócio é negócio" -, que são mobilizadas pelos agentes culturais a fim de justificarem suas práticas; e b) se faz possível analisar como os diversos agentes culturais, no bojo de suas práticas, utilizam os termos cultura erudita e cultura de massa como categorias [5] e como alvo de lutas e disputas - na medida em que a "fronteira" entre as diversas formas culturais são constantemente contestadas, reavaliadas ou reforçadas pelos agentes.

Deste modo, ao invés de tentarmos definir, tout court, o que é a cultura erudita ou a cultura de massa, preferimos analisar de que maneira os diversos produtores ou artistas da minissérie Os Maias - bem como jornalistas, acadêmicos, etc. - re-atualizaram as distinções e fronteiras entre estas formas artísticas. Nesta direção, a importância da minissérie - ao se situar numa "zona de conflito", conforme analisaremos posteriormente - foi exatamente a de problematizar as fronteiras pré-estabelecidas entre a cultura erudita e a de massa, impulsionando um esforço de reflexão e reconstrução destas fronteiras por parte dos agentes em questão. Em outras palavras, o uso relacional do par conceitual "cultura erudita" / "cultura de massa" teve como objetivo dar tratamento dinâmico aos processos sociais de hierarquização das formas artísticas.

A televisão como objeto de reflexão

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE (2001), dos 5.506 municípios brasileiros, 93% não possuem sala de cinema, 85% não têm museus e teatros e 25% não dispõem nem de bibliotecas. Por outro lado, o Brasil conta com canais de televisão que cobrem cerca de 98% do território nacional. Dessa forma, não é difícil supor que a televisão reina absoluta no acesso à informação, cultura e lazer de grande parte da população brasileira.

Entretanto, apesar da imensa rede televisiva (que abrange praticamente todo o território nacional) e do considerável público (aproximadamente 145 milhões de telespectadores), a Sociologia tem se interessado pouco e praticamente não tem explorado a televisão enquanto tema de estudo no Brasil. Para se ter uma idéia da escassez de trabalhos, um levantamento realizado em 2002 na Biblioteca Marina São Paulo de Vasconcellos, do IFCS, indica que naquele acervo encontram-se dissertações de mestrado que se referem à mídia, mas nenhuma tese de doutorado sobre a televisão ou outros meios de comunicação de massa[6]. O levantamento bibliográfico que fizemos em algumas das principais revistas de ciências sociais no Brasil, buscando artigos que aludissem ainda que de modo indireto à televisão, constatou uma quantidade irrisória de trabalhos sobre os meios de comunicação de massa [7].

Um dos raros títulos de referência nos estudos estritamente sociológicos sobre televisão continua sendo o livro de Miceli (1972) A noite da madrinha, baseado em sua dissertação de mestrado realizada na Universidade de São Paulo. A pesquisa centrou-se no conteúdo da mensagem do Programa da Hebe, apresentado por Hebe Camargo no SBT, observando, dentre outros aspectos, como a atração reforça os valores do universo da família de classe média. Assim, a apresentadora é vista por Miceli como madrinha deste sistema de valores, recebendo os seus convidados numa sala de estar cenográfica, com uma linguagem emocional, com carinho, aconchego e calor, que por sua vez davam o tom de intimidade e familiaridade do programa. No entanto, em sua carreira acadêmica, o autor enveredou por outras temáticas voltadas para os intelectuais brasileiros, deixando para trás os estudos sobre televisão [8].

Se há uma escassez de estudos sobre televisão no campo da Sociologia, não podemos dizer o mesmo quando este meio de comunicação toma a si mesmo como objeto de reflexão, considerando que nos últimos anos vêm crescendo no Brasil os títulos publicados pelas pessoas que trabalham ou trabalharam na televisão, que vão desde reflexões sobre o que se veicula - e por que se veicula - a assuntos relacionados à produção na televisão propriamente dita [9].

As ciências sociais se caracterizam pela versatilidade de temas trabalhados. Contudo, torna-se um tanto difícil compreender a distância frente ao estudo de um fenômeno tão presente nas sociedades modernas, cuja repercussão é notável desde o seu surgimento. Neste momento, poderíamos inverter o questionamento e pensar justamente: por que a televisão deveria ser mais estudada pela Sociologia? Sem pretender esgotar esta questão, apontamos duas considerações relevantes que justificam a importância deste meio de comunicação como objeto de pesquisa. Em primeiro lugar, porque a televisão atinge 145 milhões de brasileiros, muitos dos quais têm nela a sua única fonte de informação, lazer e cultura, atuando no processo de formação destes indivíduos na medida em que os informa, seja quando os diverte ou não. Em segundo lugar, observamos a televisão como uma vitrine na qual a sociedade pode se ver, assim como o cinema, a literatura, o teatro ou a arte de um modo geral. Neste sentido, pode ser importante nos determos um pouco mais neste ponto, que considera haver uma relação direta entre a literatura, o cinema, a arte em geral, os programas televisivos e a sociedade.

Assim como a literatura pode nos levar a pensar sobre a sociedade, a televisão também tem esta capacidade. Desta forma, podemos considerar que ela traz elementos para pensar as relações sociais, pois através dela vêem-se representados traços que caracterizam tais relações, como a cordialidade, o jeitinho brasileiro, a valorização do corpo, as paixões pelo carnaval e futebol, entre outros aspectos, onde ressaltamos que seus produtores estão inseridos numa teia de relações sociais que caracterizam o país, e internalizam certos valores que acabam aparecendo na elaboração dos programas.

O sociólogo Bourdieu (1996, 1997) defende o estudo das relações entre a produção cultural e a sociedade não somente no livro As regras da Arte como também no livro Sobre a televisão. Ratificamos o estudo da televisão na Sociologia, observando os programas televisivos como qualquer outro produto cultural, só que com especificidades próprias, entre as quais a possibilidade de um alcance considerável, conforme já explicitado anteriormente. Neste sentido, apostamos que há uma relação entre o que se produz na televisão e a sociedade que a produziu, sendo possível tentar compreender a sociedade em que vivemos através da sua pesquisa.

O romance de Eça de Queirós

Antes de adentramos propriamente na análise da produção e da recepção da minissérie, cabe-nos expor um breve sumário do romance que serviu de inspiração para a minissérie.

Os Maias, de Eça de Queirós, relata a história da família Maia ao longo de três gerações, centrando-se na última e ressaltando o amor de Carlos da Maia e Maria Eduarda. Mas a história é também um pretexto para o autor fazer uma crítica à situação decadente de Portugal e à alta burguesia lisboeta, onde se dá a derrota e o desengano de todas as personagens. A ação d' Os Maias se configura na segunda metade do século XIX. Inicia-se no Outono de 1875, quando Afonso da Maia, nobre e rico proprietário, instala-se no Ramalhete. É um homem culto e de gosto requintado. Seu único filho, Pedro da Maia, de caráter fraco, resultante de uma educação extremamente religiosa e protecionista, casa-se contra a vontade do pai com a negreira Maria Monforte, de quem tem dois filhos, um menino e uma menina. Mas a esposa, leviana e imoral, acaba por abandoná-lo fugindo com o napolitano Tancredo, levando a filha, de quem nunca mais se soube o paradeiro. Num ato de desespero, Pedro se suicida, deixando o filho, Carlos da Maia, aos cuidados do avô. Carlos passa a infância com o avô, formando-se depois em Medicina, em Coimbra. Regressa ao Ramalhete após a formatura, onde se rodeia de amigos, como João da Ega, Alencar, Dâmaso Salcede, Euzebiozinho, o maestro Cruges, entre outros. Ao contrário de seu pai é fruto de uma educação à Inglesa, Carlos era bem educado e de gosto requintado. Mas acabou se deixando influenciar pelos hábitos que o cercavam. Carlos fica deslumbrado ao conhecer uma mulher chamada Maria Eduarda, suposta mulher do brasileiro Castro Gomes. Maria Eduarda era uma bela mulher: alta, loira, bem feita, sensual mas delicada, "divinamente bela" - como dizia Carlos. Este a seguiu algum tempo sem êxito, mas consegue uma aproximação quando é chamado por Maria Eduarda para visitar - como médico - a governanta, Miss Sarah. Começam então seus encontros...

Entretanto, chega de Paris um emigrante, Sr. Guimarães, tio de Dâmaso Salcede, que diz ter conhecido a mãe de Maria Eduarda e que a procura para entregar um cofre desta que - segundo ela lhe tinha dito - continha documentos que identificariam e garantiriam para filha uma boa herança. Esta mulher era Maria Monforte, a mãe de Maria Eduarda, e portanto também a mãe de Carlos. Os amantes eram irmãos. Contudo, Carlos não aceita esse fato e mantém abertamente sua relação incestuosa com a irmã. Afonso da Maia, o velho avô, ao receber a notícia morre de desgosto. Ao tomar conhecimento, Maria Eduarda, agora rica, parte para o estrangeiro, e Carlos para tentar superar o ocorrido, vai correr o mundo. O romance termina com o regresso de Carlos a Lisboa, passados dez anos, e seu reencontro com seu velho amigo Ega.

