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terça-feira, 31 de março de 2009

BARROCO

















Barroco Português
a) influência da Poesia clássica(camoniana, principalmente) em busca equilíbrio entre razão e emoção.
b) Camões antecipa algumas características do Barroco, pois tem esse equilíbrio é abalado pelo pessimismo, pela expressão de dilemas insolúveis, pelo jogo dos contrários, pelos paradoxos (A inconstância das coisas, a mudança, o desconserto do mundo).
c) Barroco: engenhosidade (aspectos cultistas, valorização de experiências formais) e teatralidade da linguagem (conceptismo, jogo de idéias - logopéia).
d) Reforma liderada por Lutero, Calvino, João Huss, que desfez a unidade religiosa da Europa e abalou o poder da Igreja Católica.
e) Reação por meio da Contra-Reforma, a partir do Concílio de Trento (1545-1563) acentuou o embate ideológico até o século XVIII.
f) Portugal e Espanha sempre foram baluartes da Igreja Católica, por isso buscam um retorno medieval.Nesse período existe o domínio espanhol (1580-1640) que influenciou de forma pessimista o modo de ver português.
g) O Barroco se encontra numa encruzlhada conceitual entre os ideais antropocêntricos e teocêntricos (Itália, Espanha e Portugal). Divisão entre razão e fé, entre a nova e a velha mentalidade.
Características do Barroco
nas artes e na literatura
Barroco - arte seiscentista - pérola de forma irregular / silogismo filosófico medieval.
Pessimismo
Desequilíbrio entre razão e emoção
Dualidade: contradição
Tendência à ilusão (fuga à realidade objetiva, subjetividade)
Tendência à alusão (descrição indireta)
Predomínio de figuras como metáfora, antítese, paradoxo, hipérbole, hipérbato.
Correntes do Barroco:
Cultismo: desenvolvido pelo poeta espanhol Dom Luís Góngora (Gongorismo).
Hipertrofia da sonoridade e imagens da obra literária.
Predomínio das metáforas, sinestesias, aliterações, hipérbatos, antíteses, trocadilhos, neologismos. Descritivismo rebuscado, rico e tortuoso.
Às vezes, chega a obra literária ao hermetismo.
Conceptismo: desenvolvido por D. Francisco Quevedo é o mais representativo.
Hipertrofia da dimensão conceitual da obra literária, mais razão doque sentidos. Raciocínios engenhoso, jogo intelectual de paradoxos e sutilezas lógicas. Cultismo é descritivo. Conceptismo é analítico. .
Momento histórico do Barroco
Em Portugal
Séculos XVII e XVIII
Dom Sebatião desaparece na Batalha de Alcácer Quibir.
O rei Felipe II realiza a integração de Portugal ao império espanhol
Durante 60 anos (1580-1640) assiste-se ao declínio comercial e naval do Reino, apesar das significativas exportações do açúcar brasileiro.
Porgual chega a perder para a Holanda muitas de suas colônias orientais até parte do território brasileiro.
Surge o sebastianismo - o mito da volta de D. Sevbastião como redentor.
Restaura-se a Coroa e Portugal se torna independente só em 1640, com conflito militar, que levou ao trono o 1º rei da dinastia de Bragança, D. João IV.
Com a descoberta do ouro em Minas Gerais, no final do século XVII, Portugal vive um novo período de riqueza, esbanjada durane o longo reinado de D. João V (1707-1750)
Espanha e Portugal tornaram-se baluartes da Contra-Reforma, séculos XVI, XVII e XVIII.
O Barroco português nunca atingiu o mesmo brilho do Barroco espanhol.
Cronologia do Barroco em Portugal
1580 - Portugal se submete ao domínio espanhol
1756 - início do Neoclassicismo, com a fundação da Arcádia Lusitana (academia neoclássica).
Principais autores
Francisco Rodrigues Lobo (1580-1762)
obras: O Pastor Peregrino (novela pastoril)
Romanceiro
Corte na Aldeia e Noites de Inverno
D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666)
obra: Epanáfora Triunfante
Acusado de participar de um assassinato, é desterrado para o Brasil. Recupera suas finanças na Bahia, negociando com açúcar. ele descreve a Bahia como “paraíso de mulatos”, “purgatórios de brancos” e “inferno de negros”.
Pe. Manuel Bernardes (1644-1710)
obra: Nova Floresta, coleção inacabada.
Sóror Mariana do Alcoforado (1640-1723)
obra: Cartas (Letteres Portugaise Traduites em Français), cinco cartas publicadas apenas em 1810. Relata de forma apaixonada sua relação amorosa proibida com um oficial francês: Chevalier de Chamilly.
Antônio José da Silva, o Judeu (1705-1739)
Primeiro autor de teatro português que se distingue de Gil Vicente. Nasceu no Rio de Janeiro, aos 8 anos foi para Portugal, acompanhado da mãe, que era acusada de judaísmo. Sofreu perseguição religiosa. Em 1737, já casado, é denunciado por uma escrava. foi condenado, degolado e queimado pela Inquisição.
Principal obra: Guerras do Alecrim e Manjerona
As Academias: instituições literárias típicas dos séculos XVII e XVIII. Havia as permanentes, cujos associados se reuniam periodicamente, e as temporárias ou atos acadêmicos, organizados com a finalidade específica de comemorar um acontecimento ou de homenagear uma autoridade.
A produção literária acadêmica é extremamente convencional; os autores, muito freqüentemente, limitam-se ao elogio mútuo e a demonstrações de destreza versificatória. Nelas se destacam os nomes de Jerónimo Baía, Antônio Barbosa Bacelar, Francisco Rodrigues Lobo.
Principais academias
Academia dos Singulares - 1628
Academia dos Generosos - 1647-1667; 1685-86; 1696-1717.
Academia dos Anônimos - 1714.

Mosteiro dos Jerônimos,
exemplo do estilo manuelino,
de caráter renascentista.

Torre de Belém,
símbolo do desejo português de navegar.

