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quarta-feira, 22 de abril de 2009

Modernismo geração 45 modernismo brasileiro (pós modernismo)



Affonso Ávila
(Belo Horizonte MG, 1928)
Publicou seu primeiro livro de poesia, O Açude. Sonetos da Descoberta, em 1953. Na época, trabalhava como auxiliar de gabinete do então governador Juscelino Kubitschek e como colaborador dos periódicos Diário de Minas, Tendência e Estado de Minas. Nos anos seguintes, participaria da campanha de JK para presidente e se aproximaria dos poetas concretistas de São Paulo. Em 1961, saiu seu livro Carta do Solo; em 1963, era a vez de Frases-feitas. Em 1967, tornou-se colaborador da revista Invenção, do grupo concretista. Sua identificação com a poesia de vanguarda o levaria a retirar sua participação na I Bienal Nestlé de Literatura, em protesto aos ataques às vanguardas dos anos 60. Em 1991 recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia, pelo livro O Visto e o Imaginado (1990). Sua poesia, bastante influenciada pelo concretismo, caracteriza-se pela experimentação lingüística e pela forte presença temática do erotismo e do engajamento ideológico.
Anti-Sonetos Ouropretanos
I
da vila rica de ouro preto o ouro
do preito o ouro do pilar o ouro
do pórtico o ouro do púlpito o ouro
do paramento o ouro do pálio o ouro

do panteão o ouro do pacto o ouro
do percalço o ouro do perjúrio o ouro
do patíbulo o ouro do proscrito o ouro
do prêmio o ouro do palimpsesto o ouro

do pedágio o ouro do pecado o ouro

do pulha o ouro do podre o ouro
do polvo o ouro do puro o ouro

do pobre o ouro do povo o ouro
do poeta o ouro do peito o ouro
da rima rica de outro preto o ouro

II
a cidade da hera e de idade
a antiguidade de édito e de idade
a posteridade de efígie e de idade
a eternidade de essência e de idade

a majestade de espírito e de idade
a gravidade de espectro e de idade
a dignidade de ênfase e de idade
a imobilidade de enlevo e de idade

a obliquidade de eflúvio e de idade
a soledade de exílio e de idade
a fatalidade de exaustão e de idade

a castidade de espera e de idade
a carnalidade de efêmero e de idade
a cidade de eros e de idade
Frases-Feitas
façamos a revolução
antes que o povo a faça
antes que o povo à praça
antes que o povo a massa
antes que o povo na raça
antes que o povo: A FARSA

o senso grave da ordem
o censo grávido da ordem
o incenso e o gáudio da ordem
a infensa greve da ordem
a imensa grade DA ORDEM

terra do lume e do pão
terra do lucro e do não
terra do luxo e do não
terra do urso e do não
terra da usura e DO NÃO

mais da lei que dos homens
mais da grei que os come
mais do dê que do tome
mais do rei que do nome
mais da rês que DA FOME

num peito de ferro
é um coração de ouro
é o quorum a ação do ouro
é o coro a ação do ouro
é a cor a ópio-ação do ouro
é a gorda nação DO OURO

(...)

libertas quae sera tamen
liberto é o ser que come
livre terra ao sertanejo
livro aberto será a trama
LIBERTO QUE SERÁ O HOMEM
Soneto de Amor
O coração não pulsa a clave dura
Cantando a rosa de si mesma urdida,
Seu tempo esculpe a aurora sem medida
Sobre as orlas da carne que amadura.

Nenhuma fonte aqui nos inaugura
Com a floração de água surpreendida,
Revolvemos os campos onde a vida
Pendoa-se e aos seus dias transfigura.
Confluência de vento e flauta rústica,
Em nosso lábio colhem outra acústica
Os pássaros moldados pela tarde.
Entanto, despojando-se de tudo
O amor ainda se apura e, embora mudo,
Faz do silêncio a fórmula de alarde. Os Insurgentes
O LÚRIDO JOIO DO REVERSO
(...)
onde o vôo insurgente de Antônio
como poderá ser independente um povo
que não produz toda a roupa de que se veste

onde o vôo insurgente de Artur
é a questão do nosso minério de ferro
é o futuro do Brasil, que se atira criminosamente
pela janela,
como se faz a um traste incômodo e imprestável

onde o vôo insurgente de Aníbal
queria ver como surgiam as novas gerações
todos livres da exploração e do medo

onde o vôo insurgente de Murilo
grandes da terra, tremei nas cadeiras blindadas
que já vem a cólera santa
abrindo narinas de fogo

onde o vôo insurgente de Carlos
o poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e
outras armas
promete ajudar
a destruí-lo

O LÚCIDO JOGO DO REVÉS
Os Negros de Itaverava
Três negros de Itaverava,
irmãos em sangue e aflição,
não dormiam, como os outros,
a noite que é sujeição,
dormiam, sim, as auroras
— as luzes em combustão
dos sonhos que, mesmo estéreis,
sucedem no coração.

Enquanto as almas penadas
nos caminhos pranteavam
o corpo que se perdera
e os cães com elas choravam,
na senzala não se ouviam
os passos que se cuidavam,
as vozes que, a medo e susto,
no paiol confabulavam.

Para quem é jaula o dia,
que seja conspiração
de perfídia e sortilégio,
de roubo e contravenção
a noite cujas estradas
não se sabe aonde dão,
a noite que enlaça o negro
com seus silêncios de irmão.
(...)
Por Carmen Miranda
balangandãs
brinco de ouro e uma
bolota assim gozo os três

bês de carmen e
bambo na cama decodifico afinal o que é que a
baiana tem
Por Leila Diniz
dizer a leila
diniz
dispa-se e
disparar
disposto
Por Tarsila do Amaral
comer o t
comer o ar
comer a sila

comer o que se o bicho antropófago já
comeu
V Internacional
O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de
jovens dentre eles um negro e um barbado

O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de
jovens negros e barbados

O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de
jovens barbados

O poeta é visto no bar com um grupo de jovens barbados

O poeta é visto no bar com um grupo de barbados

O poeta é visto com um grupo de barbados

O poeta é visto com uns barbados estranhos

O poeta é visto com uns barbados suspeitos

O poeta é visto com uns suspeitos

O poeta é um suspeito

O poeta é suspeito

O POETA É UM TERRORISTA




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CARLOS PENA FILHO
Carlos Souza Pena Filho (1929 – 1960),fez no Recife sua vida de poeta. Em 1952 publicou seu primeiro livro de poesias, “O tempo da busca”. Em 1955, “Memórias do boi Serapião”, ilustrado por Aloísio Magalhães. “A vertigem lúcida” foi publicado em 1958, e, no ano seguinte, sua obra foi reunida no “Livro Geral”. Organizada por seu biografo Edilberto Coutinho, em 1983 foi publicada a antologia “Os melhores poemas de Carlos Pena Filho”.
Em parceria com Capiba, renomado músico pernambucano, foi autor de letras de músicas de sucesso, entre as quais destacamos “A mesma rosa amarela”, incorporada ao movimento da Bossa Nova na voz de Maysa. Compôs com Capiba as seguintes canções: "A Mesma Rosa Amarela", "Claro Amor", "Pobre Canção" e "Manhã de Tecelã", todas gravadas em 1960 (selo Mocambo) sob o título "Sambas de Capiba"
Carlos Pena Filho morreu precoce e tragicamente no dia 1º de julho de 1960, vítima de um acidente automobilístico. Foi da redação do “Jornal do Commercio” — onde trabalhava — que pegou carona no carro de um amigo que se chocaria com um ônibus. No jornal assinou duas colunas: “Literatura” e “Rosa dos Ventos”. Cinco dias antes da sua morte, 26/6/60, foi publicado no “JC” seu último poema, que acima reproduzimos.
A PALAVRA
Navegador de bruma e de incerteza,
Humilde me convoco e visto audácia
E te procuro em mares de silêncio
Onde, precisa e límpida, resides.
Frágil, sempre me perco, pois retenho
Em minhas mãos desconcertados rumos
E vagos instrumentos de procura
Que, de longínquos, pouco me auxiliam.
Por ver que és claridade e superfície,
Desprendo-me do ouro do meu sangue
E da ferrugem simples dos meus ossos,
E te aguardo com loucos estandartes
Coloridos por festas e batalhas.
Aí, reúno a argúcia dos meus dedos
E a precisão astuta dos meus olhos
E fabrico estas rosas de alumínio
Que, por serem metal, negam-se flores
Mas, por não serem rosas, são mais belas
Por conta do artifício que as inventa.
Às vezes permaneces insolúvel
Além da chuva que reveste o tempo
E que alimenta o musgo das paredes
Onde, serena e lúcida, te inscreves.
Inútil procurar-te neste instante,
Pois muito mais que um peixe és arredia
Em cardumes escapas pelos dedos
Deixando apenas uma promessa leve
De que a manhã não tarda e que na vida
Vale mais o sabor de reconquista.
Então, te vejo como sempre foste,
Além de peixe e mais que saltimbanco,
Forma imprecisa que ninguém distingue
Mas que a tudo resiste e se apresenta
Tanto mais pura quanto mais esquiva.
De longe, olho teu sonho inusitado
E dividido em faces, mais te cerco
E se não te domino então contemplo
Teus pés de visgo, tua vogal de espuma,
E sei que és mais que astúcia e movimento,
Aérea estátua de silêncio e bruma
A DÁDIVA DOS AMANTES
Deu-lhe a mais limpa manhã
Que o tempo ousara inventar.
Deu-lhe até a palavra lã,
E mais não podia dar.
Deu-lhe o azul que o céu possuía
Deu-lhe o verde da ramagem,
Deu-lhe o sol do meio dia
E uma colina selvagem.
Deu-lhe a lembrança passada
E a que ainda estava por vir,
Deu-lhe a bruma dissipada
Que conseguira reunir.
Deu-lhe o exato momento
Em que uma rosa floriu
Nascida do próprio vento;
Ela ainda mais exigiu.
Deu-lhe uns restos de luar
E um amanhecer violento
Que ardia dentro do mar.
Deu-lhe o frio esquecimento
E mais não podia dar.
A SOLIDÃO E O SEU DESGASTE
Freqüentador da solidão, às vezes
Jogava ao ar um desespero ou outro,
Mas guardava os menores objetos
Onde a vida morava e o amor nascia.
Era uma carga enorme e sem sentido,
Um silêncio magoado e impermeável...
A solidão povoada de instrumentos,
Roubando espaço à andeja liberdade.
Mas, hoje, é outro que nem lembra aquele
Passeia pelos campos e os despreza
E porque sabe com certeza clara,
O princípio e o fim da coisa amada,
Guarda pouco da vida e o que retém
É só pelo impossível de eximir-se.
A SOLIDÃO E SUA PORTA
Quando mais nada resistir que valha
A pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(Nem o torpor do sono que se espalha)
Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
E até Deus em silêncio se afastar
Deixando-te sozinho na batalha
A arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.
DESMANTELO AZUL
Então pintei de azul os meus sapatos
Por não poder de azul pintar as ruas
Depois vesti meus gestos insensatos
E colori as minhas mãos e as tuas
Para extinguir de nós o azul ausente
E aprisionar o azul nas coisas gratas
Enfim, nós derramamos simplesmente
Azul sobre os vestidos e as gravatas
E afogados em nós nem nos lembramos
Que no excesso que havia em nosso espaço
Pudesse haver de azul também cansaço
E perdidos no azul nos contemplamos
E vimos que entre nascia um sul
Vertiginosamente azul: azul.
PARA FAZER UM SONETO
Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
E espere um instante ocasional
Neste curto intervalo Deus prepara
E lhe oferta a palavra inicial
Ai, adote uma atitude avara
Se você preferir a cor local
Não use mais que o sol da sua cara
E um pedaço de fundo de quintal
Se não procure o cinza e esta vagueza
Das lembranças da infância, e não se apresse
Antes, deixe levá-lo a correnteza
Mas ao chegar ao ponto em que se tece
Dentro da escuridão a vã certeza
Ponha tudo de lado e então comece.
RETRATO DO PINTOR REINALDO FONSECA
Mas tanta cor não cabe neste espaço
e arrebenta os limites que a circundam
as meninas de luto que aqui dormem
dentro do próprio sono se equilibram
Em tuas mão manchadas de ternura,
pousam brancos pássaros. por isso
falas atrás da sombra, e à luz mais forte
ruminas teu silêncio inquebrantável
Se o que possui o céu de puro e simples
algum dia cair sobre o teus ombros
imperturbável, pintarás um anjo
E nunca mais palavras além da sombra
que o que restar de ti será somente
o profundo silêncio inquebrantável
SONETO SUPERFICIAL COM MADAME
Madame, em vosso claro olhar, e leve,
navegam coloridas geografias,
azul de litoral, paredes frias,
vontade de fazer o que não deve
ser feito, por ser coisa de outros dias
vivida num instante muito breve,
quando extraímos sal, areia e neve
de vossas mãos, singularmente esguias.
Que eternos somos, dúvida não tenho,
nem posso abandonar minha planície
sem saber se em vós há o que em vós venho
buscar. E embora em nós tudo nos chame,
jamais navegarei a superfície
de vosso claro e leve olhar, Madame.
SONETO DA BUSCA
Eu quase te busquei entre os bambus
para o encontro campestre de janeiro
porém, arisca que és, logo supus
que há muito já compunhas fevereiro.
Dispersei-me na curva como a luz
do sol que agora estanca-se no outeiro
e assim também, meu sonho se reduz
de encontro ao obstáculo primeiro.
Avançada no tempo, te perdeste
sobre o verde capim, atrás do arbusto
que nasceu para esconder de mim teu busto.
Avançada no tempo, te esqueceste
como esqueço o caminho onde não vou
e a face que na rua não passou.
SONETO AO RECANTO
Num recanto sem data e sem ternura,
E mais, sem pretensão a ser recanto,
Descobri em teu corpo o amargo canto
De que despenca para a desventura.
Há nos recantos sempre uma segura
Desvantagem de unir o desencanto
E é por isso talvez que não me espanto
De ali perder teu corpo e a ventura.
De viver entre atento e descuidado,
Mirando o pardo tédio que descansa
Nos subúrbios do amor desmantelado.
E só para ganhar mais espessura
Eu resolvi fazer esta lembrança
De um recanto sem data e sem ternura.
SONETO DAS DEFINIÇÕES
Não falarei de coisas, mas de inventos
e de pacientes buscas no esquisito.
Em breve, chegarei à cor do grito,
à música das cores e do vento.
Multiplicar-me-ei em mil cinzentos
(desta maneira, lúcido, me evito)
e a estes pés cansados de granito
saberei transformar em cataventos.
Daí, o meu desprezo a jogos claros
e nunca comparados ou medidos
como estes meus, ilógicos, mas raros.
Daí também, a enorme divergência
entre os dias e os jogos, divertidos
e feitos de beleza e improcedência.
SONETO DAS METAMORFOSES
Carolina, a cansada, fez-se espera
e nunca se entregou ao mar antigo.
Não por temor ao mar, mas ao perigo
de com ela incendiar-se a primavera.
Carolina, a cansada que então era,
despiu, humildemente, as vestes pretas
e incendiou navios e corvetas
já cansada, por fim, de tanta espera.
E cinza fez-se. E teve o corpo implume
escandalosamente penetrado
de imprevistos azuis e claro lume.
Foi quando se lembrou de ser esquife:
abandonou seu corpo incendiado
e adormeceu nas brumas do Recife. SONETO PARA GRETA GARBO
Entre silêncio e sombra se devora
e em longínquas lembranças se consome
tão longe que esqueceu o próprio nome
e talvez já não sabe por que chora
Perdido o encanto de esperar agora
o antigo deslumbrar que já não cabe
transforma-se em silêncio por que sabe
que o silêncio se oculta e se evapora
Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a tua face
que já foi sol e agora é cinza fria
Mas vê nascer da sombra outra alegria
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que não via.
SONETO OCO

Neste papel levanta-se um soneto,
de lembranças antigas sustentado,
pássaro de museu, bicho empalhado,
madeira apodrecida de coreto.

De tempo e tempo e tempo alimentado,
sendo em fraco metal, agora é preto.
E talvez seja apenas um soneto
de si mesmo nascido e organizado.

Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado
e nem me lembro quando apareceu.

Lembranças são lembranças, mesmo pobres,
olha pois este jogo de exilado
e vê se entre as lembranças te descobres.
SONETO À FOTOGRAFIA
Libertar-se ligeiro da moldura
é o desejo da face, onde, o desgosto
emigrado do poço de água impura,
vai se aninhar na hora do sol posto.
Do lugar da prisão vem a tortura,
pois vê, do seu retângulo, teu rosto
e acorrentado na parede escura,
não pode engravidar-te para agosto.
Guarda ainda no olhar instante e viagem:
o instante em que foi presa pela imagem
e o roteiro que fez em mundo alheio.
E eterna inveja do seu sósia ausente
que, embora prisioneiro da corrente,
habita num subúrbio do teu seio.
MARINHA
Tu nasceste no mundo do sargaço
da gestação de búzios, nas areias.
Correm águas do mar em tuas veias,
dormem peixes de prata em teu regaço.
Descobri tua origem, teu espaço,
pelas canções marinhas que semeias.
Por isso as tuas mãos são tão alheias,
Por isso teu olhar é triste e baço.
Mas teu segredo é meu, ó, não me digas
onde é tua pousada, onde é teu porto,
e onde moram sereias tão amigas.
Quem te ouvir, ficará sem teu conforto
pois não entenderá essas cantigas
que trouxeste do fundo do mar morto.
RETRATO CAMPESTRE
Havia na planície um passarinho,
Um pé de milho e uma mulher sentada.
E era só. Nenhum deles tinha nada
com o homem deitado no caminho.

O vento veio e pôs em desalinho
a cabeleira da mulher sentada
e despertou o homem lá na estrada
e fez canto nascer no passarinho.

O homem levantou-se e veio, olhando
a cabeleira da mulher voando
na calma da planície desolada.

Mas logo regressou ao seu caminho
deixando atrás um quieto passarinho,
um pé de milho e uma mulher sentada.
GUIA PRÁTICO DA CIDADE DO RECIFE
(trechos)
No ponto onde o mar se extingue
E as areias se levantam
Cavaram seus alicerces
Na surda sombra da terra
E levantaram seus muros
Do frio sono das pedras.
Depois armaram seus flancos:
Trinta bandeiras azuis plantadas no litoral.
Hoje, serena flutua, metade roubada ao mar,
Metade à imaginação,
Pois é do sonho dos homens
Que uma cidade se inventa.
(...)
Recife, cruel cidade,
águia sangrenta, leão.
Ingrata para os da terra,
boa para os que não são.
Amiga dos que a maltratam
inimiga dos que não,
este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
e desmaiadas lembranças
do tempo em que também eras
noiva da revolução.
MEMÓRIAS DO BOI SERAPIÃO
Este campo,
vasto e cinzento,
não tem começo nem fim,
nem de leve desconfia
das coisas que vão em mim

Deve conhecer, apenas
(porque são pecados nossos)
o pó que cega meus olhos
e a sede que róí meus ossos.

No verão, quando não há
capim na terra
e milho no paiol,
solenemente mastigo
areia, pedras e sol

Às vezes, nas longas tardes
do quieto mês de dezembro,
vou a uma serra que eu sei
e as coisas da infância lembro:

instante azul em meus olhos
vazios de luz e de fé
contemplando a festa rude
que a infância dos bichos é...

No lugar onde eu nasci
havia um rio ligeiro
e um campo verde e mais verde
de um janeiro a outro janeiro;

havia um homem deitado
na rede azul do terraço
e as filhas dentro do rio
diminuindo o mormaço.

não tinha as coisas daqui:
homens secos e compridos
e estas mulheres que guardam
o sol na cor dos vestidos,

nem estas crianças feitas
de farinha e jerimum
e a grande sede que mora
no abismo de cada um.

Havia este céu de sempre
e, além disto, pouco mais
que as ondas na superfície
dos verdes canaviais.

Mas, os homens que moravam
na língua do litoral
falavam se desmanchando
das terras gordas e grossas
daquele canavial;

e raras vezes guardavam
suas lembranças mofinas:
as fumaças que sujavam
os claros céus que cobriam
as chaminés das usinas.

Às vezes, entre iguarias,
um comentário isolado:
a crônica triste e curta
de um engenho assassinado

Mas logo à mesa voltavam
que a fome bem pouco espera
e os seus olhos descansavam
em porcelanas da China
e cristais da Baviera

Naquelas terras da mata
bem poucos amigos fiz,
ou porque não me quiseram
ou então porque eu não quis

Lembro apenas um boi triste,
num lençol de margaridas
que era um encanto do menino
que alegre o tangia para
as colinas coloridas

Um dia, naquelas terras
foi encontrado um boi morto
e os outros logo disseram
que o seu dono era o homem torto

que em vez de contar as coisas
daqueles canaviais
vivia de mexericos
"entre estas Índias de leste
e as Índias Ocidentais"

A verde flora da mata
(que é azul por ser da infância)
habita os meus olhos com
serenidade e constância.

Este campo,
vasto e cinzento,
é onde às vezes me escondo
e envolto nestas lembranças
durmo o meu sono redondo,

que o que há de bom por aqui
na terra do não chover
é que não se espera a morte
pois se está sempre a morrer

em cada poço que seca
em cada árvore morta
em cada sol que penetra
na frincha de cada porta,

em cada passo avançado
no leito de cada rio,
por todo o tempo em que fica
despido, seco, vazio

Quando o sol doer nas coisas
da terra e no céu azul
e os homens forem em busca
dos verdes mares do sul,

só eu ficarei aqui
para morrer por completo,
para dar a carne à terra
e ao sol meu branco esqueleto,

nem ao menos tentarei
voltar ao canavial,
pra depois me dividir
entre a fábrica de couro
e o terrível matadouro
municipal.

E pensar que já houve tempo
em que estes homens compridos
falavam de nós assim:
o meu boi morreu
que será de mim?

Este campo,
vasto e cinzento,
não tem entrar nem sair
e nem de longe imagina
as coisas que estão por vir,

e enquanto o tempo não vem
nem chega o milho ao paiol,
solenemente mastigo
areia, pedras e sol.







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A hora da estrela - Clarice Lispector
No último livro publicado em vida, Clarice constrói a personagem de Macabéa como vista pelo fictício, irônico e auto-depreciativo escritor/narrador Rodrigo S.M. Macabéa era uma miserável alagoana virada por uma cruel e ignorante tia beata (os pais, cujo nome Macabéa ignora, morreram quando ela tinha dois anos). Macabéa cresce vazia e sem ciência da própria existência ou de sua finitude.
Após ser despedida e a tia morrer, ela emigra para o RJ, onde passa a morar num cubículo com quatro colegas de seu novo trabalho (é datilógrafa) e começa a namorar um paraibano chamado Olímpico de Jesus. O ganancioso Olímpico, que não media esforços para ascender socialmente, a troca por Glória, sua colega de trabalho, que lhe possibilitaria esta ascensão. Depois de um pouco tempo ela visita Carlota, uma cartomante, que lhe prevê um belo futuro.
Ao sair da cartomante "grávida do futuro", como diz a autora, ou seja, ciente de algo além do presente, é atropelada por um carro de luxo e morre. Mas a história em si tem menor importância no todo: para Clarice Lispector , a reflexão é mais importante do que a ação. Macabéa é uma personagem sem conteúdo, pobre de alma, um acaso que ensaia agir e pensar, mas com pouco sucesso. Ela pouco faz, simplesmente reage e por vezes se indaga perguntas cuja resposta ela não consegue. Isto vai até o momento de sua morte, quando está mais ciente de si; ao ser atropelada torna-se a estrela do que acontece: é sua hora de estrela.
Olímpico, que se orgulha de ter matado um cabra no sertão, que sonha ser deputado e ter a boca cheia de dentes de ouro, que admira touradas e açougueiros, em suma, um arrivista que quer subir na vida a todo custo, é importante, pois encorpa o caráter da protagonista. É quando ele diz seu nome – que indica seu caráter talhado para subir às alturas – que ficamos sabendo o nome de Macabéa. Pode-se até pensar na relação tosca entre os dois, ela ausente de carisma amoroso – o namoro consiste em passeios e momentos em que ficam sentados em bancos de praça –, ele grosseiro e autoritário, Macabéa é quem leva vantagem, pois sua personalidade vai parcamente enriquecendo. Isso se torna mais simbólico no dia em que vai ao zoológico. A protagonista fica tão estarrecida quando vê a massa compacta que é o corpo de um rinoceronte que acaba se urinando. Sua sexualização foi despertada.
No entanto, foi trocada pela companheira de escritório, Glória, datilógrafa muito mais eficiente do que Macabéa (semi-analfabeta que emporcalha o serviço), além de mais encorpada. Para Olímpico, casar-se com uma loira (oxigenada) e “carioca da gema” seria uma maneira de subir na vida. Nossa heroína, ainda assim, não sofre, mas sua libido fica mais despertada. Sintomático é, nesse contexto, o momento em que vai passar batom de forma desajeitada, usando um espelho quebrado. Enfeitar-se já indica que está com desejo, que ainda se demonstra de forma primitiva, grotesca e assustadora – mais espanta que atrai; não é à toa que a imagem que surge no espelho é retorcida.
O fato é que Macabéa está tendo atitudes inéditas – dando atenção a si mesma. Uma vez faltara ao serviço para ficar só, enquanto suas companheiras de quarto iam trabalhar nas Lojas Americanas. Em outra ocasião, tinha ido ao médico, que lhe diagnostica tuberculose. Ela nem sequer percebeu o que significava a doença.
Assim, aproveitando essa onda, Glória – talvez com remorso por ter tomado o namorada da amiga – aconselha a protagonista (até dinheiro empresta!) a ir a uma cartomante para tirar sua sorte. É a grande virada de sua vida, primeiro porque vai ganhar um destino, um futuro, algo que a impulsionasse para frente, que eliminasse de sua vida o simplesmente existir. O crítico, porém, é que isso virá da boca de outro.
Realmente, muita mudança ocorre. Enquanto Macabéa espera ser atendida, numa sala decorada por meio de um gosto duvidoso, seu “eu” já se está alterando. Novidade também é a forma como a cartomante, antiga prostituta e cafetina, trata Macabéa: é carinhosa, gostando até do nome dela. Adivinha perfeitamente a vida da protagonista, qualificando-a como horrível. Mas promete muita coisa boa. É nesse instante que a heroína percebe como a existência era de fato rala.
Então, a grande previsão. A cartomante vê um estrangeiro, alemão, Hans, que encherá Macabéa de amor, riqueza, jóias, casacos. Passará a ser amada, a ser bonita. O encontro com esse homem proporcionaria a Macabéa uma mudança radical em sua vida.
Dotada de um destino, Macabéa até sorri. Sai tão inebriada do lugar miserável em que ficava a profetisa que atravessa distraída a rua. É ironicamente atropelada por um Mercedes Benz (atropelada por uma estrela...) dirigido por um alemão, que nem pára para socorrê-la.
Nos seus últimos instantes, cabeça batida na guia, fala “Quanto ao futuro”. Está aparentemente realizada. Há pessoas prestando atenção nela. É o centro das atenções. É uma estrela. Tanto é que, em meio à sensualidade que vai sentindo, encolhendo-se como um feto, começa a delirar, imaginando que seu sangue era estrela. É o seu grande momento, proporcionado pela morte. Havia encontrado um motivo para o seu existir.
Tempo e enredo:
O enredo de A hora da Estrela não segue uma ordem linear: há flashbacks iluminando o passado, há idas e vindas do passado para o presente e vice-versa.
Além da alinearidade, há pelo menos três histórias encaixadas que se revezam diante dos nossos olhos de leitor:
a) Rodrigo S.M. conta a história de Macabéa:
Esta é a narrativa central da obra: o escritor Rodrigo S.M. conta a história de Macabéa, uma nordestina que ele viu, de relance, na rua. Imaginações? Veja o trecho:
"Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua o Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos.
Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história - determino com falso livre arbítrio - vai Ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu , Rodrigo S.M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e "gran finale"seguido de silêncio e de chuva caindo. (...)
Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba, nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?"
b) Rodrigo S.M. conta a história dele mesmo:
Esta narrativa dá-se sob a forma do encaixe, paralela à história de Macabéa. Está presente por toda a narrativa sob a forma de comentários e desvendamentos do narrador que se mostra, se oculta e se exibe diante dos nossos olhos:
"Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria.
Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que a palavra é ação.
(Evolar-se: elevar-se voando, ou como que voando, desaparecer no espaço; desaparecer; desvanecer-se, dissipar-se; desfazer-se; exalar-se; emanar)
C) O narrador conta como tece a narrativa:
Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história - determino com falso livre arbítrio - vai Ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu , Rodrigo S.M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e "gran finale"seguido de silêncio e de chuva caindo. (...)
Aliás - descubro eu agora - também não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor , sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.
Foco narrativo
O foco narrativo escolhido é a primeira pessoa, quem narra a história é Rodrigo S.M., um escritor que se dá como tarefa narrar a história de uma certa nordestina que viu na rua, por um instante, numa esquina do Rio de Janeiro.
O narrador lança mão, como recurso, das digressões, o que, aspectualmente parece dar à narrativa uma característica alinear. Não se engane: ele foge para o passado a fim de buscar informações.
Acrescente, ainda: Macabéa é indispensável ao foco narrativo, mas o narrador se ocupa, ainda, em estabelecer paralelos ( diferenças e igualdades) entre o fazer da prosa, sua existência,a existência de sua personagem Macabéa e a da escritora Clarice Lispector ( volte outra vez para a introdução do livro).
Há nele uma onisciência e onipotência ferozes, como se tudo pudesse ( e pode) conduzir e mudar. Há uma profunda identificação entre o narrador e a sua personagem. Ele parece amá-la ( e nos diz isso) e odiá-la ( e nos diz isso também):
"Por enquanto Macabéa não passava de um vago sentimento nos paralelepípedos sujos. Eu poderia deixá-la na rua e simplesmente não acabar a história. Mas não: irei até onde o ar termina, irei até onde a grande ventania se solta uivando, irei até onde o vácuo faz uma curva, irei aonde me fôlego me levar. Meu fôlego me leva a Deus? Estou tão puro que nada sei. Só uma coisa eu sei : não preciso ter piedade de Deus. Ou preciso?"
Ambiência:
O Rio de Janeiro é a ambiência, o espaço. Ocorre que o espaço físico, externo, não importa muito nesta história. O "lado de dentro"das criaturas é o que interessa aos intimistas:
Depois - ignora-se por quê - tinham vindo para o Rio, o inacreditável Rio de Janeiro, a tia lhe arranjara emprego, finalmente morrera e ela, agora sozinha, morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas.
O tempo narrativo:
Pelos indícios que o narrador nos oferece, o tempo é época em que Marylin Monroe já morreu - possivelmente a década de 60 em seu fim ou a de 70 em seus começos- mas faz ainda um grande sucesso como mito que povoa a cabeça e os sonhos de Macabéa.
As personagens:
Normalmente os textos claricianos nos mostram as personagens e seus destinos, suas dores do existir, suas descobertas do mundo. Colocadas numa situação de epifania ( revelação de verdades transcendentes e fundamentais, que mudam o rumo das vidas como, por exemplo, a dos santos) elas assumem suas existências verdadeiras ou, na maioria dos casos, voltam-se para dentro delas mesmas, continuam a existir por existir.
No caso de A hora da Estrela, elas são rudes, incompletas, por vezes brutais, à exceção do narrador Rodrigo S.M.
Macabéa:
Alagoana, tem 19 anos e foi criada por uma tia beata que batia nela ( sobre a cabeça, com força); completamente inconsciente, raramente percebe o que há à sua volta. Feia, mora numa pensão em companhia de 3 moças que são balconistas nas Lojas Americanas( Maria da Penha, Maria da Graça e Maria José). Macabéa recebe o apelido de Maca e é a protagonista de nossa história:
" e a jovem ( ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome.(...) Limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela que deveria Ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra - a tia é que lhe dera um curso
Possivelmente o nome Macabéa seja uma alusão aos macabeus bíblicos, sete ao todo, teimosos, criaturas destemidas demais no enfrentamento do mundo; a alusão, no entanto, faz-se pelo lado do avesso, pois Macabéa é o inverso deles.
"Macabéa não pensava em Deus. Deus não pensava nela. Nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um-não-sei-o-quê com ar de desculpa por ocupar espaço.
Tinha manchas ( no Nordeste chamam-se "panos") no rosto, que disfarçava com uma grossa camada de pó branco, o que a fazia ficar meio caiada. Era toda meio encardida, porque raramente se lavava. Tinha um cheiro murrinhento que incomodava as colegas de quarto. A pele do rosto entre as manchas tinha um leve brilho de opala, o que não importava, já que ninguém olhava para ela na rua..."ela era café frio."
O narrador nos avisa que ela tinha pensamentos esquisitos, certos enjôos decorrentes de traumas infantis:
"Esqueci de dizer que às vezes a datilógrafa tinha enjôo para comer. Isso vinha desde pequena quando soubera que havia comido gato frito. Assustou-se para sempre. Perdeu o apetite, só tinha a grande fome. Parecia-lhe que havia cometido um crime e que comera um anjo frito, as asas estalando entre os dentes. Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam.
Nunca havia jantado ou almoçado num restaurante. Era em pé mesmo no botequim da esquina. Tinha uma vaga idéia que mulher que entra em restaurante é francesa e desfrutável."
Olímpico:
Olímpico se apresentava como Olímpico de Jesus Moreira Chaves: "mentiu ele porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome dos que não têm pai. Fora criado por um padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar as pessoas para se aproveitar delas e lhe ensinara como pegar mulher."
Trabalhava numa metalúrgica e não se classificava como "operário": era um "metalúrgico". Era ambicioso, orgulhoso e matara um homem antes de migrar da Paraíba. Queria ser muito rico, um dia; e um dia queria também ser deputado. Um secreto desejo era ser toureiro, gostava de ver sangue.
"No Nordeste tinha juntado salários e salários para arrancar um canino perfeito e trocá-lo por um dente de ouro faiscante. Este dente lhe dava posição na vida. Aliás, matar tinha feito dele homem com letra maiúscula. Olímpico não tinha vergonha, era o que se chamava no Nordeste de "cabra safado". Mas não sabia que era um artista: nas horas de folga esculpia figuras de santo e eram tão bonitas que ele não as vendia."
"Mas ainda não expliquei bem Olímpico. Vinha do sertão da Paraíba e tinha uma resistência que provinha da paixão por sua terra braba e rachada pela seca. Trouxera consigo, comprada no mercado da Paraíba, uma lata de vaselina perfumada e um pente, como posse sua e exclusiva. Besuntava o cabelo preto até encharcá-lo. Não desconfiava que as cariocas tinham nojo daquela meladeira gordurosa. Nascera crestado..."
Rodrigo S.M.
É o narrador-personagem de A Hora da Estrela:
A história - determino com falso livre arbítrio - vai Ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importante deles, é claro. Eu, Rodrigo S.M. Relato antigo, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade(...).
Ele tem domínio absoluto sobre o que escreve. Inclusive sobre a morte de Macabéa, no final:
"Macabéa por acaso vai morrer? Como posso saber? E nem as pessoas ali presentes sabiam. Embora por via das dúvidas algum vizinho tivesse pousado junto do corpo uma vela casa. O luxo da rica flama parecia cantar glória.(...)
Macabéa, Ave Maria, cheia de graça, terra serena da promissão, terra do perdão, tem que chegar o tempo, ora pro nobis, e eu me uso como forma de conhecimento. Eu te conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti. Espraiar-me selvagemente e, no entanto, atrás de tudo pulsa uma geometria inflexível. Macabéa lembrou-se do cais do porto. O cais chegava ao coração de sua vida.
Macabéa pedir perdão? Porque sempre se pede. Por quê? resposta: é assim porque assim é. Sempre foi? Sempre será. E se não foi? Mas eu estou dizendo que é. Pois."
Glória:
Filha de um açougueiro, nascida e criada no Rio de Janeiro, Glória rouba Olímpico de Macabéa. Tem um quê de selvagem, cheia de corpo, é esperta, atenta ao mundo:
"Glória possuía no sangue um bom vinho português e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da mulatice. Oxigenava em amarelo-ovo os cabelos crespos cujas raízes estavam sempre pretas. Mas mesmo oxigenada ela era loura, o que significava um degrau a mais para Olímpico. Além de ter uma grande vantagem que nordestino não podia desprezar. É que Glória lhe dissera, quando lhe fora apresentada por Macabéa: "sou carioca da gema!"
Madame Carlota:
É a mulher de Olaria que porá as cartas do baralho para "ler a sorte"de Macabéa. Contará que foi prostituta quando jovem, que depois montou uma casa de mulheres e ganhou muito dinheiro com isso. Come bombons , diz que é fã de Jesus Cristo e impressiona Macabéa:
"- Macabéa! Tenho grandes notícias para lhe dar! Preste atenção, minha flor, porque é da maior importância o que vou lhe dizer. É coisa muito séria e muito alegre: sua vida vai mudar completamente! E digo mais: vai mudar a partir do momento em que você sair da minha casa! Você vai se sentir outra. Fique sabendo, minha florzinha, que até o seu namorado vai voltar e propor casamento, ele está arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe despedir!"
Na verdade, Madame Carlota é uma enganadora vulgar, observe:
"- Pois vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos..."
"(...) Olha, minha queridinha, esse feitiço também sou obrigada por Jesus a lhe cobrar porque todo o dinheiro que eu recebo das cartas eu dou para um asilo de crianças. Mas se não puder, não pague, só venha me pagar quando tudo acontecer."
Existem, ainda, outras personagens: As três Marias que moram com Macabéa no mesmo quarto, o médico que a atende e diagnostica a gravidade da tuberculose e o chefe, seu Raimundo, que reluta em mandá-la embora .
Filme

Macabéa, uma imigrante nordestina semi-analfabeta, trabalha como datilógrafa numa pequena firma e vive numa pensão miserável. Conhece casualmente o também nordestino Olímpico, operário metalúrgico, e os dois começam um casto e desajeitado namoro. Mas Glória, esperta colega de trabalho de Macabéa, rouba-lhe o namorado, seguindo o conselho de uma cartomante. Macabéa faz uma consulta à mesma cartomante, Madame Carlota, e esta prevê seu encontro com um homem rico, bonito e carinhoso
Ficha Técnica

Título Original: A Hora da Estrela
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 96 min.
Ano de Lançamento (Brasil): 1985
Distribuição: Embrafilmes
Direção: Suzana Amaral
Roteiro: Suzana Amaral e Alfredo Oroz
Produção: Raiz Produções Cinematográficas
Música: Marcus Vinicius
Fotografia: Edgar Moura
Desenho de Produção: Clóvis Bueno
Figurino: Clóvis Bueno
Edição: Idê Lacreta
Elenco
Marcélia Cartaxo
José Dumont
Tamara Taxman
Fernanda Montenegro
Denoy de Oliveira
Sônia Guedes
Lisette Negreiros
Cláudia
Humberto Magnani

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Água Viva - Clarice Lispector - resumo
Clarice Lispector percebeu com alguma antecipação a crise na temporalidade que hoje vivenciamos quando articulou poeticamente uma categoria para dar conta da volatilidade do presente, o ‘instante-já”:
O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente o chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado.”( Água Viva 1973/ 1979,19)
A velocidade desenfreada do tempo atual é inimiga mortal da memória. Talvez fosse o caso de se editar o manual de sobrevivência da memória. Reeditar o mito de Sherazade, ícone salvacionista das reminiscências e, de modo idêntico, de sua função narratária. A memória é o lócus privilegiado do imaginário, berço de toda ficção.
Se pela dimensão desejante somos afetados pela leitura, então não lemos apenas com o auxílio da razão e do entendimento. Em Água viva, de Clarice Lispector, a personagem-narradora diz: “Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras.”Lemos com o corpo todo, nosso corpo linguageiro,corpo erógeno, pulsional. A relação do corpo com a linguagem se dá pela mediação exercida pela sensorialidade das palavras. Recorde-se o que dissera, no início, sobre o texto literário ser, por excelência, um texto de evocação. Essa dimensão evocativa supõe corporeidade e desejo. Em sua materialidade significante,o texto se faz carne e corpo erótico. A escritura é a prova de que o texto deseja o leitor. Numa perspectiva barthesiana, diria que a escritura é o Kamasutra da linguagem.
Em 1971, Clarice Lispector conclui as quase duzentas páginas de um manuscrito a que intitulado "Objeto gritante". Composto na maioria de crônicas publicadas anteriormente em jornal, "Objeto gritante" é a radicalização de uma tendência em Clarice já flagrada no seu romance anterior, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969): a de enxertar fragmentos por assim dizer jornalísticos no tecido de suas narrativas literárias, instaurando "um novo estatuto do texto literário" (Vilma Arêas).
Como sabemos "Objeto gritante" nunca foi publicado. Revisado e reduzido à metade, este manuscrito (se é que dele ainda podemos falar) seria publicado três anos mais tarde com novo título: Água viva (1973). Ao longo da revisão, elementos fundamentais ao projeto original foram suprimidos: o hibridismo de gêneros narrativos de diferentes stati literários, a heterogeneidade no nível da linguagem de estilos e de temas, e, acima de tudo, o caráter autobiográfico de "Objeto gritante". Este breve ensaio apresenta "Objeto gritante" como obra transgressora de certos valores ou decoros literários estabelecidos pela modernidade (cujo "gênero", sabe-se, é masculino): a unidade de composição, a transcendência do autor/mundo empírico, as fronteiras entre literatura e não literatura. Minha intenção é examinar as complexas decisões que levaram Clarice Lispector a realizar e logo abandonar este projeto literário.
A Obra de Arte Literária de vanguarda apresenta uma maior incidência de rupturas entre os segmentos do texto. Água Viva, de Clarice Lispector, apresenta um discurso onde os vazios são produzidos pela interrupção da coerência textual; esses espaços funcionam como instrumentos impulsionadores da consciência imaginativa do leitor; no entanto, a autora utiliza um recurso técnico de produção de texto que direciona a articulação entre o discurso linear e um outro discurso que, mesmo embutido no texto principal, se manifesta em dissonância com as unidades temáticas. Designamos de “Fissura Literária” a esse recurso técnico de produção de texto. Desenvolvemos a articulação teórico-metodológica entre a fenomenologia e a estética da recepção para a análise do texto Água Viva, atendendo a dois fatores: primeiro, dispor dos recursos operacionais necessários à demonstração deste estudo; segundo, promover a empatia texto/leitor, instrumento fundamental para a exposição do assunto. A análise do texto com base nos postulados da fenomenologia busca resgatar na obra literária um objeto estético constituído de elementos distintos, mas entre si articulados de modo a promover um discurso polifônico. O leitor preenche as lacunas com as suas projeções imaginativas; desenvolve associações entre os elementos, formula hipóteses, faz deduções, etc; é ele quem dá consistência representativa a um objeto estético, cuja “existência” está na dependência da sua atuação como o finalizador da obra literária. A estética da recepção delega ao leitor esse papel de co-produtor do texto.