Devido à linguagem em que foi escrita e pela fina ironia com que as situações são apresentadas, Os Maias é considerado a obra prima do autor. É um romance realista onde não faltam fatalismo, catástrofes e análise social. A ironia atribuída ao romance provém de personagens que concretizam certos tipos sociais, representantes de idéias, mentalidades, costumes, políticas, concepções de mundo, etc. A ação principal d´Os Maias encaixa-se perfeitamente nos moldes da tragédia clássica - peripécia, reconhecimento e catástrofe. A peripécia verificou-se com o encontro casual de Maria Eduarda com Guimarães, com as revelações casuais de Guimarães a Ega sobre a identidade de Maria Eduarda, e com as revelações a Carlos e a Afonso da Maia também sobre a identidade de Maria Eduarda. O reconhecimento, acarretado pelas revelações de Guimarães, torna a relação entre Carlos e Maria Eduarda uma relação imoral, provocando a catástrofe consumada pela morte do avô e a separação definitiva dos amantes. A maior parte da narrativa passa-se em Portugal, mais concretamente em Lisboa e arredores. Carlos aponta como solução para sua vida falhada o estrangeiro, quando corre o mundo para esquecer-se de Maria Eduarda. Há também um espaço social no romance que comporta ambientes (jantares, chás, bailes, espetáculos) onde a sociedade criticada pelo autor é representada, com suas classes dirigentes - a alta aristocracia e a burguesia.

Não há minissérie como Eça [10]

Após abordarmos o histórico das minisséries baseadas em textos literários adaptados para a televisão, passaremos a analisar um caso concreto, a minissérie Os Maias.

Neste particular, nosso foco de interesse se concentra na análise empírica das relações entre o que se convencionou denominar "cultura de massa" e "cultura erudita", posto que a adaptação televisiva de obras da literatura - ao colocar em relação dinâmica os campos televisivo e literário, conforme vimos anteriormente - permite-nos reavaliar as fronteiras, distinções e hierarquias que se estabelecem entre as mais variadas formas artísticas. Isto ocorre na medida em que a adaptação se insere numa zona de conflito - para utilizarmos o termo de Guimarães (2003) - onde as fronteiras entre as formas culturais se esvanecem e se mostram confusas, alterando as normas comuns de hierarquização cultural. Ao se inserir uma obra clássica da literatura portuguesa - como no caso de Os Maias - num veículo de comunicação de massa - a televisão -, já não se torna mais possível menosprezar os recorrentes pontos de contato entre a esfera erudita e a de massa.

No que concerne à produção, Os Maias foi uma grande co-produção entre a Rede Globo e a SIC (Sociedade de Informação e Comunicação - Portugal), que custou, segundo a emissora R$11 milhões. Previa-se que a atração passaria simultaneamente em Portugal e no Brasil, mas - por motivos técnicos e por medo da concorrência com o Big Brother Portugal - a estréia em além-mar foi adiada e, após a notícia do fracasso de audiência no Brasil, a minissérie não foi apresentada no país.

O projeto de adaptação do livro Os Maias por parte da Rede Globo é mais antigo do que se pensava inicialmente. Em 1997, este projeto já era negociado pela emissora, sob a adaptação de Glória Perez e direção de Wolf Maya. A atração, inicialmente, teria poucos capítulos (16)[11], seria toda gravada em Portugal, teria Paulo Autran como Afonso da Maia e estava prevista para ser exibida a partir de janeiro de 2000. No entanto, em março de 1999, depois de adaptar Pecado Capital, Glória Perez se recusa a emendar esse trabalho com a adaptação de Os Maias e pede férias. Depois deste episódio, a emissora decide escolher Maria Adelaide Amaral para a adaptação e Daniel Filho para a direção, que posteriormente seria substituído por Luiz Fernando Carvalho - chegando à configuração definitiva da equipe de produção do programa.

A atração foi a primeira produção na qual se passou tanto tempo fora do Brasil (cerca de 6 semanas) e com tamanha estrutura. Só em Portugal, foram mais de 70 pessoas na equipe técnica e 26 atores, num elenco de 50 pessoas. O diretor Luiz Fernando Carvalho enfatizou que as cenas em Portugal eram necessárias para encontrar e reproduzir bem a obra de Eça de Queirós - o que, segundo Carvalho, era uma forma de difundir a obra do escritor. O ator Osmar Prado, que interpretou o poeta Alencar, demonstra o mesmo preceito afirmando que a minissérie tinha uma função social, o de despertar o interesse das pessoas pela literatura.

Diante desta considerável dimensão orçamentária - cada capítulo custou aproximadamente R$ 200 mil -, podemos indagar acerca das altas expectativas de retorno econômico e simbólico por parte da Rede Globo, posto que a minissérie se anunciava, a partir de uma pesada estratégia de marketing, como a grande produção do primeiro semestre daquele ano, produzida com "ares de cinema" de modo a oferecer "biscoito fino para as massas" - para utilizarmos as expressões dadas por Cláudia Croitor, jornalista da Folha de São Paulo, sobre o que seria a minissérie.

A minissérie Os Maias, além de se configurar como um foco de interesse na dimensão da própria adaptação, possui uma especificidade que a torna boa para se pensar: houve um fracasso de audiência - obteve em média 16,3 pontos percentuais em São Paulo e 17,7 no Rio de janeiro, diante de uma expectativa de, pelo menos, 30 pontos de audiência em média (índice médio do horário) [12]. De fato, o fracasso de audiência da minissérie a torna ainda mais interessante para a nossa pesquisa a respeito das relações entre a cultura erudita e a cultura de massa, já que engendrou tanto o silêncio e a omissão quanto à reflexão e o debate entre jornalistas, críticos e produtores acerca das possíveis razões que levaram ao insucesso de audiência do programa. Mesmo com o relativo fracasso da minissérie, o sucesso do livro Os Maias no mesmo período foi incrível, chegando a se tornar um best-seller nas livrarias cariocas - o que pode ser extremamente revelador das complexas relações de força que se estabelecem entre os campos televisivo e literário.

A fim de melhor investigarmos as reflexões e o silêncio acerca desta produção cultural, partimos para o levantamento de material empírico nos jornais O Globo e Folha de São Paulo[13]. A escolha de O Globo se deveu ao fato deste pertencer à mesma empresa que exibiu a atração, buscando assim compreender o discurso oficial sobre a mesma. A escolha da Folha de São Paulo, por sua vez, deveu-se ao fato de que, além de ser um representativo periódico de São Paulo, este se autoproclama representante de um público que - segundo a opinião nada modesta de seus editores - constituiria o establishment da opinião pública nacional.

No que se refere ao jornal O Globo, o que caracterizou a postura da emissora foi uma certa omissão ou marginalização com relação à questão do fracasso de audiência. O jornal concentrava seus esforços na descrição de personagens e resumos de capítulos da semana em um esforço de ignorar o problema para tentar impulsionar a audiência. No entanto, o fracasso aparece em algumas matérias onde se caracterizam justificativas como a lentidão da narrativa (2 matérias), o horário (2 matérias) ou ambas (1 matéria). Mesmo quando aparecem estas justificativas, o que figura mais ou menos explícito por trás de tais argumentos é a culpabilização do público e a exaltação da obra. Em crítica posterior à minissérie, Nelson Motta, colunista do jornal, expressa esta opinião, ao referir-se que esse 'triunfo artístico' da televisão brasileira fracassou com o grande público.

Faz-se necessário enfatizarmos que é contraditório o discurso das organizações Globo no caso de Os Maias, pois destaca a alta qualidade da minissérie, deixando subjacente e às vezes explícito que o público televisivo não aprecia produtos de alto nível cultural. Afinal, a empresa, através de seu jornal O Globo, acaba por re-atualizar a dicotomia que se constrói em torno dos níveis culturais, isto é, a superioridade inequívoca da cultura erudita sobre a cultura de massa. A televisão, dirão seus críticos mais acirrados, funciona como narcótico, privilegia a baixaria, pois é isto que o público gosta e assiste. Esse discurso é incoerente com a emissora que tem como slogan o "padrão Globo de qualidade". Afinal que padrão será este que não educou o seu público para apreciar produtos de qualidade?

Maria Adelaide Amaral, em um significativo comentário na última semana da minissérie, relata a frustração pelo índice de audiência baixo, ao passo que afirma a certeza de que a minissérie foi uma obra de arte e a satisfação de ver o livro entre os dez mais vendidos do país. Desta forma, por meio das matérias do jornal O Globo, observamos que, se por um lado, a minissérie é vista negativamente com relação à audiência, por outro, ela foi e continua sendo uma referência positiva de adaptação e desempenho dos atores. O fracasso não influiu no objetivo social da adaptação, que - de acordo com seus próprios produtores - era a elevação dos índices de venda do livro de Eça de Queirós, num tom eminentemente pedagógico.