Escadaria da Igreja de Bom Jesus de Braga, um dos exemplos do estilo barroco português.
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António Barbosa Bacelar (1610-1663) nasceu em Lisboa de uma família remediada, frequentando o Colégio de Santo Antão e indo depois estudar Direito para Coimbra. Tendo-se dedicado à magistratura, foi corregedor em Castelo Branco, provedor em Évora, desembargador no Porto e magistrado na Casa da Suplicação em Lisboa. A par do trabalho no âmbito da justiça, dedicou-se à escrita, nomeadamente à historiografia e à poesia. Dentro da historiografia, escreveu a Relação Diária do Sítio e Tomada da Forte Praça do Recife, publicada em Lisboa em 1654, a Relação da Vitória que Alcançaram as Armas do Muito Alto e Poderoso Rei D. Afonso VI, em 14 de Janeiro de 1609, Uma e Outra Fortuna do Marquês de Montalvor, D. João de Mascarenhas e a Vida de D. Francisco de Almeida. A sua obra poética está essencialmente publicada na Fénix Renascida.
ALGUNS POEMAS
À morte de uma dama
Sombras de um claro sol que me abrasava,
Cinzas de um doce fogo aonde ardia,
Ruínas de uma boca em que vivia,
Cadáver de uma vida que adorava,

Quem te trocou, senhora? O tempo estava
A teus pés, em teu rosto o sol nascia,
De tua vista se compunha o dia,
De tua ausência a noite se formava.

Pois como pôde o tempo pressuroso,
O dia breve, a noite fugitiva
Mudar um corpo e rosto tão fermoso?

Mas tanto sol e luz, tão excessiva
Ardendo de contínuo, era forçoso
Trocar-se em cinza morta a flama viva.

A umas saudades
Saudades de meu bem, que noite e dia
A alma atormentais, se é vosso intento
Acabardes-me a vida com tormento,
Mais lisonja será que tirania.

Mas, quando me matar vossa porfia,
De morrer tenho tal contentamento,
Que em me matando vosso sentimento,
Me há-de ressuscitar minha alegria.

Porém matai-me embora, que pretendo
Satisfazer com mortes repetidas
O que à beleza sua estou devendo.

Vidas me dai para tirar-me vidas,
Que ao grande gosto com que as for perdendo
Serão todas as mortes bem devidas.


A uma ausência
Sinto-me, sem sentir, todo abrasado
No rigoroso fogo que me alenta;
O mal, que me consome, me sustenta;
O bem, que me entretém, me dá cuidado.

Ando sem me mover, falo calado;
O que mais perto vejo, se me ausenta,
E o que estou sem ver, mais me atormenta;
Alegro-me de ver-me atormentado.

Choro no mesmo ponto em que me rio;
No mor risco me anima á confiança;
Do que menos se espera estou mais certo.

Mas se de confiado desconfio,
É porque, entre os receios da mudança,
Ando perdido em mim como em deserto.
À variedade do mundo

Este nasce, outro morre, acolá soa
Um ribeiro que corre, aqui suave,
Um rouxinol se queixa brando e grave,
Um leão c'o rugido o monte atroa.

Aqui corre uma fera, acolá voa
C'o grãozinho na boca ao ninho üa ave,
Um demba o edifício, outro ergue a trave,
Um caça, outro pesca, outro enferoa.

Um nas armas se alista, outro as pendura
An soberbo Ministro aquele adora,
Outro segue do Paço a sombra amada,

Este muda de amor, aquele atura.
Do bem, de que um se alegra, o outro chora...
Oh mundo, oh sombra, oh zombaria, oh nada!

Em consideração de um rio

Vês este, ó Fabio, que el crystal ufano
Rico de perlas, rio bien nascido,
Despierta blando, com sutil ruido,
– Dulce Sirena del sentido humano?

Pues arrojado al mar, al Oceano
Camina a sepultarse en justo olvido;
De lo dulce, que eterno ha presumido,
Verá que ha sido presuncion en vano.

Retrato, ó Fabio, de la pompa humana!
Por lo dulce no gosa de una vida,
guando lo amargo siente de una muerte.

Ay de aquel que se fia en pompa vana!
Pues es, Fábio, la pompa de la vida,
Rio que corre al golfo de la muerte.


A uma dama
(Romance)