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Laços de Família - Clarice Lispector - resumo
Laços de Família, de 1960, é uma coletânea de treze contos, dentre os quais seis publicados em 1952 com o título de Alguns Contos. Nesses contos Clarice Lispector procura focalizar o processo de aprisionamento dos seres humanos em suas prisões domésticas', daí o titulo, Laços de Família.
Em seus contos, a autora busca o questionamento das formas convencionais e estereotipadas das relações familiares, ritualmente repetidas de geração em geração, dentre as quais, a relação marido/mulher, mãe/filhos, avó/familiares, filha/mãe, dentre outros.
"Devaneio e embriaguez duma rapariga'
Uma típica senhora portuguesa casada, certo dia ao encontrar-se defronte ao espelho a mirar-se, estando só em casa ( os filhos e o marido estavam fora ) começou a devanear. Tanto que ficou o tempo inteiro no quarto sob a cama, o que fez o marido pensar que esta estava doente.
Tão logo os filhos voltam ao lar, a vida retoma o seu norte e nossa personagem volta ao seu ritmo cotidiano, apenas desmanchado por um encontro de negócios entre seu marido e respectivo chefe.
Embriaga-se e desenvolve muita prosa com o chefe do marido_ em verdade enciumava a beleza da vestimenta de outra mulher no recinto e isto feriu-lhe a vaidade.
Ao chegar em casa repensa sua própria sensualidade e o desejo que podia despertar nos homens.
"Amor"
Ana, urna mulher casada, pacata e mãe de dois filhos, tinha uma vida doméstica muito calma, donde cuidava dos seus com o esmero e amor típicos de uma pessoa fraterna e sensível. Aliás Ana, em hebraico significa "pessoa benéfica, piedosa".
Certo dia ao ir às compras encontrou-se com um cego que muito a impressionou; com a freada brusca do bonde onde se encontrava, os ovos que carregava acabaram quebrando-se! A sua paz tão duramente conquistada desapareceu.
Transtornada acabou por descer no Jardim Botânico que por sua beleza fê-la temer o próprio inferno. Aqui podemos fazer um paralelo entre a beleza que salta aos olhos e o cego que está privado disto, este último vive o próprio inferno em terra. Esta então é a explicação de tanto que impressionara a personagem.
Ao voltar para casa sentia que alguma coisa havia mudado dentro de si, abraçou o filho tão fortemente que o assustou e foi ajudar o marido quando este derrubou o café. Carinhosamente este pegou-lhe a mão e levou-a para o quarto para dormirem.
"Uma galinha"
Uma galinha de domingo, pronta para o abate. Contudo quando apanhada pelo pai da menina que é a narradora da estória, a galinha acaba pondo um ovo, imediatamente a menina avisa os demais familiares do fato e alerta-os para a nova condição de "mãe" da galinha.
O pai de família, sentindo-se culpado por tê-la feito correr para o abate, acaba por nomear a ave como de estimação sob pena de que se o animal fosse sacrificado nunca mais voltaria a alimentar-se da galinha.
Contudo, houve um dia em que "mataram-na, comeram-na e passaram-se anos."
"A imitação da rosa"
Laura, casada e sem filhos, preparava-se para um jantar na casa de amigos. Era a primeira vez que ela faria isto desde que voltara do hospital, onde fora internada. Provavelmente por causa de um surto. Ela pretendia estar pronta, de banho tomado, em seu vestido marrom, a casa limpa e a empregada despachada, quando seu marido, Armando, chegasse. Assim teria tempo livre para ficar à disposição dele e ajudá-lo a arrumar-se.
Laura parecia perseguir a perfeição a todo custo, vigiava-se para ser uma esposa modelo, submissa e obediente, mediana até na cor dos cabelos, nem loura, nem morena: de modestos cabelos marrons Ela procura parecer normal, premedita todos os seus gostos. Não quer que os outros se preocupem com ela. Pensa o quanto seria bom ver o marido enfim relaxado, conversando como amigo, no jantar, sem lembrar-se de que ela existe.
Exausta e feliz, pois acabara de passar em ferro todas as camisas de Armando. Laura sentou-se na poltrona da sala e cochilou um breve instante.
Quando acordou, teve a sensação de que a sala estava renovada.
Admirou intensamente as rosas que comprara pela manhã, na feira. Eram perfeitas. Resolveu então dá-las à amiga que iria à noite visitar. Estava decidido, mandaria as flores pela empregada. Mas, logo depois, Laura hesitava. Por que as rosas, tão bonitas, não podiam ser dela mesma? Por que a beleza e exuberância das rosas a ameaçava? Acabou cedendo-as, a empregada levou as flores, e ela não conseguiu voltar atrás.
É provável que a perfeição que Laura vira nas rosas tivesse lhe provocado o impulso de romper novamente com seu lado submisso e servil para se tornar incansável. super-.humana, independente. tranqüila, perfeita e serena.
Quando o marido chegou do trabalho, Laura ainda estava sentada na poltrona, e nada tinha feito do que planejara Dirigiu-se a ele: "Voltou. Armando. Voltou. (..) Não pude impedir. disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava ria sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita. Não pude impedir. repetiu, (...) Foi por causa das rosas, disse cor,, modéstia(...) Ele a olhou envelhecido e curioso.
Ela estava sentada com seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável.
"Feliz aniversário"
Tudo preparado para o encontro anual da família. Na casa de Zilda, a única filha, as bolas coloridas espalhavam-se pela sala e o bolo confeitado enfeitava o centro da mesa. Na cabeceira, arrumada e perfumada com água de colônia para disfarçar o cheiro de guardado, estava Cornélia, a matriarca e aniversariante que completava 89 anos.
Primeiro chegaram as noras com os netos, depois os filhos. A velha. Sentada, impassível, se perguntava como ela, tão forte, pudera gerar uma família tão medíocre.
Cantaram, parabéns atrapalhados todos fingiam entusiasmo, incapazes de uma alegria verdadeira A velha foi ríspida o quanto pode. Escandalizou os presentes e envergonhou Zilda, cuspindo no chão.
Temos o retrato de uma velha amargurada pela morte do filho que admirava, e o desprezo por todos os demais é oriundo neste fato. É preciso observar que Cornélia é a matriarca de todo o clã e seu nome é de acepção latina e significa duro, forte.
"A menor mulher do mundo"
Encontrada no coração da África, por Marcel Pretre, um caçador e explorador, a menor mulher do mundo tinha 45cm e era escura como um macaco. Vivia numa árvore com o seu concubino e estava grávida.
A sua foto, tirada pelo francês, na qual ela aparecia em tamanho natural, foi publicada em jornais de todo o planeta despertando nas famílias o desejo de possuir e proteger aquele pigmeu do sexo feminino, ser humano em miniatura.
Os selvagens Bantos, conterrâneos da menor mulher do mundo, adoravam capturar e comer aquelas miniaturas. As crianças queriam a mulher para brincarem de boneca.
"Mamãe, se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está dormindo? Quando ele acordasse, que susto, hein", disse um menino. Sua mãe olhava-se no espelho e enrolava o cabelo quando ouviu isso, Lembrou-se de uma história contada pela empregada, que passara a vida num orfanato.
As meninas da instituição não tinham brinquedos. Um dia, uma delas morreu, e as outras esconderam-na das freiras no armário. Quando não estavam sendo vigiadas, pegavam a defunta como se fosse uma boneca, davam-lhe banho, penteavam-lhe os cabelos botavam-na de castigo, punham-na para dormir... Pensando nisso a mulher considerou cruel a necessidade humana de amar e possuir, a malignidade de nosso desejo de ser feliz, a ferocidade com que queremos brincar.
A alma das famílias queria devotar-se àquela frágil criatura africana. Enquanto isso, a própria coisa rara, a menor mulher do mundo, grávida, sentia o seu peito morno de amor.
Amava e ria. Amava o explorador amarelo, a sua bota, o seu anel brilhante. Amava e ria, e deixava o homem grande perplexo. Pequena Flor, era assim que o francês a chamava, sabia que o amor era não ser comida pelos Bantos, era achar uma bota bonita, gostar da cor do homem que não é negro, e rir.
O explorador não entendia o amor que lhe saía por aquele riso. Ele, que já conhecia um pouco da sua língua, fazia-lhe algumas perguntas, às quais Pequena Flor respondia "sim", "Que era muito bom ter uma árvore para morar, sua, sua mesmo, pois é bom possuir, é bom possuir, é bom possuir."
"O Jantar"
Num restaurante, um homem observa atentamente um velho a comer. Ambos não se conheciam. A brusquidão e a dureza do velho chamaram a atenção do homem, que lhe vigiava cada gesto. Até que o homem, extasiado, e sentindo certa náusea, percebeu no velho uma lágrima. Então, não tocou mais no prato, enquanto o velho terminou a sua refeição, comeu a sobremesa, pagou a conta, deixou uma gorjeta para o garçom e atravessou o salão, luminoso, desaparecendo. O observador medita: "eu sou um homem ainda."
"Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruiria. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue".
“Preciosidade"
Ela era uma estudante de 15 anos, não era bonita, mas tinha sua preciosidade. A mocinha, protagonista deste conto, atravessará este estado transformando-se em mulher, rito em que se dará a perda do que lhe é precioso possivelmente sua virgindade.
Acordava muito cedo para ir à escola, precisava tomar um ônibus e um bonde, além de caminhar até o ponto. O caminho era difícil, não gostava que a olhassem. Andava rígida, severa, não admitindo sequer que os homens no ônibus ou os rapazes na escola pensassem nela. Mas o barulho de seus sapatos com saltos de madeira chamavam a atenção de todos, o que a perturbava terrivelmente. Ela era inteligente e aplicada nos estudos (uma maneira de ser respeitada e manter os homens afastados), À tarde tinha em casa apenas a companhia dos livros e da empregada
“Certa manhã, ao sair para a escola, só na rua percebeu que ainda estava muito escuro, quase noite. Prosseguiu, enfrentando a madrugada. A caminho do ponto, viu na rua dois rapazes que andavam em sentido oposto ao seu. Procurou manter o ritmo e a calma, eles passariam por ela e continuariam naquela direção, distanciando-se. Avançou, procurando não olhar para eles, nem demonstrar medo. Mas o que se seguiu não teve explicação. (..) foram quatro mãos que não sabiam o que queriam, quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação, quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada,"
Na fuga os sapatos dos dois rapazes fizeram um barulho louco que soou por algum tempo na sua cabeça. Ela premiu-se contra o muro, ficou ali impossibilitada de qualquer ação, até que, lentamente, começou a mover-se, catar os seus livros e cadernos, e neles via a sua antiga caligrafia. Ela era outra. Dirigiu-se à escola, onde chegou com duas horas de atraso. Não falou a ninguém sobre o que ocorrera. No banheiro, gritou: "estou sozinha no mundo! “
Em casa, durante o jantar, reivindicou:" Preciso de sapatos novos! Os meus fazem muito barulho, uma mulher não pode andar com salto de madeira, chama muita atenção ao que lhe responderam: "Você não é uma mulher e todo salto é de madeira."
"Ate que, assim como uma pessoa engorda, ela deixou, sem saber por que processo, do ser preciosa.
"Os laços de família"
Depois de duas semanas de visita, Catarina levava a sua mãe para a estação, onde a senhora tomaria o trem e se despediria da filha. Elas estão no táxi. Catarina recorda-se do desconforto causado pela breve convivência entre a sua mãe e o seu marido. O genro e a sogra mal se suportavam. Mas, na hora da partida, ambos encheram-se de generosidade e delicadeza. Catarina tinha vontade de rir. Ria então pelos olhos, como permitia seu estrabismo.
A mãe desta jovem mulher chamava-se Severina, A severa mãe, em tom de desafio e acusação, lembrava o quanto o menino, seu neto, estava magro. Magro e nervoso." Catarina concordava, paciente. Antônio, esposo de Catarina e pai do menino nervoso, certa noite irritou-se profundamente com tais observações da sogra.
De repente, uma freada do carro lançou as duas mulheres uma contra a outra, provocando entre elas uma brusca intimidade de corpos já esquecida. Era como se lhes acontecesse um desastre, uma catástrofe irremediável. Não esqueci nada?", perguntava Severina pela terceira vez. Elas evitaram olhar-se até a estação. Catarina nunca fora de muitos carinhos e intimidades com a mãe. Fora, sim. uma filha muito próxima, muito achegada ao pai, cheia de beijos, abraços, cumplicidade.
Dentro do trem, como elas não tivessem o que dizer, a mãe retirou um espelho da bolsa, examinando a sua aparência.
Quando a campainha da estação tocou, mãe e filha se olharam assustadas, chamando uma pela outra. Parecia que, todos aqueles anos, elas se tinham esquecido de dizer algo, como: 'sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha. Mas não o disseram, fizeram-se recomendações. mandaram lembranças para os parentes, e o trem se foi. Agora, sem a mãe, Catarina recuperava o seu modo firme de andar. Caminhar sozinha era mais fácil, nada a impediria de subir mais um degrau misterioso nos seus dias.
Catarina voltou para casa "disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito." Encontrou o marido na sala, lendo os jornais de sábado, o seu dia tomado de volta com a partida da sogra. O menino magro e nervoso estava no quarto, distraído... Procurando chamar a atenção do filho, a mãe sacudia uma toalha na sua frente. Foi quando. pela primeira vez, o menino lhe disse: 'Mamãe', sem nada pedir, e num tom diferente do que usava antes.
Alguma coisa se quebrara entre eles e Catarina estava extasiada, O seu corpo inteiro riu, não só os olhos. Tomou o seu filho pela mão e saíram para um passeio, deixando Antônio atônito na sala, sem saber aonde iam O homem dirigiu-se a janela e viu, já na calçada, a mulher e o filho.
Ele olhava pela janela, a mulher andando depressa com o filho. Sentia-se frustrado, ela tomava sozinha o seu momento de alegria. Decidiu que depois do jantar iriam ao cinema. Depois do cinema, seria noite. E "este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador",
“Começos de uma fortuna"
Artur é um garoto obcecado por dinheiro. O conto gira em torno das suas preocupações em como ganhá-lo: dai, a presença de palavras como mesada e frases como: "logo que alguém tem dinheiro aparecem os outros querendo aplicá-lo, explicando como se perde dinheiro" ou "basta você ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima.”
Indo ao cinema com o seu colega Carlinhos, com Glorinha e uma amiga desta, Artur se mostra menos preocupado em divertir-se do que em imaginar se está sendo explorado ou não. De certo modo, Carlinhos é o oposto de Artur: acredita que dinheiro existe para ser gasto, preocupando-se menos em ganhá-lo do que em ganhar uma garota. Já Artur não pretende tomar quantias emprestadas (para não ter de devolvê-las), não planeja empregá-las em coisas. No entanto, ele se vê obrigado a fazer um empréstimo com Carlinhos, uma vez que não tem como pagar a entrada de cinema para Glorinha.
"O crime do professor de matemática"
Era domingo, os católicos dirigiam-se à igreja. Um homem os observava da colina mais alta da chapada. Carregava um saco pesado na mão e, nas costas, a culpa de um dia ter abandonado um cão com o qual tinha uma relação de afeto. De dentro do saco o senhor retirou um cachorro morto. Era-lhe desconhecido, sentou-se ao seu lado e observou, solitário, a paisagem ao redor, a chapada deserta com a sua única árvore. Do saco tirou uma pá e começou a pensar onde enterraria o defunto. Talvez rio centro da chapada, lugar em que ele mesmo gostaria de ser enterrado. Diante da dificuldade de determinar a exata posição do centro da chapada, resolveu enterrá-lo ali mesmo, precisamente embaixo dos seus pés. Pegou a pá e pôs-se a cavar.
O crime do professor de matemática não consistia em ter matado o cão desconhecido. Encontrara-o já morto, numa esquina, e surpreendera-se com a idéia de enterrá-lo. O corpo do cão representava para ele o cão verdadeiro, o que abandonou ao mudar-se com a família de uma cidade para aquela em que agora vivia. Enfim, o professor enterrou o cão, bem à superfície, para que não perdesse a sensibilidade. Para o homem, esse ato era a maneira que achara de redimir-se do seu pecado, de punir-se do seu crime com o outro cão, o abandonado.
Sentindo-se finalmente livre, o homem pôs-se a pensar no verdadeiro cão, como quem pensasse na verdadeira vida, Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias á tua", pensou com saudades. "Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma, (...) Quanto me amaste mais do que te amei.”
Refletindo a relação que estabelecera com o cão, o homem revelará aos poucos os motivos que tornaram impossível a convivência entre ambos:
"E, abanando tranquilo o rabo, parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera. (...) Porque, embora meu, nunca me cedeste nem um pouco de teu passado e de tua natureza. E, inquieto, eu começava a compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te amar, e isso começava a me importunar. Era o ponto de realidade resistente das duas naturezas que esperavas que entendêssemos. Minha ferocidade e a tua não deveriam se trocar por doçura: era isso que pouco a pouco me ensinavas, e era isso também que estava se tornando pesado. Não me pedindo nada , me pedias demais. De ti mesmo exigias que fosses um cão. De mim exigias que eu fosse um homem."
A cabeça matemática e fria do homem pouco a pouco entendeu que o que fizera ao cão era impune e definitivo, pois "não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições'.
O professor, então, passou a olhar a cova onde havia enterrado sua "fraqueza e sua condição, e era como se "José, o cão abandonado, exigisse dele (...) num último arranco, que fosse um homem e como homem assumisse o seu crime.
O professor não queria mais se sentir livre de seu crime, não seria nunca um homem se abandonasse tão facilmente também sua culpa.
"Agora. mais matemático ainda, procurava um meio de não se ter punido." O homem. lentamente, desenterrou o cachorro desconhecido e renovou o seu crime para sempre. transformando em um verdadeiro homem, o professor desceu a chapada.
"O búfalo"
"Eu te odeio" disse a mulher, muito depressa, a um homem que não a amava. Mas a mulher só sabia amar e perdoar, e 'se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida'. Então, numa tarde de primavera, ela visitou o jardim zoológico em busca de um animal que lhe ensinasse a odiar.
Encontrara amor nos leões, na girafa, nos macacos. O camelo fizera-lhe topar com a paciência e a poeira. Só a última, e a sua aridez, a interessava. A aridez e não mais as lágrimas. Onde estaria o bicho que lhe daria o sentimento que procurava? Com a sua violência, sozinha, foi para a 'fila dos namorados", esperando a sua vez de entrar no carrinho da montanha russa. Depois de ser sacudida no ar como uma boneca, saiu pálida, como se fora "jogada fora de uma igreja".
Voltou a andar, procurando o animal e o ódio. Encontrou o búfalo, que a espiava ao longe. Ele era negro e seus cornos muito alvos. A mulher ficou desconfiada, parecia que o búfalo a olhava. Ela desviou os olhos, o seu coração batia descompassado.
"O búfalo deu uma volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o rosto todo doeu um pouco.
(...) Uma coisa branca espalhara-se dentro dela (...). A morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do búfalo trouxeram-na a si mesma e, em novo e longo suspiro ela voltou à tona. Não sabia onde estivera. Estava de pé, muito débil, emergida daquela coisa branca e remota onde estivera”'
O animal agora lhe parecia mais negro e maior. Começou a provocá-lo, gritando e jogando-lhe pedras. O ódio, como um fio de "sangue negro”, como gotas de "óleo amargo" começou a pingar dentro dela, "fêmea desprezada". O búfalo voltou-se para ela e encarou-a de longe. "Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo”.
O búfalo, provocado, aproximou-se lentamente. "Ele se aproximava, a poeira erguia-se”. Como a mulher não recuava um só passo, os seus olhos e os do animal fitaram-se diretamente. "Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranquilo de ódio, a olhava”. O olhar a mantinha presa "ao mútuo assassinato (.) como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo”.
Observações:
Pertencente ao circuito literário nacional dos idos de 1945, Clarice recebeu influência direta do romance psicológico e do chamado fluxo de consciência (stream of consciouness) presente na literatura irlandesa desde a publicação de Ulisses de James Joyce.
O forte apelo intimista e a miríade de imagens desencadeadas em seus angustiantes textos revelam a própria condição de solidão do homem no mundo.
Há um aspecto a ser levantado nas personagens criadas por ela_ usualmente são moças, velhas, casadas, solteiras, enfim, mulheres e sua realidade social e pessoal deflagradas sob o olhar hipnotizante e martirizador de Clarice.






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A Paixão segundo G. H. - Clarice Lispector - resumo
Romance com um enredo banal, mas considerado por muitos como o grande livro da autora. A personagem principal, ao fazer uma faxina, se depara com uma barata e a esmaga. Depois, numa espécie bárbara de ascese, decide provar da barata morta. Ao esmagar e comer a barata operou-se na mulher uma revelação. Ela estava numa rotina doméstica civilizada, entre filhos, afazeres domésticos e contas a pagar, e o inseto a lançou para fora do humano, deixando-a na borda do coração selvagem da vida. Esse desejo de encontrar o que resta do homem quando a linguagem se esgota, move, desde o início, a literatura da escritora. Mesmo sem ser um livro de inspiração religiosa, tem aspecto epifânico. No ato praticado, a protagonista comunga com o real e, ali, o divino, a força impessoal que nos move, se manifesta. E só depois desse ato, que desarruma toda a visão civilizada, G.H., a mulher, pode, enfim, se reconstruir.
É um mergulho do interior da personagem-narradora, e não há propriamente história. G.H. busca , em si mesma, pela introspecção radical, sua identidade e as razões de viver, sentir e amar. A obra nem começa nem termina; ela continua. A narradora e personagem do romance está em seu apartamento tomando café, como faz todos os dias. Dirige-se ao quarto da empregada, que acabara de deixar o emprego. Lá;vê subitamente uma barata, saindo de um armário. Este evento provoca-lhe uma náusea impressionante, mas ao mesmo tempo, é o motivador de uma longa difícil avaliação de sua própria existência, sempre resguardada, sempre muito acomodada. A visão da barata é o seu momento de iluminação após o qual já não é a mesma, já não é a criatura alienada que tomava café distraidamente em seu apartamento. Nesse momento, deflagra-se na narradora a consciência da solidão (tanto dela, quanto da barata). O nojo pelo inseto desafia-se assustadoramente: é preciso que ela se aproxime da barata,, toque na barata, e até (seria possível?) prove o sabor dá barata. Para regressar ao seu estado de um ser primitivo, selvagem - e por isso mais feliz- G.H. deve passar pela experiência de experimentar o gosto do inseto. Através da "provação" (que é a sua náusea física e existencial), G.H. estaria fazendo uma reviravolta em seu mundo condicionado e asséptico.
A náusea, aqui tomada como "forma emocional violenta da angústia", é o momento que antecede a revelação, a epifania, e resulta da dolorosa sensação da fragilidade da condição humana. A paixão de G.H. pode ser biblicamente interpretada como sofrimento aludindo à Paixão de Cristo, narrada por Mateus, Marcos, Lucas e João. É comum a aproximação da obra de Clarice da corrente filosófica existencialista, especialmente do existencialismo literário-filosófico de Jean Paul Satre (1905-1981) Segundo a R, Sant'Ana, os romances e contos de Clarice percorrem essas quatro etapas: a personagem é disposta numa determinada situação cotidiana; prepara-se um evento que é pressentido discretamente; a epifania - ocorre o evento, que "ilumina" a vida; ocorre o desfecho, onde se considera a situação da vida da personagem, após o evento.
Trecho:
Cada olho reproduzia a barata inteira.
– Perdoa eu te dar isto, mão que seguro, mas é que não quero isto para mim! Toma essa barata, não quero o que vi.
Ali estava eu boquiaberta e ofendida e recuada – diante do ser empoeirado que me olhava. Toma o que eu vi: pois o que eu via com um constrangimento tão penoso e tão espantado e tão inocente, o que eu via era a vida me olhando.
Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama – era lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade.
Toma, toma tudo isso para ti, eu não quero ser uma pessoa viva! Tenho nojo e maravilhamento por mim, lama grossa lentamente brotando.
Era isso – era isso então. É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda. Em derrocada difícil, abriam-se dentro de mim passagens duras e estreitas.
Olhei-a, à barata: eu a odiava tanto que passava para o seu lado, solidária com ela, pois não suportaria ficar sozinha com minha agressão.
E de repente gemi alto, dessa vez ouvi meu gemido. É que como um pus subia à minha tona a minha mais verdadeira consistência – e eu sentia com susto e nojo que "eu ser" vinha de uma fonte muito anterior à humana e, com horror, muito maior que a humana.
Abria-se em mim, com uma lentidão de portas de pedra, abria-se em mim a larga vida do silêncio, a mesma que estava no sol parado, a mesma que estava na barata imobilizada. E que seria a mesma em mim! Se eu tivesse coragem de abandonar... de abandonar meus sentimentos? Se eu tivesse coragem de abandonar a esperança.
A esperança de quê? Pela primeira vez eu me espantava de sentir que havia fundado toda uma esperança em vir a ser aquilo que eu não era. A esperança – que outro nome dar? – que pela primeira vez eu agora iria abandonar, por coragem e por curiosidade mortal. A esperança, na minha vida anterior, teria se fundado numa verdade? Com espanto infantil, eu agora duvidava.
Para saber o que realmente eu tinha a esperar, teria eu antes que passar pela minha verdade? Até que ponto até agora eu havia inventado um destino, vivendo no entanto subterraneamente de outro?
Fechei os olhos, aguardando que a estranheza passasse, aguardando que meu arfar não fosse mais o daquele gemido que eu ouvira como vindo do fundo de uma cisterna seca e funda, assim como a barata era bicho de cisterna seca. Eu ainda continuava a sentir, incalculavelmente longínquo em mim, o gemido que já não me chegava mais à garganta.
Isto é a loucura, pensei de olhos fechados. Mas era tão inegável sentir aquele nascimento de dentro da poeira – que eu não podia senão seguir aquilo que eu bem sabia que não era loucura, era, meu Deus, uma verdade pior, a horrível. Mas horrível por quê? É que ela contrariava sem palavras tudo o que antes eu costumava pensar também sem palavras.
Aguardei que a estranheza passasse, que a saúde voltasse. Mas reconhecia, num esforço imemorial de memória, que já havia sentido essa estranheza: era a mesma que eu experimentava quando via fora de mim o meu próprio sangue, e eu o estranhava. Pois o sangue que eu via fora de mim, aquele sangue eu estranhava com atração: ele era meu.
Eu não queria reabrir os olhos, não queria continuar a ver. Os regulamentos e as leis, era preciso não esquecê-los, é preciso não esquecer que sem os regulamentos e as leis também não haverá a ordem, era preciso não esquecê-los e defendê-los para me defender.
Mas é que eu já não podia mais me amarrar.
A primeira ligação já se tinha involuntariamente partido, e eu me despregava da lei, mesmo intuindo que iria entrar no inferno da matéria viva – que espécie de inferno me aguardava? Mas eu tinha que ir. Eu tinha que cair na danação de minha alma, a curiosidade me consumia.
Então abri de uma só vez os olhos, e vi em cheio a vastidão indelimitada do quarto, aquele quarto que vibrava em silêncio, laboratório de inferno.
O quarto, o quarto desconhecido. Minha entrada nele se fizera enfim.
A entrada para este quarto só tinha uma passagem, e estreita: pela barata. A barata que enchia o quarto de vibração enfim aberta, as vibrações de seus guizos de cascavel no deserto. Através de dificultoso caminho, eu chegara à profunda incisão na parede que era aquele quarto – e a fenda formava como numa cave um amplo salão natural.
Nu, como preparado para a entrada de uma só pessoa. E quem entrasse se transformaria num "ela" ou num "ele". Eu era aquela a quem o quarto chamava de "ela". Ali entrara um eu a que o quarto dera uma dimensão de ela. Como se eu fosse também o outro lado do cubo, o lado que não se vê porque se está vendo de frente.
E na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? Eu estava no deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E ia para essa loucura promissora. Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade – meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contatos com as verdades sempre me difamaram.
– Segura a minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua. Não me deixes ver porque estou perto de ver o núcleo da vida – e, através da barata que mesmo agora revejo, através dessa amostra de calmo horror vivo, tenho medo de que nesse núcleo eu não saiba mais o que é esperança.
A barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam.
Também eu, que aos poucos estava me reduzindo ao que em mim era irredutível, também eu tinha milhares de cílios pestanejando, e com meus cílios eu avanço, eu protozoária, proteína pura. Segura minha mão, cheguei ao irredutível com a fatalidade de um dobre – sinto que tudo isso é antigo e amplo, sinto no hieróglifo da barata lenta a grafia do Extremo Oriente. E neste deserto de grandes seduções, as criaturas: eu e a barata viva. A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz. Aquele quarto que estava deserto e por isso primariamente vivo. Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido.







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Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres - Clarice Lispector - resumo
A obra apresenta um narrador em terceira pessoa e tem como personagem principal uma mulher, cujo nome é Loreley, mas é chamada de Lóri. Lóri é de família de posses, de origem agrária. Vive no Rio de Janeiro, separada da família, sozinha, trabalhando como professora primária. Para manter um padrão de vida acima das possibilidades de uma professora, Lóri recebe mesada do pai.
Vejamos o começo da obra:
“,estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava o serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos(...)”
Este início, com uma vírgula antes de qualquer palavra, e, na seqüência, um período longo, aparentemente incompleto, sem "começo", faz parte da estrutura formal da obra e demonstra um dos traços dominantes na obra de Clarice Lispector: a preocupação com a escrita, com as possibilidades de as palavras representarem (ou não) as sensações, as percepções, enfim, a condição humana. No livro em estudo, este início fragmentado pode ser interpretado da seguinte maneira: a narrativa apanha um determinado momento da personagem Lóri. Ou seja, o livro fala sobre Lóri a partir daquele momento em que ela estava ocupada, pensou na empregada, etc. O que veio antes daquele momento, disto a narrativa não se ocupa. O ponto de partida é aqui: , estando ocupada... Assim, este livro capta um momento de Lóri, nem antes, nem depois. A representação parcial da vida de Lóri, dá-se, no plano da escrita, por uma parcialidade formal: o romance começa com uma vírgula e termina com dois pontos. Aqui está o final do livro:
-Eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafada porque ele estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte:
Posta nestes termos, a narrativa dá a idéia de continuidade: Lóri, sua vida, seu mundo, existiam antes e existirão depois do livro.
Narrado em terceira pessoa, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres nos fornece pistas de como vivenciar a idéia de amor. Na obra, Clarice Lispector parte do discurso mítico amoroso mais banal para operar uma reestruturação. O caminho escolhido é o da paródia. Os dois títulos do livro, aproximados pela conjunção, anunciam a tensão entre duas possibilidades: repetir ou inventar.
A evolução da personagem feminina desse romance é plasmada pela transformação do discurso que, iniciado na intencional duplicação do lugar-comum, logra no decorrer da história alçar-se a outros sentidos. Sugere possibilidade alternativa de ser vivida uma relação amorosa. Ao longo da escrita, ocorre algo como uma purgação de tudo aquilo em que a literatura de massa está viciada ao tratar do tema.
Não é uma história de amor comum. Logo na primeira página do livro, sabemos que Lóri mantém um relacionamento com Ulisses (tendo um encontro com ele, busca entre as suas roupas um vestido para ficar "atraente"). As características deste relacionamento vão sendo desvendadas ao longo da narrativa. Ulisses é professor
universitário de filosofia. Aos poucos vamos sabendo que Lóri está "aprendendo a amar", ou a "ter prazer", com Ulisses. São vários os momentos narrativos em que isto fica explícito: ela está sendo "preparada para a liberdade por Ulisses", "Ulisses determinará quando ela estará pronta para dormir com ele".
Lispector não reproduz padrões tradicionais de oposição masculino/feminino. Ao processar investigação existencial a partir da condição de seu gênero, acaba por estabelecer articulações ainda mais abrangentes que a da diferenciação sexual.
A aprendizagem de que nos fala o título é o caminho que percorre Lóri enquanto dura a narrativa. Este processo terá sua conclusão quando Lóri estiver "pronta" para dormir com Ulisses. Não se pense que este "pronta" significa uma virgem preparando-se para seu primeiro amor. Lóri já teve outros amantes, que ela desqualifica, não como amantes, mas como relacionamentos inconsistentes ou superficiais. Trata-se de, com Ulisses, aprender ou descobrir o prazer para além do meramente sexual: algo como um amor total, com a personagem sentindo-se "plena". Esta é a travessia do livro, a trajetória a ser percorrida pela personagem. Em meio a este percurso, Lóri tem que se haver com inseguranças, medos, hesitações, encontros e desencontros com Ulisses: é a angústia d busca. Trata-se de uma busca que, a esta altura, não se resume apenas no ato de "dormir" com Ulisses. Lóri pretende dar um "passo à frente" na sua vida. O relacionamento com Ulisses, cujo ápice se dará quando estiver "pronta", recobre-se de um significado especial, uma "plenitude". Depois de vários encontros nos quais conversavam sobre a "aprendizagem" de Lóri, Ulisses diz a ela, num dado momento que, a partir daquele momento, não mais a procurará. Ela está "pronta". Ela sabe os seus horários de aulas, sabe os momentos em que ele estará em casa. Ulisses diz que vai esperá-la, querendo que ela não telefone avisando: "Queria que você, sem uma palavra, apenas viesse". A decisão de Ulisses causou um primeiro impacto em Lóri, que hesitou, demorou, mas numa madrugada chuvosa, estando "mansamente feliz", teve o desejo: imediatamente, sem sequer trocar a roupa, apanhou um táxi, vestida com uma camisola, e foi até a casa de Ulisses. Amaram-se. Falam em filhos e casamento. Segue-se um diálogo no qual Lóri e Ulisses conversam sobre o amor, sexo, solidão, Deus e a obra termina com a frase em letras itálicas acima.
Trecho:
"...
Vestiu o maiô e o roupão, e em jejum mesmo caminhou até a praia. Estava tão fresco e bom na rua! Onde não passava ninguém ainda, senão ao longe a carroça do leiteiro. Continuou a andar e a olhar, olhar, olhar, vendo. Era um corpo a corpo consigo mesma dessa vez. Escura, machucada, cega - como achar nesse corpo-a-corpo um diamante diminuto mas que fosse feérico, tão feérico como imaginava que deveriam ser os prazeres. Mesmo que não os achasse agora, ela sabia, sua exigência se havia tornado infatigável. Ia perder ou ganhar? mas continuaria seu corpo-a-corpo com a vida. Alguma coisa se desencadeara nela, enfim.
E aí estava ele, o mar.
Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue. Ela e o mar.
Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões...."




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A Hora e a Vez de Augusto Matraga - João Guimarães Rosa - resumo
Personagens:
Augusto Matraga
Filho do fazendeiro e coronel Afonso Esteves, órfão de mãe, era conhecido por todos da região como Nhô-Augusto. Homem brigão, temido por todos, passava a vida bebendo e vadiando com outras mulheres. Deixava sua mulher e sua filha em casa, enquanto aproveitava a vida. Um dia, ficou muito endividado e perdeu os amigos e a mulher para outro. Além disso, levou uma surra e quase morreu. Depois disso, se converteu e morreu preocupado com a salvação de sua alma. D. Dionóra
Mulher de Matraga, desprezada por ele. Acaba fugindo com outro homem, mesmo sabendo que ele poderia matá-la. Nunca mais viu o marido e nem foi vista por ele. Mimita
Filha de Matraga. Foge com a mãe e acaba caindo na vida com um sujeito desconhecido. Ovídio Moura
Homem com quem D. Dionóra fugiu. Quim Recadeiro
Amigo fiel de Matraga, tentou evitar que Dionóra fugisse. Quando Matraga leva uma surra e é tido como morto, ele tenta vingá-lo e acaba sendo assassinado. Major Consilva
Dono de terra e rival de Matraga. Mandou mata-lo após uma emboscada.
Casal de Negros
mãe Quitéria e pai Serapião. Cuidam de Matraga após ter sido pego em uma emboscada e é tido como morto. Esse casal lhe ensina a moral cristã.
Bando de Joãozinho Bem-Bem
Flosino Capeta, Cabeça-Chata, Tim Tatu-tá-te-vendo, Zeferino (gago), Epifâmio e Juruminho (foi assassinado no final e Joãozinho volta ao lugar para vingar sua morte e acaba reencontrando Matraga). Joãozinho tem muita afinidade com Matraga, mas ambos morrem no final depois de lutarem um contra o outro.
Tião da Thereza
conhecido de Matraga, o encontra e descobre que ele não estava morto. Passa, então a lhe contar o que acontecera a Dionóra e Mimita.
Prostitutas
Angélica e Siriema: são leiloadas no início de uma festa popular e Matraga ganha Siriema porque era temido. Quando ela tira a roupa, desiste de ficar com ela por considera-la feia.
Padre
É chamado pelo casal de velhos para abençoar Matraga e disse para ele: “sua hora chegará”. Matraga repete essa frase até o final do livro, todas as vezes que se lembrava das injurias que sofreu.
Enredo
Era noite de novena no arraial e havia uma procissão. Quando a reza acabou, aconteceu um rápido leilão. Depois disso toda a gente foi embora, mas o leiloeiro ficou na barraca, comendo amendoim, no meio do povo bêbado do fim da festa. Além deles, havia duas prostitutas, Angélica (negra) e Siriema (branca). Os homens começaram a disputá-las, como se elas também estivessem em leilão. Nesse momento, Nhô Augusto (Augusto Matraga) berrou para o leiloeiro, oferecendo 50 mil réis por Siriema. O povo, então, incentivou-o a levar a prostituta branca. Ele pegou-a pelo braço e os dois saíram. Ela quis ficar com outro homem e até ameaçou um choro, mas acabou se rendendo a ele. Quando a levou para casa e acendeu a luz, percebeu que ela era muito magra e disse: “Que é? – Você tem perna de Manuel-Fonseca, uma fina e a outra seca!” , mandando a rapariga embora. Depois disso, desceu a ladeira sozinho e esbarrou com Quim que trazia um recado de Dona Dionóra, sua esposa, pedindo que ele voltasse para casa. Ele disse a Quim Recadeiro que não iria lá. Quando Dona Dionóra soube a resposta, teve vontade de chorar pelo desprezo do marido e por sua desdita. Ela conhecia e temia os repentes de Nhô-Augusto que não se importava nem com a filha Mimita de dez anos. Ela sabia que ele tinha outros prazeres e outras mulheres, mas aceitava, pois havia contrariado toda a família para se casar com ele. Outro homem já tinha aparecido em sua vida, mas ela sabia que se fugisse Matraga a mataria. Depois de pensar, ela dormiu e, de madrugada ainda, partiu com a filha e com o camarada Quim, parando na fazenda de um tio. De manhã, continuaram a andar. No meio do caminho, encontraram Seu Ovídio Moura, o homem com quem ela decidiu fugir, mesmo com medo de ser assassinada pelo marido. Quim voltou para contar a Nhô-Augusto o que acontecera.
Quando recebeu a notícia, Matraga decidiu ir atrás, mas seus homens não quiseram ir com ele, pois ele devia dinheiro para todos. Além do mais, sua fama no lugar não era muito boa. Apesar de tudo isso, ele decidiu matar Ovídio, mas antes quis vingar-se do Major Consilva e de seus capangas que não quiseram acompanhá-lo na busca da esposa. Chegou, então, à chácara do major, porém, os capangas o espancaram até que ele caísse. No meio desses homens, estava o camarada de quem ele havia ganhado a prostituta Siriema. Quando ele já estava caído, o major mandou que o matassem. Eles o arrastaram até o rancho do Barranco. Antes de matá-lo, esquentaram o ferro dos gado e marcaram sua pele com as iniciais do Major Consilva. Nessa hora, ele levantou gritando e se jogou do barranco. Os capangas o consideraram morto e colocaram uma cruz no local.
Um homem negro que morava perto dali foi até ele e o levou para seu casebre. Nhô-Augusto pediu que o matassem, mas, dias depois, retomou a consciência. Lembrou-se da mulher e da filha, chorou e chamou o nome de sua mãe. O homem que o acudiu pediu que ele rezasse para Deus e para Nossa Senhora do Rosário. A tristeza tomou conta de Matraga.
Os negros trouxeram um padre para que ele pedisse perdão por seus pecados e, após ouvir do padre que sua hora e sua vez iam chegar, considerou que sua vida já acabara e esperava apenas a salvação da sua alma. Tomara tão grande horror às suas maldades que nem podia mais se lembrar delas. Parecia se converter a Deus aos poucos.
Quando ficou bom, pensou em ir para o sertão com o casal samaritano que o socorreu e viajaram para o povoado do Tombador. Lá, ele pedia trabalho e conversava pouco. Às vezes, ficava sozinho e se lembrava das últimas palavras do padre: “Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.” Desse modo, passaram-se quase seis anos. Ele não fumava nem bebia; não olhava para as mulheres nem discutia.
Um dia, passou pela região Tião de Thereza, um velho conhecido de Nhô-Augusto, dando notícias de sua família: Dona Dionóra, continuava amigada com Seu Ovídio e sua filha caíra na vida com um homem desconhecido. O Quim Recadero havia morrido de “morte matada” porque tentou vingar-se dos capangas que pensava terem matado Nhô. Ao ouvir tudo isso, Matraga repetia para si mesmo que sua hora havia de chegar. Por causa disso, no dia seguinte, fez muita caridade para não perder seu lugar no céu.
Com o tempo, ele voltou a ter muito sono e muita fome. Pensou que Deus o havia perdoado e mãe Quitéria louvou a Deus por isso. Acordou mais cedo e diante de tanta felicidade que sentia, teve vontade de fumar e não se sentiu pecando por isso.
Um dia, chegou ao lugarejo um bando de homens valentões. Nhô foi até o chefe, Joãozinho Bem-Bem, e ofereceu sua casa para que ele ficasse bem hospedado. Todos conversaram muito durante a noite e o chefe do bando, na hora de ir embora, convidou Nhô para ir com eles, mas ele recusou. Apesar disso, os invejou depois, porque não tinham que pensar na salvação da alma e podiam andar no mundo sem vergonha. Pensou bem e considerou que essa história de andar em penitência era andar pra trás e, por isso, decidiu retornar aos seus antigos caminhos. Voltou a beber e a sentir saudades das mulheres. Alguns dias depois, despediu-se e foi embora em um jegue emprestado pelo amigo Rodolphio Merêncio. Onde o jegue o levou ele foi e entraram em um arraial onde, por coincidência, estava a jagunçada de Joãozinho Bem-Bem. Nhô foi recebido pelo grupo com muita satisfação.
João ia matar um homem para vingar a morte do Jumentinho, seu colega de bando. O homem implorou pela vida, clamando por Deus e, quando viu essa cena, Nhô interveio, alegando que pedido em nome de Nosso Senhor e da Virgem tinha que ser respeitado. Joãozinho sentia-se preso a Nhô por respeito e não soube o que fazer. Seu bando, entretanto, liderado por Teófilo Sussuarana, caminhou para cima de Matraga. João também foi para a briga se agrediram. Por fim, Nhô-Augusto cortou a barriga do chefe do bando da púbis à boca do estômago, condenando-o à morte. Preocupado com a salvação de Joãozinho, Matraga pediu que ele se arrependesse de seus pecados, mas não ouviu resposta, pois este morreu em seguida. Nhô estava muito machucado, mas pediu que chamassem um padre. O povo, por sua vez, agradecia, dizendo que Deus o mandou ali para salvar as famílias. Diziam: “Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mor de salvar as famílias da gente!...”. Por isso, era chamado de herói e santo por todos, pois ninguém antes tivera coragem para enfrentar Joãozinho Bem-Bem.
Um primo de Matraga estava no lugar e o reconheceu. Ele pediu a esse parente que colocasse a bênção em sua filha e que dissesse a Dionóra que estava tudo em ordem. Depois disso, morreu.
“A Hora e a Vez de Augusto Matraga” é o nono e último conto de Sagarana, livro que em 1946 marcou a estréia de Guimarães Rosa em nossa literatura e expressa a força e o espírito do sertão de Minas Gerais e conta a história da queda de um homem poderoso em busca de sua redenção: "P'ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!..."