Numa postura oposta a do jornal O Globo, a Folha de São Paulo, por sua vez, com apenas três dias de programa no ar, já noticiava sem hesitação o fracasso de audiência da minissérie, o que levou à conformação de um gradativo espaço neste periódico para a discussão de suas razões e de suas possíveis soluções. O quadro abaixo ilustra os pontos recorrentes destas reflexões:

EXPLICAÇÃO QUEM FORMULOU ENTRADAS
"Qualidade derruba IBOPE de Os Maias". Produtores (Luiz Fernando Carvalho, Maria Adelaide Amaral, Simone Spoladore[14]), jornalistas da Folha (Daniel Castro e Cláudia Croitor) e o acadêmico Carlos Nejar. 4
As dificuldades técnicas, ocasionadas pelo preciosismo do diretor, afugentaram o público[15]. Profissionais ligados à produção televisiva (Walther Negrão) e jornalistas da Folha (Daniel Castro). 3
A lentidão da narrativa não é a tônica da televisão, com seu ritmo ágil e melodramático. Membros da Academia Brasileira de Letras (Antonio Olinto[16] e Arnaldo Niskier[17]) e o jornalista Daniel Castro. 5
O horário ruim e variável contribuiu para a baixa audiência. Leitores da seção de Cartas e Arnaldo Niskier. 6

Além de configurar um espaço para a reflexão acerca da minissérie, houve a publicação quase diária de pequenas notas divulgando as baixas audiências do programa em comparação a diversos programas que, segundo os editores do jornal, seriam de menor qualidade - tais como o Show do Milhão, "enlatados americanos", etc. Nesta direção, podemos perceber a estratégia do periódico paulistano como inversa da proposta de O Globo de omitir e silenciar o mau desempenho de Os Maias no que concerne à audiência.

Dentro deste caloroso debate que visava responder à incomum situação de uma superprodução global naufragar em audiência, a visão que se destaca - pelo menos nas concepções mais enfáticas apresentadas na Folha - é a culpabilização de um público que, não sendo capaz de apreender e apreciar uma produção tão qualificada e sofisticada, encontra-se emburrecido por um processo de massificação [18]. Embora possa aos poucos se acostumar com tanta qualidade que passará a exigi-la futuramente[19]. E, neste contexto, qualidade significa a referência sacralizante ao texto eciano, redundando na celebração "acadêmica" da fidedignidade da adaptação e seu ritmo mais literário que televisivo.

Neste sentido, a definição da qualidade da obra artística por parte dos agentes engajados no meio cultural - pelo menos daqueles que se expressaram na Folha e em O Globo - não vem dos padrões consagrados na própria televisão, mas da referência ao texto literário. Através desta análise relacional, percebemos o quanto a televisão é dependente das normas de consagração dos diversos campos de produção considerados eruditos - como a literatura, as artes plásticas, certos tipos de cinema, etc. Tal situação de heteronomia engendra situações de extrema ambigüidade, como foi o caso da minissérie Os Maias, uma vez que o programa foi considerado ao mesmo tempo um sucesso - na "qualidade", na vendagem do livro, etc. - e um insucesso - na audiência. Esta ambigüidade reflete as próprias complicações de um produto que se insere em uma zona liminar entre a cultura erudita e a cultura de massa, dificultando sua compreensão através de nossas hierarquizações comuns das práticas culturais.

Analisando a adaptação de Os Maias, Guimarães (2003) assinala que o livro contém os elementos centrais que a ficção televisional almeja, como narrativas intrincadas de acontecimentos, o melodrama, além de apresentar episódios históricos relevantes e reconhecíveis pelo público. Com relação à adaptação de obras literárias para o meio televisivo, o autor propõe que este é um espaço de grande debate e complexidade. A adaptação envolve diversos elementos como co-autoria, fidedignidade, identificação entre público e produto televisivo, atualização de obras etc.

Conclui o autor que as adaptações estabelecem uma zona de conflito entre formas culturais diferentes, voltadas para públicos diferentes. Embora o livro contenha os elementos citados, os baixos índices de audiência da minissérie decorrem, sugere o autor, do fato de que as especificidades do meio televisivo, não foram respeitadas na adaptação. Em nome de uma adaptação fidedigna, a minissérie foi praticamente o livro ipsis literis em imagem, transferiu-se a lentidão do livro para a narrativa televisiva (Guimarães, 2003).

De fato, a busca quase obsessiva pela adaptação fidedigna da obra - que deveria ser apenas "transportada" para a televisão - esquece uma dimensão constitutiva da própria experiência literária, que é a existência de múltiplas leituras possíveis, para além das figuras platônicas de uma "essência" ou de um sentido verdadeiro do texto. Logo, as adaptações de obras da literatura para a televisão que se prendem por demasia à suposta fidelidade ao texto escrito - como uma espécie de reverência ao sagrado cultural - correm sempre o risco de incompreensões e inadequações em virtude da transposição mecânica de um veículo a outro, realizada sem a devida atenção aos seus padrões internos.

Ao argumento anterior, acrescenta-se que a adaptação de Maria Adelaide do Amaral é uma interpretação possível dentre tantas outras, além do que a obra literária quando passa para o meio televisivo torna-se um novo produto cultural. Como todo produto cultural, esta nova obra - veiculada em um meio de comunicação de massa - também apresenta uma pluralidade de interpretações, haja vista a heterogeneidade da recepção, podendo ser, portanto, tão crítica, bela e criativa quanto a obra que lhe originou.

O argumento de Guimarães com relação às especificidades do meio televisivo é procedente e relevante para nossa pesquisa. Neste sentido, faz-se necessário explicitar quais são estas especificidades e o que seria o padrão televisivo.

Bourdieu (1997) argumenta acerca dos mecanismos funcionamento do campo televisivo e seus efeitos. A lógica de produção televisiva, promove, de acordo com o autor, uma grande pressão pelo que é extra-ordinário, uma homogeneização da produção e uma falta de autonomia para seus produtores. Outro efeito ocasionado pelo índice de audiência é a pressão pela urgência, pela rapidez, pela velocidade. Esta pressão pelo comercial impõe-se também em outros campos por influência da televisão, principalmente no campo artístico pela lista de best-sellers.

Ainda sobre o padrão televisivo e sua lógica de funcionamento, Sodré e Paiva (2002) sugerem que a televisão massiva caracteriza-se, desde o início, por um ethos de praça pública onde o grotesco é a categoria estética dominante, responsável pelo formato popularesco. O grotesco associa-se ao disforme, ao desvio da norma em relação a costumes ou convenções culturais. Esta categoria possui relação estreita com o que Bourdieu chama de extra-ordinário e provoca como reações típicas o riso cruel, o horror, o espanto e a repulsa.

Partindo destes argumentos acerca do padrão e especificidades do meio televisivo, sob a perspectiva da estética da recepção, destacando Hans Robert Jauss (1993), pode-se inferir uma hipótese com relação ao fracasso de audiência. Segundo Jauss, toda modalidade cultural desenvolve um horizonte de expectativas para seus receptores, formada a partir de todo um conjunto de padrões que servem como referência para recusa ou absorção de uma nova obra. A absorção se dá a partir da adequação da nova obra com o horizonte de expectativas do receptor. Na recusa, por outro lado, ocorre o oposto, posto que não há adequação entre horizonte e obra. Assim, é possível que o público realmente tenha estranhado a produção estética, a narrativa, a linguagem de Os Maias. No entanto, não por estar "emburrecido pela massificação", como fica subjacente nas justificativas oficiais, ou algo parecido, e sim pelo fato deste não ser o padrão das atrações televisivas rompendo com a percepção do telespectador.

Insistindo na questão do rompimento com o horizonte de expectativas do telespectador, faz jus enfatizar alguns aspectos da minissérie como a filmagem em película, a linguagem rebuscada, a transcrição de textos na íntegra para a fala dos atores, o descritivismo obsessivo, a lentidão. Estes elementos basicamente diferem das demais programações da televisão que tiveram sucesso - vide Presença de Anita, minissérie exibida alguns meses depois no mesmo ano e horário, que obteve média de 31 pontos percentuais no Ibope.

No entanto, com relação ao melodrama, enfatizado por Guimarães, há de se considerar algumas ressalvas. Campedelli (1985) propõe outra característica à qual se filiam algumas programações televisivas, como as telenovelas. O gênero, segundo a autora, mostra uma narrativa maniqueísta que encara as relações humanas a partir de concepções morais, trabalha ao máximo a dualidade Bem e Mal, manipulando-a do início ao fim, de forma a não permitir meio termo. O Mal, descreve a autora, no melodrama, não decorre de causas sociais ou possuí raízes psicológicas complexas, nem tão pouco surge da incompreensão ou neurose. Possui sempre forma concreta, personificada em um indivíduo propositadamente mal, o vilão. Por outro lado, encarnando o Bem, estão outros indivíduos sempre virtuosos, procurando provar a verdade.

Na obra de Eça de Queirós, nenhum personagem é verdadeiramente o que se poderia chamar de Mal e, além do mais, Carlos da Maia também não encarna o herói clássico, virtuoso. Carlos é repleto de contradições e em vários momentos, moralmente reprovável. O herói da narrativa de Eça é um aristocrata boa vida, que passa sua existência sem realizar e nem levar adiante nada de concreto. Passa sua vida toda em saraus, viagens, noitadas etc. Já no que se refere ao intrincado de acontecimentos, desencontros, dramas, neste sentido - de fato - o texto de Eça apresenta características tipicamente melodramáticas.

Outro ponto problemático na análise de Hélio Guimarães é sua suposição de que os fatos históricos inseridos na trama do livro de Eça sejam facilmente reconhecíveis pelo telespectador. O que se pode inferir é que talvez o leitor e/ou telespectador pudessem perceber elementos históricos brasileiros e de sua formação político-social semelhantes aos narrados por Eça. No entanto, tais elementos não são facilmente identificáveis, pois a crítica social do livro é sutil e, para muitos, pode passar desapercebida - o leitor e/ou telespectador pode não ter se identificado com eles. O que também pode ter ocorrido quando a obra foi para televisão, o que, em alguma medida, pode explicar seu fracasso de audiência.