Por fazer lisonja às flores
De flores touca o cabelo
Nise, a gala do donaire,
Nise, a glória dos desejos.
Invejosas as estrelas
Murmuraram tanto emprego,
Se as não contentara Nise
Com tê-las nos olhos negros.
De garbo, postura e talhe
Vai luzida em tanto extremo,
Que nas vidas que cativa
Tem muita parte o asseio.
Quanto pisa e quanto fala,
Vai brotando e florescendo
Uma rosa em cada passo,
Um jasmim em cada alento.
Caçadora ufana e dextra,
Quem viu caçadora Vénus?
Pede as armas emprestadas
Dizem que a um menino cego.
Galharda o arco exercita,
E, com movimento dextro,
De quantas setas lhe fia,
Nenhuma lhe leva o vento.
Guarde-se todo o alvedrio,
Que não dão as frechas erro,
Pois para acertar as vidas
Tomam nos olhos preceitos.
Despejada comunica
Ao monte seus raios belos,
Que nem sempre o majestoso
Há-de afectar o encoberto.
E, com deixar-se admirar,
Nada lhe perde o respeito;
Mas tais amas traz consigo...
Pastores, diga-o Fileno.
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Guerras do Alecrim e da Manjerona, de Antônio José da Silva
(trechos)
(Comédia em duas partes)
Ópera Joco-Séria, que se representou no Teatro do Bairro Alto de Lisboa, no carnaval de 1737.
Interlocutores:
Dom Gilvaz
Dom Fuas
Dom Tiburcio
Dom Lancelote, velho
Dona Clóris, Sobrinha de Dom Lancerote.
Dona Niza, Sobrinha de Dom Lancerote.
Sevadilha, Graciosa, Criada.
Fagundes, Velha, Criada.
Semicúpio, Gracioso, Criado de Dom Gilvaz.
Primeira Parte
Cena I
Prado, com casario no fim. Entram Dona Clóris, Dona Nize, e Sevadilha, com os rostos cobertos; e Dom Fuas, Dom Gilvaz, e Semicúpio, seguindo-as.
Dom Gilvaz: Diana destes bosques, cessem os acelerados desvios desse rigor, pois quando rêmora me suspendeis, sois ímã, que me traís. (Para D. Clóris).
Dom Fuas: Flora destes prados, suspendei a fatigada porfia de vosso desdém, que essa discorde fuga com que me desenganais, é harmoniosa atração de meus carinhos; pois nos passos desses retiros forma compasso o meu amor. (Para D.Nize).
Semicúpio: E tu, que vem atrás, serás o seringa destas brenhas; e para o seres com mais propriedade, deixa-te ficar mais atrás, pois apesar doa esguichos de teu rigor, hei de ser conglutinado rabo-leva das tuas costas. (Para Sevadilha).
Dona Clóris: Cavalheiro, se é que o sois, peço-vos, me não sigais, que mal sabeis o perigo a que me expõe a vossa porfia. (Para D. G.)
Dom Gilvaz: Galhardo impossível, em cujas nubladas esferas ardem ocultos dos sóis, e se abrasa patente um coração, permiti, que esta vez seja fineza a desobediência; porque seria agravo de vossos reflexos negar-lhe o inteiro culto na visualidade desse esplendor; porque assim, formosa Ninfa, ou hei ver-nos, ou seguir-vos, porque conheça, já que não o sol desse oriente, ao menos o oriente desse sol.
Dona Clóris: (à parte): Que será de mim, se este homem me seguir?
Dona Nize: Já parece teima essa porfia; vede, senhor, que se me seguis, que impossibilitais o meio para ver-me outra vez.
Dom Fuas: Para que são, belíssimo encanto, esses avaros melindres do repúdio? Se já comecei a querer-vos, como posso deixar de seguir-vos? Pois até não saber, ou quem sois, ou aonde habitais, serei eterno girassol de vossas luzes.
Sevadilha: Ora basta já de porfia, senão vou revirando. (Para Semicúpio).
Semicúpio: Tem não, Sargeta encantadora, que com embiocadas denguices, feita papão das almas, encobres olho e meio, para matares gene de meio olho; são escusados esses esconderelos, pois pela unha desse melindre conheço o leão desta cara.
Dona Clóris: Isso já parece teima.
Dom Gilvaz: Isto é querer-vos.
Dona Nize: Isso é porfia.
Dom Fuas: É adorar-vos.
Sevadilha: Isto é empurração.
Semicúpio: Agora, isto bichancrear, pouco mais ou menos.
Dom Gilvaz: Senhoras, para que nos cansamos? Ainda que pareça grosseria não obedecer, entendei que a nossa curiosidade e amor não permitirá que vos ausenteis sem ao menos com a certeza de vos tornarmos a ver, dando-nos também o seguro de onde morais, para que possa o nosso amor multiplicar os votos na peregrinação desses animados templos da formosura.
Dom Fuas: Eis aí, senhora, o que queremos.
Sevadilha: Em termos, sem tirar nem pôr.
Dona Clóris: Pois, senhor, se só por isso esperais, bastará que esse criado nos siga; porque de outra sorte destruís o mesmo que edificais.
Dom Gilvaz: E admitireis a minha fineza?
Dona Clóris: Sendo verdadeira, por que não?
Dom Fuas: Admitireis os repetidos sacrifícios de meu amor?
Dona Nize: Sim, se dita me abona?
Dom Gilvaz e Dom Fuas: Que essa dita me abona?
Dona Nize: Este ramo de Manjerona.
Dom Fuas: Na minha alma o disporei, para que sempre em virentes pompas se ostente troféu da Primavera.
Dom Gilvaz: Mereça eu igual favor para segurança da vossa palavra.
Dona Clóris: Este ramo de Alecrim, que tem as raízes no meu coração, seja o fiador que me abone.
Dom Gilvaz: Por único na minha estimação será este Alecrim o Fênix das plantas, que abrasando-se nos incêndios de meu peito, se eternizará no seu mesmo ardor.
Semicúpio: Isso é bom, segurar o barco; mas a tácita hipoteca não me cheira muito, digam o que quiserem os jardineiros.
Dona Clóris: Cada uma de nós estima tanto qualquer dessa plantas, que mais fácil será perder a vida, do que elas percam o crédito de verdadeiras.
Semicúpio: Ai! Basta, basta, já aqui não está quem falou: vossa mercês perdoem, que eu não sabia que eram do rancho do Alecrim e Manjerona: resta-me também que tu, cozinheirazinha, vivas arranchada com alguma ervinha, que me dês por prenda, pois também me quero segurar.
Sevadilha: Eis, aí tem esse malmequer, que este é o meu rancho; estime-o bem, não o deixe murchar.
Semicúpio: Ditoso seria eu, se o teu malmequer se murchasse.
Dona Clóris: Pois, senhor, como estais satisfeito, desejarei estimásseis esse ramo não tanto como prenda minha, mas por ser de Alecrim.
Dona Nize: O mesmo vos recomendo da Manjerona.
Dona Clóris: Advertindo que aquele que mais extremos fizer a nosso respeito, coroará de triunfos a Manjerona, ou Alecrim, para que se veja qual destas duas plantas tem mais poderosos influxos para vencer impossíveis.
Dona Nize: Desejara que triunfasse a Manjerona. (Vai-se).
Dona Clóris: E eu o Alecrim. (Vai-se).
Semicúpio: Cuidado no bem-me-quer.
(...)
Soneto
Primas, que na guitarra da constância
Tão iguais retinis no contraponto,
Que não há contraprima nesse ponto,
Nem nos porpontos noto dissonância.