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Campo Geral - João Guimarães Rosa - resumo
A narrativa de Campo geral começa quando Miguilim é levado por Tio Terez para ser crismado. O menino tem 8 anos e nunca saiu do Mutum, afora pequenas mudanças que fez quando ainda muito pequeno. Desta viagem, a lembrança mais nítida será de um comentário ouvido sobre a beleza de Mutum. Profundamente impressionado com esta referência, Miguilim não vê a hora de contá-la à mãe, Nhanina, sempre triste de ali viver.
Ao chegar em casa, vai tão aflito procurar a mãe, que acaba desgostando a seu pai e recebe castigo: não o acompanha juntamente com os irmãos na pescaria de domingo. Em contrapartida, aprende a fazer arapuca para pegar passarinho com o Tio Terez.
A rotina da casa inclui os brinquedos de Miguilim com seus irmãos por ordem de idade, Drelina, Dito, Chica, Tomezinho. Há também outro irmão, Liovaldo, mais velho que Miguilim, o único que não mora com a família. Na cozinha, a mãe e as empregadas, Rosa, Maria Pretinha e Mãitina, preparam as comidas. Nas cercanias, vivem os diversos cachorros da família. Havia uma cadela, a Pingo-de-Ouro, a que Miguilim era especialmente apegado, mas que foi dada pelo pai a tropeiros de pernoite no Mutum.
A descoberta de que Nhanina e Tio Terez tinham um caso causa grande confusão. O pai bate na mãe, Miguilim tenta interrompê-lo e termina sendo castigado _ . Vovó Izidra, sua tia-avó, é quem toma a iniciativa de expulsar Tio Terez de casa, xingando-o de Caim. Nesta noite, uma grande tempestade faz Dito e Miguilim conversarem sobre o medo da morte. Para acalmar a todos, Vovó Izidra puxa uma reza.
No dia seguinte, Seo Deográcias, entendido de remédios, foi com o filho, Patori, visitá-los. Queria, na verdade, pegar emprestado alguns mantimentos e cobrar um dinheiro, mas aproveita para aconselhar sobre a saúde de Miguilim, que a todos parecia frágil.
Aos poucos, Miguilim começa a cismar que vai morrer. Faz uma promessa a Deus: se ele não morresse nos próximos dias, não morreria mais. Enquanto isso, se compromete a rezar uma novena. Contudo, os dias passam, ele não principia a novena e vai ficando cada vez mais ansioso. Começa então a rever vários momentos e se recorda da habilidade de Dito em se comportar de modo que não desagrade o Pai, da curiosidade que Patori lhe despertou sobre sexo, do aconchego que sentia em criança de ficar nos braços de Mãitina. No derradeiro dia, nem da cama ele quer sair. E até Seo Aristeu, outro curandeiro da região, vir vê-lo, Miguilim não pode acreditar em outra coisa que não fosse a morte chegando. Temia estar tísico, mas Seo Aristeu logo foi explicando no seu jeito alegre de falar que essa doença não dava por aquela parte dos Gerais.
O pai então toma uma decisão: a partir do próximo dia, Miguilim irá levar-lhe comida na roça onde trabalhava. O menino fica muito feliz de se sentir útil. Quando foi cumprir a tarefa pela primeira vez, Tio Terez aparece no caminho e pede ao sobrinho um favor: entregar um bilhete a Nhanina. O pedaço de papel no bolso põe Miguilim num grande embate interior: o que seria mais certo fazer? Sem contar o motivo, consulta todos sobre o que é certo ou errado. Como sempre, é com Dito que Miguilim vai se orientar, tentando pedir explicações que o irmão, apesar de menor, parece sempre conhecer.
Depois de uma tarde e de uma noite de dúvidas, Miguilim só resolve em frente ao Tio Terez o que fazer: diz a verdade e devolve o bilhete. O Tio então se dá conta em que horrível posição colocara o sobrinho e se desculpa. Ainda atordoado, Miguilim deixa que os macacos roubem a comida do tabuleiro. O pai se diverte com a história, dando a sensação em Miguilim de ser amado.
Com a chegada de Luisaltino, novo parceiro de trabalho de Nhô Bero, vem à notícia de que Patori assassinou um rapaz e está foragido. Patori acaba morrendo de fome, e Nhô Bero larga tudo para prestar solidariedade a Seo Deográcias, que se desesperava com a perda do filho. Mas o que mais agradou a Miguilim foi que Luisaltino traz consigo um papagaio, o Papaco-o-Paco.
Uma manhã, depois de ter ido espiar uma coruja, Dito pisa num caco de pote e corta o pé. O tétano toma conta do menino e, em poucos dias, ele morre. Miguilim se desespera e esse intenso sofrimento parece não passar nunca. Mãitina tem uma idéia que o ajuda a enfrentar a dor: juntou roupas e brinquedos de Dito e alguns guardados seus e enterrou tudo no quintal, marcando depois o lugar com pedrinhas lavadas do rio.
Para tirá-lo dessa tristeza, Nhô Bero resolve pô-lo para trabalhar: começa a debulhar milho, capinar a horta, buscar cavalo no pasto. Miguilim não acha ruim trabalhar, mas não vê alegria em nada. Para complicar, dias depois chegam Tio Osmundo e o irmão Liovaldo.
O Tio não simpatiza com Miguilim e Liovaldo começa a provocá-lo. Até que Liovaldo faz pequenas maldades com o menino Grivo e Miguilim, indignado, acaba partindo para a briga. Nhô Bero fica tão furioso que dá uma sova de correia no menino. Miguilim sente tanto ódio do pai que nem chora: só pensa em crescer e matá-lo. Nhanina, para abrandar a situação, manda Miguilim se hospedar na casa do vaqueiro Saluz por três dias. Na volta, Miguilim não pede a bênção ao pai, que então se vinga, soltando os passarinhos de Miguilim e despedaçando as gaiolas. Miguilim por sua vez extravasa sua raiva, quebrando os próprios brinquedos.
Quando o Tio e o irmão vão embora, Miguilim pela primeira vez se alegra com a possibilidade de um dia ser ele a partir. Com esta idéia na cabeça começa a se reanimar, a repassar tudo que aprendera com Dito, mas termina por adoecer, o que desespera Nhô Bero. Durante a sua convalescença, uma tragédia se precipita: Nhô Bero descobre que Luisaltino o traía com sua mulher; mata o ajudante e, em seguida, se suicida.
Seo Aristeu tenta animar Miguilim. Nhanina conta sua intenção de casar com Tio Terez, que a esta altura já está de volta. Miguilim, ainda abatido com a doença e com todos os acontecimentos, vê chegar dois homens a cavalo. Um deles logo repara no jeito de Miguilim olhar, com os olhos apertados. O grupo vai para a casa e Miguilim é examinado até que o homem, doutor José Lourenço, do Curvelo, chega a um diagnóstico: vista curta. Tira os próprios óculos e empresta ao menino, que nem pode acreditar em tudo que se revelou a sua frente.
O doutor se oferece para levar Miguilim para a cidade: providenciaria os óculos e poria Miguilim para estudar. Miguilim aceita o convite e se prepara para ir embora na manhã seguinte. Mas, antes de partir, pede de novo os óculos. Quer levar consigo uma imagem nítida da família e do Mutum, que, agora ele via, era realmente bonito.







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Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa - Resumo
Grande Sertão: Veredas, único romance escrito por Guimarães Rosa, é considerado sua obra-prima e um dos mais importantes textos da literatura brasileira. Publicado em 1956, mesmo ano da publicação de Corpo de Baile, Grande Sertão: Veredas já foi traduzido para muitas línguas e, por ser uma narrativa onde a experiência de vida e experiência de texto se fundem numa obra fascinante, sai interpretação continua em aberto, constituindo um constante desafio para os leitores.
O romance se constrói como uma longa narrativa oral, cujo ponto de partida é um situação bastante verossímil: um velho fazendeiro, ex-homem de armas e de letras, presta um depoimento sobre sua própria experiência a um interlocutor, também letrado, cuja fala é apenas sugerida. Portanto, das 460 páginas do romance flui um monólogo initerrupto, através do qual o personagem-narrador, Riobaldo, conta sua vida a um interlocutor que jamais tem a palavra.
Como contador de histórias, Riobaldo vai emendando um caso no outro, tendo sempre a preocupação de discutir a existência ou não do diabo.
Grande Sertão: Veredas - travessia que Riobaldo, narrador-personagem, faz em suas memórias a fim de narrar suas vivências a um "senhor" durante três dias. Travessia que Guimarães Rosa faz através do caráter insólito e ambíguo do homem, tornando uma experiência individual (Riobaldo ) em caráter universal - "o sertão é o mundo".
A primeira parte do romance (até aproximadamente à página 80), Riobaldo faz um relato "caótico" e desconexo de vários fatos (aparentemente sem relações entre si), sempre expondo suas inquietações filosóficas (reflexões sobre a vida, a origem de tudo, Deus, Diabo,...) - Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se fôr jagunço, mas a matéria vertente. "O discurso ambivalente de Riobaldo (...) se abre a partir de uma necessidade, verbalizada de maneira interrogativa". No entanto, há uma grande dificuldade em narrar e organizar seus pensamentos: Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que tem certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. É o compadre Quelemém de Góis que lhe socorre em suas dúvidas, mas não de forma satisfatória, daí a sua necessidade de narrar.
A partir da página 80, Riobaldo começa a organizar suas memórias. Fala da mãe Brigi, que o obrigava à esmolação para a paga de uma promessa. É nessa ocasião, à beira do "Velho Chico", que Riobaldo se encontra pela primeira vez com o garoto Reinaldo, fazendo juntos uma travessia pelo rio São Francisco. Riobaldo fica fascinado com a coragem de Reinaldo, pois como este afirma: "sou diferente (...) meu pai disse que eu careço de ser diferente (...).
A mãe de Riobaldo vem a falecer, sendo ele levado à fazenda São Gregório, de seu padrinho Selorico Mendes. É lá que Riobaldo toma contato com o grande chefe Joca Ramiro, juntamente com os chefes Hermógenes e Ricardão. Selorico Mendes envia o seu afilhado ao Curralinho, a fim de que tivesse contato com os estudos. Posteriormente, assume a função de professor de Zé Bebelo (fazendeiro residente no Palhão com pretensões políticas. Zé Bebelo, querendo pôr fim aos jagunços que atuavam no sertão mineiro, convida Riobaldo a participar de seu bando. Riobaldo troca as letras pelas armas. É desse ponto que começa suas aventuras pelo norte de Minas, sul da Bahia e Goiás como jagunço e depois como chefe.
O bando de Zé Bebelo faz combate com Hermógenes e seus jagunços, onde este acaba por fugir. Riobaldo deserta do bando de Zé Bebelo e acaba por encontrar Reinaldo (jagunço do bando de Joca Ramiro), ingressando no bando do "grande chefe". A amizade entre Riobaldo e Reinaldo acaba por se tornar sólida, onde Reinaldo revela o seu nome - Diadorim - pedindo-lhe segredo. Juntamente com Hermógenes, Ricardão e outros jagunços, combate contra as tropas do governo e de Zé Bebelo.
Depois de um conflito com o bando de Zé Bebelo, o bando liderado por Hermógenes fica acuado, acabando-se por se separar, reunindo-se posteriormente. O chefe Só Candelário acaba por integrar-se ao bando de Hermógenes, tornando-se líder do bando até o encontro com Joca Ramiro. Nessa ocasião, Joca Ramiro presenteia Riobaldo com um rifle, em reconhecimento à sua boa pontaria (a qual lhe faz valer apelidos como "Tatarana" e "Cerzidor"). O grupo de Joca Ramiro acaba por se dividir para enfrentar Zé Bebelo, conseguindo capturá-lo. Zé Bebelo é submetido a julgamento por Joca Ramiro e seus chefes - Hermógenes, Ricardão, Só Candeário, Titão Passos e João Goanhá - acabando a ser condenado ao exílio em Goiás.
Depois do julgamento, o bando do grande chefe se dispersa, Riobaldo e Diadorim acabam por seguir o chefe Titão Passos. Posteriormente, o jagunço Gavião-Cujo vai ao encontro do grupo de Titão Passos para informar a morte de Joca Ramiro, que foi assassinado à traição por Hermógenes e Ricardão ("os judas"). Riobaldo fica impressionado com a reação de Diadorim diante da notícia. Os jagunços se reúnem para combaterem os judas.
Por essa época, Riobaldo tem um caso com Nhorinhá (prostitutriz), filha de Ana Danúzia. Conhece Otacília na fazenda Santa Catarina, onde tem intenções verdadeiras de amor. Diadorim, em determinada ocasião, por ter raiva de Otacília, chega a ameaçar Riobaldo com um punhal.
Medeiro Vaz junta-se ao bando para a vingança, assumindo a chefia. Inicia-se a travessia do Liso do Sussuarão. O bando não agüenta a travessia e acaba por retornar. Medeiro Vaz morre. Zé Bebelo retorna do exílio para ajudar na vingança contra os judas, tomando a chefia do bando.
Por suas andanças, o bando de Zé Bebelo chega à fazenda dos Tucanos, onde são encurralados por Hermógenes. Momentos de grande tensão. Zé Bebelo envia dois homens para informarem a presença de jagunços naquele local. Riobaldo desconfia de uma possível traição com esse ato. O bando de Hermógenes fica acuado pelas tropas do governo e os dois lados se unem provisoriamente para escaparem dos soldados. Zé Bebelo e seus homens fogem à surdina da fazenda, deixando os hermógenes travando combate com os soldados. Riobaldo oferece a pedra de topázio a Diadorim, mas este recusa, até que a vingança tenha sido consumada.
Os bebelos chegam às Veredas-Mortas. É um dos pontos altos do romance, onde Riobaldo faz o pacto com o Diabo para vencerem os judas. Riobaldo acaba assumindo a chefia do bando com o nome de "Urutu-Branco"; Zé Bebelo sai do bando. Riobaldo dá a incumbência a "seô Habão" para entregar a pedra de topázio a Otacília, firmando o compromisso de casamento. O chefe Urutu-Branco acaba por reunir mais homens (inclusive o cego Borromeu e o menino pretinho Gurigó).
À procura dos hermógenes, fazem a penosa travessia do Liso do Sussuarão, onde Riobaldo sofre atentado por Treciano, que é morto pelo próprio chefe. Atravessado o Liso, Riobaldo chega em terras baianas, atacando a fazenda de Hermógenes e aprisionando sua mulher. Retornam aos sertões de Minas, à procura dos judas. Encurralam o bando de Ricardão nos Campos do Tamanduá-tão, onde o Urutu-Branco mata o traidor. Encontro dos hermógenes no Paredão. Luta sangrenta. Diadorim enfrenta diretamente Hermógenes, ocasionando a morte de ambos. Riobaldo descobre então que Diadorim se chama Maria Deodorina da Fé Bittancourt Marins, filha de Joca Ramiro.
Riobaldo acaba por adoecer (febre-tifo). Depois de se restabelecer, fica sabendo da morte de seu padrinho e herda duas fazendas suas. Vai ao encontro de Zé Bebelo , o qual o envia com um bilhete de apresentação a Quelemém de Góis:
Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou meu contar minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência - calma de que minha dor passasse ; e que podia esperar muito longo tempo. O que vendo, tive vergonha, assaz.
Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei:
-"O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário ? "
Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale me respondeu:
-"Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais..."
(...)
Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. (...) Amável senhor me ouviu, minha idéia confirmou : que o Diabo não existe. Pois não ? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há ! É o que eu digo, se fôr... Existe é homem humano. Travessia.
LINGUAGEM
Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa faz uma recriação da linguagem, "recondicionando-a inventivamente, saindo do lugar-comum a fim de dar maior grandeza ao discurso. Nu da cintura para os queixos (ao invés de nu da cintura para cima) e ainda Não sabiam de nada coisíssima (no lugar de não sabiam de coisa nenhuma) constituem exemplos do apuramento da linguagem roseana.
Toda a narrativa é marcada pela oralidade (Riobaldo conta seus casos a um interlocutor), portanto, sem possibilidades de ser reformulado, já que é emitido instantaneamente. Ainda tem-se as dúvidas do narrador e suas divagações, onde é percebido a intenção de Riobaldo em reafirmar o que diz utilizando a própria linguagem.
O falar mineiro associado a arcaísmos, brasileirismos e neologismos faz com que o autor de Sagarana extrapole os limites geográficos de Minas. A linguagem ultrapassa os limites "prosaicos"para ganhar dimensão poético-filosófica (principalmente ao relatar os sentimentos para com Diadorim ou a tirar conclusões sobre o ocorrido através de seus aforismos).
AFORISMOS
Significado: Sentença moral breve e conceituosa; apotegma, máxima; princípio básico ou indiscutível da ciência ou da arte.
Exemplos em Grande Sertão: Veredas:
“Viver é muito perigoso”; “Deus é paciência”; “Sertão. O senhor sabe: sertão onde manda quem é forte, com as astúcias.”; “...sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar.”; “...toda saudade é uma espécie de velhice”; “Jagunço é isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota - quase tudo para ele é o igual.”; “Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver.”; “Viver é um descuido prosseguido.”; “sertão é do tamanho do mundo”; “Vingar, digo ao senhor : é lamber, frio, o que o outro cozinhou quente demais.”; “Quem desconfia, fica sábio.”; “Sertão é o sozinho.”; “Sertão : é dentro da gente.”; “...sertão é sem lugar.”; “Para as coisas que há de pior, a gente não alcança;a fechar as portas.”; “Vivendo, se aprende ; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”; “...amor só mente ara dizer maior verdade.”; “Paciência de velho tem muito valor.”; “Sossego traz desejos.”; “... quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade.”





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Manuelzão e Miguilim - João Guimarães Rosa - Resumo
As duas novelas que compõem esta obra foram publicadas em 1956 como parte de Corpo de baile; a partir de 1960, quando Corpo de baile se desdobrou em três livros, Manuelzão e Miguilim passou a formar um único volume.
Apesar da ordem dos nomes no título, a primeira novela, Campo geral, conta a história de Miguilim, um menino de oito anos, abordando o universo do mundo infantil sob a sua ótica; a segunda, chamada Uma estória de amor, trata de Manuelzão e dos preparativos para a festa de consagração de uma capela que ele construíra.
Novela: Como espécie literária, a novela não se distingue do romance, evidentemente, pelo critério quantitativo, mas pelo essencial e estrutural. Tradicionalmente, a novela é uma modalidade literária que se caracteriza pela linearidade dos caracteres e acontecimentos, pela sucessividade episódica e pelo gosto das peripécias. Contrariamente ao romance, a novela não tem a complexidade dessa espécie literária, pois não se detém na análise minuciosa e detalhada dos fatos e personagens. A novela condensa os elementos do romance: os diálogos são rápidos e a narrativa é direta, sem muitas divagações. Nesse sentido, muita coisa que chamamos de romance não passa de novela. Naturalmente a novela moderna, como tudo que é moderno, evoluiu e não se sujeita a regras preestabelecidas. Tal como o conto, parodiando Mário de Andrade, "sempre será novela aquilo que seu autor batizou com o nome de novela". Como autor (pós)-modernista, Guimarães Rosa procurou ser original, imprimindo, em suas criações literárias, a sua marca pessoal, o seu estilo inconfundível. Suas novelas, contudo, apesar das inovações, sempre apresentam aquela essência básica dessa modalidade literária, que é o apego a uma fabulação contínua como um rio, de caso-puxa-caso
Surgido pela primeira vez em 1956 dentro da obra Corpo de Baile (que incluía também Noites do Sertão e No Urubuquaquá, no Pinhém), Manuelzão e Miguilim é um dos momentos mais tocantes de Guimarães Rosa, superado por alguns contos de Primeiras Estórias e pelo inigualável romance Grande Sertão: Veredas.
Antes do mergulho em sua temática, necessário se faz reconhecer as características da literatura do grande escritor mineiro. Em primeiro lugar, sabe-se que o mais lembrado nele é o seu teor regionalista universal, um rótulo que pode parecer incoerente, mas que carrega certo sentido.
Seu caráter regionalista reside na forma. Em primeiro lugar, o ambiente de todas as suas narrativas é o sertão de Minas Gerais (uma minúscula parte delas passa-se no sertão da Bahia. No entanto, a vizinhança faz-nos garantir que se trata praticamente da mesma região), tendo como personagens seus habitantes. Além disso, no campo da linguagem é que está sua mais famosa recriação do universo mineiro.
Na realidade, ao contrário do que costumeiramente se afirma, Guimarães não copia a linguagem do sertanejo, tanto é que há constantemente a invenção de palavras (neologismos) misturada a arcaísmos, além do aproveitamento de termos cultos e de elementos de poeticidade, como aliterações e assonâncias. Seria absurdo imaginar que o homem simples do campo tivesse uma linguagem com tanta inventividade. O que de fato ele aproveita é a melopéia, ou seja, a musicalidade, o andamento de sua fala, como se percebe no trecho abaixo:
“A roça era um lugarzinho descansado bonito, cercado com uma cerquinha de varas, mò de os bichos que estragam. Mas muitas borboletas voavam. Afincada na cerca tinha uma caveira inteira de boi, os chifres grandes, branquela, por toda boa-sorte”.
Note como os diminutivos carregam o texto de oralidade, além do emprego do termo “mò”, que ganha uma ortografia que transgride as normas gramaticais, o que é muito comum no autor. Todos esses elementos vão se juntar a uma construção que não é comum na linguagem falada: a separação entre a preposição e o artigo ligado ao sujeito (“mò de os bichos”). Outro trecho bastante revelador do estilo roseano vem a seguir:
“De já, tinha um boi vermelho, boi laranjo, esbarrado debaixo do alto tamboril. Tantas cores! Atroado, grosso, o môo de algum outro boi. O Dito então aboiava.”
Observe a repetição das consoantes /d/, /t/ e /b/ (aliteração) criando uma sonoridade que imita a movimentação de bois. Toda essa engenhosidade no trato da linguagem é que autoriza alguns estudiosos a qualificarem o trabalho de Guimarães Rosa como neobarroco.
Somada a essas preocupações formais existe a temática de Guimarães Rosa. Seus textos ambientam os grandes temas da humanidade, principalmente os existenciais e metafísicos, no sertão mineiro, tudo de forma simbólica, mítica e mística. São verdadeiras fábulas.
Esse é o aspecto que se enxerga, por exemplo, em “Campo Geral”. É um conto/novela/poema da formação, da iniciação, do amadurecimento de Miguilim. Tanto que o foco narrativo, de terceira pessoa, onisciente, é filtrado por ele. Tudo gira ao seu redor, tudo é enxergado obedecendo ao seu ponto de vista, desde o emprego da linguagem até a absorção e compreensão da realidade. Prova desse aspecto é o retrato que ele dá a seu irmão, dizendo que é de uma santa. A reação dos adultos, que chegam a rasgá-lo, dizendo que era pecado, faz o leitor entender, e não a personagem, que se tratava de uma imagem de mulher pelada. Tal viés acaba tornando o texto muito mais poético, pois nos faz acompanhar o crescimento do protagonista como se fosse bastante íntima nossa.
Começamos a ver Miguilim aos oito anos, com uma menção aos seus sete anos, quando esteve mergulhado numa preocupação em respeito ao local de sua residência, o Mutum - essa palavra constitui um palíndromo, ou seja, pode tanto ser lida da direita para a esquerda com da esquerda para a direita, sem alterar-se. E o mais interessante é que sua grafia, MUTUM, acaba concretizando o próprio local, já que este ficava junto a um covoão (U), entre morro e morro (M e M). Durante uma viagem para ser crismado, ouvira alguém falar que aquele era um lugar muito bonito. Tão feliz fica com a novidade que se torna ansioso em contá-la para a mãe, Nhã-Nina, crendo que assim faria com que ela deixasse de ser triste por morar ali.
Seu jeito estabanado, no entanto, faz com que corra desesperado em direção da mãe, passando direto pelo pai, Béro, irritando-o. É a primeira informação que o leitor recebe de que existe na narrativa uma transfiguração do complexo de Édipo, já que Miguilim tem uma forte identificação afetiva com a mãe e problemas graves de relacionamento com o pai, a ponto de, mais para frente, os dois se estranharem como se fossem inimigos.
Há também outras pessoas com quem o protagonista mantém relação. Podem ser citados os irmãos Chica, Drelina e Tomezinho, os dois últimos de gênio difícil, até maligno. A Rosa, que trabalha em sua casa e com quem tem uma tranqüila relação, muitas vezes acompanhando-o em seus sentimentos e fantasias. Vó Izidra, na realidade tia-avó por parte de mãe dele. Era uma mulher dotada de uma moral extremamente rígida, baseada num catolicismo um tanto tradicional, apegado a santos e rezas. É a religiosidade oficial, bem diferente de Mãitina, velhíssima remanescente da escravidão, já sem juízo e com fama de feiticeira. Seu misticismo é muito mais primitivo, pois que baseado em magia (compare essas duas idosas. Ambas estão vinculadas ao misticismo, à religiosidade. A ligação com o aspecto oculto de nossa existência está até simbolizada no cômodo em que cada uma fica: ambos são escuros e isolados. Além disso, gostam de Miguilim. A diferença é que Vó Izidra é mais enrustida. Há também diferenças na qualidade da religiosidade de cada uma. Mãitina é mais primitiva enquanto a outra segue um padrão mais oficial).
Mas duas personagens são as mais importantes no círculo de relacionamento de Miguilim. A primeira é o seu irmão Dito, que, apesar de mais novo, é mais sábio, na medida em que está mais preparado para o lado prático da vida. Torna-se a âncora do protagonista, já que este é extremamente aluado. Por isso é constantemente consultado pelo personagem principal.
A outra figura importante é o Tio Terêz (dentro da elaboração poética de sua prosa, Guimarães estabelece uma ortografia própria, muitas vezes afastando-se do padrão gramatical. É o caso do “Terêz”, já que oxítonas terminadas em “z” não devem ser acentuadas). Irmão de Béro, é o amigo grande de Miguilim (há quem extrapole na interpretação e enxergue na relação entre Miguilim e Terêz, tendo também em vista o caso entre este e Nina, além dos conflitos entre o protagonista e seu pai, a possibilidade de que o menino seria filho não de Béro, mas de Terêz. Mas é um aspecto que de forma alguma deve ser colocado em uma prova, pois que baseado em suspeitas muito leves). E sabemos, pelo olhar lacunoso de uma criança, que mantém uma relação no mínimo perigosa com Nina. Intuímos isso pela briga que há entre pai e mãe em que esta quase apanha; só não sofreu porque Miguilim se interpôs no meio do casal, acabando por sofrer a fúria de Béro no lugar da mãe. Comenta-se a todo instante que o tio não ia poder mais aparecer no Mutum. Além disso, surge uma tempestade terrível, que é atribuída por Vó Izidra como castigo infligido às ações pecaminosas que andavam grassando.
O temporal se vai, Tio Terêz some e o Mutum mergulha numa tranqüilidade momentânea. É quando Miguilim põe na mente a idéia obsessiva de que iria morrer em dez dias. Passa a desenvolver um apego pela vida durante o decorrer desse período e principalmente após ele, ao descobrir que sobrevivera a ele.
Béro, pouco depois, faz com que Miguilim lhe leve o almoço. É uma maneira que entende de arranjar utilidade para o garoto, que realiza sua tarefa com orgulho. No entanto, em uma das viagens, é surpreendido por Tio Terêz, que lhe entrega uma carta para ser entregue à Nina e diz que estaria esperando resposta no dia seguinte. Começa então um dilema na mente do menino. Adora o tio e, portanto, deve fazer o que este lhe pediu. No entanto, mesmo não tendo consciência do que acontecia, intui que o que era pedido era errado. Depois de muito tempo de conflito interior, decide não entregar a missiva, confessando, entre choros, ao tio, que facilmente entende. É um grande passo no crescimento da personagem.
Introduzido por outra tempestade, chega mais um período de crise. É, como diz o narrador, o momento em que virou o tempo do ruim. Começa com o assassinato de Patori, garoto imbuído de malignidade e que maltratava muito Miguilim. Seguem-se outros fatos. O cachorro Julim foi mortalmente ferido por um tamanduá. Tomezinho sofre com a picada de um marimbondo. O touro Rio Negro machuca Miguilim, que acaba descontando a raiva em Dito. Luisaltino surge e começa a se engraçar com Nina (a mãe de Miguilim parece revelar um caráter no mínimo leviano, volúvel. Pode-se desconfiar de um certo determinismo, na medida em que sua personalidade seria um reflexo das atividades exercidas pela mãe dela, que fora prostituta). O ponto crítico ocorre quando Dito vai espiar o ninho de uma coruja. A ave acaba dizendo o nome dele, o que é visto por Miguilim como mau agouro (note que, para angústia de Miguilim, o papagaio não conseguia falar o nome de Dito, ao contrário da coruja. Drama temporário. No final, muito tempo depois, consegue-o).
Tudo é preparação de clima para o grande desastre. Durante a perseguição que as crianças fazem a um mico que havia escapado, Dito acaba tendo o pé cortado por um caco que estava no terreiro. O machucado piora, colocando o menino de cama. Coincidência ou não, é época dos festejos de Natal, Vó Izidra até se dedicando a montar seu famoso presépio.
Dito não resiste ao mal que lhe acometeu, vindo por falecer. É uma experiência extremamente dolorosa para Miguilim, mas que pode ser vista como um passo importante no seu amadurecimento. Se antes o protagonista era guiado pelo irmão, nos momentos de convalescença deste o jogo começa a se inverter. É Miguilim que conta ao acamado o que está ocorrendo no mundo ao redor deles. Passa a ser, pois, os olhos fraternos. Com a morte, a personagem principal passa um longo período curtindo a dor, o sofrimento, até que assume um movimento com que de introjeção do falecido, já que antes de tomar uma decisão sempre se pergunta o que seu irmão faria. Ao assumir a mesma atitude que presume ser de Dito, praticamente absorve-o em seu ser.
Tanto essa evolução é verdade que Miguilim agüenta firme o sufoco a que seu pai o submete, fazendo-o trabalhar no roçado, debaixo de um sol desumano. Mas o mais importante é lembrar da sua participação no conflito que houve entre Liovaldo e Grivo.
Grivo era um rapaz muito pobre, a ponto de os animais de criação, como galinhas, morarem na mesma casa dele. Certa vez aparecera no Mutum com dois patos para serem vendidos, parca fonte de sustento para si e para mãe. No entanto, Liovaldo, irmão de Miguilim que morava na cidade e que estava de visita, dominado por um espírito maléfico, começa a maltratar e até a machucar o pobre. Miguilim acha injusto e toma partido, batendo no agressor. Seu pai fica indignado pelo fato de o menino não respeitar o sangue familiar e, incoerentemente, dá uma surra nele que chega a espancamento. O protagonista, no entanto, não se sente mal, pelo contrário, tem raiva, pois sabe que está certo e que o pai está imensamente errado. Por isso pensa em vingança, imaginando até a morte do pai. É quando ri, em meio a surra, o que faz todos, até o agressor, pensarem que o menino endoidara, talvez até com os golpes.
O conflito instaura a conquista, por Miguilim, de espaço e até respeito no ambiente familiar. Após três dias que passa na casa de um vaqueiro, para protegê-lo da fúria do pai, retorna, mas não se mostra submisso. Como provocação, Béro quebra os brinquedos e gaiolas do filho. Este solta os passarinhos que tinha presos e quebra os brinquedos que sobraram. É um sinal de que havia crescido e que, portanto, não precisava mais daquelas diversões.
Delimitadas as fronteiras, Miguilim pouco depois cai doente e de forma tão grave que alterna momentos de inconsciência a de consciência (a doença e os mergulhos de desligamento que provoca podem ser entendidos como um momento de incubação, como se Miguilim, dentro de um casulo, estivesse em uma fase no final da qual se transformaria em outra pessoa). Nos instantes em que vem à tona percebe picotes de realidade, mas que nos faz entender vários acontecimentos. O primeiro é o desespero do pai, que se sente injustiçado pela providência divina, que parecia querer tomar mais um filho dele (Béro é, portanto, uma personagem complexa, pois, ao mesmo tempo em que maltrata seu filho, demonstra amor por ele. Sua agressividade pode ser fruto de uma vida de dificuldades financeiras, pois não é dono de suas próprias terras, cuidando do que era alheio. Nas entrelinhas fica o traçado de um caráter rico psicologicamente). Tenta ao máximo fazer suas vontades. Em vários outros despertares Miguilim toma conhecimento que Béro havia matado Luisaltino, provavelmente por causa de Nhã-Nina. Por ter caminhado pelas trilhas da criminalidade, acaba por se suicidar.
Quando começa a melhorar, o protagonista toma conhecimento de que Tio Terêz tinha voltado e ia passar a morar no Mutum. Era a união, finalmente, dele com Nina. Por causa disso, Vó Izidra parte de lá, indignada.
No final, a chegada de um certo Dr. José Lourenço traz uma revelação surpreendente. É essa figura nova que descobre que Miguilim era míope. Ao emprestar ao menino seus óculos, permite à criança uma descoberta. Seu velho mundinho acaba ganhando uma visão completamente nova, mais nítida. É a simbologia do crescimento, o que constitui um ritual de passagem. Enxergar mais nitidamente o mundo significa entrar para a fase adulta, sair da infância.
Na companhia de tão importante mudança, Miguilim parte para a cidade. Sua viagem, somada à simbologia dos óculos, pode significar a entrada em um novo universo. Miguilim pode tanto ter abandonado a visão primitiva, pré-lógica, que o caracterizara, como continuar, em meio ao universo adulto, preservando seu lado infantil. É, pois, um final aberto, a permitir mais de interpretação.
Quanto a “Uma Estória de Amor”, parece que vamos para o outro lado da existência, já que seu protagonista, Manuelzão, tem 60 anos. No estágio que atingiu, torna-se o responsável pela fazenda Samarra, pertencente a Federico Freyre, alguém que nunca aparece, sendo apenas mencionado (cuidar das terras de alguém que não aparece fisicamente, só na forma de uma carta, faz lembrar o próprio papel de Adão ou até mesmo do ser humano em relação a Deus).
Estabelecido, depois de uma ampla vida de atribulações, resolve instalar sua mãe e pouco depois, sentindo falta, provavelmente, de um sentimento de família, busca um seu descendente, fruto de um relacionamento perdido no tempo. É o seu filho, Adelço de Tal, sujeito desamistoso, seco, casado com Leonísia, mulher linda a ponto de inspirar desejos perigosos em Manuelzão, o que provoca nele um conflito interior. Promitivo, irmão de Leonísia, dezoito anos, rapaz sem rumo certo na vida – um vagabundo.
Com a morte de sua mãe, Manuelzão resolve erguer uma capela para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, atendendo, quase que inconscientemente, a um pedido da progenitora, quando ainda viva. Coincidência ou não, essa determinação ocorre logo após o riacho que cortava a fazenda ter misteriosamente secado no meio de uma noite (haveria aqui uma relação entre a vida de Manuelzão e o curso do rio?). Terminada a construção da igrejinha, prepara-se para inaugurá-la, esperando a chegada de um padre.
Surpreendentemente, vem chegando uma enorme quantidade de gente, de todas as partes, para participar desse evento religioso. É um festejo que já ocorre nas vésperas do que acaba se tornando o grande dia e do qual Manuelzão não tem mais controle, a não ser no que se refere à preocupação de garantir alimentação para uma população tão grande de convivas.
Entre as pessoas de todo tipo que aparecem, destaque deve ser dado a algumas figuras. A primeira é João Urúgem, homem extremamente primitivo, às vezes tão colado à terra que é visto de quatro, e que chega a cheirar mal, animalescamente. O outro é o Senhor do Vilamão, outrora homem muito rico e poderoso, mas no presente caduco. Diminuída sua potência político-econômica, ainda tem posses e pose. Há também Joana Xaviel, grande contadora de história e que tivera um enlace amoroso (pelo menos no mínimo suficiente para espantar a solidão da velhice) com Camilo, homem de passado misterioso, não se sabe se até fora déspota e bandido, mas que tinha como que preservado um ar de prestígio. Havia até quem suspeitasse de um interesse emotivo entre ele e a mãe de Manuelzão.
Inaugurada a capelinha, todos se entregam ao prazer de um caloroso almoço, participando depois da cantoria e do folguedo. Interessante é notar como se manifesta no texto a colagem de vários poemas, advindos de cantigas populares, folclóricos, tornando-o uma colcha de retalhos, a lembrar o esquema que Gil Vicente já havia usado em suas peças, como A Farsa de Inês Pereira. Esse tecido fica mais rico quando se tem em mente que as histórias contadas também entram como peças dessa composição.
Enquanto isso, Manuelzão está mergulhado em três problemas. O primeiro é a dor constante que sente em seu pé. O segundo é a necessidade de conduzir uma boiada. No estado em que se encontrava, poderia muito bem transferir tal tarefa para seu filho. Mas esse era o terceiro problema: seria alguém confiável? Nota-se, pois, um relacionamento familiar muito fraco.
No final da noite é que todos esses problemas começam a ser sanados. Sem perceber, a dor havia sumido. E o quadro muda radicalmente de figura quando de maneira inesperada Camilo se propõe a contar uma história, a do Boi Bonito.
Trata-se da narrativa que em alguns pontos se assemelha a um conto de fadas. Um fazendeiro muito rico possui um cavalo que ninguém consegue domar. Além disso, propõe-se a dar a mão de sua filha a quem conseguir caçar o famoso Boi Bonito, tão belo quanto perigoso. Vários vaqueiros tentaram, mas só encontraram a morte.
A entrega da mão da filha a quem conseguir resolver uma tarefa é um motivo muito comum nas fábulas e está ligado à idéia de renovação do “eu”, já que uma estrutura antiga precisa da ajuda de uma nova para a completude de suas ações. Isso tudo parece simbolizar a relação entre Manuelzão e Adelço de Tal.
A adequação é tão perfeita aos contos de fada que de fato surge um vaqueiro, Menino, que não só consegue domar o cavalo, como é o único de quem o Boi Bonito foge. Quando finalmente o animal é pego, declara ao moço que por muito tempo esperava por ele. Atinge-se o momento de epifania amorosa que se transfere para os ouvintes. Suspendem-se todas as animosidades entre pai e filho. A festa recebe mais ímpeto. Ganha-se disposição para a viagem com a boiada.