No entanto, apesar do fracasso de audiência, o livro de Eça de Queirós figurou entre os mais vendidos em São Paulo e foi best-seller no cenário carioca no período em que se exibiu a minissérie.

Um discurso recorrente é o medo de que a televisão produza indivíduos sem o hábito da leitura, seduzidos pela imagem e pela facilidade de fruição da cultura de massa, provocando, com isto, a morte certa do livro [20]. Este argumento, entretanto, não tem procedência no caso de Os Maias, pois a minissérie não só trouxe a obra de volta ao cenário e aos debates como também impulsionou sua vendagem no período de exibição da atração.

Como citado anteriormente, em declaração de pessoas da própria televisão, a minissérie tinha uma função social que era a de despertar o interesse das pessoas pela literatura, pela obra de Eça. Em linhas gerais, pode-se supor que esta função foi satisfeita, vide o sucesso de vendagem do livro. O mesmo não ocorreu, no entanto, com a função mercadológica, enquanto produto para o grande público veiculada em um meio de comunicação de massa, visto que obteve baixos índices de audiência, apenas 17 pontos percentuais em média.

Dessa forma, por meio das matérias dos jornais O Globo e Folha de São Paulo, observamos que, se por um lado, a minissérie é vista negativamente com relação à audiência, por outro, ela foi e continua sendo uma referência positiva de adaptação e desempenho dos atores. O fracasso não influiu no objetivo social da adaptação - proposto pelos produtores da obra -, isto é, a elevação dos índices de venda do livro de Eça. Percebemos então que há uma relação entre televisão e literatura, que neste caso, podemos supor que foi essencialmente recíproca, embora não com os mesmos resultados para ambas. Se, por um lado livro de Eça serviu como base para uma atração televisiva, por outro, a adaptação e exibição da minissérie aumentaram o interesse e incentivou a leitura de sua obra.

Considerações Finais

Neste artigo, além de ressaltarmos o lugar central que a televisão ocupa enquanto esfera de socialização e de aprendizagem reflexiva para grande parte da população brasileira, buscamos enfatizar em que medida a análise dos bens culturais produzidos neste meio de comunicação de massa são úteis para a pesquisa sociológica. Assim, percebemos que a adaptação literária para programas televisivos - ao se situar numa zona liminar entre a cultura erudita e a cultura de massa - traz diversas questões fundamentais no que concerne às nossas práticas comuns de hierarquização das formas culturais, colocando até mesmo em questão a existência de uma fronteira intransponível entre as práticas consideradas "refinadas" e "distintas" e as desclassificadas como "massificadas" e "vulgarizadas".

Na análise das matérias veiculadas nos jornais pesquisados, notamos que os debates que se estabeleceram em virtude do fracasso de audiência da minissérie Os Maias terminavam por re-atualizar as fronteiras e hierarquizações entre as formas culturais, engendrando uma série de complicações em virtude da ambigüidade que o programa representava. Tratava-se, afinal, de cultura erudita ou de massa? Evidentemente, não nos cabe a penosa tarefa de realizar o veredicto em relação a Os Maias, mas, por outro lado, a própria existência de um caloroso debate acerca desta questão nos autoriza a constatar a fluidez e a ausência de fronteiras rígidas entre o mundo literário - tido como erudito -, e a experiência televisiva.






NOTAS

* Foram co-autores deste artigo a mestre em sociologia Verônica Eloi de Almeida e a socióloga e bolsista do CAP/UFRJ, Gabrielle Bonzoumet.

a) Graduando do 6º período de Ciências Sociais. Bolsista CNPq/PIBIC (orientadora: Profª. Drª Glaucia Kruse b)Villas-Bôas - Núcleo de Sociologia da Cultura).

Graduanda do 8º período de Ciências Sociais. Bolsista CNPq/PIBIC (orientadora: Profª. Drª Glaucia Kruse Villas-Bôas - Núcleo de Sociologia da Cultura).

c) Graduanda do 6º período de Ciências Sociais. Bolsista FAPERJ (orientadora: Profª. Drª Glaucia Kruse Villas-Bôas - Núcleo de Sociologia da Cultura).

[1] A obra Os Maias de Eça de Queirós foi escrita ao longo de quase dez anos tendo sua publicação em 1888. A minissérie que a tem por base, no entanto, agrega elementos de duas outras obras do autor: A Relíquia e Capital.

[2] Este estudo insere-se em um projeto maior desenvolvido no NUSC (Núcleo de Sociologia da Cultura), sob a orientação da Profª. Dr. ª Glaucia Kruse Villas Boas, com o título "O novo e o moderno na produção cultural brasileira: literatura, imagem e música".

[3] O uso do termo "cultura de massa", no entanto, não prevê que a recepção destes bens culturais seja massificada ou homogênea. A utilização deste termo se deu em função de ser utilizado de modo corrente pelos produtores culturais.

[4] A análise essencialista pressupõe que se é possível distinguir os bens culturais eruditos dos vulgares através de uma "essência" interna à obra. Deste modo, a definição do que é erudito é dada por si só, sem levar em consideração os aspectos relacionais desta definição.

[5] O termo grego para categoria - kategorein - significa literalmente "acusar publicamente".

[6] Sobre o acervo de teses do IFCS ver o relatório de Antonio Brasil Jr. para o projeto "A literatura na televisão: um estudo sobre suas relações, produção e recepção" (2003), desenvolvido no Núcleo de Pesquisa em Sociologia da Cultura (NUSC). As dissertações defendidas no PPGSA são as seguintes: Silva Ferreira, Denise, "O reverso do Espelho: o lugar da modernidade. Um estudo sobre mito e ideologia racial nas novelas da TV Globo", 1991; Fonseca, Alexandre Brasil, "Evangélicos e mídia no Brasil", 1997, Soares, M. R. "Pelas lentes da Tupi: uma leitura do campo jornalístico no final da Era Vargas", 1999; Lattman-Weltman, F. "Jornalistas: agenciando a cidadania, publicando o privado", 1992; Almeida, A. P. T de. "Pague para entrar e reze para sair: a repercussão dos filmes de violência nos jornais cariocas e paulistas", 1998; Castilho, S. R. R. "O 'Soldado da TV' contra a "Pretinha do Povo". A propaganda eleitoral televisiva de César Maia e Benedita da Silva", 1994.

[7] Na "Revista Brasileira de Ciências Sociais", publicada pela ANPOCS, no período de 1986 a 2002, foi encontrado apenas o artigo "Continuidade e inovação, conservadorismo e política da comunicação no Brasil", de Fátima Lampreia Carvalho (2000); um único artigo foi também encontrado na "Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais" no período de 1996 a 2000, a saber, "Um ponto cego nas teorias da democracia: os meios de comunicação", de Luís Felipe Miguel (2000); três artigos foram publicados em "Ciências Sociais Hoje", no período de 1981 a 1996, "A televisão e outras falas: como se reconta uma novela", de Ondina Fachel Leal e George Ruben Oliven (1987), "Transformações culturais, criatividade popular e comunicação de massa: o carnaval brasileiro ao longo do tempo", de Olga von Simson (1981) e "Sambandido: arte popular e cultura de massa", de Letícia Vianna (1996).

[8] Resultados das pesquisas desenvolvidas pelo sociólogo sobre os intelectuais encontram-se no livro Miceli, Sergio, Os intelectuais no Brasil. Bertrand (Nac.), 1994.

[9] A título de ilustração sugerimos a leitura do livro de Gonçalo Júnior, "País da TV - a história da televisão brasileira" (2001), onde o autor entrevista vários produtores, diretores e autores de TV que discorrem sobre os limites e possibilidades da produção televisiva.

[10] Título de matéria veiculada no Jornal O Globo em 31 de outubro de 2000.

[11] Posteriormente foi decidido o formato de macrossérie que permaneceu na adaptação de Maria Adelaide do Amaral, com 42 capítulos.

[12] Um ponto de audiência no IBOPE tem como referência 80 mil telespectadores.

[13] A pesquisa no jornal O Globo abrangeu o período de janeiro de 1997 à junho de 2003. A pesquisa na Folha de São Paulo abrangeu o período de março de 2000 e abril de 2003.

[14] "A minissérie tem um nível de qualidade e sofisticação que dificilmente foi atingido até hoje na televisão. É uma busca pela sensibilidade. Se causou polêmica é porque se trata de uma coisa nova. Sou apaixonada pelo resultado." (Simone Spoladore, Folha de São Paulo - 28/1/01).

[15] "Na semana passada, Carvalho teria decidido mudar os primeiros capítulos, aprimorando os cortes e a sonorização. O diretor, que pretendia privilegiar a estética cinematográfica, trabalhou durante toda a noite de segunda-feira, mas não concluiu o trabalho." (Daniel Castro, Folha de São Paulo - 11/1/01).

[16] Para Antonio Olinto, a minissérie poderia ser ainda mais lenta. "Mas o espectador não iria agüentar. O mundo de Eça está ali. O problema é que a televisão está viciada com histórias feitas para a TV, nas quais o autor sabe que deve haver uma briga a cada dois minutos." (Folha de São Paulo - 4/2/01, TV Folha, p.3).