Oh, falsas não sejais nesta jactância;
Pois quando atento os números vos conto,
Nessa beleza harmônica remonto
Ao plecto da Felina consonância:
Já que primas me sois, sede terceiras
De meu amor, por mais que vos agaste
Ouvir de um cavalete as frioleiras;
Se encordoais de ouvir-me, ó primas, baste
De dar à escaravelha em tais asneiras,
Que enfim isto de amor é um lindo traste.
Dom Lancerote: Também sois Poeta, meu sobrinho?
Dom Tibúrcio: Também temos nosso entusiasmo, senhor tio, isto cá é veia capilar e natural.
Dom Lancerote: Oh! Quanto me pesa que sejais Poeta, pois por força haveis de ser pobre.
Dom Tibúrcio: Agora, senhor, eu sou um rico Poeta. Pois, primas, que dizeis da minha eloqüência? Não me respondeis?
Dona Clóris: Os Anjos lhe respondam.
(...)
Canta Semicúpio a seguinte
Ária
Oráculo de amor
Propício me responde
Nas ânsias deste ardor
Bem me queres, mal me queres
Bem me queres, disse a flor.
Ai de mim, que me quer mal
Teu ingrato malmequer1
Acabou-se o meu cuidado,
Que mais tenho que esperara?
Vou-me agora regalar,
Levar boa vida, comer, e beber.
(...)
Cantam Dom Lancerote e Sevadilha: a seguinte
Ária a duo
Dom Lancerote:
Moça tonta, descuidada,
Sevadilha:
Há mulher mais desgraçada
Neste mundo? Não, não há.
Dom Lancerote:
Se não dás o meu capote,
Tua capa hei de rasgar.
Sevadilha:
Não me rasgue a minha capa.
Dom Lancerote:
Dá-me, moça o meu capote.
Sevadilha:
Minha capa.
Dom Lancerote:
Meu capote.
Ambos:
Trata logo de o pagar.
Dom Lancerote:
Meu capote assim furtado!
Sevadilha:
Meu adorno assim rasgado!
Ambos:
Que desgraça!
Dom Lancerote:
Contra a moça.
Sevadilha:
Contra o velho.
Ambos:
A justiça hei de chamar:
Meu capote donde está? (vão-se).
Cena III
Praça: no fim haverá uma janela. Entra Dom Gilvaz embuçado.
Dom Gilvaz: disse a Semicúpio que aqui o esperava; mas tarda tanto que entendo o apanharam na empresa. Mas, se será aquele, que ali vem? Não é Semicúpio que ele não tem capote. Quem será?
(Entra Semicúpio embuçado em um capote).
Semicúpio: Lá está um vulto embuçado no meio do caminho; queira Deus não me chegue ao vulto; não sei se torne para trás, mas pior é mostrar covardia; eu faço das tripas coração; vou chegando, mas sempre de longe.
Dom Gilvaz: Ele se vem chegando, e eu confesso que não estou todo trigo.
Semicúpio: Este homem não está aqui para bom fim; eu finjo-me valente: afaste-se lá, deixe-me passar, aliás o passarei.
Dom Gilvaz: Vossa mercê pode passar.
Semicúpio: ai, que é D. Gil! Pois agora farei com que me tenha por valoroso. Quem está ai? Fale, quando não despeça-se desta vida que o mando para a outra.
Dom Gilvaz: Primeiro perderá a sua, quem me intenta reconhecer.
Semicúpio: Tenha mão, Senhor Dom Gilvaz, que sou Semicúpio.
Dom Gilvaz: Se não falas, talvez que a graça te saísse cara.
Semicúpio: Igual vossa mercê, que se o não conheço pela voz, sem dúvida, Senhor Dom Gilvaz, lhe prego como o seu nome na cara.
Dom Gilvaz: Deixemos isso, dá-me novas de Dona Clóris; dize, pudeste dar-lhe o recado?
Semicúpio: Não sabe que sou o César dos alcoviteiros? Fui, vi e venci.
Dom Gilvaz: Dá-me um abraço, meu Semicúpio.
Semicúpio: Não quero abraços, venham as alvíssaras, senão emudeci como Oráculo.
Dom Gilvaz: Em casa t’as darei; conta-me primeiro, que fazia Dona Clóris?
Semicúpio: Isso são contos largos, estava toda rodeada de braseiros de Alecrim, com um grande molho dele no peito, cheirando a Rainha de Hungria, mascando Alecrim como quem masca tabaco de fumo; e como acabava de jantar, vinha palitando com um palito de Alecrim e, finalmente, senhor, com o Alecrim anda toda tão verde como se tivera tirícia.
Dom Gilvaz: E do mais que passaste?
Semicúpio: Isso é para mais de vagar, basta que saiba por ora que apenas lancei o anzol no mar da simplicidade de Dona Clóris, picando logo na minhoca do engano, ficou engasgalhada com o engodo d Emil patranhas que lhe encaixei à mão tente.
Dom Gilvaz: Incríveis são as tuas habilidades: e que capote é esse?
Semicúpio: Este é o despojo do meu triunfo; joguei com o velho os centos, e ganhai-lhe este capote; e se vossa mercê soubera a virtude que ele tem, pasmaria.
Dom Gilvaz: Que virtude tem?
Semicúpio: É um grande remédio para sarar acidentes de gora coral.
(...)
Minueto
Já que a fortuna
Hoje me abona, a Manjerona,
Quero exaltar.
No seu triunfo
Que a fama entoa,
Palma, e coroa
Há de levar.
Há de por certo,
Que a sua rama
Na voz da fama
Sempre andará.
Cena IV
(Entra Dona Nize)
Dona Nize: Que ruído é este, Fagundes?
Dom Fuas: Sinto, Senhora Dona Nize, que a primeira vez que me facilitais esta fortuna, me hospedeis com zelos.
Dona Nize: Nos sei que motivo haja para os haver.
Dom Fuas: Es senhor embuçado que aqui me vem seguindo, e diz que procura o mesmo que eu busco.
Dona Nize: Sabe ele porventura o que vós procurais?
Dom Fuas: Ele que diz que sim, certo é que o sabe.
Dona Nize: Senhor, vós acaso vindes aqui a meu respeito? (Para D.Gil).
Dom Gilvaz: (À parte) Nada hei de responder.
Dom Fuas: Quem cala consente: não averigüemos mais, Senhora Dona Nize, só sinto que a sua Manjerona admita enxertos de outras plantas.
Dona Nize: Esse é o pago que me dais, de admitir a vossa correspondência, de obrar este excesso a vosso respeito, e de me expor a este perigo por vossa causa?
Dom Fuas: Melhor fora desenganar-me que essa era a melhor fineza que vos podia merecer.
Dona Nize: Pois eu digo-vos que estou inocente, que não conheço este homem; e me parece que basta dize-lo, para me acreditares.
Dom Fuas: E bastava ver eu o contrário, para não acreditar essas desculpas.
Dona Nize: Pois visto isso, fiquemos como dantes.
Dom Fuas: De que sorte?
Dona Nize: Desta sorte.
Canta Dona Nize a seguinte
Ária
Suponha, senhor,
Que nunca me viu,
E que é o seu amor
Assim como a flor,
Que apenas nasceu,
E logo murchou.
Pois tanto me dá
De seu pretender,
Que firme suponho
Seria algum sonho,
Que pouco durou. (Vai-se).
Dom Fuas: Nize cruel, isto ainda é maior tirania; escutam-me. (Vai-se).
Fagundes: Vá lá dar-lhe satisfações que ela é bonita para essas graças. E vossa mercê, senhor rebuçado, a que sim quis profanar o sagrado desta casa?
Dom Gilvaz: a ver o bem que adoro.
Fagundes: Vossa mercê está zombando? Aqui não há quem possa ser amante de vossa mercê; pois bem vê o recato e honra desta casa.
Dom Gilvaz: Eu bem vejo o recato e honra desta casa. Que? Aquilo de subir um homem por uma anela, e ir-se para dentro atrás de uma mulher, não é nada?