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Primeiras Histórias - João Guimarães Rosa - resumo
Primeiras Estórias
Guimarães Rosa
Publicada em 1962, essa obra reúne 21 contos.
Trata-se do primeiro conjunto de histórias compactas a seguir a linha do conto tradicional, daí o "Primeiras" do título. O termo “estórias”, , designa algo mais próximo da invenção, ficção.
No volume, aborda as diferentes faces do gênero: a psicológica, a fantástica, a autobiográfica, a anedótica, a satírica, vazadas em diferentes tons: o cômico, o trágico, o patético, o lírico, o sarcástico, o erudito, o popular. As estórias captam episódios aparentemente banais. As ocorrências farejadas através dos protagonistas transformam-se de uma espécie de milagre que surge do nada, do que não se vê, como diz o próprio Guimarães Rosa; "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo". Este milagre pode ser então, responsável pela poesia extraída dos fatos mais corriqueiros, pela beleza de pensar no cotidiano e não apenas vivê-lo, pelo amor que se pode ter pelas coisas da terra, pelo homem simples, pelo mistério da vida. Dos "causos " narrados brotam encanto e magia frutos da sensibilidade de um poeta deslumbrado com a paisagem natural e/ou recriada de Minas Gerais.
I - "As margens da alegria" : Um menino descobre a vida, em ciclos alternados de alegria (viagem de avião, deslumbramento pela flora, e fauna) e tristeza (morte do peru e derrubada de uma árvore).
II - "Famigerado" : O jagunço Damázio Siqueira atormenta-se com um problema vocabular: ouviu a palavra "famigerado" de um moço do governo e vai procurar o farmacêutico, pessoa letrada do lugar, para saber se tal termo era um insulto contra ele, jagunço.
III - "Sorôco, sua mãe, sua filha": Um trem aguarda a chegada da mãe e da filha de Sorôco, para conduzi - las ao manicômio de Barbacena. Durante o trajeto até a estação, levadas por Sorôco , elas começam surpreendentemente a cantar. Quando o trem parte, Sorôco volta para casa cantando a mesma canção, e os amigos da cidadezinha , solidariamente, cantam junto.
IV - "A menina e lá". Nhinhinha possuía dotes paranormais : seus desejos, por mais estranhos que fossem, sempre se realizavam. Isolados na roça, seus parentes guardam em segredo o fenômeno, para dele tirar proveito. As reticentes falas da menina tinham caráter de premonição: por exemplo, o pai reclamara da impiedosa seca. Nhinhinha "quis" um arco-íris, que se fez no céu, depois de alentadora chuva. Quando ela pede um caixãozinho cor-de-rosa com enfeites brilhantes ninguém percebe que o que ela queria era morrer...
V - "Os irmão Dagobé". O valentão Damastor Dagobé, depois de muito ridicularizar Liojorge, é morto por ele. No arraial, todos dão como certa a vingança dos outros Dagobé : Doricão , Dismundo e Derval. A expectativa da revanche cresce quando Liojorge comunica a intenção de participar do enterro de Damastor. Para surpresa de todos, os irmãos não só concordam, como justificam a atitude de Liojorge, dizendo que Damastor teve o fim que mereceu.
VI - "A terceira margem do rio". Um homem abandona família e sociedade, para viver à deriva numa canoa, no meio de um grande rio. Com o tempo, todos, menos o filho primogênito, desistem de apelar para o seu retorno e se mudam do lugar. O filho, por vínculo de amor, esforça-se para compreender o gesto paterno: por isso, ali permanece por muitos anos. Já de cabelos brancos e tomado por intensa culpa, ele decide substituir o pai na canoa e comunica-lhe sua decisão. Quando o pai faz menção de se aproximar, o filho se apavora e foge, para viver o resto de seus dias ruminando seu "falimento" e sua covardia.
VII - "Pirlimpsiquice". Um grupo de colegiais ensaia um drama para apresentá-lo na festa do colégio. No dia da apresentação, há um imprevisto, e um dos atores se vê obrigado a faltar. Como não havia mais possibilidade de se adiar a apresentação, os adolescentes improvisam uma comédia, que é entusiasticamente bem recebida pela platéia.
VIII - "Nenhum, nenhuma". Uma criança, não se sabe se em sonho ou realidade, passa férias numa fazenda, em companhia de um casal de noivos, de um homem triste e de uma velha velhíssima, de quem a noiva cuidava. O casal interrompe o noivado, e o menino, que conhecera o Amor observando-os, volta para a casa paterna. Lá chegando, explode sua fúria diante dos pais ao notar que eles se suportavam, pois tinham transformado seu casamento num desastre confortável.
IX - "Fatalidade". Zé Centeralfe procura o delegado de uma cidadezinha, queixando-se de que Herculinão Socó vivia cantando sua esposa. A situação tornara-se tão insuportável que o casal mudara de arraial. Não adiantou: o Herculinão foi atrás. O delegado, misto de filósofo, justiceiro e poeta, depois de ouvir pacientemente a queixa, procura o conquistador e, sem a mínima hesitação, mata-o, justificando o fato como necessário, em nome da paz e do bem-estar do universo.
X - "Seqüência". Uma vaca fugitiva retorna a sua fazenda de origem. Decidido a resgatá-la, um vaqueiro persegue-a com incomum denodo. Ao chegar à fazenda para onde a vaca retornara, o vaqueiro descobre que havia outro motivo para sua determinação: a filha do fazendeiro, com quem o rapaz se casa.
XI - "O espelho". Um sujeito se coloca diante de um espelho, procurando reeducar seu olhar. apagando as imagens do seu rosto externo. A progressão desses exercícios lhe permite, daí a algum tempo, conhecer sua fisionomia mais pura, a que revela a imagem de sua essência.
XII - "Nada e a nossa condição". O fazendeiro Tio Man 'Antônio, com a morte da esposa e o casamento das filhas, sente-se envelhecido e solitário. Decide vender o gado, distribuindo o dinheiro entre as filhas e genros. A seguir, divide sua fazenda em lotes e os distribui entre os empregados, estipulando em testamento uma condição que só deveria ser revelada quando morresse. Quando o fato ocorre, os empregados colocam seu corpo na mesa da sala da casa-grande e incendeiam a casa: a insólita cerimônia de cremação era seu último desejo.
XIII - "O cavalo que bebia cerveja". Giovânio era um velho italiano de hábitos excêntricos: comia caramujo e dava cerveja para cavalo. Isso o tornara alvo da atenção do delegado e de funcionários do Consulado, que convocam o empregado da chácara de "seo Giovânio", Reivalino, para um interrogatório. Notando que o empregado ficava cada vez mais ressabiado e curioso, o italiano resolve então abrir a sua casa para Reivalino e para o delegado: dentro havia um cavalo branco empalhado. Passado um tempo, outra surpresa: Giovânio leva Reivalino até a sala, onde o corpo de seu irmão Josepe , desfigurado pela guerra, jazia no chão. Reivalino é incumbido de enterrá-lo, conforme a tradição cristã. Com isso, afeiçoa-se cada vez mais ao patrão, a ponto de ser nomeado seu herdeiro quando o italiano morre.
XIV - "Um moço muito branco". Os habitantes de Serro Frio, numa noite de novembro de 1872, têm a impressão de que um disco voador atravessou o espaço, depois de um terremoto. Após esses eventos, aparece na fazenda de Hilário Cordeiro um moço muito branco, portando roupas maltrapilhas. Com seu ar angelical, impõe-se como um ser superior, capaz de prodígios: os negócios de Hilário Cordeiro, o fazendeiro que o acolheu, têm uma guinada espantosamente positiva. Depois de fatos igualmente miraculosos, o moço desaparece do memo modo que chegara.
XV - "Luas-de-mel". Joaquim Norberto e Sa- Maria Andreza recebem em sua fazenda um casal fugitivo, versão sertaneja de Romeu e Julieta. Certos de que os capangas do pai da moça virão resgatá-la, todos se preparam para um enfrentamento: a casa da fazenda transforma-se num castelo fortificado. É nesse clima de tensão que se celebra o casamento dos jovens, a que se segue a lua-de-mel, que acontece em dose dupla: dos noivos e do velho casal de anfitriões, cujo amor fora reavivado com o fato. Na manhã seguinte, a expectativa se esvazia com a chegada do irmão da donzela, que propõe solução satisfatória para o caso.
XVI - "Partida do audaz navegante". Quatro crianças, três irmãs e um primo, brincam dentro de casa, aguardando o término da chuva. A caçula, Brejeirinha , brinca com o que lhe dava mais prazer: as palavras. Inventa uma estória do tipo Simbad , o marujo, que ganha novos elementos quando todos vão brincar no quintal, à beira de um riacho. Liberando sua fantasia, Brejeirinha transforma um excremento de gado no "audaz navegante", colocando-o para navegar riacho abaixo.
XVII - "A benfazeja". Mula- Marmela era mulher de Mumbungo , sujeito perverso que se excitava com o sangue de suas vítimas. Esse vampiro tinha um filho, Retrupé , cujo prazer só diferia do do pai quanto à faixa etária das vítimas: preferia as mais frescas. Apesar de amar seu homem e ser correspondida, Mula-Marmela não hesitara em matá-lo e depois cegar Retrupé, de quem se torna guia. Passado algum tempo, resolve assassiná-lo: percebe que esta seria a única maneira de refrear o instinto de lobisomem do rapaz.
XVIII - "Darandina". Um sujeito bem- vestido rouba uma caneta, é surpreendido e, para escapar dos que o perseguem, escala uma palmeira. Uma multidão acompanha atentamente os esforços das autoridades, que procuram convencer o rapaz a descer. Resistindo, ele diz frases desconexas e tira toda a roupa, revelando notável equilíbrio físico. A sessão de nudismo leva um médico a nova tentativa de diálogo. Ao se aproximar, o médico percebe que o sujeito voltara à normalidade e que, envergonhado, pedia socorro. A multidão, sentindo-se ludibriada, não aceita essa sanidade repentina e se dispõe a linchá-lo. Sentindo o risco, o sujeito berra um grito de louvor à liberdade, motivo bastante para a multidão ovacioná-lo e carregá-lo nos ombros.
XIX - "Substância". O fazendeiro Sionésio apaixona-se por sua empregada Maria Exita , que fora abandonada pela família e criada pela peneireira Nhatiaga . Na fazenda, o ofício de Maria Exita era o de quebrar polvilho, trabalho duro mas que a moça realizava com prazer e competência. Embora preocupado com a ascendência da moça, Sionésio sente que a paixão é maior que o preconceito e pede-a em casamento.
XX - "Tarantão, meu patrão". O fazendeiro João - de - Barros - Dinis - Robertes tem uma surpreendente explosão de vitalidade em sua velhice caduca. Como se fora um Quixote, determina-se a matar seu médico: o Magrinho, seu sobrinho - neto. Ao longo da viagem rumo à cidade, recruta um bando de desocupados, ciganos e jagunços, que acatam sua liderança, pelo carisma natural do velho. Chegando à "frente de batalha", Tarantão percebe que era dia de festa: uma das filhas de Magrinho fazia aniversário. O susto inicial, provocado pela invasão do "exército", transforma-se em alívio quando o velho discursa, dizendo de seu apreço pela família e pelos novos amigos, colecionados ao longo da última cavalgada.
XXI - "Os cimos". O menino da primeira estória revela agora a face do sofrimento, causado pela doença da Mãe, fato que apressa sua viagem de volta à casa paterna. Os últimos dias de férias são de preocupação. O Menino só relaxava quando via, todas as manhãs e sempre à mesma hora, um tucano se aproximar da casa dos rios, onde se hospedava. Num processo de sublimação, desencadeado pela beleza da ave, o Menino ganha energia para resistir e para transferir à Mãe uma carga de fluidos mentais positivos, que lhe permitam superar a doença. Quando o Tio o procura para comunicar a melhora da Mãe, o Menino experimenta momentos de êxtase, pois só ele sabia do motivo da cura.
Dez contos têm o foco narrativo centrado na terceira pessoa:
I-" As margens da alegria"; II-" Famigerado" ;III- "Sorôco, sua mãe, sua filha"; IV-"A menina de lá"; V-" Os irmãos Dagobé"; VIII-" Nenhum , nenhuma"; X-"Seqüência "; XIV-"Um moço muito branco"; XIX-" Substância" e XXI-"Os cismos".
As onze estórias restantes são relatadas em primeira pessoa: VI-"A terceira margem do rio"; VII- " Pirlimpsiquice"; IX-" Fatalidade "; XI-"O espelho"; XII- "Nada e a nossa condição"; XIII-"O cavalo que bebia cerveja"; XV-" Luas de mel"; XVI-" Partida do audaz navegante"; XVII-"A benfazeja"; XVIII-" Darandina " e XX-"Tarantão, meu patrão".
Dessas onze estórias, apenas duas apresentam o narrador como protagonista: "O espelho" e "Pirlimpsiquice"; nas outras, o relato é feito por um espectador privilegiado, que presencia a ação e registra suas impressões a respeito do que assiste. O narrador pode ser também um personagem secundário da estória, com laços de parentesco ou e amizade com o protagonista. Quanto ao emprego dos tempos verbais, nota-se que, na maior parte das estórias, o relato se faz através de uma mistura do pretérito perfeito com o pretérito imperfeito do indicativo.
A maioria das estórias se passa em ambiente rural não especificado, em sítios e fazendas; algumas têm como cenário pequenos lugarejos, arraiais ou vilas. Os ambientes são apresentados com poucos mas precisos toques: moldura de altos morros, vastos horizontes, grandes rios, pastos extensos, escassas lavouras. Duas estórias, no entanto - "O espelho" e "Darandina" -, transcorrem em cidades, pressupostas até como grandes centros urbanos, pelo fato de mencionarem a existência de secretarias de governo, hospício, corpo de bombeiros, jornalistas, parques de diversões, prédios de repartições públicas e outros serviços tipicamente urbanos. PERSONAGENS Embora variem muito quanto à faixa etária e experiência de vida, as personagens se ligam por um aspecto comum: suas reações psicossociais extrapolam o limite da normalidade. São crianças e adolescentes superdotados, santos, bandidos, gurus sertanejos, vampiros e, principalmente, loucos: sete estórias apresentam personagens com este traço.
FOCO NARRATIVO
As indicações feitas a seguir são pontuadas com os algarismos que indicam a ordem de pubicação de cada estória no livro. Assim, dez delas têm o foco relato centrado na terceira pessoa:
I-"As margens da alegria"; II-"Famigerado";III-"Sorôco, sua mãe, sua filha"; IV-"A menina de lá"; V-"Os irmãos Dagobé"; VIII-"Nenhum, nenhuma"; X-"Seqüência"; XIV-"Um moço muito branco"; XIX-"Substância" e XXI-"Os cismos".
As onze estórias restantes são relatadas em primeira pessoa:
VI-"A terceira margem do rio"; VII-"Pirlimpsiquice"; IX-"Fatalidade"; XI-"O espelho"; XII-"Nada e a nossa condição"; XIII-"O cavalo que bebia cerveja"; XV-"Luas de mel"; XVI-"Partida do audaz navegante"; XVII-"A benfazeja"; XVIII-"Darandina" e XX-"Tarantão, meu patrão". Dessas onze estórias, apenas duas apresentam o narrador como protagonista: "O espelho" e "Pirlimpsiquice"; nas outras, o relato é feito por um espectador privilegiado, que presencia a ação e registra suas impressões a respeito do que assiste. O narrador pode ser também um personagem secundário da estória, com laços de parentesco ou e amizade com o protagonista.
Quanto ao emprego dos tempos verbais, nota-se que, na maior parte das estórias, o relato se faz através de uma mistura do pretérito perfeito com o pretérito imperfeito do indicativo.
ESPAÇO
A maioria das estórias se passa em ambiente rural não especificado, em sítios e fazendas; algumas têm como cenário pequenos lugarejos, arraiais ou vilas. Os ambientes são apresentados com poucos mas precisos toques: moldura de altos morros, vastos horizontes, grandes rios, pastos extensos, escassas lavouras. Duas estórias, no entanto - "O espelho" e "Darandina" -, transcorrem em cidades, pressupostas até como grandes centros urbanos, pelo fato de mencionarem a existência de secretarias de governo, hospício, corpo de bombeiros, jornalistas, parques de diversões, prédios de repartições públicas e outros serviços tipicamente urbanos.
PERSONAGENS
Embora variem muito quanto à faixa etária e experiência de vida, as personagens se ligam por um aspecto comum: suas reações psicossociais extrapolam o limite da normalidade. São crianças e adolescentes superdotados, santos, bandidos, gurus sertanejos, vampiros e, principalmente, loucos: sete estórias apresentam personagens com este traço.
1º conto:
menino: em estado de graça por descobrir a vida.
2º conto:
Damásio das Siqueiras: matador cruel.
3º conto:
Sorôco: viúvo que coloca a mãe e a filha, loucas, no hospício.
4º conto:
Nhinhinha: menina dotada de poderes sobrenaturais.
5º conto:
Liojorge: homem bom Damastor Dagobé: homem cruel e malfeitor
Doricão: irmão de Dagobé
Dismundo: irmão de Dagobé
Derval: irmão de Dagobé

6º conto:
protagonista: navegante da canoa narrador: filho de protagonista
7º conto:
Dr. Perdigão: professor de um grupo de adolescentes narrador: rapaz sem talento para o teatro. Ponto na peça
Zé Boné: rapaz espontâneo; revela-se ator.
8º conto:
um menino: arquétipo
um moço: enamorado da moça
uma moça: enamorada do moço
uma velha: simbolizando a vida
pai da moça: homem doente
pais do moço.
9º conto:
Zé Centaralfe: homem humilde
Esposa de Centaralfe
Herculinão: valentão que assedia a esposa de Centaralfe
Meu amigo: delegado instruído
10º conto:
rapaz: persegue a vaca fugitiva das terras de seu pai
moça: filha do Major Quitério.
11º conto:
narrador: protagonista; se vê refletido em espelhos
12º conto:
Tio M'Antônio: protagonista; estranho, calado filhas do Tio M'Antônio.
Tia Liduína: falecida esposa de Tio M' Antônio.
13º conto:
Reivalino Belarmino: empregado de Giovânio; narrador
Giovânio: italiano não afeito a hábitos de higiene, ex-combatente de guerra e fazendeiro. Seo Priscilo: subdelegado.
14º conto:
um moço muito branco: rapaz desmemoriado, com poderes
Duarte Dias: homem grosseiro
Hilário Cordeiro: homem bom e piedoso
José Kalende: escravo
15º conto:
Joaquim Norberto e esposa: velho casal; anfitriões
jovem casal: hóspede de Joaquim Norberto.
Seo Seotaziano: compadre de Joaquim Norberto
17º conto:
narrador: homem indignado com o comportamento da população
Mula Marmelo: mulher feia, suja e esfarrapada, benfeitora do povoado - "A benfazeja"
Retrupé: cego guiado por Mula Marmelo
Mumbambo: marido de Mula Marmelo. Homem cruel, assassinado pela esposa
18º conto:
narrador: médico-residente do hospício
louco: homem distinto que entra em crise
Adalgiso: homem excessivamente correto.
19º conto:
Maria Exita: moça bonita, trabalhadora e pura
Sionésio: homem bom e trabalhador, apaixonado por Maria Exita
Nathiaga: mulher boa, empregada na fazenda de Sionésio
16º conto:
Pela, Ciganinha, Brejeirinha: irmãs
Zito: primo
20º conto:
vagalume: narrador
João-de-Barros: patrão de Vagalume
Magrinho: médico; sobrinho de João-de-Barros
21º conto:
menino: o mesmo do primeiro conto
tio do menino: o mesmo do primeiro conto.


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Resumo de todos os contos de SAGARANA
Adaptado de: Sagarana Estudo literário de João Batista Gomes
1 - O Burrinho pedrês
DADOS TÉCNICOS
NARRATIVA – Conto narrado na terceira pessoa. O narrador é, pois, onisciente, não participa da história.
PERSONAGENS
1. Sete-de-Ouros: animal miúdo e resignado, idoso, muito idoso, beiço inferior caído. Outros nomes que tivera ao longo de anos e amos: Brinquinho, Rolete, Chico-Chato e Capricho.
2. Major Saulo: corpulento, quase obeso, olhos verdes. Só com o olhar mandava um boi bravo se ir de castigo. Estava sempre rindo: riso grosso, quando irado; riso fino, quando alegre; riso mudo, de normal. Não sabia ler nem escrever, mas cada ano ia ganhando mais dinheiro, comprando mais gado e terras.
3. João Manico: vaqueiro pequeno que montou o burrinho Sete-de-Ouros na ida. Na volta, trocou de montaria. Na hora de entrar na água, refugou, alegando resfriado, e escapou da morte.
4. Francolim: espécie de secretário do Major Saulo, encarregado de pôr ordem nos vaqueiros. Obedece cegamente às ordens do Major. Foi salvo, na noite da enchente, pelo burrinho Sete-de-Ouros.
5. Raymundão: vaqueiro de confiança do Major Saulo. Enquanto tocam a boiada, vai contando a história do zebu Calundu.
6. Zé Grande: vai à frente da boiada, tocando o berrante.
7. Silvino: vaqueiro; perdeu a namorada para Badu e planejava matar o rival na volta, depois de deixarem a boiada no arraial.
CENÁRIO – Fazenda da Tampa, do Major Saulo, no interior de Minas Gerais.
RESUMO
PREPARATIVOS – Na Fazenda da Tampa, do Major Saulo, os homens estão ultimando os últimos preparativos para sair pelo sertão, tocando uma boiada de bois de corte. O dia é de chuva, mas ela ainda não veio. Major Saulo ordena que os homens preparem os animais. Por zebra, o burrinho Sete-de-Ouros, presente ali na varanda da casa grande, também é escolhido para a viagem. Para montá-lo, o Major escolheu o vaqueiro João Manico.
ZEBU CALUNDU – Raymundão conta a história do touro Calundu. Não batia em gente a pé, mas gostava de correr atrás de cavaleiro. Certa vez, na proteção de um grupo de vacas com seus bezerros novinhos, Calundu enfrentou uma onça preta, amedrontando a fera e pondo-a para correr. Certa feita, o touro Calundu matou Vadico, filho do fazendeiro Neco Borges. O pai, vendo filho ensangüentado no chão, puxou o revólver para matar o touro. Vadico, antes de morrer, pediu que o pai não matasse Calundu. Neco Borges mandou o touro para outra fazenda para ser vendido ou dado a alguém. Raymundão foi quem levou o bicho. O zebu ficou uma noite apenas no curral. No outro dia, estava morto.
CÓRREGO CHEIO – Depois da chuva grossa, a boiada chegou ao córrego da Fome. Estava cheio. A travessia era perigosa, e o Major Saulo pediu cautela. Ali já morrera muita gente. Mas a travessia é feita sem perda. Até o Sete-de-Ouros atravessou sem reclamar.
TROCA – Em determinado ponto do caminho, Major Saulo ordenou que Francolim trocasse de montaria com João Manico. A ordem foi obedecida. Francolim fez um pedido ao Major: que, na entrada do povoado, a troca fosse desfeita. Não ficava bem para ele, encarregado do Major, ser visto montado no burrinho Sete-de-Ouros.
BADU E SILVINO – Badu está na fazenda há apenas dois meses e já tomou a namorada do Silvino. Por isso, os dois viraram inimigos, um querendo prejudicar o outro. Francolim já avisou o major sobre o perigo de um matar o outro. Raymundão acha que o caso não é para morte. A moça é meio caolha. O casamento com Badu já está marcado. Raymundão, em prosa com o Major, informou que Silvino vendeu umas quatro cabeças de gado por preço abaixo do normal. Outra informação que veio do Francolim: Silvino está com bagagem além do normal. O Major Saulo, antes da chegada ao povoado, determinou que Francolim, na volta, vigie Silvino o tempo todo. O Major está convencido de que Silvino já planejou a morte de Badu.
CHEGADA – A chegada ao povoado foi uma festa. O povo, mesmo com a meia-chuva, foi para o curral da estrada de ferro ver o embarque. Depois, os animais ficaram descansando enquanto os vaqueiros andavam um pouco pelo povoado.
PARTIDA – Na hora de ir embora, cada um pegou a sua montaria. Badu ficou por último: estava bêbado e tinha ido comprar um presente para sua morena. Por maldade, deixaram-lhe o burrinho Sete-de-Ouros. Na saída do povoado, alguém vaiou: Badu era por demais grande para o burrinho pedrês, os pés iam quase arrastando no chão. Já no fim do lugar, Francolim estava parado no meio da estrada, esperando Badu.
NA ESTRADA – Francolim deixou Badu para trás e foi juntar-se ao grupo. Queria mesmo era ficar de olho em Silvino. Os dois, Silvino e o irmão Tote, iam bem na frente dos dois. Tote tentava dissuadir o mano para não matar Badu. Mas Silvino estava determinado. Esperava apenas o momento certo para fazer o serviço e cair no mundo.
HISTÓRIA DE JOÃO MANICO – João Manico, por insistência de todos, contou mais uma vez a história da boiada que estourou à noite, quando o Major Saulo, ainda novo, era tratado por Saulinho. No estouro, de madrugada, o gado passou por cima dos dois vaqueiros que estavam de vigia. Deles, só restou uma lama cor de sangue.
CÓRREGO CHEIO – Viajavam à noite. De repente, os cavalos empacaram, pressentindo o mar de água. O córrego da Fome transbordara, inundando tudo bem alem das margens. Todos aprovaram a idéia de esperar Badu e o burrinho Sete-de-Ouros. Se o burro entrasse na água, todos o seguiriam. É que burro não entra em lugar de onde não pode sair.
A TRAGÉDIA – Sete-de-Ouros entrou levando Badu ás costas. Os cavalos seguiram-no. E foi uma tragédia: oito vaqueiros mortos naquela noite. Benevides, Silvino, Leofredo, Raymundão, Sinoca, Zé Grande, Tote e Sebastião. O burrinho Sete-de-Ouros, com Badu agarrado às crinas e Francolim agarrado à cauda, conseguiu atravessar o mar de águas em que se transformara o pequeno córrego. Já em terra firme, livrou-se de Francolim e seguiu ligeiro para a fazenda. Ali, livraram-no do vaqueiro, que dormia, e dos arreios.
2 - A volta do marido pródigo
DADOS TÉCNICOS
NARRATIVA – Conto narrado na terceira pessoa. O narrador é, pois, onisciente, não participa da história.
PERSONAGENS
Lalino Salãthiel: todos o chamam de Laio. Mulato vivo, malandro, contador de histórias. Garante que conhece a capital, Rio de Janeiro, mas nunca foi lá. Certa vez, foi realmente conhecê-la.
Maria Rita: mulher de Lalino; trata-o com especial carinho.
Marra: encarregado dos serviços; depois que a obra acabou, mudou-se do arraial.
Ramiro: espanhol que ficou com Ritinha, a mulher de Lalino.
Waldemar: Chefe da Companhia.
Major Anacleto: chefe político do distrito, homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar.
Tio Laudônio: irmão do Major Anacleto. Esteve no seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha ao povoado. Chorou na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva e escuta o capim crescer. Era conselheiro do Major.
Benigno: inimigo político do Major Anacleto.
Estêvão: capanga respeitado do Major Anacleto. Jamais ria. Tinha pontaria invejável: atirava no umbigo para que a bala varasse cinco vezes o intestino e seccionasse a medula, lá atrás.
CENÁRIO – Fazenda da Tampa, do Major Saulo, no interior de Minas Gerais.
RESUMO
I
INTRODUÇÃO – O cenário é apresentado: homens trabalham duro escavando o solo para dele retirar minério. Seu Marra é o encarregado, de olho em todos para que o trabalhe ande a contento. Lalino Salãthiel é um mulato vivo, malandro, que chega tarde ao trabalho e inventa desculpas. Em vez de trabalhar duro, como os outros, inventa histórias, conta causos. A maioria admira-o. Mas há quem enxergue nele apenas um aproveitador. Generoso acha que Ramiro, um espanhol, anda rondando a mulher de Lalino.
II
PARTIDA PARA A CAPITAL – Laio, naquela noite, não comparece à casa de Waldemar para a aula de violão. No outro dia, fica em casa vendo umas revistas com fotografias de mulheres. À tarde, vai à empresa e acerta as contas com Marra. Está disposto a ir embora. Na volta para casa, encontra Ramiro, o espanhol que lhe anda cercando Maria Rita. Nasce, imediatamente, um plano: tomar um dinheiro emprestado do espanhol. O argumento é convincente: quer ir embora sem a mulher, mas falta-lhe dinheiro para viajar. Ramiro empresta-lhe um conto de réis. Com o dinheiro no bolso, Laio pegou o trem na estação rumo à capital do País. Seu Miranda, que foi levá-lo, ainda tentou dissuadi-lo. Não conseguiu.
III
JULGAMENTO – "Um mês depois, Maria Rita ainda vivia chorando, em casa. Três meses passados, Maria Rita estava morando com o espanhol". Todos diziam que Laio era um canalha, que vendera a mulher para Ramiro. E assim, passou-se mais de meio ano.
IV
NO RIO DE JANEIRO – As aventuras de Lalino Salãthiel no Rio de Janeiro excederam à expectativa. Seis meses depois, Laio estava quase sem dinheiro e começou a sentir saudades. Tomou a decisão: ia voltar. Separou o dinheiro da passagem e programou uma semana de despedida: "uma semaninha inteira de esbórnia e fuzuê". Acabada a semana, Laio pegou o trem: queria só ver a cara daquela gente quando o visse chegar!
V
RECEPÇÃO – Enquanto atravessava o arraial, Laio teve que ir respondendo às chufas dos moradores. Finalmente, chegou à casa de Ramiro, o espanhol que se apossou de Ritinha. Laio informou-lhe que estava de volta para devolver o dinheiro do empréstimo. Ramiro, querendo evitar que Laio visse Ritinha, perdoou o empréstimo: a dívida já estava quitada. Mas Laio insistiu: "eu quero-porque-quero conversar com a Ritinha"! E disse isso com a mão perto do revólver. O espanhol concordou, desde que não fosse em particular. De repente, Laio esmoreceu: não queria mais ver a Ritinha. Queria só pegar o violão. Depois, quis saber se o espanhol estava tratando bem a Ritinha. E despediu-se. Primeiro pensou em ir à casa de seu Marra. Depois, dirigiu-se para a beira do igarapé: era tempo de melancia. Depois de apreciar a paisagem, Laio deu de cara com seu Oscar. Trocaram idéias, e Oscar prometeu que ia falar com o velho (Major Anacleto) e tentar arranjar um trabalho para Laio na política.
VI
MAJOR ANACLETO – "Além de chefe político do distrito, Major Anacleto era homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar". Quando Oscar lhe falou de Laio, ele foi categórico: "aquilo é um grandessíssimo cachorro, desbriado, sem moral e sem temor a Deus... Vendeu a família, o desgraçado".
TIO LAUDÔNIO – Tio Laudônio era irmão do Major Anacleto. Esteve no seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha ao povoado. Chorou na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva e escuta o capim crescer. Pois foi Tio Laudônio que intercedeu a favor de Laio. O Major concordou. Era mandar chamar o mulato no dia seguinte.
VII
CABO ELEITORAL – Mas Laio não apareceu no dia seguinte. Só apareceu na fazenda na quarta-feira de tarde. E topou logo com o Major Anacleto. Quando o Major tentou expulsá-lo da fazenda, Laio deu-lhe notícias de todas as manobras políticas da região, quem estava com o Major e quem o estava traindo. Já descobrira a estratégia do Benigno para derrotar o Major na próxima eleição. Em troca de tanta informação, pediu a proteção do Estêvão, o capanga mais temido do Major. Assim, o povo do arraial ficou sabendo que Laio era o cabo eleitoral do Major Anacleto e, como tal, merecia respeito.
VIII
VISITA AO PADRE – Major Anacleto, depois do relatório de Laio, mandou selar a mula e bateu para a casa do vigário. O padre teve de aceitar leitoa, visita, dinheiro, confissão e o cargo de inspetor escolar. Antes de o Major sair, o padre contou-lhe que Laio estivera na igreja. Também se confessara e comungara e ainda trocara duas velas para o altar de Nossa Senhora da Glória.
DENÚNCIA DE RAMIRO – Quando o Major e Tio Laudônio passaram em frente à casa de Ramiro, o espanhol aproveitou para denunciar Lalino: o mulato estava de amizade com Nico, o filho do Benigno. Foram juntos à Boa Vista, com violões, aguardente, e levando também o Estêvão. O Major ficou danado de zangado. Não via a hora de encontrar o Laio.
EXPLICAÇÕES – Depois de peregrinar por todas as bandas, o Major voltou para a fazenda, onde Laio já o esperava. Primeiro o Major xingou o mulato de muitos nomes feios, depois Laio teve tempo de explicar: era tudo estratégia política para saber das coisas. Passara, sim, em frente à casa de Ramiro, mas não o insultara. Dera vivas ao Brasil porque não gostava de espanhóis. E tinha mais (coisa que o Major não sabia): espanhol não vota porque é estrangeiro.
IX
A TRAIÇÃO DE OSCAR – Houve um período de calmaria política em que Laio ficou tocando viola e fazendo versos no meio da jagunçada do Major. Um dia, pediu um favor a seu Oscar, filho do Major: que ele fosse ter com Ritinha e conversasse com ela, mas sem dizer que era da parte do Laio. Oscar foi e fez o contrário: falou mal do mulato, disse a Ritinha que o marido andava fazendo serenata para outras mulheres. Aproveitou a proximidade e pediu-lhe um beijo. Ritinha expulsou-o, não sem antes confessar que gostava mesmo era do Laio, que ia morrer gostando dele. De volta, seu Oscar contou o contrário: que Ritinha não gostava mais do marido, gostava de verdade era do espanhol.
RITINHA NA FAZENDA DO MAJOR – Certa tarde, depois de dormir um pouco na cadeira de lona, o Major foi acordado com uma barulheira dos diabos. O mulherio no meio da casa, os capangas lá fora, empunhando os cacetes, farejando barulho grosso. Ritinha jogou-se aos pés do Major e suplicou-lhe proteção. Que não deixasse os espanhóis levá-la à força dali. O Ramiro, com ciúmes, queria matá-la, matar o Laio e, depois, suicidar-se. Disse tudo isso chorando e falando na Virgem Santíssima.
RAIVA E ALEGRIA – O Major mandou chamar o Eulálio e foi informado de que o mulato estava bebendo juntamente com uns homens que chegaram de automóvel. Foi a conta: o Major pensou que eram da oposição e começou a xingar o Laio. Cabra safado, traidor. Ia levar uma surra, pelo menos isso. Tio Laudônio procurava acalmá-lo. De repente, lá vem o Laio dentro de um automóvel. E a surpresa foi geral. Era gente do governo, Sua Excelência o Senhor Secretário do Interior. Aí o Major desmanchou-se em sorrisos e gentilezas. E a autoridade satisfeita, elogiando muito o Laio, pedindo ao Major que, indo à capital, levasse o mulato junto.
DESFECHO – O Major, contentíssimo, mandou trazer Maria Rita para as pazes com Laio. Convocou a jagunçada e ordenou: "mandem os espanhóis tomarem rumo"! Se miar, mete a lenha! Se resistir, berrem fogo!

3- Sarapalha
DADOS TÉCNICOS
NARRATIVA – Conto narrado na terceira pessoa. O narrador é, pois, onisciente, não participa da história.
PERSONAGENS
Primo Ribeiro: Na região, vem conseguindo sobreviver à malária. Tem febre e frio todos os dias, o baço sempre inchado, mas vai vivendo. No início da doença, foi abandonado pela esposa, Luísa; ela fugiu com outro homem, um boiadeiro.
Primo Argemiro: Como Tio Ribeiro, vai sobrevivendo à malária. Os dois moram isolados, numa região em que a febre já expulsou toda a gente. Apesar de ter terras em outra região, prefere ficar ao lado de Primo Ribeiro, tal a amizade que os une.
Prima Luísa: Mulher de Ribeiro. Morena, olhos pretos, cabelos pretos... muito bonita. De riso alegrinho, mas de olhar duro. Fugiu com um boiadeiro.
CENÁRIO – Fazenda do Primo Ribeiro, meio abandonada porque a febre o impossibilitava de trabalhar.
RESUMO
ARRAIAL ABANDONADO – Na beira do rio Pará, a malária expulsou a gente de um povoado inteiro. Deixaram para trás "casas, sobradinho, capela, três vendinhas, o chalé e o cemitério". Morador, agora, só andando três quilômetros para cima. Moram ali, na fazenda abandonada, três pessoas: Primo Ribeiro, Primo Argemiro e uma preta velha que cozinha o feijão de todos os dias. Os homens não podem mais trabalhar, a malária não deixa.
PASSADO TRISTE – Na Certo dia, ainda pela manhã, Primo Ribeiro começou a falar de morte. Achava que o seu dia havia chegado. Por isso, puxou a conversa que se referia a uma mulher. Se ela aparecesse, até a febre sumia. Ribeiro confessa que tem Argemiro na conta de irmão. Por isso, tem coragem de remexer o passado. Estava casado com ele há apenas três anos, e a ingrata fugiu com outro. Argemiro quis ir atrás dos dois. Queria matar o homem e trazer a mulher de Ribeiro de Volta.
LEMBRANÇAS AMARGAS – Agora, Ribeiro não tem vergonha de confessar: não foi atrás dos dois porque, se fosse, a obrigação era matá-los. Mas faltava-lhe, já naquela época, a coragem. Talvez por causa da malária. Argemiro também soltou a imaginação. Chegou a sentir ciúmes dela com o marido. E veio o boiadeiro, ficou três dias na fazenda, com desculpa de esperar outra ponta de gado... "Não era a primeira vez que ele se arranchava ali. Mas nunca ninguém tinha visto os dois conversando sozinhos... Ele, Primo Argemiro, não tinha feito nenhuma má idéia..."
O SEGREDO – Ela fugiu com o boiadeiro, e Primo Argemiro nunca lhe havia confessado o seu amor. Arrependia-se disso. Se tivesse tido coragem. Talvez ela aceitasse, quem sabe até teria fugido com ele, pois o boiadeiro ainda não havia aparecido. No mínimo, ela agora estava pensando que ele era um pamonha.
A CONFISSÃO – Primo Ribeiro não se cansa de dizer que considera Argemiro um irmão; nem um filho seria tão bom assim. O outro se sente mal. Resolve confessar o seu grande segredo. Quando Ribeiro ouviu, apesar da febre e da fraqueza, ficou muito zangado e insistiu que o Primo fosse embora. Argemiro explicou que nunca disse nada a Luísa, nunca a desrespeitou, que ela foi embora sem saber de nada. Ribeiro negava-se a entender. Só conseguia repetir que o Primo fosse embora. Sentia-se picado de cobra.
A SEPARAÇÃO – Primo Argemiro, não obtendo o perdão de Ribeiro, reúne as forças para ir embora. Caminha com dificuldade, passa pela rocinha de milho, assustando os pássaros pretos que o confundem com um espantalho. O cão Jiló não sabe mais a quem obedecer. Quer seguir com Argemiro, mas também quer ficar com Ribeiro. Na dúvida, ficou. Argemiro segue adiante, com os primeiros sintomas da tremedeira. E a lembrança vai buscar Luisinha, antes de se casar com Ribeiro. Ela estava toda de azul. A paisagem ali também se enfeitava de flores azuis. Bom lugar para se deitar e morrer.