[17] "Quanto mais fiel ao livro, menos a série adquire o ritmo próprio da TV. É essa lentidão que as pessoas estranham" (Arnaldo Niskier, Folha de São Paulo - 4/2/01, TV Folha, p.3).

[18] Depoimento do diretor Luiz Fernando Carvalho: "é um momento de fazer uma reflexão sobre a TV brasileira. O nível da TV está muito baixo, e pode ter acontecido um estranhamento com a linguagem da minissérie, com o português bem falado e com uma narrativa visual do século XIX em Portugal. O Brasil tem um público emburrecido pela massificação". (Folha de São Paulo - 4/2/01, TV Folha, p. 3).

[19] Depoimento da adaptadora, Maria Adelaide Amaral: "Talvez o público não esteja acostumado a ver tanta qualidade na TV, mas se acostumará. E, rendido ao bom gosto, talvez exija a mesma qualidade dos outros programas de televisão que lhe são oferecidos." (Folha de São Paulo - 4/2/01, TV Folha, p. 3)

[20] Conferir Erausquim, 1983.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPEDELLI, Samira. A Telenovela. São Paulo: Ed. Ática, 1985.

ERAUSQUIM, M. Afonso et alli. Os teledependentes. São Paulo: Summus, 1983.

BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo: Cia. Das Letras, 1996.

______________. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

______________. A economia das trocas simbólicas. 5ª edição. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999.

GUIMARÃES, Hélio. "O romance do século XIX na televisão - observações sobre a adaptação de Os Maias". In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac - Instituto Itaú Cultural, 2003, pp. 91 - 141.

JAUSS, Hans Robert. A literatura como provocação. Lisboa: Passagens, 1993.

MICELI, Sérgio. A Noite da Madrinha. São Paulo: Perspectiva, 1972.

____________. Os intelectuais no Brasil. Bertrand (Nac.), 1994.

QUEIRÓS, Eça de. Os Maias. São Paulo: Ática, 1998.

RODRIGUES JÚNIOR, Gonçalo. Pais da TV. São Paulo: Ed. Conrad, 2001.

SODRÉ, Muniz & PAIVA, Raquel. O Império do Grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

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Resumo de A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós.

9; A Ilustre Casa de Ramires, publicado em 1900, apresenta duas narrativas ao mesmo tempo: a primeira é a vida do fidalgo Gonçalo Mendes Ramires, o protagonista; a segunda, a de Trutesindo Mendes Ramires, um antepassado.

A forma encontrada por Eça para entremear essas duas histórias foi muito inteligente: o próprio Gonçalo escreve uma novela intitulada A Torre de D. Ramires. O objetivo de Gonçalo, ao escrever a novela, é sua promoção política na velha aldeia de Santa Irenéia. Deveria assim, publicá-la nos Anais de Literatura e História, a convite de seu amigo José Lúcio Cavalheiro, diretor dessa revista.

Desse modo, o leitor vai tomando conhecimento da vida de Trutesindo Mendes Ramires: ele assistira à morte de seu próprio filho, no alto de sua torre, e tramara depois uma vingança cruel contra os culpados. O modo como Gonçalo narra sua novela faz lembrar os estilos de Garrett, Alexandre Herculano e Rebelo da Silva, ficcionistas românticos voltados epicamente para o passado.

Em oposição a estes estilos, a ação atual, isto é, a vida de Gonçalo, na aldeia de Santa Irenéia, é mais leve, evidenciando-se a ironia de situações. Assim, enquanto na novela A Torre de D. Ramires Trutesindo defende a casta familiar até as últimas conseqüências, na vida real Gonçalo subverte-se por interesses políticos. Aproxima-se de André Cavaleiro, Governador Civil do Distrito (contra quem escrevera artigos denunciando seu dom-joanismo e despotismo), mesmo sabendo que ele cortejava sua irmã, Gracinha, esposa de José Barrolo (apelidado de Bacoco).

Gonçalo está consciente de que sua dignidade está perdida e busca a salvação: o casamento com Ana Lucena, viúva rica e bonita, embora neta de carniceiro e irmã de assassino.

Mas isso não era problema: o mesmo tinha acontecido com relação aos seus ascendentes... Com o dinheiro do casamento, restituiria à velha torre seu esplendor de outras eras. Mas também aí não encontrou uma saída fácil: seu amigo Tito (na verdade amante da viúva) confidenciou-lhe que a escolhida tinha ou tivera um ou mais amantes, razão suficiente para afastar as pretensões do fidalgo.

Gonçalo adotou então uma atitude mais positiva: agride camponeses que o destrataram (anteriormente fugira de um deles), mostra a carta anônima que Barrolo recebera (mas não compreendera) à irmã Gracinha e exige que ela ponha fim aos encontros com o governador. Agora, com a consciência equilibrada, tudo parece encaminhar-se bem: é recebido na Assembléia como vencedor de uma batalha ilustre, recebe visitas, telegramas e notícias em jornal de Lisboa. É possível então terminar a novela de seus antepassados. O reconhecimento popular leva-o ao cargo de deputado; já o reconhecimento oficial dá-lhe o título de marquês de Treixeiro: recebe-o como paga dos favores que o governador André Cavaleiro recebera de sua irmã.



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Resumo de A Relíquia, Eça de Queirós

A Relíquia começa com a apresentação do narrador e protagonista da história, Teodorico Raposo, que busca explicar ao leitor o que o motivou a escrever suas memórias. Ele nos diz que a principal motivação está no fato de que tanto como seu cunhado, Crispim, acreditarem que aquelas memórias contém "uma lição lúcida e forte" da vida, sendo merecedoras da imortalidade que só "a literatura propicia". A narração se concentra num viagem feita por Teodorico ao Egito e à Palestina, logo após uma decepção amorosa. Buscando fugir ao modelo de "guia de viagem", Teodorico nos conta com suposta "sobriedade e sinceridade" os casos que provocaram mudanças significativas em sua vida, principalmente no que tange à herança que supunha merecer.

Na verdade a narrativa de Teodorico possui um outro objetivo, a saber, promover uma correção no livro que seu amigo letrado, Topsius, que participara daquela viagem, escrevra sobre Jerusalém. Naquela obra, intitulada "Jerusalém Passeada e Comentada", Topsius afirmava que Teodorico levava em dois embrulhos de papel os "restos de seus antepassados". Tal afirmação preocupava Teodorico em relação à burguesia local, já que isso poderia acarretar problemas para o futuro e que só por meio da burguesia se tinha acesso às "coisas boas da vida". Teodorico desejava então explicar a natureza e o verdadeiro conteúdo daqueles pacotes.

Teodorico acaba por nos contar não somente o que sucedera na malfadada viagem mas também vários aspectos relativos a sua vida anteriores à viagem, como por exemplo a história do encontro de seus pais, ou ainda, o momento depois de toda a viagem em que se decidira pela escrita de suas experiências de vida.

Teodorico começa por nos falar de seu avô paterno, Rufino da Conceição, padre, teólogo e autor duma obra chamada "Duma Devota Vida de Santa Filomena". Depois apresenta-nos sua avó, Filomena Raposo, doceira, conhecida por "Repolhuda", que vivia em Évora com o filho, Rufino da Assunção Raposo, afilhado de Nossa Senhora da Assunção, pai de Teodorico.

Rufino trabalhava no correio e escrevia, de vez em quando, no periódico "Farol do Alentejo". Em 1853, durante a vista de um importante bispo à Évora (Dom Gaspar de Lorena), Rufino escreveu um artigo laudatório à presença de "tão insigne prelado" e com isso ganho a simpatia do bispo. Simpatia que aumentou ainda mais quando o bispo soube que Rufino era "afilhado carnal" do Padre Rufino da Conceição, seu amigo de estudos quando estudavam ainda no seminário. O Bispo presentou o pai de Teodorico com um relógio de prata e o nomeou "escandalosamente, diretor da alfândega de Viana".

Trabalhando em Viana, o pai de Teodorico conheceu um rico cavalheiro de Lisboa, o comendador G.Godinho, que passava o verão em sua quinta, o Mosteiro, com duas sobrinhas: a devota D.Maria do Patrocínio e a gordinha e trigueira D. Rosa. Rufino da Conceição habituou-se a tocar sua viola para D.Rosa e amor entre os dois não demorou a acontecer. Assim, namoraram e se casaram.

Teodorico então nos conta que ele nasceu numa tarde sexta-feira da paixão e que Dona Rosa, sua mãe, morreu na manhã seguinte, sábado de aleluia. Ficou sendo criado pleo pai, distante do avô materno, o influente comendador G.Godinho e de sua tia, Dona Maria do Patrocínio. O avô materno do menino morreu logo depois de alguns anos e pouco tempo depois, seu pai, de modo que ficou sendo órfão de pai e mãe. Aos sete anos, sua tia, Dona Maria do Patrocínio mandou um empregado, o Sr. Matias, buscar o pequeno Teodorico em Viana.