Fagundes: Aquele homem é primo carnal da Senhora Dona Nize.
Dom Gilvaz: Pois eu também quero ser muito conjunto da Senhora Dona Clóris: ora faça-me o favor de a ir chamar.
Fagundes: Que diz? A Senhora Dona Clóris? Olha tu lá, Dona Clóris não te enganes; sim, a outra, que anda coberta de cilícios, jejuando a pão e água; tire daí o sentido, meu senhor.
Dom Gilvaz: Se a não dores chamar, a irei eu buscar.
Fagundes: Ai, senhor, vossa mercê tem alguma legião de diabos no corpo? E que remédio tenho senão chamá-la, antes que o homem faça alguma asneira, que ele tem cara de arremeter. (Vai-se).
Dom Gilvaz: Venha logo, que eu não posso esperar muito tempo. A velha queria corretagem: basta que lh’a dê Dom Fuas.
Soneto
Tanto te quero, ó Clóris, tanto, tanto;
E tenho neste tanto tanto tanto,
Que me cuidar que te perco, me espavento,
E em cuidar que me deixas, me ataranto.
Se não sabes (ai, Clóris) o quanto o quanto
Te idolatra rendido o pensamento,
Digam-te os meus suspiros cento a cento.
Soletra-o nos meus olhos pranto a pranto.
O quem pudera agora encarecer-te
Os esquisitos modos de adorar-te
Que o amor soube inventar para quere-te!
Ouve, Clóris; mas não, que hei de assustar-te;
Porque é tal o meu incêndio, que ao dizer-te
Ficaras no perigo de abrasarte.
Segunda Parte
Ária A 3
Dom Gilvaz:
Se não fora por não sei que,
Te matara mesmo aqui.
Dom Fuas:
Se não fora o velho ali
Te fizera um não sei que.
Dona Clóris:
De mansinho, pouca bulha,
Calte gralha , calte grulha,
Porque o velho há de acordar.
Dom Gilvaz:
Pois aqui mui mansamente
Matarei este insolente.
Dom Fuas:
Também eu pela calada
Meterei a minha espada.
Dona Clóris:
Devagar, não dêem de rijo,
Porque o velho há de acordar.
Todos:
Quem pudera em tanta luta
Sua dor desabafar!
Dom Fuas e Dom Gilvaz:
Se não gritão neste caso,
Sou capaz de rebentar.
Dona Clóris:
Mais que estalem, e arrebentem,
Não se há de aqui falar.
Todos:
Não se pode isto aturar! (Vão-se).
(Entra Semicúpio pela mão de Sevadilha)
Semicúpio: Donde me levas, Sevadilha?
Sevadilha: Ande, não me faça perguntas.
Semicúpio: Não há uma candeia nesta casa que se me meta na mão, que estou morrendo por te ver?
Sevadilha: Melhor fineza é amar por fé.
Semicúpio: Como, se eu não dou fé de ti?
Sevadilha: Ande, que o amor se pinta cego.
Semicúpio: Muito vai do vivo ao pintado.
Sevadilha: Assim estamos mais à nossa vontade.
Semicúpio: Andar, supondo que tenho o meu amor na Noruega; mas ainda assim isto de estar às escuras, não é grande coisa para um homem dizer à sua Dama quatro hipérboles, pois se não vejo, como poderei dizer-te que és estatua de alabastro sobre plintos de jaspe neve vivente, e racional sorvete, mas só carapinha, pois negra te considero nesta
Etiópia: oh, negregada ocasião em que por falta de uma candeia não sai à luz a tua formosura!
Sevadilha: Pois o fogo de teu amor não basta para alumiar esta casa?
Semicúpio: Se a luz excessiva faz cegar, também a minha chama por excessiva não alumia; mas com tudo isto não nos metamos no escuro; falemos claro: como estamos nós daquilo, que chamamos amor?
Sevadilha: E como estamos nós do malmequer, que esse é o ponto?
Semicúpio: Cada vez está mais viçoso com a copiosa inundação de meu pranto.
Sevadilha: E teu amo com o alecrim?
Semicúpio: Isso são contos largos, o homem anda doido; tudo quanto vê lhe parece que é Alecrim; est’outro dia estava teimoso, em que havia de cear salada de Alecrim, mais que o levasse o diabo. Olha, para contar-te as loucuras que faz, assentemo-nos, que isto se não pode levar de pé.
Cena III (...)
Canta Dom Gilvaz a seguinte
Ária
Borboleta namorada,
Que nas luzes abrasada,
Quando expira nos incêndios.
Solicita o mesmo ardor.
Tal, ó Clóris, me magino,
Pois parece, que o destino
Quer, por mais que tu me mates,
Que apeteça o teu rigor.
Cena IV
Praça. Entram Dom Gilvaz e Semicúpio.
Dom Gilvaz: Uma e muitas vezes te considero, Semicúpio, prodigioso artífice de meu amor, pois com as tuas máquinas vais erigindo o retorcido tálamo que há de ser trono do mais ditoso Himeneu.
Semicúpio: Já disse a vossa mercê que mais obras e menos palavras. Semicúpio, senhor, já se acha mui cansado, tomara que me aposentasse com meio soldo, que este oficio de alcova é mui perigoso; que suposto tenha asas para fugir, também as asas têm penas para sentir.
Dom Gilvaz: Semicúpio, já o pior é passado: acabemos de deitar esta nau ao mar, que então teremos enchentes.
Semicúpio: E no cabo de tantas enchentes tudo nada.
Dom Gilvaz: Anda, não desmaies, que hoje havemos mostrar ao Mundo os triunfos do Alecrim.
Semicúpio: E a Manjerona todavia não menos viçosa com os borrifos de Fagundes.
Dom Gilvaz: Mas a galanteria é que todas as suas idéias redundam em nosso proveito.
Semicúpio: Aí é que está a filigrana do jogo, Fagundes a semear e nós a colher.
(Entra Sevadilha com mantilha)
Dom Gilvaz: Aquela que lá vem, não é Sevadilha?
Semicúpio: Pelo cheiro assim me parece.
Dom Gilvaz: Que novidade é essa, Sevadilha? Tu só, por aqui?
Sevadilha: Que há de ser? A maior desgraça do mundo.
Dom Gilvaz: Que? Morreu o velho!
Sevadilha: Isso então seria fortuna.
Dom Gilvaz: Pois que foi?
Sevadilha: Foi, que Dom Tibúrcio com a pena de se ver acometido de três mulheres, como vossa mercê sabe, à vista das noivas e do sogro, tomou tal paixão, que lhe deu esta noite uma cólica e está quase indo-se por um fio; e, assim, eu por uma parte, Fagundes e o Galego por ambas, vamos a chamar o Médico. Adeus, que me não posso deter.
Dom Gilvaz: Espera.
Sevadilha: Não posso, que Dom Tibúrcio está morrendo por instantes.
Semicúpio: Não te canses que já o achas morto; ande cá, tenha feição, e faça palestra com os amigos.
Dom Gilvaz: Que faz Dona Clóris?
Sevadilha: Não me detenha, adeus.
Semicúpio: Dize-me primeiro que tal te pareci em trajes de mulher?
Sevadilha: Não estou par isso, deixe-me ir, que estou com pressa.
Semicúpio: Há tal pressa! Como se estivera alguém para morrer!
Sevadilha: Não vês que vou acudir a esta grande necessidade.
Semicúpio: Vai-te, filha, vai-te, não te sofras.
(...)
Soneto
Um dia para Siques quis amor
Uma grinalda bela fabricar,
E por mais que buscou, não pôde achar
Flor do seu gosto entre tanta flor.
Desprezou do jasmim o seu candor,
E a rosa não quis por se espinhar,
Ao girassol mostrou não se inclinar,
E ao jacinto deixou na sua dor.