4-Duelo
DADOS TÉCNICOS
NARRATIVA – Conto narrado na terceira pessoa. O narrador é, pois, onisciente, não participa da história.
PERSONAGENS
Turíbio Todo: Seleiro de profissão, tinha pêlos compridos nas narinas, chorava sem fazer caretas. Papudo, vagabundo, vingativo e mau.
Dona Silivana: Esposa de Turíbio Todo; tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta.
Cassiano Gomes: Ex-militar, fama de exímio atirador, andava sempre com um rifle ao alcance da mão. Solteiro, tinha um caso Dona Silivana, esposa de Turíbio Todo.
Vinte-e-Um: Caipira pequenino, morador do povoado Mosquito. Cassiano, antes de morrer, salvou-lhe o filho e deu-lhe dinheiro. Vinte-e-Um matou Turíbio Todo.
CENÁRIO – Arraial de Vista-Alegre, interior de Minas Gerais.
RESUMO
ADULTÉRIO – Turíbio Todo foi pescar e avisou à mulher que só voltaria no outro dia. À beira do córrego, faltou-lhe o fumo de rolo para espantar os mosquitos; bateu com os dedos nos tocos e ficou com o pé direito ferido. Por isso, voltou para casa à noite. Ouvindo vozes no quarto, olhou por uma fisga da porta e viu que a mulher estava na cama com outro. Sem arma e conhecendo bem o outro (Cassiano Gomes que pertencera à polícia e era exímio atirador), Turíbio não fez nada. Afastou-se tão macio como se havia aproximado.
A VOLTA – No outro dia, ao voltar para casa, "foi gentilíssimo com a mulher, mandou pôr ferraduras novas no cavalo, limpou as armas, proveu de coisas a capanga, falou vagamente numa caçada de pacas, riu muito, se mexeu muito, e foi dormir bem mais cedo do que de costume." Isso tudo foi na quarta-feira.
A TOCAIA – No outro dia, quinta, Turíbio terminou os preparativos e foi tocaiar a casa de Cassiano Gomes. "Viu-o à janela, dando as costas para a rua. Turíbio não era mau atirador: baleou o outro bem na nuca. E correu para casa, onde o cavalo o esperava na estaca, arreado, almoçado e descansadão".
O ENGANO – Turíbio Todo, iludido pela semelhança e alvejando o adversário por trás, matara não o Cassiano, mas o Levindo Gomes, irmão daquele. O morto não era ex-militar e detestava mexer com a mulher dos outros.
PREPARATIVOS – Cassiano Gomes fez o enterro do irmão, recebeu as condolências, trancou bem as portas e as janelas da casa (era solteiro), conferiu as armas, comprou a besta douradilha com arreios e tudo, mandou lavá-la e ferrá-la. Só então, partiu para vingar a morte do irmão.
PERSEGUIÇÃO – Cassiano não encontrou Turíbio na primeira tentativa. O papudo conseguiu enganá-lo, voltando por caminho diverso do imaginado. Cassiano queria pegar Turíbio desprevenido. Por isso, passou a andar à noite e dormir de dia. Os planos de Cassiano iam fracassando. Turíbio conhecia a região como a palma da mão. Assim, ia conseguindo escapar com boa margem de estrada e tempo.
DESENCONTROS – Foram tantos os desencontros que Cassiano trocou pela segunda vez de montada, comprando um cavalo alazão. Também Turíbio Todo já trocara de animal umas quatro vezes.
AUDÁCIA DE TURÍBIO – Turíbio Todo teve a audácia de voltar ao arraial e passar uma noite de amor com a esposa, Dona Silivana. Até contou a ela, na hora da despedida, sob segredo, o seu estratagema último. Estava apostando que o coração de Cassiano não ia agüentar a perseguição. Dona Silivana contou isso a Cassiano na primeira oportunidade. Depois, muita gente sabia da intenção de Turíbio.
CINCO MESES – A correria monótona, sem desfecho, já durava mais de cinco meses, e os dois rivais não se encontravam. Certa vez, Cassiano chegou primeiro à margem do rio Paraopeba, onde só se atravessava de balsa. O dono da balsa não estava, mas um moleque, seu filho, garantiu que o papudo ainda não chegara por ali. Cassiano ficou de tocaia à espera do inimigo. À noite, houve troca de tiros. No outro dia, Chico Barqueiro quase agrediu Cassiano, pensando que ele fosse um inimigo. Explicados os mal-entendidos, ao meio-dia, Cassiano despediu-se: estava disposto a dar uma trégua, descansar, esperar que Turíbio relaxasse. Depois que partiu, Turíbio chegou, pronto para atravessar o rio. Em cima da balsa, Chico Barqueiro ainda o ofendeu.
SÃO PAULO – Depois de atravessar o Paraopeba, Turíbio andou muito, sempre para o sul, até topar o rio Pará. Ali, encontrou uns baianos que iam para São Paulo, atraídos pela cultura do café. Falaram em dinheiro fácil. Apesar da saudade da mulher, Turíbio foi também. Depois mandava buscá-la.
MORTE PRÓXIMA – Turíbio cansava-se à toa. Na parte da tarde, inchava as pernas e os pés. Foi ao boticário que lhe deu vida até o próximo São João. Se piorasse, morreria pelo Natal. Diante de tal realidade, tomou uma decisão: vender tudo que possuía e ir atrás de Turíbio; precisava matá-lo antes de morrer.
MORTE NO MOSQUITO – No caminho, Turíbio piorou e teve que fazer alta no Mosquito – povoado perdido num cafundó de entremorro, longe de toda a parte – com três dúzias de casebres. Esteve mal, com respiração difícil. Quando melhorou um pouquinho, "indagou se por ali não havia um homem valente, capaz de encarregar-se de um caso assim, assim..." Pagava até um conto de réis. Não havia. Nem no povoado, nem na redondeza. Cassiano via o tempo passar, dia após dia, sentado à porta de um casebre. A paisagem era triste.
VINTE-E-UM – Um dia, Cassiano assistiu a um irmão grandalhão batendo noutro menor. Chamou o menor, de apelido Timpim, e indagou-lhe o nome e por que ele não reagia às pancadas do irmão. O nome verdadeiro era Antônio, e o apelido oficial era Vinte-e-Um. É que a mãe dele tivera vinte e um filhos, e ele foi o último. Não reagia às pancadas do irmão porque a mãe lhe dissera que ele não levantasse a mão para irmão mais velho. E todos eram mais velhos. Vinte e um era casado, e a mulher dele acabara de ter criança. Cassiano deu-lhe dinheiro para comprar galinhas e alimentara a esposa. No outro dia, Vinte-e-Um fez uma surpresa ao doente: trouxe-lhe o filho para lhe tomar bênção. Cassiano ficou emocionado e piorou. Um dia, quando Cassiano estava pior ainda, Vinte-e-Um apareceu chorando: o filhinho estava muito doente, ele sem recursos para socorrê-lo. Cassiano deu-lhe o dinheiro para trazer o médico até a criança e comprar os remédios necessários. "Veio o médico; veio o padre: Cassiano confessou-se, comungou, recebeu os santos óleos, rezou, rezou". Sentindo que a morte já estava na porta, deu todo o dinheiro que possuía para o compadre Vinte-e-Um (agora tratavam-se como compadres). Logo depois, morreu e foi para o céu.
A VOLTA DE TURÍBIO – Por meio de uma carta da mulher, que o invocava para o lar, Turíbio Todo ficou sabendo da morte de Cassiano. "Ele já tinha ganhado uns bons cobres". Comprou mala e presentes, pôs um lenço verde no pescoço para disfarçar o papo, calçou botas vermelhas de lustre e veio de trem. Para perfazer o resto do caminho, alugou arranjou um cavalo emprestado. No caminho, foi alcançado por um cavaleiro miúdo, montando um cavalo magro. Via-se que os dois estavam em petição de miséria. Depois de continuarem pela estrada, a miniatura de homem perguntou se ele era mesmo o Turíbio Todo, seleiro de Vista-Alegre, que estava vindo das estranjas. Turíbio confirmou. A viagem prosseguiu. Turíbio falava da felicidade próxima: ver a mulher, levá-la para casa, talvez levá-la para São Paulo. O caipirinha mostrava-se pessimista: não valia a pena a gente alegrar-se.
A MORTE – De repente, no meio da estrada fechada, Turíbio levou um susto: o capiauzinho falou com voz firme e diferente, segurando uma garrucha velha de dois canos: "Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!" Turíbio fez voz grossa, mas o caipira explicou: não ia adiantar nada porque ele prometeu ao Compadre Cassiano, na horinha mesmo de ele morrer. Turíbio tentou ganhar tempo, fez que ia rezar e puxou o revólver. Mas a garrucha não falhou: foram dois tiros, um do lado esquerdo da cara, outro no meio da testa. Turíbio caiu morto, e Vinte-e-Um esporeou a montaria, tomando o caminho de volta.

5-Minha gente
DADOS TÉCNICOS
NARRATIVA – Conto narrado na primeira pessoa. O narrador participa da história; tem, pois, visão limitada dos fatos que narra.
PERSONAGENS
Narrador: Homem da cidade em passeio pelas fazendas dos tios, no interior de Minas Gerais. Gostava da prima Maria irma, mas casou-se com Armanda, filha de uma fazendeira.
Santana: Companheiro nas andanças do narrador, tem mania de jogar xadrez, mesmo quando estão andando a cavalo.
Tio Emílio:Tio do narrador; sofreu mudança radical depois que se meteu na política.
Maria Irma: Uma das filhas de Tio Emílio; no passado, o narrador e ela foram namorados de brincadeira. Tem cintura fina, olhos grandes, pretíssimos. Passou alguns anos no internato.
Armanda: Filha de fazendeiros; estudou no Rio de Janeiro. Terminou casada com o narrador
Bento Porfírio: Vaqueiro; gostava de pescar. Envolveu-se com uma prima casada (de-Loudes) e terminou assassinado a foice pelo marido enciumado (Alexandre).
CENÁRIO – Fazenda Saco-do-Sumidouro (interior de Minas Gerais), do Tio Emílio, pai de Maria Irma.
RESUMO
CAMINHADA PELO SERTÃO – Caminham juntos, pelo sertão de Minas, a cavalo, o narrador, Santana e José Malvino. O narrador é um observador apaixonado das coisas do sertão: a paisagem, o céu, os pássaros, as árvores... Tudo para ele merece elogios e observações. A viagem chega ao fim: estão agora numa fazenda.
TIO EMÍLIO – Dois dias na fazenda, e o narrador achava tudo mudado. Mas mudança de verdade notara no Tio Emílio: rejuvenescido, transfigurado. Logo, o narrador descobriu o porquê da mudança: Tio Emílio estava metido na política. Sempre atendendo aos pedidos do povo, a qualquer hora, mesmo à noite.
CONVERSA COM A PRIMA – A prima Maria Irma, em conversa com o narrador, fez questão de informar que estava quase noiva. O narrador quis saber de quem, mas ela fez mistério.
HISTÓRIA DE BENTO PORFÍRIO – Bento Porfírio, enquanto pesca com o narrador, vai-lhe contando uma história. Agripino, bom parente, convidou Bento para ir ao arraial. Queria apresentá-lo à sua filha de-Lourdes: quem sabe os dois podiam casar. Mas Bento não foi. Preferiu uma pescaria misturada com farra, com mulher-da-vida e sanfona pelo meio. Tempos depois, "quando Bento Porfírio veio a conhecer a prima de-Lourdes, ela já estava casada com o Alexandre". Os primos foram-se vendo e gostando um do outro. Por pirraça e por falta do que fazer, Bento casou-se com Bilica.
NOITE DE ROÇA – O narrador ficou na varanda até anoitecer. A prima Irma mudou de modos e, na hora do jantar, sorriu diferente para o narrador. Ele ficou desconfiado. "Mulher bonita, mesmo sendo prima, é uma ameaça\". E o narrador lembra bem o conselho de Tertuliano Tropeiro: "Seu doutor, a gente não deve de ficar adiante de boi, nem atrás de burro, nem perto de mulher! Nunca que dá certo..." Noite sem estrelas, noite de roça. O narrador foi dormir.
CRIME NO POÇO – O narrador foi novamente pescar no poço com Bento Porfírio. Depois de algum tempo, a história do adultério continuou. O marido da prima, o Alexandre, não sabe que está sendo enganado. De repente, o marido traído surgiu de trás de uma moita, foice na mão, e matou Bento com um só golpe. O corpo caiu no poço, e o narrador, apavorado, não sabia o que fazer. O assassino foi embora, o narrador correu para casa e contou ao Tio Emílio o ocorrido. As ordens foram dadas: tirar o morto do poço, avisar o subdelegado e ir atrás do assassino. Não para matá-lo, mas para protegê-lo das autoridades.
CIÚMES – Os dias vão passando, e o narrador começa a gostar da prima Maria Irma. Por que não namorá-la? Um rapaz da cidade veio visitá-la e trazer-lhe livros. Ela se enfeitou toda para o receber. Por que não estava toda enfeitada na chegada do primo? À noite, o narrador fica sabendo que o rapaz se chama Ramiro e que é namorado da Armanda, uma amiga de Maria Irma, filha da fazendeira do Cedro.
DECLARAÇÃO DE AMOR – O narrador não se conteve e fez uma declaração de amor à prima. Ela ouviu e, depois, disse que não acreditava. Ele tentou convencê-la usando argumentos infantis. Em vão.
DESISTÊNCIA – Depois de uma conversa séria com a prima e de obter dele somente negativas, o narrador ameaçou ir embora. Ela insistiu que ele ficasse: queria apresentar-lhe Armanda, a namorada de Ramiro. Ele, teimoso, partiu no outro dia. Iria para Três Barras, onde mora o seu tio Luduvico.
SOFRIMENTO – Em Três Barras, o narrador não conseguia esquecer Maria Irma. Depois das eleições, com vitória do partido de Tio Emílio, o narrador recebeu carta: ele, o tio, queria-o de volta. O narrador ficou muito alegre e nem esperou o outro dia para voltar.
ARMANDA – De volta, o narrador foi apresentado a Armanda. Foram passear a pé pelos pastos. Dali, do primeiro passeio, já nasceu o namoro. Em pouco tempo, o noivado e, no mês de maio, o casamento, ainda antes do matrimônio da prima Maria Irma com Ramiro Gouveia.

6-São Marcos
DADOS TÉCNICOS
NARRATIVA – Conto narrado na primeira pessoa. O narrador participa da história e tem visão limitada dos fatos que narra.
PERSONAGENS
Narrador: José, um admirador da natureza. Gostava de observar árvores, pássaros, rios, lagos e gente.
João Mangolô: Mangolô era um preto velho. Morava no Calango-Frito e tinha fama de feiticeiro.
Aurísio Manquitola: Sujeito experiente, contador de histórias; conhecia bem todas as pessoas de Calango-Frito.
Tião Tranjão: Sujeito meio leso, vendedor de peixe-de-rio no arraial. Ficou indomável depois de aprender a oração de São Marcos.
CENÁRIO – Calango-Frito, arraial do interior de Minas Gerais.
RESUMO
BRINCANDO COM MANGOLÔ – Mangolô era um preto velho. Morava no Calango-Frito e tinha fama de feiticeiro. O narrador, saindo do povoado (ia caçar), passou pela casa de Mangolô e tirou brincadeira. Gritou para o preto velho: "primeiro: todo negro é cachaceiro; segundo: todo negro é vagabundo; terceiro: todo negro é feiticeiro". Eram os mandamentos do negro. Mangolô não gostou da brincadeira. Fechou-se na casa e bateu a porta.
AURÍSIO MANQUITOLA – Mais à frente, na mesma caminhada, o narrador alcança Aurísio Manquitola. O narrador, por brincadeira, começou a recitar a oração proibida de São Marcos. Aurísio enche-se de medo. É um perigo dizer as palavras dessa oração, mesmo que por brincadeira.
TIÃO TRANJÃO – Aurísio conta ao narrador a história de Tião Tranjão, sujeito meio leso, vendedor de peixe-de-rio no arraial. Tião amigou-se com uma mulherzinha feia e sem graça. Pois o Cypriano, carapina já velho, começou a fazer o Tião de corno. Mais ainda: os dois, Cypriano e a mulher feia, inventaram que foi Tião quem tinha ofendido o Filipe Turco, que tinha levado umas porretadas no escuro sem saber da mão de quem... O Gestal da Gaita, querendo ajudar o Tião, quis ensinar a ele a reza de São Marcos. Tião trocava as palavras, tinha dificuldade para memorizar. Gestal teve que lhe encostar o chicote para fixar a reza. Aí sim, debaixo de peia, Tião Tranjão aprendeu direitinho a reza proibida, tintim por tintim.
Depois da reza decorada, vieram uns soldados prender Tião. Ele desafiou: com ordem de quem? Os soldados explicaram: com ordem do subdelegado. Então, que fossem na frente. Ele iria depois. Com muito jeito, conseguiram levar Tião para a cadeia e lá, bateram nele. Depois da meia-noite, Tião rezou a oração de São Marcos e, misteriosamente, conseguiu fugir da cadeia, voltar para casa – quatro léguas. Não encontrando a mulher, foi direto para a casa do carapina. Aí, com ar de guerreiro, bateu na mulher, no carapina, quebrou tudo que havia por lá, acabou desmanchando a casa quase toda. Foram necessárias mais de dez pessoas para segurá-lo.
CEGO NA LAGOA – O narrador vai descendo por trilhas conhecidas, reconhecendo árvores, identificando pássaros, até chegar finalmente à lagoa. Senta-se e põe-se a observar o movimento dos bichos em perfeita harmonia com a natureza. De repente, sem dor e sem explicação, ficou cego. O desespero não veio de imediato. Aos poucos, foi concluindo que estava distante, afastado de qualquer ser humano, impossibilitado de voltar para casa. Resolveu gritar. Gritou repetidas vezes e só teve o eco por resposta. Tentou, então, voltar tateando as árvores. Logo percebeu que estava perdido, numa escuridão desesperadora. Já ferido por espinhos invisíveis, machucado de quedas, chegou a chorar alto.
REZA BRAVA – Sem pensar, o narrador começou a bramir a reza-brava de São Marcos. E sem entender o porquê, dizendo blasfêmias que a reza continha, começou a correr dentro da mata, tangido por visões terríveis. De repente, estava na casa de João Mangolô, tangido por uma fúria incontrolável. E a voz do feiticeiro pedindo pelo amor de Deus que não o matasse. Os dois rolaram juntos para os fundos da casa. E de repente, luz, muita luz. A visão voltava esplêndida. E o negro velho tentando esconder alguma coisa atrás do jirau. Depois de levar alguns sopapos, Mangolô mostrou um boneco. Mais alguns socos e o feiticeiro explicou: não queria matar. Amarrara apenas uma tirinha de pano preto nas vistas do boneco para o narrador passar uns tempos sem enxergar. Tudo terminou em paz. Para garantir tranqüilidade, o narrador deu um dinheiro a João Mangolô. Era a garantia de que, agora, eram amigos.

7-Corpo fechado
DADOS TÉCNICOS
NARRATIVA – Conto narrado na primeira pessoa. O narrador participa da história e tem visão limitada dos fatos que narra.
PERSONAGENS
Narrador: Médico morando num arraial do interior de Minas. Fez amizade com Manuel Fulô. Gostava de ouvir-lhe as conversas.
Manuel Fulô: Sujeito pingadinho, quase menino, cara de bobo de fazenda, cabelo preto, corrido. Não trabalhava. Gostava de moça, cachaça e conversa fiada.
Beija-Flor: Besta ruana, de cruz preta no dorso, lisa, lustrosa, sábia e mansa – mas só para o dono, Manuel Fulô.
Das Dor: Noiva de Manuel Fulô; moça pobre, mas muito bonita.
Targino: O valentão mais temido do lugar. Era magro, feio, de cara esverdeada. Dificilmente ria.
Antônio das Pedras-Águas: Era pedreiro, curandeiro e feiticeiro.
CENÁRIO – Laginha, arraial monótono do interior de Minas Gerais.
RESUMO
AMIZADE – A amizade do narrador com Manuel Fulô nasceu do nada. Solidificou-se quando o narrador descobriu que Manuel comia cogumelo com carne. Manuel Fulô gostava de moças, de cachaça e de conversa fiada.
BEIJA-FLOR – Beija-Flor era o orgulho de Manuel Fulô. Mais que isso: era uma espécie de complemento. Besta ruana, de cruz preta no dorso, lisa, lustrosa, sábia e mansa – mas só para o dono. Quando Manuel Fulô ficava bêbado – e isso acontecia todos os domingos – atracava-se ao pescoço de Beija-Flor, e a mula levava-o com todo o cuidado. Sabia abrir porteiras.
VIVENDO COM CIGANOS – Manuel Fulô conta ao narrador que viveu uns tempos com uns ciganos só para aprender alguns truques. Os ciganos gostavam dele porque pensavam que ele era bobo de verdade. Com os ciganos, Manuel Fulô aprendeu tudo sobre cavalos. Sabia transformar animal ruim em bicho de valor em pouco tempo. Quando deixou os ciganos, passou a ganhar dinheiro negociando com animais.
FREGUESIA PERDIDA – Manuel Fulô contou ao narrador como conseguiu, certa vez, enganar os ciganos. Arranjou dois cavalos imprestáveis, preparou-os, fez-lhe maquiagens para disfarçar defeitos e trocou-os por dois cavalos bem melhores. Com isso, perdeu a freguesia. Ninguém quis mais negociar com Manuel Fulô porque ele era capaz de enganar até ciganos.
AMEAÇA DE TARGINO – Uma noite, o narrador e Manuel Fulô estavam bebendo cerveja na venda. De repente, entrou Targino e caminhou na direção dos dois amigos. Pediu licença ao doutor: queria falar um particular a Manuel Fulô. Pura formalidade, pois Targino falou bem alto, na porta da venda, a três passos do narrador:
"– Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor, e venho visitar sua noiva, amanhã... Já mandei recado, avisando a ela... É um dia só, depois vocês podem se casar... Se você ficar quieto, não te faço nada... Se não... – E Targino, com o indicador da mão direita, deu um tiro mímico no meu pobre amigo, rindo, rindo, com a gelidez de um carrasco".
BUSCANDO AJUDA – Depois da ameaça, o doutor-narrador levou Manuel para a casa dele (do doutor). Que fazer? O próprio Manuel não via saída. Targino era valentão, ninguém podia com ele. No outro dia, enquanto Manuel ainda se recupera do porre, o doutor saiu à procura de ajuda. Primeiro, foi à casa do Coronel Melguério. O homem deu de ombros: se alguém tivesse coragem de enfrentar o Targino... Depois, foi a vez do vigário: prometeu rezar. De volta, o doutor encontrou a casa cheia: eram os parentes de Manuel Fulô. Pediam ao doutor que não fizesse nada. O correto era entregar para Deus. Maria das Dores estava sozinha com a mãe, chamando pelo noivo.
ANTÔNIO FEITICEIRO – Chamava-se Antonico das Pedras ou Antonico das Águas. Era pedreiro, curandeiro e feiticeiro. No meio da aflição, foi ter à casa do doutor. Ali, com ar de pressa, trancou-se no quarto com Manuel Fulô. Um tempo depois, a porta abriu-se, e Manuel anunciou com cara de defunto: entreguem a mula Beija-Flor para seu Antônio. O feiticeiro pediu um prato fundo, brasas, linha e cachaça. Os apetrechos apareceram, e os dois se trancaram no quarto.
Enquanto isso, Targino saiu à rua deserta e caminhava em direção à casa onde estava a Maria das Dores, a noiva ameaçada.
CORPO FECHADO – Manuel Fulô, depois de algum tempo trancado no quarto com Antônio feiticeiro, saiu teso, cara de mau, olhar fixo. E assim, caminhou para a rua: ia ao encontro de Targino. Todos ficaram assustados. Antônio Feiticeiro explicou: Manuel Fulô estava com o corpo fechado. Arma de fogo não tinha poder sobre ele. A mãe de Manuel pediu que segurassem o filho dela, pois seu Toniquinho pusera-o doido. \"Mas ninguém transpôs a porta\". E lá estavam os dois, Targino e Manuel Fulô, frente a frente. Manuel falou primeiro, xingando a mãe do valentão. Mexeu na cintura e tirou dela uma faquinha quase canivete. Cresceu para cima de Targino. Foram cinco tiros, as balas zuniram. Manuel Fulô pulou sobre Targino e aplicou-lhe várias facadas pela altura do peito. O valentão capotou e morreu num átimo. Manuel Fulô ainda lhe deu mais facadas, sujando-se todo de sangue.
FESTA – Manuel Fulô fez um mês inteiro de festa e até adiou o casamento, pois o padre teimou que não matrimoniava gente bêbeda. O narrador foi o padrinho.

8 - Conversa de bois
DADOS TÉCNICOS
NARRATIVA – Conto narrado na primeira pessoa. O narrador participa da história e tem visão limitada dos fatos que narra.
PERSONAGENS
Tiãozinho: Menino-guia. Odiava o Agenor carreiro, pois o malvado vivia fazendo carinho na mãe de Tiãozinho, mesmo quando o pai do menino ainda estava vivo, entrevado em cima de um jirau.
Agenor Soronho: Carreiro. Mandava em Tiãozinho como se fosse pai dele.
Januário: Pai de Tiãozinho.
CENÁRIO – Estrada no interior de Minas Gerais.
RESUMO
CARRO, BOIS, CARREIRO E GUIA – O autor produz uma história valorizando quatro elementos importantes da paisagem do interior de Minas. O carro, puxado por bois, vai cortando o sertão, levando rapadura e um defunto – o pai de Tiãozinho (cego e entrevado, já de anos, no jirau) para o arraial. Os bois, enquanto arrastam o carro, vão conversando, emitindo opinião sobre muitas coisas, principalmente sobre os homens.
NOMES DOS BOIS – Buscapé e Namorado: são os bois da guia, os dois que vão bem à frente do carro. Capitão e Brabagato: bois que vão mais atrás,
TIÃOZINHO – O pai de Tiãozinho, Januário, vivia, há muitos anos, entrevado e cego em cima de um jirau. A mãe de Tião não tinha mais paciência de cuidar do enfermo. Guardava seus carinhos para Soronho carreiro. De noite, enquanto todos dormiam, Tiãozinho ouvia os soluços do pai, um choro doído, sem consolo.
REVOLTA – Tiãozinho odeia Agenor Soronho. Mesmo quando o pai estava vivo, o carreiro tinha autorização para xingar, bater de cabresto, de vara de marmelo, de pau... Que seria dele agora, com o pai morto? Tiãozinho tentava fazer tudo direito: capinava, tirava leite, buscava os bois no pasto, guiava-os no carro de boi. "Quando crescer, quando ficar homem, vai ensinar ao seu Agenor Soronho... Ah, isso vai!... Há de tirar desforra boa, que Deus é grande!..."
MORTE – O caminhar cadenciado e monótono levou Agenor Soronho ao sono. O perigo era iminente. Se caísse, as rodas do carro de boi passariam por cima dele. Na frente dos bois, Tiãozinho andava meio acordado, meio dormindo. Nesse quase estupor, o pensamento coincidia com a fala dos bois. Era como se o menino fosse boi também. Os bois entendiam o pensamento dele: falava em vingança, em morte do carreiro. De repente, meio inconsciente, Tiãozinho deu um grito, os bois saltaram, todos a um tempo, para frente, e Agenor Soronho caiu. Uma das rodas do carro passou por cima do pescoço dele, quase o degolando. Estava morto. Agora, com dois defuntos, a caminhada ficou mais alegre.
9 - A hora e a vez de Augusto Matraga - veja link na página modernismo 45.





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Tutaméia - João Guimarães Rosa - resumo
Aqui está, o último livro do escritor, Tutaméia, publicado poucos meses antes da sua morte, a exigir leitura e reflexão. Por mais que o procure encarar como mero texto literário, desligado de contingências pessoais, apresenta-se com agressiva vitalidade, evocando inflexões de voz, jeitos e maneiras de ser do homem e amigo. A leitura de qualquer página sua é um conjuro.
No Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa encontramos tuta-e-meia definida por "ninharia, quase nada, preço vil, pouco dinheiro". Numa glosa da coletânea o próprio contista confirma a identidade dos dois termos, juntando-lhes outros equivalentes pitorescos, tais como "nonada, baga, ninha, inânias, ossos de borboleta, quiquiriqui, mexinflório, chorumela, nica". Ele atribuiria realmente tão pouco valor ao volume fórmula como antífrase carinhosa e, talvez, até supersticiosa? A autor dava a maior importância a este livro, surgido em seu espírito como um todo perfeito não obstante o que os contos necessariamente tivessem de fragmentário. Entre estes havia inter-relações as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto.
Mas também em nenhum outro livro seu cerceia o humor a esse ponto as efusões, ficando a ironia em permanente alerta para policiar a emoção.
Prefácio por definição é o que antecede uma obra literária. Mas no caso do leitor que não se contenta com uma leitura só, mesmo um prefácio colocado no fim poderá ter serventia. Estórias, à primeira vista, num segundo relance os prefácios hão de revelar uma mensagem. Juntos compõem ao mesmo tempo uma profissão de fé e uma arte poética em que o escritor, através de rodeios, voltas e perífrases, por meio de alegorias e parábolas, analisa o seu gênero, o seu instrumento de expressão, a natureza da sua inspiração, a finalidade da sua arte, de toda arte.
Assim Aletria e hermenêutica é pequena antologia de anedotas que versam o absurdo; mas é, outrossim, uma definição de "estória" no sentido especificamente guimaraes-rosiano, constante de mostruário e teoria que se completam. Começando por propor uma classificação dos subgêneros do conto, limita-se o autor a apontar germes de conto nas "anedotas de abstração", isto é, nas quais a expressão verbal acena a realidades inconcebíveis pelo intelecto. Suas estórias, portanto, são "anedóticas" na medida em que certas anedotas refletem, sem querer, "a coerência do mistério geral que nos envolve e cria" e faz entrever "o supra-senso das coisas".
Hipotrélico [ver o conto transcrito integralmente abaixo] aparece como outra antologia, desta vez de divertidas e expressivas inovações vocabulares, não lhe faltando sequer a infalível anedota do português. E é a discussão, às avessas, do direito que tem o escritor de criar palavras, pois o autor finge combater "o vezo de palavrizar", retomando por sua conta os argumentos de que já se viu acossado como deturpador do vernáculo e levando-os ao absurdo: põe maliciosamente a vista as inconseqüências dos que professam a partenogênese da língua e se pasmam ante os neologismos do analfabeto, mas se opõem a que "uma palavra nasça do amor da gente", assim "como uma borboleta sai do bolso da paisagem". A "glosação em apostilas" que segue esta página reforça-lhe a aparência pilhérica, mas em Guimarães Rosa zombaria e pathos são como o reverso e o anverso da mesma medalha. O primeiro "prefácio" bastou para nos fazer compreender que em suas mãos até o trocadilho vira em óculo para espiar o invisível.
Nós os temulentos deve ser mais que simples anedota de bêbado, como se nos depara. Conta a odisséia que para um borracho representa a simples volta a casa. Porém os embates nos objetos que lhe estorvam o caminho envolvem-no em uma sucessão de prosopopéias, fazendo dele, em rivalidade com esse outro temulento que é o poeta, um agente de transfigurações do real.
Finalmente confissões das mais íntimas apontam nos sete capítulos de Sobre a escova e a dúvida, envolvidas não em disfarces de ficção, como se dá em tantos narradores, mas, poeticamente, em metamorfoses léxicas e sintáticas. É o próprio ficcionista que entrevemos de início num restaurante chic de Paris a discutir com um alter ego, também escritor, também levemente chumbado, que lhe censura o alheamento a realidade: "Você evita o espirrar e o mexer da realidade, então foge-não-foge." Surpreendidos de se encontrarem face a face, os dois eus encaram-se reciprocamente como personagens saídas da própria imaginativa, perturbados e ao mesmo tempo encantados com a sua "sociedade" (sic!), tecendo uma palestra rapsódica de ébrios em que o tema do engagement ressurge volta e meia como preocupação central.
O Rosa comprometido sugere ao Rosa alheado escreverem um livro juntos; este não lhe responde a não ser através da ironia discreta com que sublinha o contraste do ambiente luxuoso com o ideal "da rude redenção do povo". Mas a resposta é acusação de alheamento deve ser buscada também e sobretudo nos capítulos seguintes. Em primeiro lugar, põe-se em dúvida a natureza da realidade através da parábola da mangueira, cada fruta da qual reproduz em seu caroço o mecanismo de outra mangueira; e o inacessível nos elementos mais óbvios do cotidiano real e aduzido, afirmado, exemplificado. Depois de tentar encerrar em palavras o cerne de uma experiência mística, sua, o autor procura captar e definir os eflúvios de um de seus dias "aborígenes" a oscilar incessantemente entre azarado e feliz, até enredá-lo numa decisão irreparável. Possivelmente há em tudo isto uma alusão à reduzida influência de nossa vontade nos acontecimentos, as decorrências totalmente imprevisíveis de nossos atos. A seguir, evoca o escritor o seu primeiro inconformismo de menino em discordância com o ambiente sobre um assunto de somenos, o uso racional da escova de dentes; o que explicaria a sua não-participação numa época em que a participação do escritor é palavra de ordem. Nisto, passa a precisar (ou antes a circunscrever) a natureza subliminar e supraconsciente da inspiração, trazendo como exemplo a gênese de várias de suas obras, precisamente as de mais valor, antes impostas do que projetadas de dentro para fora.
Para arrematar a série de confidências, faz-se o contista intermediário da lição de arte que recebeu de um confrade não sofisticado, o vaqueiro poeta em companhia de quem seguira as passadas de uma boiada. Ao contar ao trovador sertanejo o esboço de um romance projetado, este lhe exprobrou decididamente o plano (talvez, excogitado de parceria com o sósia de Montmartre), numa condenação implícita da intencionalidade e do realismo: "Um livro a ser certo devia de se confeiçoar da parte de Deus, depor paz para todos."
Arrependido de tanto haver revelado de suas intuições, o escritor, noutro esforço de despistamento, completou o quarto e último prefácio com um glossário de termos que nele nem figuram, mas que representam outras tantas idiossincrasias suas, ortográficas e fonéticas, a exigir emendas nos repositórios da língua.
Descontados os quatro prefácios, Tutaméia, de Guimarães Rosa, contém quarenta "estórias" curtas, de três a cinco páginas, extensão imposta pela revista em que a maioria (ou todas) foram publicadas. Longe de constituir um convite à ligeireza, o tamanho reduzido obrigou o escritor a excessiva concentração. Por menores que sejam, esses contos não se aproximam da crônica; são antes episódios cheios de carga explosiva, retratos que fazem adivinhar os dramas que moldaram as feições dos modelos, romances em potencial comprimidos ao máximo. Nem desta vez a tarefa do leitor é facilitada. Pelo contrario, quarenta vezes ha de embrenhar-se em novas veredas, entrever perspectivas cambiantes por trás do emaranhado de outros tantos silvados.
Adotando a forma épica mais larga ou gênero mais epigramático, Guimarães Rosa ficava sempre (e cada vez mais) fiel à sua fórmula, só entregando o seu legado e recado em troca de atenção e adesão totais. A unidade dessas quarenta narrativas está na homogeneidade do cenário, das personagens e do estilo. Todas elas se desenrolam diante dos bastidores das grandes obras anteriores; as estradas, os descampados, as matas, os lugarejos perdidos de Minas, cuja imagem se gravara na memória do escritor com relevo extraordinário. Cenários ermos e rústicos, intocados pelo progresso, onde a vida prossegue nos trilhos escavados por uma rotina secular, onde os sentimentos, as reações e as crenças são os de outros tempos. Só por exceção aparece neles alguma pessoa ligada ao século XX, à civilização urbana e mecanizada; em seus caminhos sem fim, topamos com vaqueiros, criadores de cavalos, caçadores, pescadores, barqueiros, pedreiros, cegos e seus guias, capangas, bandidos, mendigos, ciganos, prostitutas, um mundo arcaico onde a hierarquia culmina nas figuras do fazendeiro, do delegado e do padre.
A esse mundo de sua infância o narrador mantém-se fiel ainda desta vez; suas andanças pelas capitais da civilização, seus mergulhos nas fontes da cultura aqui tampouco lhe forneceram temas ou motivos, o muito que vira e aprendera pela vida afora serviu-lhe apenas para aguçar a sua compreensão daquele universo primitivo, para captar e transmitir-lhe a mensagem com mais perfeição.
Através dos anos e não obstante a ausência, o ambiente que se abrira para seus olhos deslumbrados de menino conservou sempre para ele suas cores frescas e mágicas. Nunca se rompeu a comunhão entre ele e a paisagem, os bichos e as plantas e toda aquela humanidade tosca em cujos espécimes ele amiúde se encarnava, partilhando com eles a sua angustia existencial. A cada volta do caminho suas personagens humildes, em luta com a expressão recalcitrante, procuram definir-se, tentam encontrar o sentido da aventura humana: "Viver é obrigação sempre imediata"; "Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente, ausente." "A gente quer mas não consegue furtar no peso da vida." "Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo." "Quem quer viver, faz mágica."
A transliteração desse universo opera-se num estilo dos mais sugestivos, altamente pessoal e no entanto determinado em sua essência pelas tendências dominantes, às vezes contraditórias, da fala popular. O pendor do sertanejo para o lacônico e sibilino, o pedante e o sentencioso, o tautológico e o eloqüente, a facilidade com que adapta o seu cabedal de expressões as situações cambiantes, sua inconsciente preferência pelos subentendidos e elipses, seu instinto de enfatizar, singularizar e impressionar são aqui transformados em processos estilisticos. Na realidade o neologismo desempenha nesse estilo papel menor do que se pensa. Inúmeras vezes julga-se surpreender o escritor em flagrante de criação léxica, recorre-se, porém, ao dicionário, lá estará o vocábulo insólito (acamonco, alarife, avejão, brujajara, cara fuz, chuchorro, esmar, ganja, grinfo, gueta, jaganata, marupiara, nomina, panema, pataratesco, quera, safio, seresma, sessil, uca, vogoroca etc) rotulado de regionalismo, plebeísmo, arcaísmo ou brasileirismo, outras vezes, não menos freqüentes, a palavra nova representa apenas uma utilização das disponibilidades da língua, registrada por uma memória privilegiada ou esguichada pela inspiração do momento (associoso, borralheirar, convidatividade, de extraordem, inaudimento, infinição, inteligentudo, inventação, mal-entender-se, mirificacia, orabolas deles!, reflor!, reminisção etc)
Com freqüência bem menor há, afinal, as criações de inegável cunho individual, do tipo dos amálgamas, abusufruto, fraternura, lunático de mel, metalurgir, orfandade, psiquepiscar, utopiedade com que o espírito lúdico se compraz a matizar infinitamente a língua. Porém, as maiores ousadias desse estilo, as que o tornam por vezes contundente e hermético são sintáticas: as frases de Guimarães Rosa carregam-se de um sentido excedente pelo que não dizem, num jogo de anacolutos, reticências e omissões de inspiração popular, cujo estudo está por fazer.
Estonteado pela multiplicidade dos temas, a polifonia dos tons, o formigar de caracteres, o fervilhar de motivos, o leitor naturalmente há de, no fim do volume, tentar uma classificação das narrativas. é provável que a ordem alfabética de sua colocação dentro do livro seja apenas um despistamento e que a sucessão delas obedeça a intenções ocultas. Uma destas será provavelmente a alternância, pois nunca duas peças semelhantes se seguem. A instantâneos mal esboçados de estados de alma sucedem densas microbiografias; a patéticos atos de drama rápidas cenas divertidas; incidentes banais do dia-a-dia alternam com episódios lírico-fantásticos.
Entre os muitos critérios possíveis de arrumação vislumbra-se um sugerido pelo que, por falta de melhor termo, denominaria de atonímia metafísica. Essa figura estilística, de mais a mais freqüente nas obras do nosso autor, surge em palavras que não indicam manifestação do real e sim abstrações opostas a fenômenos percebíveis pelos sentidos, tais como: antipesquisas, acronologia, desalegria, improrrogo, irriticencia, desverde, incogitante, descombinar (com alguém), desprestar (atenção), inconsiderar, indestruir, inimaginar, irrefotar-se etc, ou em frases como "Tinha o para não ser célebre." Dentro do contexto, tais expressões claramente indicam algo mais do que a simples negação do antônimo: aludem a uma nova modalidade de ser ou de agir, a manifestações positivas do que não é.
Da mesma forma, na própria contextura de certos contos o inexistente entremostra a vontade de se materializar. Em conversa ociosa, três vaqueiros inventam um boi cuja idéia há de lhes sobreviver consolidada em mito incipiente (Os três homens e o boi). Alguém, agarrado a um fragmento de frase que lhe sobrenada na memória, tenta ressuscitar a mocidade esquecida ("Lá nas campinas"). Ameaça demoníaca de longe, um touro furioso se revela, visto de perto, um marrua manso ("Hiato"). Noutras peças, o que não é passa a influir efetivamente no que é, a moldá-lo, a mudar-lhe a feição. O amante obstinado de uma megera, ao morrer, transmite por um instante aos demais a enganosa imagem que dela formara "Reminisção"). A idéia da existência, longe, de um desconhecido benfazejo ajuda um desamparado a safar-se de suas crises ("Rebimba o bom"). Um rapaz ribeirinho consome-se de saudades pela outra margem do rio, até descobrir o mesmo mistério na moça que o ama ("Ripuaria"). Alguém ("João Porém, o criador de perus") cria amor e mantém-se fiel a uma donzela inventada por trocistas.
Num terceiro grupo de estórias por trás do enredo se delineia outra que poderia ter havido, a alternativa mais trágica a disponibilidade do destino. O povo de um lugarejo livra-se astutamente de um forasteiro doente em quem se descobre perigoso cangaceiro ("Barra de Vaca"). Um caçador vindo da cidade com intuito de pesquisas escapa com solércia há armadilhas que lhe prepara a má vontade do hospedeiro bronco ("Como ataca a sucuri"). Enganado duas vezes, um apaixonado prefere perdoar à amada e, para depois viverem felizes, reabilita a fugitiva com paciente labor junto aos vizinhos ("Desenredo").
Noutros contos o desenlace não e um "desenredo", mas uma solução totalmente inesperada. Atos e gestos produzem resultados incalculáveis num mundo que escapa às leis da causalidade: daí a multidão de milagres esperando a sua vez em cada conto. Por entender de través uma frase de sermão, um lavrador ("Grande Gedeão") pára de trabalhar; e melhora de sorte. Um noivo amoroso que sonhava com um lar bonito e abandonado pela noiva; mas o sonho transmitiu-se ao pedreiro ("Curtamão") e nasce uma escola. Para que a vocação de barqueiro desperte num camponês é preciso que uma enchente lhe desbarate a vida ("Azo de almirante").
Nessa ordem de eventos, uma personagem folclórica ("Melim-Meloso"), cuja força consiste em desviar adversidades extraindo efeitos bons de causas ruins, apoderou-se da imaginação do escritor a tal ponto que ele promete contar mais tarde as aventuras desse novo Malasarte. Infelizmente não mais veremos essa continuação que, a julgar pelo começo, ia desabrochar numa esplêndida fábula; nem a grande epopéia cigana de que neste livro afloram três leves amostras ("Faraó e a Água do rio", "O outro ou o outro", "Zingaresca"), provas da atracão especial que exercia sobre o erudito e o poeta esse povo de irracionais, ébrios de aventura e de cor, refratários é integração social, artistas da palavra e do gesto. Muito tempo depois de lidas, essas histórias, e outras que não pude citar, germinam dentro da memória, amadurecem e frutificam, confirmando a vitória do romancista dentro de um gênero menor. Cada qual descobrira dentro das quarenta estórias a sua, a que mais lhe desencadeia a imaginação.
Conto: hipotrélico, de joão guimarães rosa
Hei que ele é.
Do IRREPLEGÍVEL.
Há o hipotrélico. O termo é novo, de impesquisada origem e ainda sem definição que lhe apanhe em todas as pétalas o significado. Sabe-se, só, que vem do bom português. Para a prática, tome-se hipotrélico querendo dizer: antipodático, sengraçante imprizido; ou, talvez, vice-dito: indivíduo pedante, importuno agudo, falto de respeito para com a opinião alheia. Sob mais que, tratando-se de palavra inventada, e, como adiante se verá, embirrando o hiptrélico em não tolerar neologismos, começa ele por se negar nominalmente a própria exitência.
Somos todos, neste ponto, um tento ou cento hipotrélicos? Salvo o excepto, um neologismo contunde, confunde, quase ofende. Perspica-nos a inércia que soneja em cada canto do espírito, e que se refestela com os bons hábitos estadados. Se é que um não se assuste: saia todo-o-mundo a empinar vocábulos seus, e aonde é que se vai dar com a língua tido e herdada? Assenta-nos bem à modéstia achar que o novo não valerá o velho; ajusta-se à melhor prudência relegar o progresso no passado.
Sobre o que, aliás, previu-se um bem decretado conceito: o de que só o povo tem o direito de se manifestar, neste público particular. Isto nos aquieta. A gente pensa em democráticas assembléias, comitês, comícios, para a vivíssima ação de desenvolver o idioma; senão que o inconsciente coletivo ou o Espírito Santo se exerçam a ditar a vários populares, a um tempo, as sábias, válidas inspirações. Haja para. Diz-se-nos também, é certo, que tudo não passa de um engano de arte, leigo e tredo: que quem inventa palavras é sempre um indivíduo, elas, como as criaturas, costumando ter um pai só; e que a comunidade contribui apenas dando-lhes ou fechando-lhes a circulação. Não importa. Na fecundidade do araque apura-se vantajosa singeleza, e a sensatez da inocência supera as excelências do estudo. Pelo que, terá de ser agreste ou inculto o neologista, e ainda melhor se analfabeto for.
Seja que, no sem-tempo quotidiano, não nos lembremos das e muitíssimas que foram fabricadas com intenção - ao modo como Cícero fez qualidade ("qualitas"), Comte altruísmo, Stendhal egotismo, Guyau amoral, Bentham internacional, Turguêniev niilista, Fracástor sífilis, Paracelso gnomo, Voltaire embaixatriz ("ambassadrice"), Van Helmont gás, Coelho Neto paredro, Ruy Barbosa egolatria, Alfredo Taunay necrotério; e mais e mais e mais, sem desdobrar memória. Palavras em serviço efetivo, já hoje viradas naturais, com o fácil e jeito e unto de espontâneas, conforme o longo uso as sovou.
De acordo, concedemos. Mas, sob cláusula: a de que o termo engenhado venha tapar um vazio. Nem foi menos assim que o dr. Castro Lopes, a fim de banir galicismos, e embora se saindo com processo direto e didático, deixadas fora de conta quaisquer sutilezas psicológicas ou estéticas, conseguiu por em praça pelo menos estes, como ele mesmo dizia, "produtos da indústria nacional filológica": cardápio, convescote, preconício, necrópole, ancenúbio, nosóculos, lucivéu e lucivelo, fádico protofonia, vesperal, posturar, postrídio, postar (no correio) e mamila. E, donde: palavra nova, só se satisfizer uma precisão, constatada, incontestada.
Verdade é que outros também nos objetam que esta maneira de ver reafirma apenas o estado larval em que ainda nos rojamos, neste pragmático mundo da necessidade, em que o objetivo prevale o subjetivo, tudo obedece ao terra-a-terra das relações positivas, e, pois, as coisas pesam mais do que as pessoas. Por especiosa, porém, rejeitamos a argumentação. Viver é encargo de pouco proveito e muito desempenho, não nos dando por ora lazer para nos ocuparmos em aumentar a riqueza, a beleza, a expressividade da língua. Nem nos faz falta capturar verbalmente a cinematografia divididíssima dos fatos ou traduzir aos milésimos os movimentos da alma e do espírito. A coisa pode ir indo assim mesmo à grossa.
E fique à conta dos tunantes da gíria e dos rústicos da roça - que palavrizam autônomos, seja por rigor de mostrar a vivo a vida, inobstante o escasso pecúlio lexical de que dispõem, seja por gosto ou capricho de transmitirem com obscuridade coerente suas próprias e obscuras intuições. São seres sem congruência, pedestres ainda na lógica e nus de normas. Veja-se o que diz Gustavo Barroso, no "Terra de Sol": "Subdorada" era o adjetivo que lhes exprimia a admiração. Não sei de onde o foram encontrar. No sertão há dessas expressões; nascem ninguém sabe como; vivem eternamente ou desaparecem um dia sem também se saber como." Confere. Pode-se lá, porém, permitir que a palavra nasça do amor da gente, assim, de broto e jorro: aí a fonte, o miriqüilho, o olho-d'água; ou como uma borboleta sai do bolso da paisagem?
Do que tal se infere serem os neologismos de um sertanejo desses, do Ceará ou de Minas Gerais, coisas de desadoro, imanejáveis, senão perigosas para as santas convenções. Se nem ao menos tão longe, mas por aqui, no Estado do Rio, nosso amigo Edmundo se surpreendeu com a resposta, desbarbadamente hermética, de um de seus meeiros, a quem perguntara como ia o milho: - "Vai de minerol infante." - "Como é?" - "Está cobrindo os tocos..." O que já pode parecer excessiva força de idéias.
Dito seja, a demais, que o vezo de criar novas palavras invade muitas vezes o criador, como imperial mania. Um contraventor do vernáculo, foi o fazendeiro Chico de Matos, de Dourados; coitado, morreu de epitelioma. Duas das suas se fizeram, na região: intujuspéctico, que quase por si se define - com o sentido de pretensioso impostor e enjoado soturno; e incorubirúbil, que onomatopeicamente pode parecer o gruziar de um peru ou o propagar-se de golpes com que se sacoleja a face límpida de uma água, mas que designa apenas quem é "cheio de dedos", "cheio de maçada", "cheio de voltas", "cheio de nós pelas costas", muito susceptível e pontilhoso. Não são de não se catalogar?
Já outro, contudo, respeitável, é o caso - enfim - de "hipotrélico", motivo e base desta fábula diversa, e que vem do bom português. O bom português, homem-de-bem e muitíssimo inteligente, mas que, quando ou quando, neologizava, segundo suas necessidades íntimas.
Ora, pois, numa roda, dizia ele, de algum sicrano, terceiro, ausente:
- E ele é muito hiputrélico...
Ao que, o indesejável maçante, não se contendo, emitiu o veto:
- Olhe, meu amigo, essa palavra não existe.
Parou o bom português, a olhá-lo, seu tanto perplexo:
- Como?!... Ora... Pois se eu a estou a dizer?
- É. Mas não existe.
Aí, o bom português, ainda meio enfigadado, mas no tom já feliz de descoberta, e apontando para o outro, peremptório:
- O senhor também é hiputrélico...
E ficou havendo.
PÓS-ESCRITO:
Confira-se o de Quintiliano, sobre as palavras:
"O mais seguro é usar as usadas, não sem um certo perigo cunham-se novas. Porque, aceitas, pouco louvor ao estilo acrescentam, e, rejeitadas, dão em farsa. Ousemos, contudo; pois, como Cícero diz: mesmo aquelas que a princípio parecem duras, vão com o uso amolecendo."