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Gomes Leal




António Duarte Gomes Leal (1848-1921) nasceu em Lisboa, filho ilegítimo de um funcionário do Estado. Frequentou o Curso Superior de Letras, não chegando a terminá-lo. Ao ler as obras de Marx, Darwin, Renan e Proudhon, entusiasma-se com o socialismo, aproximando-se ideologicamente de Antero de Quental e Oliveira Martins. Poeta e jornalista, caiu na miséria nos últimos anos da sua vida, sobrevivendo da caridade alheia. Escreveu: O Tributo de Sangue (1873), A Canalha (1873), Claridades do Sul (1875), A Fome de Camões (1880), A Traição (1881), O Renegado (1881), História de Jesus (1883), O Anti-Cristo (1886), Fim de Um Mundo (1900), A Mulher de Luto (1902), A Senhora da Melancolia (1910).

CLARIDADES DO SUL (extracto)



O VISIONÁRIO OU SOM E COR
1
Eu tenho ouvido as sinfonias das plantas.

Eu sou um visionário, um sábio apedrejado,
passo a vida a fazer e a desfazer quimeras,
enquanto o mar produz o monstro azulejado
e Deus, em cima, faz as verdes primaveras.

Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado,
e erro como estrangeiro ou homem doutras eras,
talvez por um contrato irónico lavrado
que fiz e já não sei noutras subtis esferas.

A espada da Teoria, o austero Pensamento,
não mataram em mim o antigo sentimento,
embriagam-me o Sol e os cânticos do dia...

E obedecendo ainda a meus velhos amores,
procuro em toda a parte a música das cores,
- e nas tintas da flor achei a Melodia.

2
O vermelho deve ser como o som duma trombeta
(Um cego)

Alucina-me a cor! - A rosa é como a Lira,
a Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
e é já velha a união, a núpcia sagrada,
entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

Se a terra, às vezes, brota a flor, que não inspira,
a teatral camélia, a branca enfastiada,
muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada
como a perdida cor dalguma flor que expira...

Há plantas ideais de um cântico divino,
irmãs do oboé, gémeas do violino,
há gemidos no azul, gritos no carmesim...

A magnólia é uma harpa etérea e perfumada,
e o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada,
- tem notas marciais, soa como um clarim.


AS ALDEIAS

Eu gosto das aldeias sossegadas,
com seu aspecto calmo e pastoril,
erguidas nas colinas azuladas,
mais frescas que as manhãs finas de Abril.

Pelas tardes das eiras, como eu gosto
de sentir a sua vida activa e sã!
Vê-las na luz dolente do sol-posto,
e nas suaves tintas da manhã!...

As crianças do campo, ao amoroso
calor do dia, folgam seminuas,
e exala-se um sabor misterioso
da agreste solidão das suas ruas.

Alegram as paisagens as crianças
mais cheias de murmúrios de que um ninho;
e elevam-nos às coisas simples, mansas,
ao fundo, as brancas velas dum moinho.

Pelas noites de Estio, ouvem-se os ralos
zunirem suas notas sibilantes...
E mistura-se o uivar dos cães distantes
com o cântico metálico dos galos.

PALÁCIOS ANTIGOS

Bons castelos leais, nas rochas construídos,
às contorções do vento, à chuva enegrecidos,
que vamos admirar na angústia dos poentes;
grandes salas feudais com telas de parentes,
que vamos admirar na angústia dos poentes;
os antigos heróis e as sombras dos guerreiros?

Uma grande tristeza enorme vos habita!...
No entanto, a alma antiga ainda em vós palpita.
evocando a comoção das crónicas guerreiras :
e, mau grado o destroço, a erva e as trepadeiras,
como um desejo bom nas almas devastadas,
cresce, ao vento, uma flor no peito das sacadas.

A parasita hera avassalou os muros!
Aninha-se o bolor nos cantos mais escuros;
tudo dorme na paz das cousas silenciosas,
e nos velhos jardins, aonde não há rosas,
só, resistindo ainda aos séculos injustos,
uma Vénus de pedra espera, entre os arbustos.

Paira em tudo o silêncio e o lúgubre abandono
das cousas que já estão dormindo o grande sono,
evocando inda em nós as velhos cavaleiros,
e, às lufadas do vento, os grandes reposteiros,
entre as nossas visões das épocas sublimes.
agitam-se, ao luar, sanguentos como crimes.

Mas, no entanto, o poeta entende aquelas dores.
e as mudas solidões, os largos corredores,
as boas castelãs, as góticas janelas,
abertas toda a noute, a olhar para as estrelas...
Só ele sabe os ais e os gemidos das portas,
e inveja, às vezes, ser o pó das cousas mortas!
DE NOITE

Ele vinha da neve, dos trabalhos
violentos, custosos, da enxada,
cantando a meia voz, pelos atalhos.

A mulher, loura, infeliz, resignada,
cosia junto à luz. O rijo vento
batia contra a porta mal fechada.

Ao pé havia um Cristo, um ramo bento
e uma estampa da Virgem, colorida,
cheia de mágoa, olhando o firmamento...

Uma banca de pinho, mal sustida.
vacilante nos pés; um candeeiro,
companheiros daquela negra vida.

O homem, alto, pálido, trigueiro,
entrou. Tinha as feições queimadas, duras.
dos que andam, com a enxada, o dia inteiro.

A mulher abraçou-o. As linhas puras
do seu rosto contavam já tristezas
de grandes e secretas amarguras.

Tinha chorado muito as estreitezas
daquela vida assim!... Talvez sonhado
um dia com palácios e riquezas!

Ele deitou-se a um canto, fatigado
de erguer-se, alta manhã, todos os dias.
mal voavam as pombas do telhado.

Lá foca, nuvens grossas e sombrias
no pesado horizonte. Ele assim esteve
- as noites eram ásperas e frias -.

Ela cobriu-o duma manta leve,
esburacada, velha. No telhado
ouvia-se cair, sonora, a neve.

Ela então meditou no seu passado;
no seu primeiro beijo, nas lembranças.
talvez, do seu vestido de noivado,

e nas tardes das eiras, e das danças
às estrelas, e aquela vez primeira
que a rosa lhe furtou das longas tranças;

e aquela tarde, junto da amoreira,
que trocaram as mãos; e na janela;
e quando olhavam, juntas, a ribeira;

e quando ela tímida e singela...

.....................

Lá fora, dava o vento nos caixilhos;
não brilhava no céu nem uma estrela.

E, àquela hora da noite, por que trilhos
andariam no mundo - ela cismava -
nas misérias, talvez, sem rumo, os filhos!...

Ele, na manta velha, ressonava.

HISTÓRIA DE JESUS (extracto)
AS MÃES

Ó suaves mulheres, que ides cantando
através das searas e das vinhas,
vinde ouvir uma história, em verso brando,
que hei-de ensinar a ler às andorinhas.

É uma história florida como as rosas!
Quero contá-la aos vossos querubins,
pelo luar, às horas religiosas,
quando os cravos concebem e os jasmins.

Quero falar dum ente extraordinário.
trágico. meigo, místico, suave;
dum leão que morreu sobre um Calvário
e que deixou um testamento de ave.

Vinde escutar-lhe a história em Galileia.
seu suor, sua morte e seu lençol,
e quando electrizava a vil Judeia
com seus olhos brilhantes como o Sol.

Desoladas mulheres, que ides chorando
os maridos que vão para os degredos,
por alta lua, os filhos embalando
com seus olhos brilhantes como o Sol.

vinde buscar a cura a vossos males,
na narração das lágrimas, das dores
do que andava nos rios e nos vales
com os simples, os chãos, os pescadores!

Vinde ouvir como andava largos dias
nos lagos e baías prazenteiras
e electrizava as almas das judias
sob os seus véus, debaixo das palmeiras.

Vinde escutar as lástimas estranhas
das filhas de Sião de longas tranças;
como ele amava os lagos, as montanhas,
as pombas, os doentes, as crianças!

Vinde escutar seus prantos nos abrolhos,
nas montanhas seu verbo às multidões.
e, a expulsar dos demónios as legiões,
a forte luz terrível de seus olhos.

Ó suaves mulheres, que estais cantando
ao pôr do Sol, à porta, às criancinhas,
vinde ouvir uma história, em verso brando.
que hei-de ensinar a ler às andorinhas.

A MAIOR DOR HUMANA
SONETO À VIRGEM

Ó Virgem! eu vi Job leproso em seu lameiro,
torcido qual carvalho a que o tufão arraste,
exclamar na aflição: - Maldito o homem primeiro!
Maldito o ventre, ó Mãe, em que tu me geraste!

Ó Virgem! eu vi Cristo amarrado ao madeiro,
como o branco marfim ou lírio roxo na haste,
suspirar num sol-pôr magoado e derradeiro:
- Ó meu Deus! Ó meu Deus! porque Me abandonaste?

Ó Virgem, vi Raquel chorando os filhos mortos,
errante, esguedelhada, olhos doidos, absortos.
pelas serras, à lua, encher Judeia de ais.

Mas vi-Te, ó Mãe, depois ao teu morto estreitada,
branca, sem cor, sem voz, feita em pedra, pasmada,
e a soluçar uivei: - Tu é que sofres mais!