Mas tanto que chegou Cupido a ver
Entre virentes pompas o Alecrim,
Num verde ramo pretendeu colher;
Tu só me agradas, disse, pois enfim
Por ti desprezo, só por te querer,
Jacinto, girassol, rosa e jasmim.
Dona Clóris: Viva o Senhor Doutor, eu quero as fumaças do Alecrim.
Dom Tibúrcio: E morra o Senhor doente; ai minha barriga!
Dom Fuas: Se versos podem servir de textos, escute uns de um Antagonista desse Autor a favor da Manjerona pelos mesmos consoantes.
Soneto
Para vencer as flores quis amor
Setas de Manjerona fabricar:
Foi discreta eleição, pois soube achar
Quem soubesse vencer a toda a flor.
O jasmim desmaiou no seu candor,
A rosa começou-se a espinhar,
No girassol foi culto o inclinar,
Ais o Jacinto deu de inveja e dor.
Entre as vencidas flores pode ver
Retirar-se fugido o Alecrim,
Que amor para vingar-se o quis colher;
Cantou das flores o triunfo, enfim,
Nem os despojos quis, por não querer,
Jacinto, girassol, rosa e jasmim.
Dona Nize: Viva o Senhor Doutor, eu quero o remédio da Manjerona.
Dom Lancerote: Não cuide que a Manjerona e alecrim tinham tais virtudes. Vejamos agora o que diz o Senhor Doutor.
Dom Tibúrcio: Que tenho eu com isso? Senhores, vossas mercês me vieram curar a mim, ou às raparigas? Ai, minhas barrigas!
Semicúpio: Calado estive ouvindo a estes senhores da Escola Moderna, encarecendo a Manjerona e Alecrim. Não há dúvida que pro utraque parte há mui nervosos argumentos, em que os Doutores Alecrinistas e Manjeronistas se fundam; e tratando Dioscórides do Manjeronismo e Alecrinismo, assenta de pedra e cal, que para o mal Cupidista são remédios inanes; porque tratando Ovídio do remédio amoris, não achou outro mais genuíno contra o mal Cupidista que o Malmequer, por virtude simpática, magnética, diaforetica, e diurética, com a qual curatur amorem. Repetirei as palavras do mesmo Ovídio.
Soneto
Essa, que em cacos velhos se produz
Manjerona misérrima sem flor,
Esse pobre Alecrim, que em seu ardor
Todo se abrasa por sair à luz.
Ainda que se vejam hoje a fluz
Desbancar nas baralhas do amor,
Cuido, que elas o bobo hão de repor,
Se não negro seja eu como uma lapus.
O Malmequer, senhores, isso sim,
Que é flor, que desengana, sem fazer
No verde da esperança amor sem fim.
Deixem correr o tempo, e quem viver
Verá que a Manjerona e o Alecrim,
As plantas beijarão de malmequer.
(....)
Recitado
Dona Nize:
Mas que vejo? (Ai de mim!) quem arrogante,
Da Manjerona usurpa o ser fragrante?
Dom Gilvaz:
Quem, ó Nize, escondido amante espera
O Sol que adoro nesta verde esfera? (Sai).
Dom Fuas:
Pois, traidor, como assim tirano intentas,
Roubar-me a Nize, que meu peito adora? (Sai).
E tu, falsa inimiga. Mas ai triste,
Que mal a tanta pena a dor resiste!
Dona Clóris:
E tu, falso Dom Gilvaz, que em torpe insulto
Buscas a Manjerona amante oculto,
Deixa-me, fementido...
Dom Gilvaz:
Atende, ó Clóris,
Que sem causa fulminas teus rigores,
Quando em puros ardores
Nas chamas do Alecrim feliz me abraço.
Dona Nize:
Sem motivo, Dom Fuas, me criminas; porque eu firme...
Dom Gilvaz:
E eu constante....
Dom Gilvaz e Dona Nize:
Fiel te adoro, e te busco amante.
Ária A 4
Dom Gilvaz:
Atende, ó Clóris, atende
Verdades de quem sabe
Ser firme em te adorar.
Dona Clóris:
Suspende, infiel, suspende
Injurias de quem sabe
Jamais te acreditar.
Dom Fuas:
Nize ingrata, infiel amigo,
Cesse a bárbara indecência,
Que a evidencia
Não se pode equivocar.
Dom Gilvaz e Dona Nize:
Pois tu só querida prenda.
Dom Fuas e Dona Clóris:
Já não creio os teus enganos.
Dom Gilvaz e Dona Nize:
Nas purezas de meu peito
Felizmente viverás.
Dom Fuas e Dona Clóris:
Nos rigores de meu peito
Teu castigo encontrarás.
Todos:
Mas, ó cego amor tirano,
Como posso em tanto dano
Teu estrago idolatrar?
(Entra Fagundes)
Fagundes: Já acabaram de cantar? Pois agora entrem a chorar.
Dona Clóris: Por que, Fagundes?
Fagundes: Porque o senhor seu tio diz que logo vem ao quintal, afirmando que há ladrões em casa, e diz que se não há de deitar esta noite ainda que faça rosa divina.
Dom Gilvaz: Aonde estará Semicúpio?
Fagundes: Não aparece; senhores, escondam-se e não digam ao depois, que duro foi, e mal se cozeu.
Dona Nize: Metam-se nesta capoeira entretanto.
Dom Gilvaz: E que remédio, já que Semicúpio não aparece?
Dom Fuas: A necessidade sabe unir a quem se deseja separar. Nize cruel, eu me escondo na capoeira, que só o lugar das penas é o centro de um amante infeliz. (Mete-se na capoeira).
Dom Gilvaz: Quem serve a Cupido, às vezes é leão, às vezes galinha. (Mete-se na capoeira).
Fagundes: Ah, senhores, não me esmaguem os ovos de uma galinha que aí está de choco.
(Entram Dom Tibúrcio e Sevadilha)
Sevadilha: Senhor, não me persiga: olhem o diabo do homem!
Dom Tibúrcio: Aí no quintal te quero. Mas aqui está Clóris, e Nize, remediarei o negócio. Esta moço faz zombaria de mim; deixa-me tu casar, que eu te porei a caminho.
Dona Clóris: Que é isso, Primo? Como, estando doente, e tão perigoso, vem a estas horas as sereno?
Dom Tibúrcio: Que há de ser, se vocês não sabem ensinar esta rapariga, pois nada lhe digo que não faça às avessas? De sorte que me fez vestir e sair atrás dela, como desesperado das perrices que me faz.
Dona Nize: Tu não queres, Sevadilha, senão ser descortês a meu Primo?
Fagundes: Vossas mercês não querem crer que se há de fazer desta moça a peste, fome e guerra.
Sevadilha: Para que estamos com arcas encoiradas? O Senhor Dom Tibúrcio anda-me ao sucário, e não me deixa uma hora, nem instante.
Dom Tibúrcio: Cale-te, mentirosa.
Fagundes: Isso tem ela que levanta um testemunho como quem levanta uma palha.
Dona Clóris: Não nos importa essa averiguação; só digo, Senhor Dom Tibúrcio, que parece muito mal estar vossa mercê aqui conosco a estas horas, e que pode vir meu Tio e achar-nos com vossa mercê; que suposto seja primo e com tentações de noivo, sempre o recato e decência se deve conservar, e assim lhe pedimos em cortesia se vá para o seu quarto.
Sevadilha: Ande, vá despejando o beco.
(...)
Coro
Dona Nize e Dom Fuas
Viva a Manjerona
Perpétua no durar.
Dona Clóris e Dom Gilvaz:
Viva o Alecrim
Feliz no florescer.
Todos:
Viva a Manjerona
Viva o Alecrim
Pois que um soube vencer,
E a outra triunfar.
Dona Nize e Dom Fuas:
No tempo do Cupido
Troféu de amor será.
Dona Clóris e Dom Gilvaz:
Nas aras da fineza
Em chamas arderá.
Todos:
Viva a Manjerona
Viva o Alecrim
Pois que um soube vencer,
E a outra triunfar.
FIM