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JOÃO CABRAL DE MELO NETO
(Recife PE 1920 - Rio de Janeiro RJ 1999)
Publicou, em 1942, Pedra do Sono, seu primeiro livro de poesia. Em 1945 saiu O Engenheiro, livro em que apresenta os princípios do rigor, da clareza e da objetividade, características pelas quais sua obra se tornou conhecida. Nesse mesmo ano entrou para a diplomacia, carreira a que se dedicaria nas décadas seguintes; serviu na Espanha, na Inglaterra, na França e no Senegal. Em 1950 publicou O Cão sem Plumas, em cujos versos manifesta preocupações sociais. Nos anos seguintes produziu várias obras poéticas, entre as quais Duas Águas (1956), Quaderna (1960), Morte e Vida Severina (1966) e A Educação pela Pedra (1967), com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia de 1967. A peça Morte e Vida Severina foi musicada por Chico Buarque de Holanda, em 1966, e recebeu vários prêmios. É a obra mais conhecida de João Cabral, que escreveu ainda Museu de Tudo (1975), A Escola das Facas (1980), Poesia Crítica (1982) e Crime na Calle Relator (1987), entre outros livros de poesia. Sua Obra Completa foi publicada em 1994. Conhecido como “poeta-engenheiro”, João Cabral de Melo Neto costuma ser identificado, por critério cronológico, com a terceira geração do Modernismo; mas sua poesia, que incorpora as raízes populares da literatura de cordel, instaura um novo critério estético e figura como das mais singulares na Literatura Brasileira.
Num monumento à aspirina
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
Psicologia da Composição
É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.
São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.
É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.
É mineral, por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

da palavra escrita.
Tecendo a Manhã
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
A Educação pela Pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

*

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.
Catar Feijão

Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebra dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.
ALTO DO TRAPUÁ
Já fostes algum dia espiar
do alto do Engenho Trapuá?
Fica na estrada de Nazaré,
antes de Tracunhaém.
Por um caminho à direita
se vai ter a uma igreja
que tem um mirante que está
bem acima dos ombros das chãs.
Com as lentes que verão
instala no ar da região
muito se pode divisar
do alto do Engenho Trapuá.
Se se olha para o oeste,
onde começa o Agreste,
se vê o algodão que exorbita
sua cabeleira encardida,
...

Se se olha para o nascente,
se vê flora diferente.
Só canaviais e suas crinas,
e as canas longilíneas
de cores claras e ácidas,
femininas, aristocráticas,
...
Porém se a flora varia
segundo o lado que se espia,
uma espécie há, sempre a mesma,
de qualquer lado que esteja.
É uma espécie bem estranha:
tem algo de aparência humana,
mas seu torpor de vegetal
é mais da história natural.
...
Apesar do pouco que vinga,
não é uma espécie extinta
e multiplica-se até regularmente.
Mas é uma espécie indigente,
é a planta mais franzina
no ambiente de rapina,
O CANAVIAL E O MAR
(trecho)
O que o mar sim ensina ao canavial:
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial sim ensina ao mar:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos.
"O Sim Contra o Sim" (Serial)
(...)
Miró sentia a mão direita
demasiado sábia
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
Quis então que desaprendesse
o muito que aprendera,
a fim de reencontrar
a linha ainda fresca da esquerda.
Pois que ela não pôde, ele pôs-se
a desenhar com esta
até que, se operando,
no braço direito ele a enxerta.
A esquerda (se não se é canhoto)
é mão sem habilidade:
reaprende a cada linha,
cada instante, a recomeçar-se.
(...)
A Felix de Athayde
Cesário Verde usava a tinta
de forma singular:
não para colorir,
apesar da cor que nele há.
Talvez que nem usasse tinta,
somente água clara,
aquela água de vidro
que se vê percorrer a Arcádia.
Certo, não escrevia com ela,
ou escrevia lavando:
relavava, enxaguava
seu mundo em sábado de banho.
Assim chegou aos tons opostos
das maçãs que contou:
rubras dentro da cesta
de quem no rosto as tem sem cor.
Augusto dos Anjos não tinha
dessa tinta água clara.
Se água, do Paraíba
nordestino, que ignora a Fábula.
Tais águas não são lavadeiras,
deixam tudo encardido:
o vermelho das chitas
ou o reluzente dos estilos.
E quando usadas como tinta
escrevem negro tudo:
dão um mundo velado
por véus de lama, véus de luto.
Donde decerto o timbre fúnebre,
dureza da pisada,
geometria de enterro
de sua poesia enfileirada.
(...)
À Brasília de Oscar Niemeyer
Eis casas-grandes de engenho,
horizontais, escancaradas,
onde se existe em extensão
e a alma todoaberta se espraia.

Não se sabe é se o arquiteto
as quis símbolos ou ginástica:
símbolos do que chamou Vinicius
"imensos limites da pátria"

ou ginástica, para ensinar
quem for viver naquelas salas
um deixar-se, um deixar viver
de alma arejada, não fanática. A Lição de Poesia
1. Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2. A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3. A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis — naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
Ademir da Guia
Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.
Fábula de um Arquiteto
A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

2.
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.
O Sol no Senegal
Para quem no Recife
se fez à beira-mar,
o mar é aquilo de onde
se vê o sol saltar.
Daqui, se vê o sol
não nascer, se enterrar:
sem molas, alegria,
quase murcho, lunar;
um sol nonagenário
no fim da circular,
abúlico, incapaz
de um limpo suicidar.
Aqui, deixa-se manso
corroer, naufragar;
não salta como nasce:
se desmancha no mar.
Menino de Engenho
A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.

Menino, o gume de uma cana
cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.

A cicatriz não tenho mais;
o inoculado, tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina.
Graciliano Ramos:
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

***

Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

***

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

***

Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.
O Sertanejo Falando
A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.

2.
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.
Rios sem Discurso
A Gabino Alejandro Carriedo

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

*

O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.
Paisagem pelo Telefone
Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,
a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol que as veste
e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesse envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,
e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria
que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.









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Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto
Gênese e história da obra
Morte e Vida Severina foi escrito em 1954/55, por encomenda de Maria Clara Machado, então diretora do grupo O Tablado, que não pôde levar ao palco a peça. Publicado inicialmente no livro Duas Águas (1956), o texto foi finalmente montado pelo grupo do TUCA (Teatro da Universidade Católica de São Paulo), dirigido por Roberto Freire e Silnei Siqueira, com música de Chico Buarque de Holanda, e obteve sucesso mundial numa turnê em 1966. A partir daquele ano, passou a integrar o volume Poemas em Voz Alta, que reúne a parcela mais comunicativa da obra do "poeta engenheiro".
As duas águas de João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto (Recife, 1920) dividiu sua obra em duas "águas", duas facetas como as do telhado de uma casa: a primeira seria a da comunicação restrita, elaborada e de difícil consumo; a segunda, uma poesia mais popular, de compreensão mais imediata, de comunicação com um público mais amplo e menos cultivado. Nesta última se incluem os seus "poemas em voz alta", que foram escritos para serem lidos a um público ouvinte. O poema dramático Morte e Vida Severina com certeza pertence à segunda ''água", pois, embora tenha algumas características fundamentais do poeta cerebral que é João Cabral como o rigor formal da metrificação variada e aproximativa e das rimas toantes e o "falar com coisas", a utilização de imagens contundentes e concretas foi escrito com o intuito de alcançar um público maior e recorre a diversas fontes da poesia popular na sua elaboração.
Um Auto de Natal Pernambucano - influências
O subtítulo do livro revela seu débito aos autos sacramentais da tradição ibérica medieval, dos quais herda o teor poético e alegórico, assim como uma tendência à justaposição das cenas e à sátira dos costumes. Além de se inspirar na antiga poesia narrativa ibérica, os romances, João Cabral reelabora parodicamente, nas cenas do presépio final a poesia do folclore pernambucano. Outra influência clara na concepção do livro é o Regionalismo de 30, com sua preocupação realista de observação, crítica e dunúncia social que podemos encontrar em autores como José Américo de Almeida, Rachel de Queirós e, principalmente, Graciliano Ramos.
O enredo: da morte à vida severina
A inversão do sintagma "vida e morte" no título da peça demonstra o percurso do retirante Severino: parte da morte no Sertão para encontrar a vida em Recife. Severino acompanha o rio Capibaribe e só vai encontrando pobreza e morte pelo caminho. Chegando a Recife, foz do rio, o mesmo se repete. Desesperançado, pensa em cometer suicídio atirando-se ao rio, quando testemunha o nascimento de uma criança que devolve a esperança à vida severina. Tanto morte quanto vida são "severinas", adjetivo neológico formado a partir do nome próprio, pois ambas se aplicam a todos os "severinos" quase anônimos do Sertão nordestino.
Estrutura geral
Morte e Vida Severina se divide em 18 cenas ou fragmentos poéticos, todos precedidos por um título explicativo de seu conteúdo, praticamente resumos do que encontramos nos poemas em si. Podemos separá-los em dois grandes gupos: as primeiras 12 cenas descrevem a peregrinação de Severino. Trata-se do Caminho ou Fuga da Morte. Nesta parte o poeta habilmente alterna monólogos de Severino com diálogos que trava ou escuta no caminho; as últimas 6 cenas apresentam O Presépio ou O Encontro com a Vida, em que é descrito o nascimento do filho de José, mestre carpina, em clara alusão ao nascimento de Jesus.
As cenas da morte
1- Severino se apresenta. Tem dificuldades para se diferenciar dos outros "severinos", pois são "iguais em tudo na vida". Este Severino representa a todos.
2. Conversa com dois homens carregando um defunto numa rede.
3. Teme se perder porque o rio Capibaribe secou com o verão.
4- Ouve cantarem excelências para um defunto dentro de uma casa, enquanto um homem, do lado de fora, vai ironizando as palavras dos cantadores.
5 Cansado da viagem e desiludido, pensa interrompê-la por algum tempo e procurar trabalho ali onde se encontra.
6. Dirige-se a uma mulher na janela em busca de trabalho, mas esta, rezadeira, diz que por lá não há serviço para lavradores como ele, só para quem lida profissionalmente com a morte.
7 .Chega, maravilhado, à Zona da Mata, região de vegetação mais rica, que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem.
8. Assiste ao enterro de um lavrador e ouve os amigos do morto dizerem, com ironia, que agora sim este tinha a sua terra, a terra da cova rasa.
9. Cercado pela morte, resolve apressar os passos para chegar logo a Recife, na esperança de uma mudança para melhor.
10. Chegando a Recife, senta-se para descansar ao pé do muro de um cemitério e ouve, sem ser notado, a conversa pessimista de dois coveiros.
11. Desiludido, aproxima-se de um dos cais do Capibaribe e pensa em se atirar ao rio para acabar de vez com seu sofrimento.
12. Conversa com José, mestre carpina, morador de um dos mocambos à margem do rio, e lhe pergunta se não é melhor se atirar logo ao rio e à morte.
O presépio: encontro com a vida
13. Uma mulher, da porta da casa de José, anuncia-lhe que seu filho nascera.
14. Os vizinhos, os amigos, duas ciganas, etc. cantam em louvor ao menino.
15. Falam as pessoas que trazem presentes de todos os tipos e de todos os cantos de Pernambuco para o recém-nascido.
16. Falam as duas ciganas que haviam aparecido com os vizinhos. Uma prevê uma vida enlameada de pescador pobre, outra de operário um pouco menos pobre.
17. Todos cantam a beleza do recém-nascido. Beleza da novidade, da vida que se multiplica e renova, incansável.
18. O carpina responde à pergunta que Severino fizera, reafirmando o valor da vida, mesmo que seja "severina".
Resumo
Severino é um retirante: ele é como muitos outros e que está partindo para o litoral, fugindo da seca, da morte. A vida na Capital parece mais atraente, mais "vida", menos "severina". Em suas andanças, entretanto, Severino se depara a todo momento não com a vida, mas sim com o que já conhece como coisa vulgar: a morte e o desespero que a cerca.
Em seu primeiro encontro com ela, o retirante topa com dois homens carregando um defunto até sua última morada. Durante uma conversa, descobre que o pobre coitado havia sido assassinado e que o motivo fora ter querido expandir um pouco suas terras, que praticamente não eram produtíveis. O retirante segue sua viagem e percebe que na região onde se encontra, nem o rio Capibaribe - seco no verão - consegue cumprir o seu papel. Severino sente medo de não conseguir chegar ao seu destino.
Escuta, então, uma cantoria e, aproximando-se, vê que está sendo encomendado um defunto. Pela primeira vez, Severino pensa em interromper sua "descida" para o litoral e procurar trabalho naquela vila. Ao dirigir-se a uma mulher, descobre que tudo que sabe fazer não serve ali, e o único trabalho existente e lucrativo é o que ajuda na morte: médico, rezadeira, farmacêutico, coveiro. E o lucro é certo nessas profissões, pois não faltam fregueses, uma vez que ali a morte também é coisa vulgar.
Se não há como trabalhar, mais uma vez Severino retoma seu rumo e chega à Zona da Mata, onde novamente pensa em interromper sua viagem e se fixar naquela terra branda e macia, tão diferente da solo do Sertão. Mais do que isso: começou a acreditar que não via ninguém porque a vida ali deveria ser tão boa, que todos estavam de folga e que ninguém deveria conhecer a morte em vida, a vida severina. Ilusão de quem está à procura do paraíso: logo Severino assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério. Severino se dá conta que ali as privações são as mesmas que ele conhece bem e que também a única parte que pode ser sua daquela terra é uma cova para sepultura, nada mais .
O retirante resolve então apressar o passo para chegar logo ao Recife. Severino senta-se para descansar ao pé de um muro alto e ouve uma conversa. É mais uma vez a morte rondando, são dois coveiros que lhe dão a má notícia: toda a gente que vai do Sertão até ali procurando morrer de velhice, vai na verdade é seguindo o próprio enterro, pois logo que chegam, são os cemitérios que os esperam .
Severino nunca quis muito da vida, mas está desiludido: esperava encontrar trabalho, trabalho duro mas agora - desespero! - já se imagina um defunto como aqueles que os coveiros descreviam, faltava apenas cumprir seu destino de retirante.
Nesse momento, aproxima-se de Severino seu José, mestre carpina, morador de um dos mocambos que havia entre o cais e a água do rio. O retirante, desesperançado, revela ao mestre carpina sua intenção de suicídio, de se jogar naquele rio e ter uma mortalha "macia e líquida". Se José tenta convencer Severino que ainda vale a pena lutar pela vida, mesmo que seja vida severina. Mas Severino não vê mais diferença entre vida e morte e lança a pergunta: "que diferença faria/ se em vez de continuar/tomasse melhor saída:/a de saltar, numa noite,/ fora da ponte e da vida?"
Da porta de onde havia saído o mestre carpina, surge uma mulher, que grita uma notícia. Um filho nascera, o filho de seu José! Chegam vizinhos, amigos, pessoas trazendo presentes ao recém-nascido. Vêm também duas ciganas, que fazem a previsão do futuro do menino: ele crescerá aprendendo com os bichos e no futuro trabalhará numa fábrica, lambuzado de graxa e, quem sabe, poderá morar num lugar um pouco melhor.
Severino assiste ao movimento, ao clima de euforia com a vinda do menino. O carpina se aproxima novamente do retirante e reata a conversa que estavam levando. Diz que não sabe a resposta da pergunta feita, mas, melhor que palavras, o nascimento da criança podia ser uma resposta: a vida vale a pena ser defendida.
Trechos do Poema:
1- O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI
- O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
2 - ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS
ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUEM MATEI NÃO!"
A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
- E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
- Onde a Caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.
- E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
- Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
- E o que guardava a emboscada,
irmão das almas
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
- Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mas garantido é de bala,
mais longe vara.
- E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
- Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
- E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
- Ter um hectare de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
- Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas
que podia ele plantar
na pedra avara?
- Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.
- E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
- Tinha somente dez quadras,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
- Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
- Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
- E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
- Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
- E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente do chumbo
que tem guardada?
- Ao cemitério de Torres,
irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.
- E poderei ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.
- Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.
- E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.
- Vou eu que a viagem é longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.
- Mais sorte tem o defunto
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.
- Toritama não cai longe,
irmãos das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.
- Partamos enquanto é noite
irmãos das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.
3 - O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR POR SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE,
- Antes de sair de casa
aprendi a ladainha
das vilas que vou passar
na minha longa descida.
Sei que há muitas vilas grandes,
cidades que elas são ditas;
sei que há simples arruados,
sei que há vilas pequeninas,
todas formando um rosário
cujas contas fossem vilas,
de que a estrada fosse a linha.
Devo rezar tal rosário
até o mar onde termina,
saltando de conta em conta,
passando de vila em vila.
Vejo agora: não é fácil
seguir essa ladainha;
entre uma conta e outra conta,
entre uma e outra ave-maria,
há certas paragens brancas,
de planta e bicho vazias,
vazias até de donos,
e onde o pé se descaminha.
Não desejo emaranhar
o fio de minha linha
nem que se enrede no pêlo
hirsuto desta caatinga.
Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
Tenho que saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam.
Mas não vejo almas aqui,
nem almas mortas nem vivas;
ouço somente à distância
o que parece cantoria.
Será novena de santo,
será algum mês-de-Maria;
quem sabe até se uma festa
ou uma dança não seria?
4 - NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO
UM HOMEM, DO LADO DE FORA, VAI PARODIANDO A PALAVRAS DOS CANTADORES
- Finado Severino,
quando passares em Jordão
e o demônios te atalharem
perguntando o que é que levas...
- Dize que levas cera,
capuz e cordão
mais a Virgem da Conceição.
- Finado Severino, etc...
- Dize que levas somente
coisas de não:
fome, sede, privação.
- Finado Severino, etc...
- Dize que coisas de não,
ocas, leves:
como o caixão, que ainda deves.
- Uma excelência
dizendo que a hora é hora.
- Ajunta os carregadores
que o corpo quer ir embora.
- Duas excelências...
-...dizendo é a hora da plantação.
- Ajunta os carreadores...
-...que a terra vai colher a mão.
5 - CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR
TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA.
- Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva;
só a morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira).
Penso agora: mas por que
parar aqui eu não podia
e como Capibaribe
interromper minha linha?
ao menos até que as águas
de uma próxima invernia
me levem direto ao mar
ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns tempos,
parar aqui eu bem podia
e retomar a viagem
quando vencesse a fadiga.
Ou será que aqui cortando
agora minha descida
já não poderei seguir
nunca mais em minha vida?
(será que a água destes poços
é toda aqui consumida
pelas roças, pelos bichos,
pelo sol com suas línguas?
será que quando chegar
o rio da nova invernia
um resto de água no antigo
sobrará nos poços ainda?)
Mas isso depois verei:
tempo há para que decida;
primeiro é preciso achar
um trabalho de que viva.
Vejo uma mulher na janela,
ali, que se não é rica,
parece remediada
ou dona de sua vida:
vou saber se de trabalho
poderá me dar notícia.
6 - DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ
- Muito bom dia, senhora,
que nessa janela está;
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
- Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar;
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
- Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má;
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.
- Isso aqui de nada adianta,
pouco existe o que lavrar;
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia por lá?
- Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há;
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.
- Também de pouco adianta,
nem pedra há aqui que amassar;
diga-me ainda, compadre,
que mais fazias por lá?
- Conheço todas as roças
que nesta chã podem dar;
o algodão, a mamona,
a pita, o milho, o caroá.
- Esses roçados o banco
já não quer financiar;
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia lá?
- Melhor do que eu ninguém
sei combater, quiçá,
tanta planta de rapina
que tenho visto por cá.
- Essas plantas de rapina
são tudo o que a terra dá;
diga-me ainda, compadre
que mais fazia por lá?
- Tirei mandioca de chãs
que o vento vive a esfolar
e de outras escalavras
pela seca faca solar.
- Isto aqui não é Vitória
nem é Glória do Goitá;
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?
- Sei também tratar de gado,
entre urtigas pastorear;
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.
- Aqui não é Surubim
nem Limoeiro, oxalá!
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?
- Em qualquer das cinco tachas
de um bangüê sei cozinhar;
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.
- Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já;
nada mais o retirante
aprendeu a fazer lá?
- Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá;
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.
- Mas isso então será tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá.
- Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.
- Essa vida por aqui
é coisa familiar;
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?
- Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar;
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.
- Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.
- Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
- Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
- E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
- É, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
- E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?
- De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar;
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
- E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?
- Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazemos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear
7 - O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM.
- Bem me diziam que a terra
se faz mais branda e macia
quando mais do litoral
a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei
nesta terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui
têm água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;
cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade
o que pensei ser mentira
Quem sabe se nesta terra
não plantarei minha sina?
Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a vida),
e para quem lutou a braço
contra a piçarra da Caatinga
será fácil amansar
esta aqui, tão feminina.
Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina;
somente ali à distância
aquele bueiro de usina;
somente naquela várzea
um bangüê velho em ruína.
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?
Feriando: que nesta terra
tão fácil, tão doce e rica,
não é preciso trabalhar
todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida.
Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina;
e aquele cemitério ali,
branco de verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha.
8 -ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE
O LEVARAM AO CEMITÉRIO
- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
- É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
neste latifúndio.
- Não é cova grande.
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
- É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
- É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
- É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
- Viverás, e para sempre
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
- Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
- Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
- Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
- Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
- Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
- Será de terra
tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
- Será de terra
a tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
- Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
- Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
- Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
- Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.
- Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
- Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo)
- Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).
- Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).
- Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos)
- Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).
- Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.
- Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.
- Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.
- Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.
- Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.
- Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.
- Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.
- Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.
- Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.
- Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.
- Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.
- Na mão direita somente
o rosário, seca semente.
- Na mão direita, de cinza,
o rosário, semente maninha,
- Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.
- Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.
- De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito à viração.
- Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.
- E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.
- Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.
- Se abre o chão e te envolve,
como mulher com que se dorme 9 - O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE
- Nunca esperei muita coisa,
digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
não foi a grande cobiça;
o que apenas busquei
foi defender minha vida
de tal velhice que chega
antes de se inteirar trinta;
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal medida,
o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco ainda.
Mas não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é a mais mínima.
Está apenas em que a terra
é por aqui mais macia;
está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina:
pois é igual o querosene
que em toda parte ilumina,
e quer nesta terra gorda
quer na serra, de caliça,
a vida arde sempre com
a mesma chama mortiça.
Agora é que compreendo
por que em paragens tão ricas
o rio não corta em poços
como ele faz na Caatinga:
vive a fugir dos remansos
a que a paisagem o convida,
com medo de se deter,
grande que seja a fadiga.
Sim, o melhor é apressar
o fim desta ladainha,
o fim do rosário de nomes
que a linha do rio enfia;
é chegar logo ao Recife,
derradeira ave-maria
do rosário, derradeira
invocação da ladainha,
Recife, onde o rio some
e esta minha viagem se fina.
10 - CHEGANDO AO RECIFE O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS
- O dia hoje está difícil;
não sei onde vamos parar.
Deviam dar um aumento,
ao menos aos deste setor de cá.
As avenidas do centro são melhores,
mas são para os protegidos:
há sempre menos trabalho
e gorjetas pelo serviço;
e é mais numeroso o pessoal
(toma mais tempo enterrar os ricos).
- pois eu me daria por contente
se me mandassem para cá.
Se trabalhasses no de Casa Amarela
não estarias a reclamar.
De trabalhar no de Santo Amaro
deve alegrar-se o colega
porque parece que a gente
que se enterra no de Casa Amarela
está decidida a mudar-se
toda para debaixo da terra.
- É que o colega ainda não viu
o movimento: não é o que se vê.
Fique-se por aí um momento
e não tardarão a aparecer
os defuntos que ainda hoje
vão chegar (ou partir, não sei).
As avenidas do centro,
onde se enterram os ricos,
são como o porto do mar;
não é muito ali o serviço:
no máximo um transatlântico
chega ali cada dia,
com muita pompa, protocolo,
e ainda mais cenografia.
Mas este setor de cá
é como a estação dos trens:
diversas vezes por dia
chega o comboio de alguém.
- Mas se teu setor é comparado
à estação central dos trens,
o que dizer de Casa Amarela
onde não para o vaivém?
Pode ser uma estação
mas não estação de trem:
será parada de ônibus,
com filas de mais de cem.
- Então por que não pedes,
já que és de carreira, e antigo,
que te mandem para Santo Amaro
se achas mais leve o serviço?
Não creio que te mandassem
para as belas avenidas
onde estão os endereços
e o bairro da gente fina:
isto é, para o bairro dos usineiros,
dos políticos, dos banqueiros,
e no tempo antigo, dos bangüezeiros
(hoje estes se enterram em carneiros);
bairro também dos industriais,
dos membros das associações patronais
e dos que foram mais horizontais
nas profissões liberais.
Difícil é que consigas
aquele bairro, logo de saída.
- Só pedi que me mandasse
para as urbanizações discretas,
com seus quarteirões apertados,
com suas cômodas de pedra.
- Esse é o bairro dos funcionários,
inclusive extranumerários,
contratados e mensalistas
(menos os tarefeiros e diaristas).
Para lá vão os jornalistas,
os escritores, os artistas;
ali vão também os bancários,
as altas patentes dos comerciários,
os lojistas, os boticários,
os localizados aeroviários
e os de profissões liberais
que não se libertaram jamais.
- Também um bairro dessa gente
temos no de Casa Amarela:
cada um em seu escaninho,
cada um em sua gaveta,
com o nome aberto na lousa
quase sempre em letras pretas.
Raras as letras douradas,
raras também as gorjetas.
- Gorjetas aqui, também,
só dá mesmo a gente rica,
em cujo bairro não se pode
trabalhar em mangas de camisa;
onde se exige quepe
e farda engomada e limpa.
- Mas não foi pelas gorjetas, não,
que vim pedir remoção:
é porque tem menos trabalho
que quero vir para Santo Amaro;
aqui ao menos há mais gente
para atender a freguesia,
para botar a caixa cheia
dentro da caixa vazia.
- E que disse o Administrador,
se é que te deu ouvido?
- Que quando apareça a ocasião
atenderá meu pedido.
- E do senhor Administrador
isso foi tudo que arrancaste?
- No de Casa Amarela me deixou
mas me mudou de arrabalde.
- E onde vais trabalhar agora,
qual o subúrbio que te cabe?
- Passo para o dos industriários,
que também é o dos ferroviários,
de todos os rodoviários
e praças-de-pré dos comerciários.
- Passas para o dos operários,
deixas o dos pobres vários;
melhor: não são tão contagiosos
e são muito menos numerosos.
- É, deixo o subúrbio dos indigentes
onde se enterra toda essa gente
que o rio afoga na preamar
e sufoca na baixa-mar.
- É a gente sem instituto,
gente de braços devolutos;
são os que jamais usam luto
e se enterram sem salvo-conduto.
- É a gente dos enterros gratuitos
e dos defuntos ininterruptos.
- É a gente retirante
que vem do Sertão de longe.
- Desenrolam todo o barbante
e chegam aqui na jante.
- E que então, ao chegar,
não tem mais o que esperar.
- Não podem continuar
pois têm pela frente o mar.
- Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar.
- E da maneira em que está
não vão ter onde se enterrar.
- Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha;
pois bem: quando sua morte chega,
temos que enterrá-los em terra seca.
- Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte.
- O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de água;
e também o acompanhamento
que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final
a ser feito no mar de sal.
- E não precisava dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição.
- Mas o que se vê não é isso:
é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia;
morre gente que nem vivia.
- E esse povo de lá de riba
de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando,
cemitério esperando.
- Não é viagem o que fazem
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro
11 - O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE
- Nunca esperei muita coisa,
é preciso que eu repita.
Sabia que no rosário
de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife
ao acabar minha descida,
não seria diferente
a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas
foices de corte e capina,
ferros de cova, estrovengas
o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse
seu uso de toda vida,
esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca,
dentro da cuia, a farinha,
o algodãozinho da camisa,
ao meu aluguel com a vida.
E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia:
caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida,
coroas de baronesa
junto com flores de aninga,
e aquele acompanhamento
de água que sempre desfila
(que o rio, aqui no Recife,
não seca, vai toda a vida).
12 - APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO
- Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal,
sabes me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
sabes me dizer se é funda
esta água grossa e carnal?
- Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado;
quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
- Seu José, mestre carpina,
para cobrir corpo de homem
não é preciso muito água:
basta que chega o abdome,
basta que tenha fundura
igual à de sua fome.
- Severino, retirante
pois não sei o que lhe conte;
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte;
quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.
- Seu José, mestre carpina,
e quando ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem com que cruzar?
quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?
- Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.
- Seu José, mestre carpina,
e quando é fundo o perau?
quando a força que morreu
nem tem onde se enterrar,
por que ao puxão das águas
não é melhor se entregar?
- Severino, retirante,
o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer maneira,
porque senão ele alarga
e devasta a terra inteira.
- Seu José, mestre carpina,
e em que nos faz diferença
que como frieira se alastre,
ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?
- Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.
- Seu José, mestre carpina,
e que diferença faz
que esse oceano vazio
cresça ou não seus cabedais
se nenhuma ponte mesmo
é de vencê-lo capaz?
- Seu José, mestre carpina,
que lhe pergunte permita:
há muito no lamaçal
apodrece a sua vida?
e a vida que tem vivido
foi sempre comprada à vista?
- Severino, retirante,
sou de Nazaré da Mata,
mas tanto lá como aqui
jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia
cada dia hei de comprá-la.
- Seu José, mestre carpina,
e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho
que é cada dia adquirida?
espera poder um dia
comprá-la em grandes partidas?
- Severino, retirante,
não sei bem o que lhe diga:
não é que espere comprar
em grosso tais partidas,
mas o que compro a retalho
é, de qualquer forma, vida.
- Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?
13 - UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ
- Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dento da vida
ao dar o primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabeis que ele é nascido.
14 - APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS, ETC
- Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor.
Foi por ele que a maré
esta noite não baixou.
- Foi por ele que a maré
fez parar o seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau-cheiro não voou.
- E a alfazema do sargaço,
ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas
enviada do mar distante.
- E a língua seca de esponja
que tem o vento terral
veio enxugar a umidade
do encharcado lamaçal.
- Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor
e cada casa se torna
num mocambo sedutor.
- Cada casebre se torna
no mocambo modelar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.
- E a banda de maruins
que toda noite se ouvia
por causa dele, esta noite,
creio que não irradia.
- E este rio de água, cega,
ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu,
hoje enfeitou-se de estrelas.
15 - COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO
- Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos
pescados por esses mangues;
mamando leite de lama
conservará nosso sangue.
- Minha pobreza tal é
que coisa alguma posso ofertar:
somente o leite que tenho
para meu filho amamentar;
aqui todos são irmãos,
de leite, de lama, de ar.
- Minha pobreza tal é
que não tenho presente melhor:
trago este papel de jornal
para lhe servir de cobertor;
cobrindo-se assim de letras
vai um dia ser doutor.
- Minha pobreza tal é
que não tenho presente caro:
como não posso trazer
um olho d'água de Lagoa do Cerro,
trago aqui água de Olinda,
água da bica do Rosário.
- Minha pobreza tal é
que grande coisa não trago:
trago este canário da terra
que canta sorrindo e de estalo.
- Minha pobreza tal é
que minha oferta não é rica:
trago daquela bolacha d'água
que só em Paudalho se fabrica.
- Minha pobreza tal é
que melhor presente não tem:
dou este boneco de barro
de Severino de Tracunhaém.
- Minha pobreza tal é
que pouco tenho o que dar:
dou da pitu que o pintor Monteiro
fabricava em Gravatá.
- Trago abacaxi de Goiana
e de todo o Estado rolete de cana.
- Eis ostras chegadas agora,
apanhadas no cais da Aurora.
- Eis tamarindos da Jaqueira
e jaca da Tamarineira.
- Mangabas do Cajueiro
e cajus da Mangabeira.
- Peixe pescado no Passarinho,
carne de boi dos Peixinhos.
- Siris apanhados no lamaçal
que já no avesso da rua Imperial.
- Mangas compradas nos quintais ricos
do Espinheiro e dos Aflitos.
- Goiamuns dados pela gente pobre
da Avenida Sul e da Avenida Norte
16 - FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS
- Atenção peço, senhores,
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, como goiamuns,
e a correr o ensinarão
os anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar:
primeiro, com as galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida;
depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.
Vejo-o, uns anos mais tarde,
na ilha do Maruim,
vestido negro de lama,
voltar de pescar siris;
e vejo-o, ainda maior,
pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão.
- Atenção peço, senhores,
também para minha leitura:
também venho dos Egitos,
vou completar a figura.
Outras coisas que estou vendo
é necessário que eu diga:
não ficará a pescar
de jereré toda a vida.
Minha amiga se esqueceu
de dizer todas as linhas;
não pensem que a vida dele
há de ser sempre daninha.
Enxergo daqui a planura
que é a vida do homem de ofício,
bem mais sadia que os mangues,
tenha embora precipícios.
Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui vestido
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.
17 - FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES, ETC
- De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.
- Sua formosura
deixai-me que cante:
é um menino guenzo
como todos os desses mangues,
mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.
- Sua formosura
eis aqui descrita:
é uma criança pequena,
enclenque e setemesinha,
mas as mãos que criam coisas
nas suas já se adivinha.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como o avelós
contra o Agreste de cinza.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva.
- De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
- É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
- Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
- Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
- É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.
- Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
- Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
- Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
- Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.
- E belo porque o novo
todo o velho contagia.
- Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
- Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
- Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.
18 - O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE DE NADA
- Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
Filme:• Morte e Vida Severina
Direção: Zelito Vianna – Brasil, 1976.
O filme nos faz pensar sobre uma condição de vida miserável que existe para milhares de brasileiros e que é geralmente ignorada (temos muita coisa para fazer na esfera privada, e quando nos sentimos culpados, reclamamos, doamos roupas, alimentos e dinheiro que geralmente são desviados e nos fantasiamos de jovens revolucionários, ora pregadores da reforma agrária, ora temerosos em perder os privilégios). Belas paisagens, sem contar com a excelente interpretação dos os atores.
http://www.detetivez.hpg.ig.com.br/literatura/resumo_livro/severina2.htm


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José Paulo Paes
(Taquaritinga SP 1926 - São Paulo SP 1998)
Publicou seu primeiro livro de poesia, O Aluno, em 1947. No ano seguinte completou o curso superior de Química Industrial em Curitiba PR. No período, colaborou na revista Joaquim e participou no II Congresso Brasileiro de Escritores, em Belo Horizonte MG, como membro da delegação do Paraná. Nas décadas posteriores foi colaborador de vários periódicos, entre os quais Folha de S.Paulo, Jornal de Notícias e Revista Brasiliense. Em 1967 organizou, com Massaud Moisés, o Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira. Foi tradutor prestigiado; verteu para o português obras de escritores como Laurence Sterne, Lewis Carroll e Nikos Kazantzákis. Em 1987 tornou-se diretor da oficina de tradução de poesia no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Publicou diversos livros de ensaio, além de obras para crianças; foi laureado com prêmios como o Jabuti de Literatura Infantil, concedido em 1991 para seu livro Poemas para Brincar. Sua obra poética inclui os livros Meia Palavra (1973), Resíduo (1980), A meu Esmo (1995) e Socráticas (2001), entre outros. Sobre a poesia de José Paulo Paes, que é de tendência contemporânea, afirmou o crítico Alfredo Bosi: “o metro curto, o ritmo rápido, a sintaxe cortada e o tom menor vedam o texto a qualquer inflexão épica. (...) Canto chão dos revoltosos, epitáfio de indomados, descobre o lado subterrâneo da sátira e o veio amargo do seu pathos."
Passarinho Fofoqueiro
Um passarinho me contou
que a ostra é muito fechada,
que a cobra émuito enrolada,
que a arara é uma cabeça oca,
e que o leão marinho e a foca..
xô , passarinho! chega de fofoca!
Acidente
Atirei um pau no gato,
mas o gato
não morreu,
porque o pau pegou no rato
que eu tentei salvar do gato
e o rato
(que chato!)
foi quem porreu.
Convite
Poesia
é brincar com palavras
como se brinca
com bola, papagaio, pião.
Só que
bola, papagaio,pião
de tanto brincar
se gastam.
As palavras não:
quanto mais se brinca
com elas
mais novas ficam.
Como a água do rio
que é água sempre nova.
Como cada dia
que é sempre um novo dia.
Vamos brincar de poesia?
Acima de Qualquer Suspeita
a poesia está morta
mas juro que não fui eu
eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la
imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres car-
los drummond de andrade manuel bandeira murilo
mendes vladmir maiakóvski joão cabral de melo neto
paul éluard oswald de andrade guillaume appolinaire
sosígenes costa bertolt brecht augusto de campos
não adiantou nada
em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou
incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada
de ferro araraquarense
porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro
araraquarense foi extinta e josé paulo paes parece
nunca ter existido
nem eu
Elegia Holandesa
águamolepedradura
águaáolepedradura
águaáglepedradura
águaáguepedradura
águaáguapedradura
águaáguaáedradura
águaáguaágdradura
águaáguaáguradura
águaáguaáguaadura
águaáguaáguaádura
águaáguaáguaágura
águaáguaáguaágura
águaáguaáguaáguaa
águaáguaáguaáguaá
Lisboa: Aventuras
tomei um expresso
cheguei de foguete
subi num bonde
desci de um elétrico
pedi cafezinho
serviram-me uma bica
quis comprar meias
só vendiam peúgas
fui dar à descarga
disparei um autoclisma
gritei "ó cara!"
responderam-me "ó pá!"
positivamente
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá
Anatomia do Monólogo
ser ou não ser?
er ou não er?
r ou não r?
ou não?
onã?
Madrigal
Meu amor é simples, Dora,
Como a água e o pão.
Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.
L'Affaire Sardinha
O bispo ensinou ao bugre
Que pão não é pão, mas Deus
Presente na eucaristia.
E como um dia faltasse
Pão do bugre, ele comeu
O bispo, eucaristicamente.
Bucólica
O camponês sem terra
Detêm a charrua
E pensa em colheitas
Que nunca serão suas.
Epitáfio para Rui
... e tenho dito
Bravos!
(mas o que foi mesmo que ele disse?)
Um Sonho Americano
CIA limitada A Verdadeira Festa (12 de junho - namorados)
mas pra que fogueira
rojão
quentão?
basta o fogo nas veias
e a escuridão
coração.
Curitiba
O inventor no estado
era um pinheiro inabalável
inabaláveis pinheiros igualmente
o secretário da segurança pública
o presidente da academia de letras
o dono do jornal
o bispo o arcebispo o magnífico reitor
ah se naqueles tempos
a gente tivesse
(armando glauco dalton)
um bom machado!
Pisa: A torre
em vão se inclinas pedagogicamente
o mundo jamais compreenderá a abliqüidade dos
bêbados ou o mergulho dos suicidas.
EPITÁFIO PARA UM BANQUEIRO
negócio
ego
ócio
cio
o
CANÇÃO DO ADOLESCENTE
Se mais bem olhardes
notareis que as rugas
umas são postiças
outras literárias.
Notareis ainda
o que mais escondo:
a descontinuidade
do meu corpo híbrido.
Quando corto a rua
para me ocultar
as mulheres riem
(sempre tão agudas!)
do meu corpo.
Que força macabra
misturou pedaços
de criança e homem
para me criar?
Se quereis salvar-me
desta anatomia,
batizai-me depressa
com as inefáveis
as assustadoras
águas do mundo.
OUTRO RETRATO
O laço de fita
que prende os cabelos
da moça do retrato
mais parece uma borboleta.
Um ventinho qualquer
e sai voando
rumo a outra vida
além do retrato.
Uma vida onde os maridos
nunca chegam tarde
com um gosto amargo
na boca.
À TINTA DE ESCREVER
Ao teu azul fidalgo mortifica
registrar a notícia, escrever
o bilhete, assinar a promissória
esses filhos do momento. Sonhas
mais duradouro o pergaminho
onde pudesses, arte longa em vida breve
inscrever, vitríolo o epigrama, lágrima
a elegia, bronze a epopéia.
Mas já que o duradouro de hoje nem
espera a tinta do jornal secar,
firma, azul, a tua promissória
ao minuto e adeus que agora é tudo História.
Raridade
A arara
é uma ave rara
pois o homem não pára
de ir ao mato caçá-la
para a pôr na sala
em cima de um poleiro
onde ela fica o dia inteiro
fazendo escarcéu
porque já não pode voar pelo céu.
E se o homem não pára
de caçar arara,
hoje uma ave rara,
ou a arara some
ou então muda seu nome
para arrara.
Poética

Não sei palavras dúbias. Meu sermão
Chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão.