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Guerra Junqueiro




Abílio de Guerra Junqueiro (1850-1923) nasceu em Freixo de Espada à Cinta, formando-se em Direito na Universidade de Coimbra. Foi funcionário público e deputado, aderindo em 1891, com o Ultimatum inglês, aos ideais republicanos. Influenciado por Baudelaire, Proudhon, Victor Hugo e Michelet, iniciou uma intensa escrita poética com o fim último de, pela crítica, renovar a sociedade portuguesa. Retirou-se para uma quinta no Douro, regressando à política com a implantação da República, tendo sido nomeado Ministro de Portugal em Berna. Obras: A Morte de D. João (1874), A Musa em Férias (1879), A Velhice do Padre Eterno (1885), Finis Patriae (1890), Os Simples (1892), Pátria (1896), Oração ao Pão (1903), Oração à Luz (1904), Poesias Dispersas (1920). Em colaboração com Guilherme de Azevedo, escreveu Viagem à Roda da Parvónia.

OS SIMPLES (extracto)

REGRESSO AO LAR

Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...

Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas manso, muito manso...
tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar!

PÁTRIA (extracto)

PORTUGAL

Maior do que nós, simples mortais, este gigante
foi da glória dum povo o semideus radiante.
Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,
seu torrão dilatou, inóspito montado,
numa pátria... E que pátria! A mais formosa e linda
que ondas do mar e luz do luar viram ainda!
Campos claros de milho moço e trigo loiro;
hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro;
trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas;
nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas;
gados nédios; colinas brancas olorosas;
cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas;
selvas fundas, nevados píncaros, outeiros
de olivais; por nogais, frautas de pegureiros;
rios, noras gemendo, azenhas nas levadas;
eiras de sonho, grutas de génios e de fadas:
riso, abundância, amor, concórdia, Juventude:
e entre a harmonia virgiliana um povo rude,
um povo montanhês e heróico à beira-mar,
sob a graça de Deus a cantar e a lavrar!
Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias
conchegadinhas sempre ao torreão de ameias.
Cada vila um castelo. As cidades defesas
por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas;
e, a dar fé, a dar vigor, a dar o alento,
grimpas de catedrais, zimbórios de convento,
campanários de igreja humilde, erguendo à luz,
num abraço infinito, os dois braços da cruz!
E ele, o herói imortal duma empresa tamanha,
em seu tuguriozinho alegre na montanha
simples vivia - paz grandiosa, augusta e mansa! -,
sob o burel o arnês, junto do arado a lança.
Ao pálido esplendor do ocaso na arribana,
di-lo-íeis, sentado à porta da choupana,
ermitão misterioso, extático vidente,
olhos no mar, a olhar sonambolicamente...
«Águas sem fim! Ondas sem fim! Que mundos novos
de estranhas plantas e animais, de estranhos povos,
ilhas verdes além... para além dessa bruma,
diademadas de aurora, embaladas de espuma!
Oh, quem fora, através de ventos e procelas,
numa barca ligeira, ao vento abrindo as velas,
a demandar as ilhas de oiro fulgurantes,
onde sonham anões, onde vivem gigantes,
onde há topázios e esmeraldas a granel,
noites de Olimpo e beijos de âmbar e de mel!»
E cismava, e cismava... As nuvens eram frotas,
navegando em silêncio a paragens ignotas...
- «Ir com elas...Fugir...Fugir!...» Ûa manhã,
louco, machado em punho, a golpes de titã,
abateu, impiedoso, o roble familiar,
há mil anos guardando o colmo do seu lar.
Fez do tronco num dia uma barca veleira,
um anjo à proa, a cruz de Cristo na bandeira...
Manhã de heróis... levantou ferro... e, visionário,
sobre as águas de Deus foi cumprir seu fadário.
Multidões acudindo ululavam de espanto.
Velhos de barbas centenárias, rosto em pranto,
braços hirtos de dor, chamavam-no... Jamais!
Não voltaria mais! Oh! Jamais! Nunca mais!
E a barquinha, galgando a vastidão imensa,
ia como encantada e levada suspensa
para a quimera astral, a músicas de Orfeus:
o seu rumo era a luz; seu piloto era Deus!
Anos depois, volvia à mesma praia enfim
uma galera de oiro e ébano e marfim,
atulhando, a estoirar, o profundo porão
diamantes de Golconda e rubins de Ceilão!

POESIAS DISPERSAS (extracto)

ADORAÇÃO

Eu não te tenho amor simplesmente. A paixão
Em mim não é amor; filha, é adoração!
Nem se fala em voz baixa à imagem que se adora.
Quando da minha noite eu te contemplo, aurora,
E, estrela da manhã, um beijo teu perpassa
Em meus lábios, oh! quando essa infinita graça
do teu piedoso olhar me inunda, nesse instante
Eu sinto - virgem linda, inefável, radiante,
Envolta num clarão balsâmico da lua,
A minh'alma ajoelha, trémula, aos pés da tua!
Adoro-te!... Não és só graciosa, és bondosa:
Além de bela és santa; além de estrela és rosa.
Bendito seja o deus, bendita a Providência
Que deu o lírio ao monte e à tua alma a inocência,
O deus que te criou, anjo, para eu te amar,
E fez do mesmo azul o céu e o teu olhar!...


CARTA A F.

És tu quem me conduz, és tu quem me alumia,
Para mim não desponta a aurora, não é dia,
Se não vejo os dois sóis azuis do teu olhar.
Deixei-te há pouco mais dum mês, - mês secular
E nessa noite imensa, ah, digo-te a verdade,
Iluminou-me sempre o luar da saudade.
E nesses montes nus por onde eu tenho andado,
Trágicos vagalhões dum mar petrificado,
Sempre adiante de mim dentre a aridez selvagem,
Vi como um lírio branco erguer-se a tua imagem.
Nunca te abandonei! Nunca me abandonaste!
És o sol e eu a sombra. És a flor e eu a haste.
Na hora em que parti meu coração deixei-o
Na urna virginal desse divino seio,
E o teu sinto-o eu aqui a bater de mansinho
Dentro em meu peito, como uma rola em seu ninho!
EM VIAGEM

Desde aquela dor tamanha
Do momento em que parti
Um só prazer me acompanha,
Filha, o de pensar em ti:

Por sobre a negra paisagem
Do meu ermo coração
O luar branco da tua imagem
Veste um benigno clarão.

A tarde, no azul celeste,
Há uma estrela esmorecida,
Que é o beijo que tu me deste
Na hora da despedida.

Beijo tão longo e dolente,
Tão longo e cortado de ais,
Que o meu coração pressente
Que não te torno a ver mais.

Conto no céu estrelado
Lágrimas de oiro sem fim:
É o pranto que tens chorado,
De dia e noite, por mim...

Quando me deito na cama
E vou quase adormecido,
Oiço a tua voz que me chama,
Num suplicante gemido.

Num gemido tão suave,
Tão triste na noite escura,
Que é como uma queixa d'ave
Presa numa sepultura!...

Em sonho, às vezes, meu Deus,
Cuido que vou expirar,
Sem levar nos olhos meus
O teu derradeiro olhar.

E sem extremo conforto
Que eu ness'hora quero ter:
Beijar a fronte do morto
Aquela que o fez viver.

E é esta ideia constante,
É esta ideia sombria
Que me eclipsa, a todo o instante
O sol da alma, a alegria.

Partir!... Partir-se a cadeia
Da vida, Senhor, senhor!
Quando o azul doirado arqueia
Bênçãos ao meu sonho em flor!...

Morrer amanhã talvez!
Morrer!... Endoideço, quando
Me lembra a tua viuvez,
Entre dois berços chorando!..

Morrer, entregar à treva,
Aos vermes e às podridões
O meu coração, que leva
Dentro mais três corações!

É duro, é cruel... No entanto,
Antes da hora final,
Eu quero dizer-te o quanto
Te amei, lírio virginal!

Eu vinha de longe, exangue,
A alma despedaçada,
deixando um rastro de sangue
Nas urzes da minha estrada.

Brancas ilusões mimosas,
Vastas quimeras febris,
Abelhas doirando rosas,
Águias c'roando alcantis.

Oh, desse mundo risonho
Havia apenas ficando
A bruma vaga dum sonho
Que a gente sonha acordado...

.......................
.......................

Nessa tremenda ansiedade
É que tu verteste, flor,
A tua imensa piedade
Na minha infinita dor!...

Eu era a sombra funesta
E tu o clarão doirado;
Juntámo-nos, que é que resta?
Um céu de Maio estrelado.

Quando vais serena e calma,
Linda, inefável, como és,
Vou pondo sempre a minha alma
No sítio onde pões os pés.

Corre o mundo, (o mundo é estreito)
Podes mil mundos correr,
Que hás-de calcar o meu peito
sempre por ti a bater.

......................
......................

Meus sofrimentos partilhas
E meus regozijos vãos:
Minhas dores são tuas filhas;
Meus cuidados teus irmãos.

Não Há dif'rença nenhuma
Em nossas almas, eu creio
Que foram feitas só duma
Que Deus dividiu ao meio.

Por isso penso há dois meses,
Desde a hora em que parti,
Que morreria cem vezes
Morrendo longe de ti:

Mas ai! se assim fosse, quando
Me sepultassem, então
Estalariam chorando
As tábuas do meu caixão.

E do meu peito gelado,
Na terra do cemitério,
Brotaria ensanguentado
Um lírio roxo, funéreo.

Um lírio estranho, imprevisto,
Feito pela minha dor
Das cinco chagas de Cristo
Reunidas numa só flor...

E a estrela, d'alva inocente,
Cheia de dó tombaria,
Lagrimosissimamente
Na urna da Flor sombria!...