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António José da Silva (o Judeu) nasceu no Rio de Janeiro em 1705 e faleceu em Lisboa em 1739. Oriundo de uma família cristã-nova que se refugiara no Brasil, vem para Portugal com a família. Forma-se em Direito na Universidade de Coimbra e em 1737 é preso com a própria esposa, ambos acusados de actividades judaizantes pela Inquisição. É executado em 1739 num auto-de-fé. Conhecido como comediógrafo de teatro de marionetas, as suas peças foram representadas no Teatro do Bairro Alto, onde conheceram grande sucesso popular. Das obras destacam-se: Vida do Grande D. Quixote de la Mancha (1733), Esopaida ou Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena (1736), Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona (1737), Variedades de Proteu (1737), Precipício de Faetonte (1738), etc.
ANFITRIÃO OU JÚPITER E ALCMENA

PARTE I


CENA I
Sala empírea de Júpiter aonde estará este assentado em um trono, e Mercúrio mais abaixo, e depois se tirarão do trono, e Júpiter trará na mão uma estátua de Cupido, que se dividirá a seu tempo.

Coro

O Númen supremo
do Olimpo sagrado
suspira abrasado
de um cego furor
Que pasmo! Que assombro!
Que voe tão alto
a seta do amor!

JÚPITER
Cesse a canora harmonia que forma o alterno movimento dos celestes globos; que é razão emudeçam as consonâncias, quando a maior deidade se lamenta. Não moduleis os supremos atributos de minha divindade; cantai, ou, para melhor dizer, chorai em dissonantes melodias o irremediável de minha mágoa, a violência de meu tormento e o insofrível de minha dor.
MERCÚRIO
Júpiter soberano, a quem não admira ver que a maior deidade que admiram as esferas enlute com suspiros as diáfanas luzes do Firmamento! Se em teu poder existem os raios, porque não castigas a causa sacrílega de teus pesares?
JÚPITER
Ai, Mercúrio, que este raio que ignominiosamente adorna a minha omnipotente dextra é o que agora se fulmina contra o meu peito! Não é esta aquela trissulca chama que devorou a soberba dos Ancélados e Tifeus; é, sim, a frágua de todos os raios, a fúria de todas as fúrias e o estrago de todos os estragos; e, para melhor dizer, é o simulacro de Cupido, cuja voadora seta, penetrando as eminências do monte Olimpo, sacrilegamente atrevida, chegou a penetrar a imunidade de meu peito; e assim, como ofendido e lastimado, já que nesse rapaz tirano, nesse monstro, nesse Cupido, não posso vingar o mal que padeço, quero ao menos na sua estátua debuxar as linhas da minha vingança.
MERCÚRIO
Explica-me, Senhor, a causa de tanto excesso; que, suposto sejas o mais sábio de todos os deuses, também não duvidas que sou Mercúrio, inventor das subtilezas e estratagemas; e assim, já que o teu entendimento se acha preocupado de um frenético delírio, com maior razão poderei eu acertar na cura de teus males.
JÚPITER

Pois atende, Mercúrio.

Canta Júpiter a seguinte ária e

Recitado

Eu vi a Alcmena, ai, Alcmena ingrata!
Aquela, cujo assombro peregrino
foi rémora atractiva, que, atraindo
a isenção de toda esta divindade,
por ela em vivas chamas,
extremoso, suspiro,
querendo amante em lânguidos delíquios
sacrificar-me todo nos altares
desta melhor, mais bela Citereia;
e por mais que publico em triste pranto
tanto amor, tanto incêndio, extremo tanto,
nem por isso Cupido compassivo
alívio facilita ao meu tormento;
antes, porém, mais bárbaro e tirano,
por vingar-se talvez de meus poderes,
dificulta o remédio às minhas ânsias.
E, pois, cruel amor, falsa deidade,
o suspiro que exalo não te abranda,
o impulso feroz de meus rigores
saberá castigar-te, lacerando
teu simulacro,
que, em átomos partido, (Despedaça a estátua.)
dos ventos serás rápido despojo.
Sinta, pois (ai de mim!) , a minha ira
quem contra o Deus Tonante assim conspira.

ÁRIA

De amor todo abrasado
me sinto que louco
e aflito pouco a pouco
me vai faltando a vida,
me vai matando a dor
Ah, querida, ingrata Alcmena,
quanto susto e quanta pena
me provoca o teu rigor!


MERCÚRIO
Ora, Senhor, se Alcmena é a causa por que suspiras, e só desejas conseguir a delícia de sua formosura, verás como alcanças o que procuras.
JÚPITER

De que sorte?