Com duas mãos fraternas, cumplicio
A ilha prometida à proa do navio.

A posse é-me aventura sem sentido.
56 compreendo o pão se dividido.

Não brinco de juiz, não me disfarço em réu.
Aceito meu inferno, mas falo do meu céu
Canção do Exílio Facilitada
... sabiá
...papá
...maná
... sofá
... sinhá
... cá?
bah!
MUNDO NOVO
Como estás vendo, não valeu a pena tanto esforço:
a urgência na construção da Arca
o rigor na escolha dos sobreviventes
a monotonia da vida a bordo desde os primeiros dias
a carestia aceita com resmungos nos últimos dias
os olhos cansados de buscar um sol continuamente adiado.
E no entanto sabias de antemão que seria assim. Sabias que a pomba iria trazer não um ramo de oliva mas de espinheiro.
Sabias e não disseste nada a nós, teus tripulantes, que ora vês lavrando com as mesmas enxadas de Caim e Abel a terra mal enxuta do Dilúvio.
Aliás, se nos dissesses, nós não te acreditaríamos.
A CASA
Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.
Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com corações de purpurina.
Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo.
Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos.
No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.
Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão.
Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.
Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.
No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.
E no telhado um menino medroso que espia todos eles; só que está vivo: trouxe- até ali o pássaro dos sonhos.
Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.
Antes que ele acorde e se descubra também morto.




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Lêdo Ivo
(Maceió AL 1924)
Publicou seu primeiro livro de poesia, As Imaginações, em 1944. Na época, cursava Direito na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro RJ. Nas décadas seguintes publicou 5 romances, 14 livros de ensaios sobre literatura e traduziu poemas das obras de Guy de Maupassant, Rimbaud e Dostoiévski. Em 1957 ocorreu a publicação de seu livro de crônicas A Cidade e os Dias. Escreveu também uma novela, O Sobrinho do General, lançada em 1964. Seu livro de poesia Finisterra (1972) recebeu vários prêmios, entre os quais o Prêmio Jabuti de Poesia, em 1973. Em 1982 recebeu o Prêmio Mário de Andrade, pelo conjunto de obra, concedido pela Academia Brasileira de Letras. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1986. Recebeu, em 1991, o Troféu Juca Pato - Intelectual do Ano, concedido pela União Brasileira dos Escritores. Entre suas obras poéticas estão Cântico (1949), Magias (1960), O Sinal Semafórico (1974), Crepúsculo Viril (1990) e O Rumor da Noite (2000). A poesia de Lêdo Ivo filia-se à terceira geração do Modernismo. Para o crítico Carlos Montemayor, "como todos os poetas da sua geração, Lêdo Ivo tem uma alta consciência da linguagem; porém a sua consciência é muito mais ampla, uma consciência amazônica que implica não só o seu envolvimento, mas também a sua libertação, sua erupção, suas explosões flamejantes”.
Acontecimento do Soneto

À doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros

versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados já, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.

Sôbolos rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,

irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.
Canto Grande

Não tenho mais canções de amor.
Joguei tudo pela janela.
Em companhia da linguagem
fiquei, e o mundo se elucida.

Do mar guardei a melhor onda
que é menos móvel que o amor.
E da vida, guardei a dor
de todos os que estão sofrendo.

Sou um homem que perdeu tudo
mas criou a realidade,
fogueira de imagens, depósito
de coisas que jamais explodem.

De tudo quero o essencial:
o aqueduto de uma cidade,
rodovia do litoral,
o refluxo de uma palavra.

Longe dos céus, mesmo dos próximos,
e perto dos confins da terra,
aqui estou. Minha canção
enfrenta o inverno, é de concreto.

Meu coração está batendo
sua canção de amor maior.
Bate por toda a humanidade,
em verdade não estou só.

Posso agora comunicar-me
e sei que o mundo é muito grande.
Pela mão, levam-me as palavras
a geografias absolutas.
Soneto Presunçoso

Que forma luminosa me acompanha
quando, entre o lusco e o fusco, bebo a voz
do meu tempo perdido, e um rio banha
tudo o que caminhei da fonte à foz?

Dos homens desde o berço enfrento a sanha
que os difere da abelha e do albatroz.
Meu irmão, meu algoz! No perde-e-ganha
quem ganhou, quem perdeu, não fomos nós.

O mundo nada pesa. Atlas, sinto
a leveza dos astros nos meus ombros.
Minha alma desatenta é mais pesada.

Quer ganhe ou perca, sou verdade e minto.
Se pergunto, a resposta é dos assombros.
No sol a pino finjo a madrugada.
Planta de Maceió

O vento do mar rói as casas e os homens.
Do nascimento à morte, os que moram aqui
andam sempre cobertos por leve mortalha
de mormaço e salsugem. Os dentes do mar
mordem, dia e noite, os que não procuram
esconder-se no ventre dos navios
e se deixam sugar por um sol de areia.
Penetrada nas pedras, a maresia
cresta o pêlo dos ratos perdulários
que, nos esgotos, ouvem o vômito escuro
do oceano esvaído em bolsões de mangue
e sonham os celeiros dos porões dos cargueiros.
Foi aqui que nasci, onde a luz do farol
cega a noite dos homens e desbota as corujas.
A ventania lambe as dragas podres,
entra pelas persianas das casas sufocadas
e escalavra as dunas mortuárias
onde os beiços dos mortos bebem o mar.
Mesmo os que se amam nesta terra de ódios
são sempre separados pela brisa
que semeia a insônia nas lacraias
e adultera a fretagem dos navios.
Este é o meu lugar, entranhado em meu sangue
como a lama no fundo da noite lacustre.
E por mais que me afaste, estarei sempre aqui
e serei este vento e a luz do farol,
e minha morte vive na cioba encurralada.
Os Peixes

Os peixes estão no lago, os dardos escondidos.
Entre as pedras e o lodo eles avançam
túrgidos como o amor.
Venha a mão do desejo turvar a água clara
e eles serão o amor, o sol que penetra em gretas
nupciais,
as espadas cobertas de saliva.
Haicai

Noite de Domingo

Acabou-se a festa.
Resta, no silêncio,
o rumor da floresta.
O Lago Habitado

Na água trêmula
freme a pálida
anêmona.
A Marmita

Em sua marmita
não leva o operário
qualquer metafísica.
Leva peixe frito,
arroz e feijão.
Dentro dela tudo
tem lugar marcado.
Tudo é limitado
e nada é infinito.
A caneca d'água
tem espaço apenas
para a sua sede.
E a marmita é igual
à boca do estômago,
feita sob medida
para a sua fome.
E quando termina
sua refeição,
ele ainda cata
todas as migalhas,
todo esse farelo
de um pão que suasse
durante o trabalho.
Tudo quanto ganha
o operário aplica
como um capital
em sua marmita.
E o que ele não ganha
embora trabalhe
é outro capital
que também investe:
palavra que diz
em seu sindicato,
frase que se escreve
no muro da fábrica,
visão do futuro
que nasce em seus olhos
que só com fumaça
se enchem de lágrimas.
Em sua marmita
não leva o operário
o caviar de
qualquer metafísica.
E sendo ele o mais
exato dos homens
tudo nele é físico
e material,
tem seu nome e forma,
seu peso e volume,
pode-se pegar.
Seu amor tem saia
pêlos e mucosas
e, fecundo, faz
novos operários.
As coisas se medem
pelo seu tamanho:
sono, mesa, trave.
No trem ou no bonde
nenhum operário
pode se espalhar
sem fazer esforço.
É como no mundo:
— tem que empurrar.
Vasilhame cheio
de matéria justa,
sua vida é exata
como uma marmita.
Nela cabe apenas
toda a sua vida.
E não cabe a morte
que esta não existe,
não sendo manual,
não sendo uma peça
de recauchutar.
(Artigo infinito,
sem ferro e sem aço,
qualquer um a embrulha
sem usar barbante
ou papel almaço.)
Fabril e imanente
o operário vive
do que sabe e faz
e, sendo vivente,
respira o que vê.
O tempo que o suja
de óleo e fuligem
é o mesmo que o lava,
tempo feito de água
aberta na tarde
e não de relógio.
E a própria marmita
também é lavada.
E quando ele a leva
de volta pra casa
ela, metal, cheira
menos a comida
do que a operário.
Os Morcegos

Os morcegos se escondem entre as cornijas
da alfândega. Mas onde se escondem os homens,
que contudo voam a vida inteiro no escuro,
chocando-se contra as paredes brancas do amor?

A casa de nosso pai era cheia de morcegos
pendentes, como luminárias, dos velhos caibros
que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.
"Estes filhos chupam o nosso sangue", suspirava meu pai.

Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero
que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos
(meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige
o suor do semelhante mesmo na escuridão?

No halo de um seio jovem como a noite
esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz
do farol
o homem guarda as moedas douradas de seu amor.
Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda
o dia ofendido.

Ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos)
a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.
Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.
E entre os
nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.




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As cerejas - Lygia Fagundes Telles
Aquela gente teria mesmo existido? Madrinha tecendo a cortina de crochê com um anjinho a esvoaçar por entre rosas, a pobre Madrinha sempre afobada, piscando os olhinhos estrábicos, “vocês não viram onde deixei meus óculos?” A preta Dionísia a bater as claras de ovos em ponto de neve, a voz ácida contrastando com a doçura dos cremes, “esta receita é nova...” Tia Olívia enfastiada e lânguida, abanando-se com uma ventarola chinesa, a voz pesada indo e vindo ao embalo da rede, “fico exausta no calor...” Marcelo muito louro - por que não me lembro da voz dele? - agarrado à crina do cavalo, agarrado à cabeleira de tia Olívia, os dois tombando lividamente azuis sobre o divã. “Você levou as velas à tia Olívia?”, perguntou Madrinha lá embaixo. O relâmpago apagou-se. E no escuro que se fez, veio como resposta o ruído das cerejas se despencando no chão.
A casa em meio do arvoredo, o rio, as tardes como que suspensas na poeira do ar - desapareceu tudo sem deixar vestígios. Ficaram as cerejas, só elas resistiram com sua vermelhidão de loucura. Basta abrir a gaveta: algumas foram roídas por alguma barata e nessas o algodão estoura, empelotado, não, tia Olívia, não eram de cera, eram de algodão suas cerejas vermelhas.
Ela chegou inesperadamente. Um cavaleiro trouxe o recado do chefe da estação pedindo a charrete para a visita que acabara de desembarcar.
- É Olívia! - exclamou Madrinha. - É a prima! Alberto escreveu dizendo que ela viria, mas não disse quando, ficou de avisar. Eu ia mudar as cortinas, bordar umas fronhas e agora!... Justo Olívia. Vocês não podem fazer idéia, ela é de tanto luxo e a casa aqui é tão simples, não estou preparada, meus céus! O que é que eu faço, Dionísia, me diga agora o que é que eu faço!
Dionísia folheava tranqüilamente um livro de receitas. Tirou um lápis da carapinha tosada e marcou a página com uma cruz.
- Como se já não bastasse esse menino que também chegou sem aviso...
O menino era Marcelo. Tinha apenas dois anos mais do que eu mas era tão alto e parecia tão adulto com suas belas roupas de montaria, que tive vontade de entrar debaixo do armário quando o vi pela primeira vez.
- Um calor na viagem! - gemeu tia Olívia em meio de uma onda de perfumes e malas. - E quem é este rapazinho?
- Pois este é o Marcelo, filho do Romeu - disse Madrinha. - Você não se lembra do Romeu? Primo-irmão do Alberto...
Tia Olívia desprendeu do chapeuzinho preto dois grandes alfinetes de pérola em formado de pêra. O galho de cerejas estremeceu no vértice do decote da blusa transparente. Desabotoou o casaco.
- Ah, minha querida, Alberto tem tantos parentes, uma família enorme! Imagine se vou me lembrar de todos com esta minha memória. Ele veio passar as férias aqui?
Por um breve instante Marcelo deteve em tia Olívia o olhar frio. Chegou a esboçar um sorriso, aquele mesmo sorriso que tivera quando Madrinha, na sua ingênua excitação, nos apresentou a ambos, “pronto, Marcelo, aí está sua priminha, agora vocês poderão brincar juntos”. Ele então apertou um pouco os olhos. E sorriu.
- Não estranhe, Olívia, que ele é por demais arisco - segredou Madrinha ao ver que Marcelo saía abruptamente da sala. - Se trocou comigo meia dúzia de palavras, foi muito. Aliás, toda a gente de Romeu é assim mesmo, são todos muito esquisitos. Esquisitíssimos!
Tia Olívia ajeitou com as mãos em concha o farto coque preso na nuca. Umedeceu os lábios com a ponta da língua.
- Tem charme...
Aproximei-me fascinada. Nunca tinha visto ninguém como tia Olívia, ninguém com aqueles olhos pintados de verde e com aquele decote assim fundo.
- É de cera? - perguntei tocando-lhe uma das cerejas.
Ela acariciou-me a cabeça com um gesto distraído. Senti bem de perto seu perfume.
- Acho que sim, querida. Por quê? Você nunca viu cerejas?
- Só na folhinha.
Ela teve um risinho cascateante. No rosto muito branco a boca parecia um largo talho aberto, com o mesmo brilho das cerejas.
- Na Europa são tão carnudas, tão frescas.
Marcelo também tinha estado na Europa com o avô. Seria isso? Seria isso que os fazia infinitamente superiores a nós? Pareciam feitos de outra carne e pertencer a um outro mundo tão acima do nosso, ah! como éramos pobres e feios. Diante de Marcelo e tia Olívia, só diante dos dois é que eu pude avaliar como éramos pequenos: eu, de unhas roídas e vestidos feitos por Dionísia, vestidos que pareciam as camisolas das bonecas de jornal que Simão recortava com a tesoura do jardim. Madrinha, completamente estrábica e tonta em meio das suas rendas e crochês. Dionísia, tão preta quanto enfatuada com as tais receitas secretas.
- Não quero é dar trabalho - murmurou tia Olívia dirigindo-se ao quarto. Falava devagar, andava devagar. Sua voz foi se afastando com a mansidão de um gato subindo a escada. - Cansei-me muito, querida. Preciso apenas de um pouco de sossego...
Agora só se ouvia a voz de Madrinha que tagarelava sem parar: a chácara era modesta, modestíssima, mas ela haveria de gostar, por que não? O clima era uma maravilha e o pomar nessa época do ano estava coalhado de mangas. Ela não gostava de mangas? Não?... Tinha também bons cavalos se quisesse montar, Marcelo poderia acompanhá-la, era um ótimo cavaleiro, vivia galopando dia e noite. Ah, o médico proibira? Bem, os passeios a pé também eram lindos, havia no fim do caminho dos bambus um lugar ideal para piqueniques, ela não achava graça num piquenique?
Fui para a varanda e fiquei vendo as estrelas por entre a folhagem da paineira. Tia Olívia devia estar sorrindo, a umedecer com a ponta da língua os lábios brilhantes. Na Europa eram tão carnudas... Na Europa.
Abri a caixa de sabonete escondida sob o tufo de samambaia. O escorpião foi saindo penosamente de dentro. Deixei-o caminhar um bom pedaço e só quando ele atingiu o centro da varanda é que me decidi a despejar a gasolina. Acendi o fósforo. As chamas azuis subiram num círculo fechado. O escorpião rodou sobre si mesmo, erguendo-se nas patas traseiras, procurando uma saída. A cauda contraiu-se desesperadamente. Encolheu-se. Investiu e recuou em meio das chamas que se apertavam mais.
- Será que você não se envergonha de fazer uma maldade dessas?
Voltei-me. Marcelo cravou em mim o olhar feroz. Em seguida, avançando para o fogo, esmagou o escorpião no tacão da bota.
- Diz que ele se suicida, Marcelo...
- Era capaz mesmo quando descobrisse que o mundo está cheio de gente como você.
Tive vontade de atirar-lhe a gasolina na cara. Tapei o vidro.
- E não adianta ficar furiosa, vamos, olhe para mim! Sua boba. Pare de chorar e prometa que não vai mais judiar dos bichos.
Encarei-o. Através das lágrimas ele pareceu-me naquele instante tão belo quanto um deus, um deus de cabelos dourados e botas, todo banhado de luar. Fechei os olhos. Já não me envergonhava das lágrimas, já não me envergonhava de mais nada. Um dia ele iria embora do mesmo modo imprevisto como chegara, um dia ele sairia sem se despedir e desapareceria para sempre. Mas isso também já não tinha importância. Marcelo, Marcelo! chamei. E só meu coração ouviu.
Quando ele me tomou pelo braço e entrou comigo na sala, parecia completamente esquecido do escorpião e do meu pranto. Voltou-lhe o sorriso.
- Então é essa a famosa tia Olívia? Ah, ah, ah.
Enxuguei depressa os olhos na barra da saia.
- Ela é bonita, não?
Ele bocejou.
- Usa um perfume muito forte. E aquele galho de cerejas dependurado no peito. Tão vulgar.
- Vulgar?
Fiquei chocada. E contestei mas em meio da paixão com que a defendi, senti uma obscura alegria ao perceber que estava sendo derrotada.
- E, além do mais, não é meu tipo - concluiu ele voltando o olhar indiferente para o trabalho de crochê que Madrinha deixara desdobrado na cadeira. Apontou para o anjinho esvoaçando entre grinaldas. - Um anjinho cego.
- Por que cego? - protestou Madrinha descendo a escada. Foi nessa noite que perdeu os óculos. - Cada idéia, Marcelo!
Ele debruçara-se na janela e parecia agora pensar em outra coisa.
- Tem dois buracos em lugar dos olhos.
- Mas crochê é assim mesmo, menino! No lugar de cada olho deve ficar uma casa vazia - esclareceu ela sem muita convicção. Examinou o trabalho. E voltou-se nervosamente para mim. - Por que não vai buscar o dominó para vocês jogarem uma partida? E vê se encontra meus óculos que deixei por aí.
Quando voltei com o dominó, Marcelo já não estava na sala. Fiz um castelo com as pedras. E soprei-o com força. Perdia-o sempre, sempre. Passava as manhãs galopando como louco. Almoçava rapidamente e mal terminava o almoço, fechava-se no quarto e só reaparecia no lanche, pronto para sair outra vez. Restava-me correr ao alpendre para vê-lo seguir em direção à estrada, cavalo e cavaleiro tão colados um ao outro que pareciam formar um corpo só.
Como um só corpo os dois tombaram no divã, tão rápido o relâmpago e tão longa a imagem, ele tão grande, tão poderoso, com aquela mesma expressão com que galopava como que agarrado à crina do cavalo, arfando doloridamente na reta final.
Foram dias de calor atroz os que antecederam à tempestade. A ansiedade estava no ar. Dionísia ficou mais casmurra. Madrinha ficou mais falante, procurando disfarçadamente os óculos nas latas de biscoitos ou nos potes de folhagens, esgotada a busca em gavetas e armários. Marcelo pareceu-me mais esquivo, mais crispado. Só tia Olívia continuava igual, sonolenta e lânguida no seu negligê branco. Estendia-se na rede. Desatava a cabeleira. E com um movimento brando ia se abanando com a ventarola. Às vezes vinha com as cerejas que se esparramavam no colo polvilhado de talco. Uma ou outra cereja resvalava por entre o rego dos seios e era então engolida pelo decote.
- Sofro tanto com o calor...
Madrinha tentava animá-la.
- Chovendo, Olívia, chovendo você verá como vai refrescar.
Ela sorria umedecendo os lábios com a ponta da língua.
- Você acha que vai chover?
- Mas claro, as nuvens estão baixando, a chuva já está aí. E vai ser um temporal daqueles, só tenho medo é que apanhe esse menino lá fora. Você já viu menino mais esquisito, Olívia? Tão fechado, não? E sempre com aquele arzinho de desprezo.
- É da idade, querida. É da idade.
- Parecido com o pai. Romeu também tinha essa mesma mania com cavalo.
- Ele monta tão bem. Tão elegante.
Defendia-o sempre enquanto ele a atacava, mordaz, implacável: “É afetada, esnobe. E como representa, parece que está sempre no palco”. Eu contestava, mas de tal forma que o incitava a prosseguir atacando.
Lembro-me de que as primeiras gotas de chuva caíram ao entardecer, mas a tempestade continuava ainda em suspenso, fazendo com que o jantar se desenrolasse numa atmosfera abafada. Densa. Pretextando dor de cabeça, tia Olívia recolheu-se mais cedo. Marcelo, silencioso como de costume, comeu de cabeça baixa. Duas vezes deixou cair o garfo.
- Vou ler um pouco - despediu-se assim que nos levantamos.
Fui com Madrinha para a saleta. Um raio estalou de repente. Como se esperasse por esse sinal, a casa ficou completamente às escuras enquanto a tempestade desabava.
- Queimou o fusível! - gemeu Madrinha. - Vai, filha, vai depressa buscar o maço de velas, mas leva primeiro ao quarto de tia Olívia. E fósforos, não esqueça os fósforos!
Subi a escada. A escuridão era tão viscosa, que se eu estendesse a mão poderia senti-la amoitada como um bicho por entre os degraus. Tentei acender a vela mas o vento me envolveu. Escancarou-se a porta do quarto. E em meio do relâmpago que rasgou a treva, vi os dois corpos completamente azuis, tombando enlaçados no divã.
Afastei-me cambaleando. Agora as cerejas se despencavam sonoras como enormes bagos de chuva caindo de uma goteira. Fechei os olhos. Mas a casa continuava a rodopiar desgrenhada e lívida com os dois corpos rolando na ventania.
- Levou as velas para a tia Olívia? - perguntou Madrinha.
Desabei num canto, fugindo da luz do castiçal aceso em cima da mesa.
- Ninguém respondeu, ela deve estar dormindo.
- E Marcelo?
- Não sei, deve estar dormindo também.
Madrinha aproximou-se com o castiçal.
- Mas que é que você tem, menina? Está doente? Não está com febre? Hem?! Sua testa está queimando... Dionísia, traga uma aspirina, esta menina está com um febrão, olha aí!
Até hoje não sei quantos dias me debati esbraseada, a cara vermelha, os olhos vermelhos, escondendo-me debaixo das cobertas para não ver por entre clarões de fogo milhares de cerejas e escorpiões em brasa, estourando no chão.
- Foi um sarampo tão forte - disse Madrinha ao entrar certa manhã no quarto. - E como você chorava, dava pena ver como você chorava! Nunca vi um sarampo doer tanto assim.
Sentei-me na cama e fiquei olhando uma borboleta branca pousada no pote de avencas da janela. Voltei-me em seguida para o céu limpo. Havia um passarinho cantando na paineira. Madrinha então disse:
- Marcelo foi-se embora ontem à noite, quando vi, já estava de mala pronta, sabe como ele é. Veio até aqui se despedir, mas você estava dormindo tão profundamente.
Dois dias depois, tia Olívia partia também. Trazia o costume preto e o chapeuzinho com os alfinetes de pérola espetados no feltro. Na blusa branca, bem no vértice do decote, o galho de cerejas.
Sentou-se na beirada da minha cama.
- Que susto você nos deu, querida - começou com sua voz pesada. - Pensei que fosse alguma doença grave. Agora está boazinha, não está?
Prendi a respiração para não sentir seu perfume.
- Estou.
- Ótimo! Não te beijo porque ainda não tive sarampo - disse ela calçando as luvas. Riu o risinho cascateante. - E tem graça eu pegar nesta altura doença de criança?
Cravei o olhar nas cerejas que se entrechocavam sonoras, rindo também entre os seios. Ela desprendeu-as rapidamente.
- Já vi que você gosta, pronto, uma lembrança minha.
- Mas ficam tão lindas aí - lamentou Madrinha. - Ela nem vai poder usar, bobagem, Olívia, leve suas cerejas!
- Comprarei outras.
Durante o dia seu perfume ainda pairou pelo quarto. Ao anoitecer, Dionísia abriu as janelas. E só ficou o perfume delicado da noite.
- Tão encantadora a Olívia - suspirou Madrinha sentando-se ao meu lado com sua cesta de costura. - Vou sentir falta dela, um encanto de criatura. O mesmo já não posso dizer daquele menino. Romeu também era assim mesmo, o filho saiu igual. E só às voltas com cavalos, montando em pêlo, feito índio. Eu quase tinha um enfarte quando via ele galopar.
Exatamente um ano depois ela repetiria, num outro tom, esse mesmo comentário ao receber a carta onde Romeu comunicava que Marcelo tinha morrido de uma queda de cavalo.
- Anjinho cego, que idéia! - prosseguiu ela desdobrando o crochê nos joelhos. - Já estou com saudades de Olívia, mas dele?
Sorriu alisando o crochê com as pontas dos dedos. Tinha encontrado os óculos.






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A Estrutura da Bolha de Sabão - Lygia Fagundes Teles - resumo
Alguns livros possuem uma história própria que se agrega ao próprio texto literário, aumentando ainda mais o seu encanto. Esse é justamente o caso de A estrutura da bolha de sabão, livro de contos de Lygia Fagundes Telles.
"Em 1973, o Paulo Emílio (Paulo Emílio Salles Gomes marido da autora) contou que tinha um amigo que estudava a estrutura da bolha de sabão. Aquilo me lembrou a minha infância, soprando bolhas e correndo atrás delas com o instinto perverso de estourá-las. Então comecei a imaginar que a bolha seria um símbolo do amor, que é frágil como película, fácil de ser rompida, e ao mesmo tempo é beleza e plenitude", revela Lygia.
O livro levou quatro anos para ser escrito. A inspiração foi abalada em 1977, com a morte de Paulo Emílio. A coletânea somente seria publicada em 1978, com uma alteração. A pedido do editor, ele foi lançado com o título Filhos pródigos, sem obter grande repercussão.
Até que quase 20 anos depois, Lygia Fagundes Telles recebe uma carta de uma editora francesa interessada no livro, mas pedindo para mudar o título para La structure de la bulle de savon. Seria acaso? Não para Lygia: "Eu acredito demais em histórias circulares, uma espécie de predestinação: o livro recuperou seu nome original, inclusive no Brasil, onde foi reeditado em 1995."
Através da leitura de A estrutura da bolha de sabão é fácil entender por que a obra da autora é considerada uma das mais expressivas do país. São contos afiados e cruéis, que têm o acaso e a ruptura como temas centrais. Em contos como "A medalha", "O espartilho" (abordando preconceitos) e "A testemunha" (sobre a loucura) a crueldade das personagens transparece como uma característica feminina: "As mulheres, devido ao longo tempo em que foram tão abafadas, se desenvolveram como bichos no escuro. Criaram certas armas de defesa, que parecem cruéis e imprevistas para os homens."
Por vezes são armas pontiagudas. Perfeitas para estourar bolhas de sabão.
Em A Estrutura da Bolha de Sabão (contos) são abordados a rejeição e a formação da identidade do ser, mas em cada um deles esses elementos estão aliados a outros e são encarados diversamente pelas personagens.
O livro apresenta mais uma vez uma personagem feminina sem nome que reencontra uma antiga paixão: um físico, casado que estuda a estrutura da bolha de sabão. No momento em que ele, acompanhado de sua mulher, a encontra, ela, automaticamente lembra da infância dos dois, em que brincavam com as bolhas de sabão produzidas com canudos de mamoeiro: “A estrutura da bolha de sabão, compreende? Não compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal da minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros, que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque na afobação o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca.”
Embora muito tempo já tivesse passado, e ele já tivesse casado, ela ainda se sentia atraída pelo físico; atração que fica evidente e acaba por fazer com que a esposa do físico sinta ciúmes.
Ocorre um segundo encontro numa exposição de pintura. Novamente a paixão aflora na personagem. Novamente os ciúmes afloram na esposa do físico. É nesta festa que a personagem descobre, através de um amigo em comum, que seu amado está doente. Preocupada com que ele poderia ter, ela decide ir até sua casa. Lá, diferentemente do que esperava, ela é tratada com muita cordialidade e sem nenhuma sombra de ciúmes pela esposa do físico. Tamanha foi a cordialidade, que a esposa acaba tendo que se ausentar por alguns minutos, “preciso ir aqui na casa da mamãezinha e minha empregada está fora, você não se importa em ficar mais um pouco.” E sai deixando-os a sós.
A protagonista de A Estrutura da Bolha de Sabão possui uma entidade definida e a sua luta é dirigida no sentido de impor-se à outra mulher na posse do objeto de desejo. É uma mulher madura que age em igualdade de condições e que só tem como adversário o acaso.
A Estrutura da Bolha de Sabão pode ser considerado uma coletânea de contos marcado para repensar a realidade da mulher e a busca da emancipação feminina. Mas não se trata de um livro inteiramente feminista. A figura do homem também é trabalhada a fundo, marcando sobretudo o aspecto da fragilidade e das carências masculinas.



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Ciranda de Pedra -Lygia Fagundes Telles- resumo
Ciranda de Pedra, publicado em 1954, é o primeiro romance de Lygia Fagundes Telles. O livro, que basicamente conta a história de Virgínia, estabelece em duas etapas, o trajeto cheio de conflitos da vida da menina, desde a infância até os vinte anos de idade.
Virgínia tem uma infância solitária; filha de um casal separado, é obrigada a dividir-se entre dois ambientes familiares que contrastam radicalmente: Laura e Natércio. Virgínia vive com Laura, sua mãe, separada do marido, Natércio - advogado convencional, severo, seco de gestos e de afeto. Sua infância é marcada pela tristeza e solidão. Quando da separação, Laura foi viver em casa de Daniel, seu antigo médico, levando consigo Virgínia. Em casa de Daniel, Laura conta com Luciana, empregada antiga e dedicada, para os cuidados tanto do dia-a-dia doméstico, quanto para com Virgínia, que é ainda muito jovem. Luciana exerce grande influência no espírito da menina. Laura, já muito doente, tem seu estado de saúde agravado, apesar de todos os cuidados e desvelo que Daniel concede a ela, inclusive recorrendo a todos os seus recursos financeiros para as despesas de saúde que exigem o estado de sua querida paciente. Sendo assim, a infância de Virgínia é marcada por grandes dificuldades: de um lado, as financeiras que não permitem à menina realizar pequenos desejos e sonhos (trocar a mobília, por exemplo), posto que todos os recursos de Daniel são voltados principalmente para os cuidados com sua mãe; de outro lado, a solidão em que vive e o profundo sentimento de rejeição pois ela não se sente aceita sequer na casa de Natércio por ocasião das visitas semanais que lhe faz.
Estes sentimentos e conflitos nos são apresentados quando vamos conhecendo detalhes como o fato de Virgínia possuir duas irmãs, Bruna e Otávia que vivem em companhia do pai, Natércio, advogado conceituado que desfruta de bons recursos econômicos, conseqüentemente vivendo estas últimas em condições (econômicas) mais confortáveis que Virgínia (que, entre outras coisas, usa roupas reformadas da mãe, ou das irmãs, bem como os móveis de seu quarto, que são "sobras" do quarto reformado de Otávia). Seu sofrimento e amargura se afloram tanto mais quando de suas visitas à casa de Natércio, muito grande e bonita, com vasto jardim onde existe uma ciranda de anões de pedra com uma fonte, local que ela costuma com freqüência visitar. Mas, apesar da ciranda de anões que ela ama, Virgínia sente-se muito desconfortável na presença das irmãs que a hostilizam e nas quais ela só vê qualidades, enquanto que ela, Virgínia, ao seu modo de ver, só tem defeitos. Sente-se desconfortável também por não conseguir de Natércio, gestos de carinho e afeto de que ela tanto necessita e que ele não oferece, posto que é um homem muito convencional e severo. Angústia e solidão. São estes os sentimentos que Virgínia conhece quer na casa de Natércio quer na casa de Daniel. Nesta última, a menina não pode sequer aproximar-se da mãe pois esta tem raros momentos de lucidez e encontra-se em estado físico e mental bastante precários.
Distante também é seu relacionamento com Daniel, com quem até hesita em alguns momentos, entre o desejo de ter alguma atitude mais afetuosa, porém recuando sempre, na dúvida de como seria recebido seu gesto. O sonho de Virgínia, nessa época, se resume entre o desejo de ir morar com o pai e as irmãs, e, o que seria a realização máxima, a recuperação de sua mãe com o conseqüente retorno das duas para aquela casa e a família novamente reunida. Porém, o estado de saúde de Laura se agrava, fazendo com que Virgínia realize parte de seu sonho: ela volta a morar naquela casa, passando a conviver com as irmãs, Bruna e Otávia, com Fraulein Herta (a governanta), e os amigos Conrado (por que é apaixonada), Letícia (irmã de Conrado) e Afonso. No momento em que Virgínia volta a morar naquela casa, ela se dá conta de que aquele ambiente familiar com o qual ela sonhava, era uma ilusão. Sentindo-se rejeitada pelas irmãs que criticam a mãe por ter-se separado do pai, e sem receber de Natércio o afeto, apoio e carinho que esperava, a menina percebe que não há lugar para ela nesse fechado círculo. Compara a ciranda de anões de pedra do jardim, que era sua paixão, com o grupo tão fechado formado por Bruna, Otávia, Afonso, Letícia e Conrado.
É nesse conflito de sensações que, duas semanas após a sua chegada àquela casa, Virgínia recebe a notícia da morte da mãe, seguida do suicídio de Daniel. É também nessa circunstância que Luciana (que era apaixonada por Daniel), num momento de profunda dor, revela à menina, durante uma visita, que Daniel era seu verdadeiro pai. Sente-se, então, mais sozinha do que nunca e, dando-se conta que jamais seria aceita no grupo, da maneira que desejava, pede a Natércio que a interne no colégio, pedido este que é por ele aceito.
A segunda parte do romance tem início com uma Virgínia já adulta deixando o colégio e voltando para a casa de Natércio. Acreditando que já havia superado todas as suas angústias chega àquela casa, mas não demora a perceber que o grupo continua fechado: uma ciranda de pedra mais rígida que nunca. Bruna, ainda mais moralista, havia se casado com Afonso. Otávia, alienada, dedicava-se à pintura e a alguns amantes ocasionais. Natércio, envelhecido, já não trabalhava mais. Frau Herta estava doente, só e abandonada em um cômodo sujo e pobre de um bairro afastado. Letícia, agora, dedicava-se ao esporte: uma tenista premiada e que se interessava apenas por mulheres. Por fim, Conrado, seu grande amor de infância, amor que ardia ainda em seu coração, vivia isolado, recuado, com sérios problemas sexuais. O retorno de Virgínia ao convívio com o círculo familiar reabriu-lhe as antigas feridas. Mas é neste momento também que ela percebe a real face de cada componente da ciranda, suas fraquezas, suas amarguras. Cada máscara se rompe. Ela se dá conta do que, na verdade, se escondia por trás daquela hostilidade e rejeição: ela era desejada por todos ao mesmo tempo e, por isso, temida. Aos poucos, então, vai-se apresentando uma Virgínia mais amadurecida e forte, independente e segura. Ela abandona, por fim, as tentativas de sua entrada nesse círculo fechado, decidindo-se por uma longa viagem, sem perspectiva de volta. Não mais a ciranda de pedra, não mais o desejado jardim, não mais os sonhos. Nem mesmo Conrado. Tudo havia ficado no passado. Mas, como uma rocha, em suas lembranças estaria gravado. "...um dia, um besouro caiu de costas. E besouro que cai de costas não se levanta nunca mais".