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João Penha

João Penha de Oliveira Fortuna (1838-1919) nasceu e faleceu na cidade de Braga. Matriculou-se na Universidade de Coimbra em Teologia, passando depois para o curso de Direito onde se formou em 1873. Juntou-se desde logo ao grupo dos estudantes boémios, tornando-se amigo de Gonçalves Crespo, Cândido de Figueiredo, Antero de Quental, Guerra Junqueiro, entre outros. Fundou A Folha, um jornal literário de tendências parnasianas (publicado entre 1868 e1873) onde os amigos colaboravam. Regressado a Braga, exerceu a advocacia e ocupou o cargo de Juiz Ordinário do Julgado da Sé. Dirigiu entretanto a revista literária República das Letras, de que saíram três números. Morreu pobre, surdo e esquecido. A sua poesia comunga das concepções parnasianas, tendo muito contribuído para o rejuvenescimento do soneto em Portugal. Obras poéticas: Rimas (Lisboa, 1882), Viagem por Terra ao País dos Sonhos (Porto, 1898), Novas Rimas (Coimbra, 1905), Ecos do Passado (Porto, 1914), Últimas Rimas (Porto, 1919), Canto do Cisne (Lisboa, 1923). Prosa: Por Montes e Vales (Lisboa, 1899).

RIMAS
CENA DE TABERNA
A Guimarães Fonseca

Vede-o, além, no esconso, à luz mortiça
Do velho lampadário que vacila!
No lábio tem o insulto, e na pupila
O raio ardente que as paixões atiça.

Vede-os, que são rivais! Fatal cobiça
Violenta os arrancou à paz tranquila,
E no rude brigar, que os aniquila,
Já tingem de vermelho o chão e a liça!

- «Acima o canjirão!» - com voz acesa
Diz a mais fera na tremenda luta,
«Acima!» - e pousa-o sobre a mesa.

Mas, vendo soçobrar a massa bruta
Do insolente rival, dos vinhos presa:
- «Venci! diz vomitando; é minha a truta!»



CONSOLAÇÃO
A um poeta lírico

Não sucumbas assim. A noite escura
Sucede a luz da aurora e o sol radioso:
Suspende as mágoas do violão choroso,
O lamento dos tristes sem ventura.

Limpa as fezes do cálix da amargura,
E, com vinho dum pâmpano gostoso,
Ergue um brinde ao amante venturoso
Da mulher que adoravas com loucura.

Nem outra vez me digas que na munda,
Ou na voragem das perdidas gentes,
Não há sofrer maior, nem mais profundo.

A terra é o grande val dos descontentes!
Oh! se tu visses num festim jucundo
A mágoa dum gastrónomo... sem dentes!

VIAGEM POR TERRA AO PAÍS DOS SONHOS

SERMÃO NA MONTANHA

Frei Bernardo, de pé sobre uma dorna
Empina a canjirão, que o desafia,
E sobre o povo, que o admira, entorna
O mar enorme da oratória pia.

Prega, sinistra: textos mil aponta;
Aos abismos descendo do profundo,
Agarra Belzebu, por uma ponta
E com ele verbera o dorso ao mundo.

Chega à peroração, que a povo chora:
Vem ao trono buscá-lo a confraria;
Lança a benção final, e, sem demora
Empina o canjirão que o desafia.

AS GRANDES MANOBRAS
A Trindade Coelho

Quando eu fazia trovas, nessa idade
Em que a vida é sonho de poesia,
Fiz-lhe versos de amar, em que a dizia
Um lírio branco, a flor da castidade.

Era junto ao Penedo da Saudade
Que eu muitas vezes, perpassando, a via:
Lá era o ninho. Assim a cotovia
O faz longe, bem longe da cidade.

Quanto eu a amava então! Em ânsia ardente
Eu só tinha um desejo: o da conquista
Daquela virgem pura, anjo inocente!

Certo dia, em que a vi, fui-lhe na pista,
E logo, aproximando-me tremente:
- «Onde vai?» - perguntei. - «Vou à revista».


NOVAS RIMAS

A CARNE
A Cândido de Figueiredo

Carne mimosa, carne cor de rosa
Nada mais sois, oh anjos, na poesia
Dos vates dissolutos de hoje em dia,
Nos romances de amor, hedionda prosa.

A vossa alma gentil, ideal, mimosa,
Nestas idades de descrença ímpia,
Como escondida, numa estátua fria
Sonha e não voa, de voar medrosa!

Anjos chorai o Amor! Com voz dolente
Dizei-lhe adeus! Bronco recife
Se apruma entre ele e vós, cruel, ingente:

Que par mais que de vinhos o borrife,
Ninguém gosta de ver, continuadamente,
Diante de si, fatal, o mesmo bife!

NOVA MUSA

Sem pena alguma, sem amargo pranto,
A minha lira abandonei de outrora.
Oh! quantas vezes a minha alma cora
Das alegres canções que amara tanto!

Nem àqueles que me amam cause espanto
Se nesta fase em que me encontro agora,
Cercada a fronte dum clarão de aurora,
Eu, de Tenório me transforme em santo!

Que mudança, senhora, em mim fizeste:
O vate da alegria, ei-lo defunto;
Outro mais grave as suas formas veste!

Cantei o paio atroz, o vil presunto;
Agora és tu, só tu, musa celeste
A minha inspiração, a meu assunto!
ECOS DO PASSADO

LAMÚRIAS

«Que pena! Tenho o corpo tão bonito,
E nenhum amoroso me procura!
E, quem sabe? talvez à sepultura
Eu me vá, de capela e de palmito!

«Em tempos, um rapaz muito esquisito,
Inda imberbe mas lindo de figura,
Passava, mas fugiu! Que desventura:
Era da raça dos Josés do Egipto!

«E os dias vão passando, sem que veja
A mais ligeira mutação de cena!
Por sobre mim uma ave negra adeja!

«De corpo tão bonito, alta e morena
À própria Vénus causaria inveja,
E assim tão bela... durmo só! Que pena!»

CONSOLAÇÃO

Eu fiz da vida um plácido remanso:
Vivo cantando, como o ancião de Cós.
A acção do tempo não me afrouxa a voz,
E para o ignoto alegremente avanço.

Compara as nossas vidas: eu, descanso;
É triste o teu viver, sem paz, atroz!
Parece a morte, ao longe, um leão feroz;
Ao perto é outra; um cordeirinho manso.

Para que a receias, pois, e te lastimas?
O varão forte vence a dor, não chora;
Volta ao violão jucundo, às tuas rimas.

Volta ao viver antigo, sem demora;
Que quanto mais da noite te aproximas,
Mais te aproximas do esplendor da aurora!

ÚLTIMAS RIMAS

ANTERO DE QUENTAL

Andas, meu bom Antero de Quental,
Nas regiões obscuras do infinito
Cá eras meio ateu, mas lá, contrito,
Já te vês imortal, ante o Imortal.

Esse caso psicológico e fatal
Está de há muito em livros de oiro escrito:
Filosofia e crença não são mito,
Uma irrisória criação mental.

Sem veres o fantástico Nirvana,
Alijaste Manu, e dizes triste:
«Não tem limites a cegueira humana!

Na terra que fiz eu, da lança em riste?
Oh! como o pensamento nos engana!
De tudo que sonhei... só Deus existe!»

A MOÇA E A VELHA

«- Você, oh tia Maria,
Está velha como um caco,
nem pode sair de dia
Mais feia do que um macaco!
Já não faz meia, nem fia!
Toda vestida de trapos,
Quase cega, manca e surda,
Ninguém lhe inveja a existência,
Causa nojo aos próprios sapos,
E já não vive, chafurda
Nas vasas da decadência,
Como diz o nosso abade.»

Disse-lhe a velha, serena:
«- Já fui isso que tu és,
E na minha mocidade
Dançava, e até com graça;
Chamou-me um vate açucena,
E vi muitos a meus pés
Cá na aldeia, e na cidade,
Mas na vida tudo passa.»

«Sim, pareço-te uma bruxa,
E não sei que mais, um grou;
A minha perna estrebucha,
E provoco a hilaridade,
Mas, ouve isto que te digo:
Talvez, para teu castigo,
Não chegues à minha idade,
Nem a ser isto que sou!»



CANTO DO CISNE

BUCÓLICA

Ao Dr. Francisco Teixeira de Queirós

Que paisagem tão bela!
Podia um Corot pintá-la!
Vem tu, Cármen, contemplá-la,
Daqui, da minha janela.

Além, junto da cancela,
Certo moço à noiva fala:
De súbito um beijo estala
Nas bochechas da donzela.

Num campo um jumento zurra;
Cantam grilos no montado;
Batem-se cabras à turra.

Tu, dança um sapateado,
Enquanto eu gemo, à bandurra,
Saudades do passado.

O ETERNO FEMININO

Ninguém vive sem amor,
Neste mundo sub-lunar.
Cada pomba tem seu par,
Cada zagala um pastor.

O doirado pica-flor
Ama a rosa-de-toucar;
Enfim, na terra e no mar,
É Ele o rei, o senhor.

Pois que amar é lei sem metas,
Amemos, cantando aos ventos
As nossas musas dilectas.

Até os próprios jumentos
Têm, como nós os poetas,
Burras dos deus pensamentos.

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