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Moacyr Felix
(Rio de Janeiro RJ, 1926)
Terminou o curso de Direito em 1948, mesmo ano em que foi lançado seu primeiro livro de poesia, Cubo de Trevas. Entre 1950 e 1953 estudou na Faculdade de Letras da Universidade de Sorbonne, em Paris (França), onde também fez estudos de Filosofia no Collége de France. Até 1954 foi redator e locutor de um programa da Radiodifusão e Televisão Francesa para a América Latina. De volta ao Brasil, foi redator da revista literária Marco e redator e locutor de um programa semanal sobre poesia e literatura na Rádio Ministério da Educação e Cultura. Ainda nos anos 50 colaborou em vários periódicos, entre os quais Correio da Manhã, Diário de Notícias, Alguma Poesia e Revista do Brasil. Em 1962 e 1963 foi organizador e prefaciador dos três volumes da série Violão de Rua, para o Centro Popular de Cultura da UNE. Foi preso pelo regime militar, em 1966, por suas manifestações a favor da liberdade de expressão. Dirigiu a coleção Poesia Hoje, da Ed. Civilização Brasileira, entre 1963 e 1971. Colaborou na revista Le Scarabée International, em 1982. É sócio-fundador da Associação Brasileira de Crítica Literária. Entre suas obras estão O Pão e o Vinho (1959), com o qual ganhou o prêmio Alphonsus de Guimaraens de melhor livro de poesia, em 1960, e Em Nome da Vida, que recebeu o prêmio de melhor livro de poesia no país em 1982, concedido pela APCA. Moacyr Félix pertence à segunda geração do modernismo brasileiro. Segundo o crítico Alceu Amoroso Lima, “o socialismo poético-libertário de Moacyr Félix representa uma face perene do sentimento de solidão do poeta, como todo exílio, mas também o protesto e a reivindicação social de um futuro melhor para sua gente e sua terra.”
Cantiga para os Pescadores de Alto-Mar tais como o de Hemingway
A Tereza e Ferreira Gullar

Eia, que eu vou pescar um peixe
de ver meu barco virar!
Eia, que outro peixe não serve
quando mais terra não há,
que a morte só tem valia
no gesto que encontra o mar,
que tudo é vida se o homem
é onda de um renovar
que se renova a si mesmo
sem nunca ter que parar!

Na espuma branca das ondas
onde o vento lambe o sal,
no meu orgulho de homem
que prova o bem, prova o mal,
noites de álcool e de areia
se erguerão, farpas lançadas
contra a morte universal
(isto é triste, mas não mata
esta alegria infernal
de eu havê-las arrancado
qual grande peixe de prata
deste nada tão central).

Eia, que eu vou pescar um peixe
de ver meu barco virar,
que tudo é vida se o homem
é onda de um renovar
que se renova a si mesmo
sem nunca ter que parar.

(...)
O Poema
Ou se vive por inteiro
ou pela metade a gente
escreve a vida
que não viveu.

E o papel em branco então serve
como serve ao prisioneiro
a parede branca do cárcere.

O que não foi é o ser que é
no poema, esse ato mágico
de uma chama que não se vê
tanto mais quanto ela queima
no ar de uma cela vazia
o homem que é posto em pé
sobre os mortos do seu dia.
O Poeta
O poeta se perdia em símbolos.
O poeta se perdia em signos.
O poeta se perdia em palavras.
O poeta se perdia nele próprio
sem que espelho algum lhe trouxesse
o que dele assim ex-fato se perdia.
O poeta foi sempre um perdedor
com a tola ambição de achar-se um dia
sem a necessidade de fazer poemas
sobre a existência que lhe escapulia.

O poeta é uma besta inglória
entre a beleza de uma laranja
e o riso de todas as árvores mortas.
ÀS MARGENS DESTE RIO CANTAREI
a Luiz Paiva de Castro
Às margens deste rio cantarei com alegrias e tristezas
várias faces de todo o ser do homem. De pé, atrás dos [ponteiros
onde a vida é desnuda e o sangue não pergunta,
eu tentarei cravar entre os ossos do meu tempo
o pesadíssimo lamento do silêncio dentro das coisas.
Linha dos horizontes, o coração se estende
ao lado dos amantes e colhe o mel das luas
que aclararam o mar de amor entre dois corpos.
Assim surge a promessa e o fundamento de uma utopia
que minhas auroras cavoucam no que ainda não tem fala.
Cisne em rio noturno, se o coração se põe
em marcha e bebe os vinhos deste vento
que sopra o último adeus dos fuzilados
em direção a nós,
os rumos, de tão claros, arrancam choro e sangue
no canto que os celebra.
II
Às margens deste rio
cantarei
os pobres e os humildes
e a aurora sempre a mesma
no olhar dos que conduzem
os pobres e os humildes.
E as estradas tão longas
no coração dos velhos
e a navegante mesa
dos ébrios, e o sapato
imóvel dos defuntos,
e o férreo marche-marche
dos trens cruzando as pontes
cantarei como poeta às margens deste rio
que os ricos armadores sombrearam de navios
carregados de urânio e de ouro negro
e de perguntas prisioneiras.
III
Inalterável, eu, que atravessei o tempo
com a mensagem triste dos velhos outonos
presa no meu relógio,
eu, védica sandália, Atenas grave e trágica
ou doce fruto de uma dor hebraica,
às margens deste rio
cantarei no que fui como criança
a lenda
de uma princesa adormecida
(tão bela como a vida)
que dormia e dormia
(tão bela como a vida)
até que a despertaram
tão bela como a vida.
CANTO PARA AS TRANSFORMAÇÕES DO HOMEM *
A Ênio de Silveira,
M. Cavalcanti Proença
Moacir Werneck de Castro e Miguel Arraes de Alencar
A todos os que sonham e trabalham por um mundo melhor, libertado dos obscurantismos e dos dogmas, do apodrecimento da própria existência pela
miséria física e da perda dos valores dos humanismo pela miséria moral.
(I) INICIAÇÃO
- Meu pai, o que é a liberdade?
- É o seu rosto, meu filho,
o seu jeito de indagar
o mundo a pedir guarida
no brilho do seu olhar.
A liberdade, meu filho,
é o próprio rosto da vida
que a vida quis desvendar.
É sua irmã numa escada
iniciada há milênios
em direção ao amor,
seu corpo feito de nuvens
carne, sal, desejo, cálcio
e fundamentos de dor.
A liberdade, meu filho,
é o próprio rosto do amor.
- Meu pai, o que é a liberdade?
A mão limpa, o copo d’água
na mesa qual num altar
aberto ao homem que passa
com o vento verde do mar.
É o ato simples de amar
o amigo, o vinho, o silêncio
da mulher olhando a tarde
- laranja cortada ao meio,
tremor de barco que parte,
esto de crina sem freio.
- Meu pai, o que é a liberdade?
È um homem morto na cruz
por ele próprio plantada,
é a luz que sua morte expande
pontuda como uma espada.
É Cuauhtemoc a criar
sobre o brasileiro que o mata
uma rosa de ouro e prata
para altivez mexicana.
São quatro cavalos brancos
quatro bússolas de sangue
na praça de Vila Rica
e mais Felipe dos Santos
de pé a cuspir nos mantos
do medo que a morte indica.
É a blusa aberta do povo
bandeira branca atirada
jardim de estrelas de sangue
do céu de maio tombadas
dentro da noite goyesca.
É a guilhotina madura
cortando o espanto e o terror
sem cortar a luz e o canto
de uma lágrima de amor.
É a branca barba de Karl
a se misturar com a neve
de Londres fria e sem lã,
seu coração sobre as fábricas
qual gigantesca maçã.
É Van Gogh e sua tortura
de viver num quarto em Arles
com o sol preso em sua pintura.
É o longo verso de Whitman
fornalha descomunal
cozendo o barro da Terra
para o tempo industrial.
É Federico em Granada.
É o homem morto na cruz
por ele próprio plantada
e a luz que sua morte expande
pontuda como uma espada.
- Meu pai, o que é a liberdade?
A liberdade, meu filho,
é coisa que assusta:
visão terrível (que luta!)
da vida contra o destino
traçado de ponta a ponta
como já contada conta
pelo som dos altos sinos.
É o homem amigo da morte
Por querer demais a vida
- a vida nunca podrida.
É sonho findo em desgraça
desta alma que, combalida,
deixou suas penas de graça
na grade em que foi ferida...
a liberdade, meu filho,
é a realidade do fogo
do meu rosto quando eu ardo
na imensa noite a buscar
a luz que pede guarida
nas trevas do meu olhar.

(II) ENREDO
I
Onde se destrói o mundo em que vivo
aí estou.
Onde há destruição, aí se define o meu caminho.
Onde os deuses se desmoronam é que apareço
sem rosto
atrás de suas formas feitas de noite e de medo.
Onde se morre, onde se nasce.
Onde se morre é que eu renasço.
- Stirb und werde!
- “Morre e transmuda-te!”
Está não é, meu velho Goethe, a verdade das verdades, a [ignorada
pelos que apenas
“um hóspede triste sobre a escura terra”?!
A morte e o fogo e a humilhação e o ódio
em vida e verde devem ser devolvidos.
II
Depois de silenciar o vozerio das cores
nas coisas cinzas que não dizem mais
do olhar humano que as fizera humanas,
a chama desce, e em rodopios tontos
retorna ao calor íntimo da terra,
ao berço rubro, à causa que realiza
este mistério grande de existir
o peixe e a estrela, o movimento e a cor
e o som do homem a se querer de amor.
Medo e humilhação e ódio
Assim alimentados serão devolvidos.
III
Medo e humilhação e ódio
devem ser devolvidos:
infenso ao homem é guardá-los em sua alma
receptáculo de coisas maiores
(como as águas da lua a perlavar a noite
num rosto de criança que dorme
ou numa anca macia de mulher nua).
Porque emudeceu a voz mais alta de minha infância?
Que ternura imunda rouba
A fala do mar dos pés de uma criança?
Que nos faz sobreviver, adultos
somente em medo e humilhação e ódio?
Querer-me novo é querer-me mais que morto
em mim ou nesta existência que me olha.
É querer-me outro que não este em que me instalaram.
É não parar, não querer parar os eixos
desta roda de luz
- plural de eternidades
a dissolver o bronze entre os escombros do que eu era.
Nesta banda podre do tempo
A água não inventa rios
nem ouve os cantos do mar.
Nestas escarpa onde habitam os dourados senhores do sul
ninguém nasce, ninguém agoniza mais de uma vez.
Aqui o sangue se enclausura
numa ordem arrumada como a das geladeiras.
E não sabe mais a ciência do orvalho numa alegria de flor.
Aqui a morte interrompe apenas o esforço de durar.
Aqui
Medo e humilhação e ódio
não devem ser recebidos
Muitas vezes essa é a única forma concreta de amar
aqui.
IV
Quando ensolarada pelas raízes do fogo, a vida
é o coração ligado ao velocíssimo novelo das galáxias
e na fúria de uma lágrima, senhores, e no desejo
de todo amor que se descobre
fogo e movimento e transformação
eu poderia doar-vos o acontecimento ilimitado,
o reinado da ordem e do caos anteriores a todos os deuses.
Porém a treva, a treva deste mundo em que eu escuto
estilhaçar-se a vida em seu cristal escuro,
[a treva
só me permite em vossas mãos (e nas minhas)
apenas com esses parcos cacos de mim próprio...
Os vossos mitos são fortes, senhores, muito fortes. V
Nos álbuns de família quem ganha e perde
és tu, sombra de Heráclito,
a transformar em chuva o sol em nossos rios.
Nos álbuns de família com brasões, a sepultura ideal
dos que já morreram
tantas vezes
quantas as que se deixaram fotografar
singulares
sobre uma data, uma conquista ou uma verdade
que pensaram imóveis.
Se o camponês não possui maquinas
Fotográficas
Para re-saltar o instante de sua morte como servo,
que família imóvel é essa que se quer sagrada?
Ignora ela a vazia tristeza dos seus domingos,
quando os cupins também a devoram ao lado da Casa [Grande?
Nos álbuns de família, qual a vida que está neles?
Se em cada página o tempo ri
velho devasso, avô caduco
a negar ajuda e mão
estranha-mente
aos netos acordados pelo dor em fundo chão.
Nos álbuns de família quem ganha e perde
és tu, sombra de Heráclito,
a transformar em chuva o sol de nossos rios.
VI
De repartição em repartição a poesia
fugiu, tentou fugir
do engavetado mundo das mesas
alinhadas
como leitos fúnebres
à disposição das
necrófilas orgias de generais e beatas e banqueiros
e exporta-dores.
Ah, o clima de cemitério que reina nos ministérios!
Ah, a essencial recusa da poesia,
suas explosões de sangue naufragando
o destino e a infiníta infância da vida
entre os ruídos do mar e a rouquidão dos homens
[agachados.
Agachados
sob o pensamento natimorto dos que divinizam
o Poder, o Estado, e a Política.
Ah, a aurora guardada no tinteiro dos poetas
em que o amor apenas autoriza o dia
na praça
sem o discurso hipócrita
ou na cidade sem bancos e sem forças armadas.
VII
Assim como defende
a perfeição da flor
acabada
e em si mesma fechada,
o poeta não defende
até hoje governo algum:
seu lado é o lado do povo
sempre e sempre roubado
por mil, por cem ou por um.
O pelego se untou
nas banhas do negocista
e engordou engordou
tanto
que a sua barriga tão grande
esmagou
a menina do povo
que vinha com a flor,
que vinha com a flor.
O poeta defende
o direito de andar
até o outro lado da vida
em que o homem é o seu avesso
o chão de seu próprio mar
e a verdade a rosa nua
solta na praia e na rua
como um convite a bailar.
O poeta defende
o direito de amar.
VIII
Do princípio e do fim das horas que o dinheiro envilece
foi então que chegaram os matadores de pássaros,
os que invadiram a minha ilimitada gaiola de ossos
e arrastaram de lá o poeta
para os depósitos de preços ou de presos.
A roda dos olhos quebrada ou o acanalhamento.
O mundo, ou o interior do exterior, tinha que ser quebrado
alguma coisa, a vida, tinha que ser quebrada
já que os homens inteiros estavam ainda no ventre
dos que reivindicavam uma história nova
nos campos e nas fábricas.
Ou no pensamento daqueles que sabiam escutar, mas
com um punhal na cintura,
o abraço das coisas e dos seres.
De re-partição em re-partição a poesia
Comprimiu o poeta no coração de uma bala.
IX
Segregada pelos amiantos do medo nos comutadores
e nos lustres, a luz
despe-se de todo berro e toda flama,
enquanto no morno ritual da sala
a saltar de colarinhos e colares
a palavra do homem assassina o homem: repetição de [quando
o sílex, afiado, trazia a morte para as suas carótidas.
Os antigos porém, desconheciam os terríveis cortejos
a enterrar na tarde movida pela fala inglesa
a mudez de um Cristo sempre de madeira
e a histórica possibilidade de liberdade na existência.
E não gelavam o sangue da palavra injustiça
Em fáceis copos de uísque.
Nem mediam também a construção do homem pelo número [de suas latrinas
sabiam eles, os antigos, pelo menos a diferença
entre o conforto das jaulas e o fogo aceso no topo das [montanhas.
Mais alto do que eles, o coração do povo tem que saber [isso!
Mais alto do que eles, o carvão que faz a noite
vestir a chama do silêncio em chamas
escreve
na estupidez moderna destes nossos muros
indicações escritas pelo sol nos mapas do futuro.
X
O homem, os homens
São vitórias da morte a circular as vidas
ou sombras opacas de uma Vida
em que esse anti-salto, a morte
não existe e nem nunca existiu
a não ser em seu não-ser de ser
desvão ao lado de desvão na ponte?
Se os câes falassem, ah, como ririam
(em frente ao sol)
dos nossos medrosos altares.
(III) CONCLUSÃO
É inútil querer parar o Homem,
o que transforma a pedra em piso,
o piso em casa e a casa em fonte
de novas músicas da carne
sob as velocidades da luz e da sombra.
É inútil querer parar o Homem
acolher sempre um pouco de si próprio
no mistério da vida a cavalgar
os cavalos aéreos da semântica
sob uma indeferida eternidade.
É inútil querer parar o Homem
e o impulso que o transforma sempre
na pátria sem fim do ato livre
que arranca a vida e o tempo e as coisas
do espelho imóvel dos conceitos.
Ah, que mistério maior é este
que liga a liberdade e o homem
e une o homem a outros homens
como o curso de um rio ao mar!
(quando a noite é una e indivisível,
nos olhos da mulher que eu amo
acende-se o deus deste segredo
-e uma sombra só nos transporta
ao fundo sem nome da vida.)
É inútil querer parar o Homem.
Do que morre fica o gesto alto
a ser o germe de outro gesto
que ainda nem vemos no tempo.
Isto as crianças nos lembram
quando rodam em nossas portas
os ossos do dia que foi nosso
e agora são os eixos do pedalar
nas bicicletas com que os deuses
as vão levando para outros dias
do acaso, do desejo e do fazer
em que não seremos mais, eternamente.
É inútil querer parar o Homem
e o seu sonho a dar longas voltas
ou a inventar estradas no cárcere,
o seu sonho mais essencial
a destruir e a enferrujar
metais de qualquer ditadura.
É inútil querer parar o Homem
e o seu sonho, o mais de flor,
de apagar dos lábios da terra
o ricto do medo que estica
no céu de aço a bomba atômica;
o seu sonho, que é o seu movimento
onde a razão dança mais bela,
de ver no armário dos museus
o manual oco e sem asas
que aprisiona o corpo e o sexo
en desrazões dadas na infância
e os livros de Deve & Haver
dos poderosos de Manhattan
comerciando Deus e o mundo.
É inútil querer parar o Homem
e o seu sonho de enterrar
sob o verde passo de uma história livre
os dogmas do stalinismo
grudado como esparadrapo
sobra a boca múltipla da vida
(e a subdesenvolvida farda
dos tiranos que bebem uísque
pago com o sangue de sua pátria).
É inútil querer parar o Homem:
em tudo que de amor cantar
o seu sonho caminhará
a encaminhá-lo na direção dele próprio
inteirado quando históricamente liberto
do econômmico em que ora o algemam.
É inútil querer parar o Homem,
o que transforma a pedra em piso,
o piso em casa e a casa em fonte
de novas músicas de carne.
A andar em formas de palavras
sob os arvoredos da vida
o sonho do Homem caminhará
do pensamento para as mãos
e das mãos para o pensamento,
noite e dia caminhará.
até tornar as mãos em pássaros
livres, inteiramente livres, para amar
o azul ou as várias almas do céu
dentro do Homem que se movimenta
na liberdade, no amor e no desejo
em que a si próprio inventa.
CRÔNICA DA ESCANDINÁVIA PARA UMA SUECA CHAMADA BIRGITTA
I
Olha, querida, como o céu é simples
atrás das ilhas em que amor fizemos.
A proa dos barcos a recortar as ondas como seios
que se dissolvem, espuma e sonhos marinheiros
para os nossos olhos libertados.
Olha a bússola dos homens, seus desígnios
na ciência em que procuram tanto a vida
entre as escamas do salmão e a luz de Vênus.

na tarde deste sol os grãos da noite escura,
e vence com sua mais loira fome, a que é do ventre,
a POSSESSIVA SOMBRA desses vários morros
atrás dos quais a morte se sabe nossa dona
e espera.
II
Azeitonados tetos, largos azinhavres, mugidos
cor de bronze
espetados na perfeição letárgica da neve;
torres ogivais, circulatura eslava, sombras
de Absalom e Tor, paradas
no sólido silêncio que governa
das ameias dos castelos
Copenhague, Copenhague de bronze e sangue
com sua cerca de guindastes e seu longo quebra-mar...
O que é partir, o que é chegar
quando a vida se desmancha em pleno mar
e os nossos vários rostos acabados
são um estranho recordar
de urgências nunca realizadas?!
Ah! As gaivotas, o apito de outras barcas,
o cais ficando longe, e já dentro de nós
o tempo, mudo pássaro de vidro, a estilhaçar-se
- Copenhague!
neste irreal terrível que é o ato de lembrar-te
Copenhague, Copenhague de bronze e sangue
com sua cerca de guindastes e seu longo quebra-mar...
III
Sim, apenas um homem com o seu frio
há mais de vinte séculos sob a chuva,
sua necessária garrafa de Aalborg, seu olho preso
à falsa cruz dos advérbios, cruz onde sufoca
informe e una a relação dos mundos.
Sim, apenas o homem e seu salgado desencanto
a dissolver-se nas veias de mais um novo encantamento.
Apenas um homem que nasce e morre sempre
dentro da noite como a luz
de um farol que se apaga e que se acende.
IV
No vilarejo de Mörlanda
o domingo parava
entre jardins e casas
quadradinhas. Tudo era paz
no vilarejo de Mörlanda.
E o médico dinamarquês dizia
que à noite a consulta era mais cara,
mas que os doentes da noite não queria
pois o imposto, que também subia,
não lhe compensava o esforço, e não valiam.
Tinha um rosto bom, e como um bom sorria
a seus filhos junto aos meus cruzando o dia
com os olhares presos no filme em que o homem é
informaticamente ensinado para ser
cada vez mais sem consciência o lobo de outros homens...
Entre jardins e casas
quadradinhas, tudo era paz
no vilarejo de Mörlanda.
Entre jardins e casas quadradinhas
dentro da paz cumprimentou-me a guerra
no vilarejo de Mörlanda.
V
Com o coração de pé para colher
a flor azul que percorre
o que só de amor não morre
no quarteto em ré menor
de Ludwig van Beethoven,
eu, a noite e a dor que é minha
te exigimos inteirinha
sem vestido e sem calcinha.
Verdade de mulher nua,
teu corpo branco - pureza! –
distendeu-se em quatro luas
repletas de treva acesa,
em quatro esferas de seda
onde - animal exato
preso aos fios do seu tato –
foi que teci essa tua
manta de orgasmo ou de fúria
saudosa da vida crua.
(No peito minha dor atlântica
repousou como borboleta
na flor azul que percorre
o quarteto em ré menor
de Ludwig van Beethoven.)
VI
Sobre a torturada árvore sem folhas
os vidros da janela consentiam ainda
nuvens e aves, e um tremor de sol.
Mais um anoitecer em Ellestad,
mais um lucilar de despedida,
mais uma lâmpada
sem ruídos partida e repartida
pela avessa emoção de um tempo imóvel
se movendo e nos movendo
no difícil mar sem nossos rios
e onde - razão ou dor? - nos conferimos
fragmentos de um sol queimado em tardes.
Em suas molduras douradas os espelhos
mais uma vez
ofereceram seus túmulos sem fundo
- e sepultaram o sol sem grandes pompas.
VII
Túmulo, túmulo é a lei que rói
entre meus ossos verdades impossíveis
agora, somente agora.
Amor e morte, aqui me instalo em homem.
Amor, se entendes isto, as mais belas amoras do meu sangue
ofertarei a ti,
aos secos labirintos de tua infância.
E as minhas noites, as nossas noites
no âmago da própria noite
serão canais abertos
a esta sombra viva, a esta sombra clara
do nosso avesso humano subitamente recomposto
pelos nossos jogos abissais de verbo e carne.
Karlshamn, 1960




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Péricles Eugênio da Silva Ramos
(Lorena SP, 1919 - São Paulo SP, 1992)
Teve seus primeiros poemas publicados no jornal carioca Diário de Notícias, em 1936. Estudou Direito em São Paulo, concluindo o curso em 1943. Na faculdade, ocorreu a publicação de seus poemas na antologia Poesia Sob as Arcadas, organizada, em 1940, por Ulysses Guimarães. Em 1947 fundou a Revista Brasileira de Poesia, com Domingos Carvalho da Silva e João Acioli, entre outros. Criou, a partir da revista, o Clube de Poesia de São Paulo, do qual foi presidente em 1952 e entre 1958 e 1963. Nos anos seguintes traduziu várias obras, entre elas poemas de Byron, François Villon e Góngora. Também organizou antologias de diversos poetas e publicou os livros de ensaios O Verso Romântico e Outros Ensaios e Do Barroco ao Modernismo. Entre 1966 e 1992 lecionou Literatura Portuguesa e Técnica Redatorial na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Em 1970 exerceu o cargo de diretor técnico do Conselho Estadual de Cultura; foi um dos criadores do Museu de Arte Sacra de São Paulo, do Museu da Imagem e do Som e do Museu da Casa Brasileira. Recebeu, em 1988, o prêmio de Poesia, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, pelo livro A Noite da Memória (1988). Sua obra poética, vinculada à terceira geração do Modernismo, inclui os livros Lamentação Floral (1946), Sol sem Tempo (1953), Lua de Ontem (1960), Futuro (1968) e Poesia quase Completa (1972). A respeito de sua obra, o poeta Cassiano Ricardo escreveu: "pela natureza mesma de vossa poesia, tanto em Lamentação Floral como em Sol Sem Tempo, sois um criador de figuras não só de linguagem senão ainda de figuras corpóreas: 'remarei sobre teus seios, galera branca de lua'.".
Dezessete horas
1
Arde a tarde,
nua.
Nua como um rosto,
nua como um seio
no ar.
2
Há um rumor
nos troncos
maduros de mel.
Zumbe a noite
(a noite? A noite),
zumbe a noite,
opaca. Misteriosa. Indevassável.
Próxima.
Duas Horas
ou
Da vida
Silêncio. Escuridão.
Um grito
em meio às trevas.
Um grito rápido. Um grito triste.
Lâmina.
Por que rápido? Por que triste?
E de novo o silêncio:
nenhuma explicação.
Cabelos, os Meus Cabelos
Cabelos, los meus cabelos,
El-rei m'enviou por elos.
JOÃO ZORRO

Cabelos, os meus cabelos,
que fontes de negro espanto!
descendo por minhas costas
com segredos de floresta:

meus peitos, meus peitos altos,
são tochas em meio às trevas,
ardendo com seus perfumes,
queimando com fogos claros;

trago uma lua nos ombros,
cascatas pelo meu corpo,
e as sombras da madrugada
no topo de minhas coxas.

Meus peitos, meus peitos nus,
para o amado os tenho virgens:
se ele os pudesse colher,
duros ramos de alecrins!

Teria em corpo desnudo
a ternura do bom Deus,
as mãos derramando trigo
sobre papoulas dormidas.

Cabelos, os meus cabelos,
el-rei os mandou buscar
para os prender em seu leito:
meu corpo, o triste, vai junto.

Não mais verei os meus bosques,
não mais os trevos em flor:
minh'alma geme na estrada,
anoitecendo os caminhos.

Quer el-rei os meus cabelos,
e quer também o meu corpo:
arderei nas madrugadas,
rosa austera em grave leito.

Meu alvo corpo desnudo,
deserto avaro de estrelas,
um sonho de areias brancas
em brancas dunas a pique...

Arderei nas madrugadas,
sofrendo amargos carinhos:
meu coração, o infeliz,
suspira, pombo ferido.

Cabelos, os meus cabelos,
el-rei deseja o meu corpo:
sangrarei sobre seus linhos
como uma rola flechada.

Cabelos, os meus cabelos,
meus peitos, meus peitos altos,
meu virgem corpo desnudo
já não será para o amado. Céus Nossos
Céus nossos, terra nossa,
nossa é a graça,
a graça de existir por um momento.

Chamas, ensinai-nos a lição
de iluminar morrendo.
Fonte
Passado, sombra de uma nuvem
na água trêmula
Joana Madalena
1
Cega, chuleava roupa.
Não via, mas chuleava.
E tinha noventa
anos. E era
cega.

Hoje talvez enxergue;
mas as cinzas não trabalham.

2
És a lua de ontem,
minha avó.
Ausente à vista, certa na memória;
tranquila na lembrança
como o pão e a roupa,
os livros que me deste.

E és um presente ao homem,
àquele que hoje sou,
feito de velhos dias:

com teus lençóis sem mancha
nas tardes de Lorena —
onde há lençóis, nuvens lavadas
em céus também lavados.

3
Tarde adentro a voz se ouvia
na varanda,
tarde adentro
(a tarde era profunda):
"O fim é que é triste.
Um belo romance, A Filha do Diretor do Circo.
Como a Dejanira lia bonito!
Leia um pouco, meu neto."
E o menino lia.

Colibris revoavam no alpendre,
das canangas e dos manacás e dos bambus do Japão
subia um meigo aroma,
e havia em tudo um sabor de fonte e de jambo,
e tudo era idílico e doce,
mesmo a voz das corruíras pelas calhas,
mesmo o coaxar das rãs na terra úmida.
Crescia o musgo nas paredes
e havia papoulas e jasmins-do-cabo e rosas-chá
e flores de araruta como borboletas brancas:
tudo tão distante...

Ó minha avó, ó lua de ontem,
ensinarei teu nome aos pássaros em fuga
Prenúncio
1
Passa o vento,
as folhas tremem:
a sombra se inquieta.

2
Do topo dos ipês
cai a sombra:
rendada, sonhadora, espiritual.

O sol, os ipês, a sombra;
o tempo, o homem, sua sombra:
breve passagem pela terra,
e a grande sombra,
constelar, definitiva, irmã das pedras.
Epitáfio

As ondas nascem,
as ondas morrem,
num só minuto;
mas o pensamento
pode eternizá-las.

As rosas nascem,
as rosas morrem;
mas o pensamento
pode concebê-las imortais.

Por isso eu vos tirei do mar,
ó vagas!

Por isso eu vos tirei do lodo,
ó rosas!

Porém voz fiz etéreas e flamantes,
para brilhardes sobre a poeira em que me tornarei.


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Renata Pallottini
(São Paulo SP, 1931)
Cursou Direito na Universidade de São Paulo (USP) entre 1949 e 1953, onde publicou seus primeiros poemas, nas revistas da faculdade. Também fez o Curso de Filosofia Pura na Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), concluído em 1951. No ano seguinte publicou Acalanto, seu primeiro livro de poesia. Em 1960 ocorreu a montagem de sua peça A Lâmpada, com direção de Teresa Aguiar, em Campinas SP. Lecionou História do Teatro Brasileiro na Escola de Arte Dramática da USP, em 1964. Um ano depois foi encenada sua peça O Crime da Cabra, sob direção de Carlos Murtinho, sua estréia no teatro profissional. Entre 1969 e 1982 publicou oito peças de teatro, foi roteirista do programa infantil Vila Sésamo e diretora da Escola de Arte Dramática da USP. Nas décadas de 1970 e 1980 trabalhou como tradutora e roteirista de telenovelas e séries para a TV, entre as quais Malu Mulher (TV Globo). Publicou livros de contos, poesia infantil e ensaios. Em 1997 recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. Sua obra poética inclui os livros A Faca e a Pedra (1962), Os Arcos da Memória (1971), Noite Afora (1978), Esse Vinho Vadio (1988) e A Menina que Queria Ser Anja (1987). A poesia de Renata Pallatini vincula-se à terceira geração do Modernismo. Para o crítico Wilson Martins, "poeta independente das escolas transitórias e modas efêmeras, Renata Pallottini restituiu à poesia brasileira o elemento de emoção pessoal e literária de que começou perigosamente a se despojar com João Cabral (...), assim como, e por isso mesmo, passou a evidenciar uma integração cada vez mais sensível na vida coletiva, na existência política do Brasil enquanto nação, pagando o tributo inevitável, oneroso e paradoxal de restringir o alcance de sua poesia no ato mesmo de parecer expandi-lo".
Finisterrae

Aqui começa o fim
Feito de vento.

Enlouqueceu a bússola
Do tempo.

Naufragam as certezas
Do infinito.

Aqui se acaba o mapa
Nasce o mito.

Aqui começa a morte
Em naves findas .

Aqui começa o medo.
Como um grito.
Cântico dos Cânticos - 2:16
(O meu amor é meu e eu sou dele; ele apascenta
o seu rebanho entre os lírios.)

O meu amor é meu e eu sou dele.
O linho horizontal é nossa casa
e eu me aninho a dormir sob sua asa;
amo-o com minha boca e minha pele.

Ele é quem vela, e não me diz que vele
porque sua é a chama e minha a brasa.
O seu fervor ao meu fervor se casa,
clara coma de luz que nos impele.

Desci ao campo raso: ele é meu campo
onde me deito e a erva se derrama;
é meu olhar que voa, pirilampo.

Sem terra irei por terra: ele me chama.
Vou sem saber por onde, ao mar ou monte.
Sem sua boca eu já não sei ser fonte.
Chocolate Amargo

No mapa imaginário de todas as terras
Aí estás, país do grande sol,
Dos animais gigantes e das árvores sagradas
Terra da cachoeira de diamantes e
Do ouro sangrado

Continente sangrante
Teus filhos adormecem sem saber se ainda vivem
Depois que a liberdade abandonou as tribos
E os deuses de Mahoma, mais os deuses de
Cristo
E os deuses-orixás, mais os deuses perdidos
A ti te abandonaram , doce terra de elefantes,
Macia terra de desertos.

Ninguém te libertou, nem a deusa-Libéria
Nem a cor de Nigéria, de chocolate amargo,
A tua dor não para, ela se exaure em malatías
Em doenças exânimes, de sangue ,
Continente sangrado...

Lutando enlouqueceste e te fizeste algoz
Dos teus irmãos em preto e alma , em negro
E lama
As crianças armaste para despertá-las
Mas elas adormeceram
Como flores cortadas

E aí estão, em ti, carregando suas armas
Brinquedos terminais,
Se suicidando...

No mapa das desgraças, cartografia antiga,
Brilhas em negativo, com teus machos moldados
Homens esculturais, reis de toda corrida,
Reis do jogo e do corpo e da má sobrevida Reis da fuga [humilhada
Do trabalho submisso

Escravo bom de sempre, quando te eriças
E empoas teu cabelo e foges para o mato
Buscam-te, seu cavalo, buscam-te, sua mina
Buscam em ti o seu desejo de reaver a serventia
Buscam a mão, a perna, o sexo
A carapinha
Que depois vão negar nas gerações futuras
Com um pé na cozinha...

No mapa dos exércitos, rebrilhas com teu riso
De quem não sabe mais a quem pedir auxílio

Queremos teus diamantes, queremos o teu óleo,
Queremos tua pele, queremos teu sabor
De carne de macaco, de serpente, de água.

Queremos destruir-te para depois chorarmos
A imensa mancha negra que ficará
nos mapas.

Só minha avó, agora, me consolaria
com sua cor romana de pão perfumado.

Só a avó e o pão duro que eu beijo
e o vinho roxo o vinho que me foge
podem me consolar
de haver perdido o jogo
que para todos os demais
para os normais
era só um brinquedo de crianças
a mais.

Ou então, ou então
Talvez a amiga
Que sabe todas as palavras escondidas

Podíamos passear no Cambuci
Lembrando o morro do Piolho e a Bastilha .
Podíamos chorar, se não fosse que ela
Tem pejo de chorar
E se não fosse assim
Já teria morrido de chorar
Decerto.

A amiga está tão longe
No deserto ...
Macunaíma
(...)
Meu filho, cresce ligeiro,
para ir pra São Paulo
e ganhar dinheiro.

Adeus mato cheiroso orvalho da manhã
adeus água de prata cascata
adeus ramo de arruda hortelã
a mata está a pique de acabar
jandaia buriti jussara aracuã
cresce depressa pra dandar
meu filho
pra ganhar
vintém
cresce depressa e entrega a mata
ao invasor
meu filho pra ganhar
vintém
Quanta floresta! É ouro verde na divisa
brasileiro vai ganhar
vintém

cresce depressa e sem caráter brasileiro
e vende a mata
pra ganhar
vintém

Na cidade das máquinas doente
Macunaíma sobrevive e pensa:
nas ruas, cipoal de muita gente,
só o ato de brincar
é que compensa.

Para a tristeza, o amor;
para a preguiça
o amor, e para a febre
mordidas de saúva da paixão.

Muita saudade
e muita pouca ação
os males do Brasil
são.

Macunaíma, audaz tumucumaque,
menino inventador, herói de araque,
lá vai ele, criador de boi-bumbá;
voltando para a terra antes que acabe,

para o seu galho em antes que desabe,
para as florestas
cada vez mais menos,
para as montanhas, já
montes de Vênus,
para os campos,
agora mais pequenos...

Macunaíma encolhe igual sanfona
na charanga brasílico-amazona.
(...) Noite Afora
A quem devo dizer que em tua carne
se sobreleva o tempo e o duradouro,
mancha de óleo no azul, alaga e intensifica
o contratempo a que chamei amor?

A quem devo dizer dos meus perigos
quando, o corcel furioso, olhei ao longe
e não vi mais limites que o oceano
nem mais convites que o das ondas frias?

Como antepor o corte nas montanhas
— Liberdade — ao dever que a si mesma impõe a terra
de estender-se conforme o espaço havido?

Malícia do destino, ardil composto outrora...
Arde a grama da noite em que te vais embora,
e essa chama caminha, essa chama, essas vinhas,

essas uvas, cortadas noite afora.
Poema da Rua Maria Antonia
Por sobre o muro
voam bombas e garrafas incendiadas
pedras agudas e palavras
duras.
Por sobre o muro
voa a lembrança de um amor que houve
uma visão passada e deslocada
que tenta ultrapassar o muro e do alto
proclamar-se intocada.
Mas as garrafas incendeiam tudo
e a palavras
tornam menos urgente o amor antigo
e mais urgente o aviso:
esta é a guerra das guerras
guerra civil dos que foram amigos.
Por sobre o muro
espio com espanto o pátio incendiado
os jovens que se atingem entre lágrimas
os feridos e os gestos e os detalhes.
Minha cabeça ponho sobre o muro.
É uma cabeça desligada do seu corpo
como a cabeça de um guilhotinado
de olhos abertos.
Com meus olhos abertos sobre o muro
vejo o sangue e a fumaça da contenda.
Não posso distinguir qual dos lados do muro
é o mais claro, o mais limpo, o mais certo, o mais justo.
Meus olhos na cabeça decepada,
Buscam ansiosamente sobre o muro
o caminho mais curto, a razão mais sensata,
ou pelo menos a mais desinteressada.
Meus olhos, na cabeça desnorteada
procuram com inútil desespero
a arma de lutar, a faca de se defender
o punho de atacar.
Na cabeça infeliz meus olhos são culpados
de verem o que aos mortos foi negado.
Vestibular
De novo acomodo o corpo
(que de novo me incomoda)
na carteira de pau áspero;
de novo tomo a caneta.

De novo passo entre as filas
ponho a mão no ombro trêmulo
de alguma estudante tímida
(e agora sou professora).

De novo é aquela angústia,
não saber o que se sabe
ser de novo examinada
e de novo posta à prova.

De novo adivinho o amor,
olho-me e olho; já fui
o que hoje sou. Já sofri
o que sofro. E vem de novo

esse temor, como novo.
Ensino, ou sou ensinada?
Estou acima, ou me afogo?
De novo perco o respiro
ou já domino a questão?

De novo sofro e transpiro
porque hoje sou a mestra
tão escassa como sempre
e como sempre carente.

Olho-me quieta de novo
e vejo toda essa gente.
Passas de novo a meu lado
e me pões a mão no ombro

e me marcas com teu sopro
e me deixas tua sombra.
Retorno a Ítaca
I
De volta a Ítaca,
Ferido a faca o sentimento
E os sonhos cortados,
O homem avalia as ondas que o conduzem
montanhas
(ninguém sabe a que semelham horizontes).

De longe vê o nada e pensa : será visto ?
Que mulher ainda espera
O homem ingrato ?
Que voto a castidade o infiel reivindica ?

E que merece um homem , semelhante
Aos deuses, sim, mas igualmente impuro ?

II
Já resta pouco tempo
Ao ardiloso Ulisses .
Os pés estão molhados
E pesam-lhe os cabelos.

Ninguém o reconhece
Nem vem ao seu encontro.
Quarenta vezes chama.
Quarenta vezes sua voz exígua
Busca encontrar o caminho da casa.

Ulisses sente a falta de sementes de açúcar.
De súbito, uma sombra
Velho pedaço de manto perdido
Madeira de naufrágio
Surge e de rastos, vem vindo e se agacha;
Fareja-lhe os artelhos
E lambe os seus pés frios.

Um cão, sozinho,
Argos, melhor que os homens,
Eleva o seu amor como uma chama.

O cão responde com o que lhe resta.
Pode Ulisses agora morrer quarenta vezes.
Podemos nós morrer
Frágeis peças de carne.

“A um cão não restam muitas
Maneiras de expressar-se.
Somos úmidos, ásperos e nossa língua
É suja, às vezes.
Urinamos humildemente e nem sabemos
Esconder nossas fezes.

Porem o coração de um cão é primoroso
Com sua profundidade abstrata
E sem contornos.

O coração de um cão é sempre aquele ,
Nunca postergará seu sentimento.

Os restos que lhe atiram
Se é a mão que os atira a doce mão amada
São suaves manjares.
O amor de um cão é sempre insaciável. “

IV
Ulisses, sua face exposta por vinte anos
à face ardente e fluida dos ventos
Encontra um patamar inesperado :

Argos, o cão, pode morrer . Está cumprido.
É difícil, porém, matar um cão para sempre.
Essa fidelidade abstrata volta
Todo dia à lembrança, como um sol.

Voltará quando o amigo o abandone.
Voltará quando o filho o desconheça.
Quarenta vezes volta a dor da traição.

Seu coração no teu, Ulisses,
Pulsará
No mesmo chão.
Bagdad, 20 de março, 2003

Onde nasceu o mundo
morre o mundo.

O oriente amanhece
no meu quarto.

Soldados nunca falam.
Matam e escrevem cartas.

Correspondentes de guerra
se arriscam por uma imagem.

As mulheres e as crianças
essas
morrem caladas.
O Cântaro

"Então, Jacó beijou Raquel e,
levantando a voz,
chorou."
Gênesis, 20: l l
O cântaro poreja a água amena
que do poço brotou, e adoça a areia
e que corre nos ombros, e que enleia
pelas espáduas seu frescor moreno.

O lácteo manto que uma brisa ondeia
desenha formas, cujo talho apenas
a tamareira imita, a flor receia,
o vento afaga e a solidão serena.

Vê-la é um momento, desejá-la um sopro,
ouvir-lhe a voz uma doçura eleita,
roçar-lhe a fronte uma revelação.

O amante, incertas mãos, trêmulo corpo,
beija-lhe os olhos, cuja flor desfeita
catorze anos de vida pagarão.

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