MERCÚRIO
Eu te digo; dá-me atenção. Bem sabes, Senhor, que Anfitrião, marido de Alcmena, se acha ocupado na guerra dos Telebanos contra El-Rei Terela; e parecia-me que, tomando tu a forma de Anfitrião, fingindo teres já chegado da guerra, podias fielmente, sem experimentares os rigores e desdéns de Alcmena, conseguir dela o que desejas; porque, vendo ela em ti copiada a imagem e figura de seu esposo Anfitrião, como a tal te facilitaria o mesmo que agora como a Júpiter te nega.
JÚPITER
Só tu, Mercúrio, com as tuas subtilezas, podias dar em tão subtil ideia, pois com ela já posso chamar-me venturoso; e, para principiar a sê-lo, já me vou disfarçar na forma de Anfitrião e depor a majestade de meus raios. Oh, quem dissera que para eu alcançar a formosura de Alcmena deixe os resplandores do Olimpo!
MERCÚRIO
Para que se logre melhor a empresa, eu também irei contigo disfarçado na figura do criado de Anfitrião, chamado Saramago, ajudar-te a lograr o teu intento.
JÚPITER
Não deixo de agradecer-te, Mercúrio, que por amor do meu amor tomes a figura de um lacaio esquálido e sórdido.
MERCÚRIO
Senhor, o ofício de corrector nunca esteve mal a Mercúrio; quanto mais que, para servir-te, desejo transformar-me ainda na mais vil criatura.
JÚPITER
Pois não dilatemos a empresa; vamos, Mercúrio, e seja esta noite o dia de minha ventura.
MERCÚRIO

Vamos, Júpiter, a levar um passatempo na Terra.

JÚPITER
Já não se me dá que repita festivo o celeste coro; pois que já posso cantar o meu triunfo.
Canta o coro como no princípio

O Númen supremo
do Olimpo sagrado, etc.


CENA III

Praça com pórtico. Sai Saramago e canta a seguinte

ÁRIA

Venho da guerra e vou para casa.
Venho da guerra e vou para a guerra.
Se há guerra na guerra,
há guerra na casa.
A casa da guerra
é a guerra da casa.
Venho da guerra e vou para a guerra;
venho da guerra e vou para casa.

(Representa)
E, quando nada, estamos defronte da nossa casa, que mal cuidei que a tornasse a ver! Ah, Senhores, grande cousa é o buraco da nossa casa, mais que seja esburacada, que mais val a casa com buracos, do que o corpo com os das balas; e, pois das já passaram, sem eu ficar passado, vamos ao caso. Parece-me que já estou vendo chegar eu à porta e petiscar no ferrolho, chegar à janela a minha Cornucópia e, apenas me vê, lançar-se logo da janela abaixo e levá-la o Diabo de meio a meio; e ali se abraça comigo, e eu com ela, e assim todos juntos acharmos a Senhora Alcmena, e logo perguntar-me: «Que novas me dás do meu Anfitrião?» E eu, apressado, lhe respondo: «Ele fica com saúde, com uma perna quebrada; e, para livrar-te de sustos, aqui me envia, que por esta via te diga que ele rebenta aqui até pela manhã e que no entanto te vás divertindo com esta jóia, que foi de El-Rei Terela, a qual te manda, por mim, que sou muito fiel». E não há dúvida que Alcmena, vendo a jóia e ouvindo a notícia, me mete à força na algibeira vinte dobrões; e, se isto há-de ser assim, não te dilates, Saramago! Se agora és Saramago, verde na esperança do prémio, logo serás Saramago, maduro na posse do fruto. Ora vamos andando para. casa., que já a Aurora em gargalhadas de luzes começa a rir-se com as cócegas do Sol.
Ao ir-se, sai da porta um cão, que ladrará todas as vezes que se vir este sinal *. Ladra.
* Mau, mau! Que é isto? Ronda? Que escapasse eu da barafunda da batalha e que só de malsins não possa livrar-me! * Pergunta quem sou?! Sou Saramago, que vou para casa de minha ama, a Senhora Alcmena. Que armas trago? Eu não tenho armas, que sou mecânico.* Donde venho? E a ele que lhe importa? *** Tenho mão! À que de El-Rei! Esperem vocês, que eu cuidei que era gente e é um cão! Ora vejam o que faz o medo! É cão, não há dúvida! Ai, que é a cadela de minha mulher, que dormiu fora esta noite, rondando algum osso! Olhem a festa que me faz! Pois eu também hei-de corresponder-lhe, que agora uma cadela não há-de ser mais cortês do que eu.


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D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) nasceu em Lisboa de família nobre. Começou muito novo a frequentar a corte, cursou Humanidades no Colégio de Santo Antão e dedicou-se ao estudo da Matemática, pois pensava seguir a carreira das armas. Militou na marinha e, depois de um naufrágio que sofrera, estabeleceu-se na corte de Madrid. Em 1639 comandou um regimento na Flandres e lutou contra os Holandeses. Em 1641, encontrando-se em Londres, aderiu à causa da independência em Portugal, regressando ao reino onde, depois de receber a comenda da Ordem de Cristo, é acusado e preso por conivência no assassinato de Francisco Cardoso. É na prisão que escreverá as suas melhores obras. Destacamos: Carta de Guia de Casados (Lisboa, 1651), Epanáforas de Vária História Portuguesa (Lisboa, 1660), Obras Morales (Roma, 1664), Cartas Familiares (Roma, 1664), Obras Métricas (França, 1665), Auto do Fidalgo Aprendiz (Lisboa, 1676), Apólogos Dialogais (Lisboa, 1721), D. Teodósio Duque de Bragança e As Segundas Três Musas (1945 e 1966), onde se coligem sonetos, éclogas e as redondilhas de influência camoniana O Canto da Babilónia. É considerado um dos mais importantes autores do Barroco em Portugal.
Quando se vê do mal o que se não via dantes
Se como haveis tardado, desenganos,
Vindes hoje de novo apercebidos;
A troco de vos ver tão prevenidos,
Dou-vos por bem tardados tantos anos.
Tardastes; e entretanto estes tiranos
Casos d'amor roubaram-me os sentidos;
Se alcançá-los quereis, bem que são idos,
Buscai-os pelo rastro dos meus danos.
Oh segui-os, prendei-os; porque logo
Teme que foge, quem procura, alcança,
Pois é peso o temor, o gosto é vento.
E, para quando os alcanceis, vos rogo,
Não que façais me tornem a esperança,
Mas que sequer me deixem o escarmento.
Em dia de Cinza, sobre as palavras: "Quia pulvis es".
Melhor há de mil anos que me grita
Ua voz, que me diz: "És pó da terra!"
Melhor há de mil anos que a desterra
Um sono que esta voz desacredita.
Diz-me o pó que sou pó, e a crer me incita
Que é vento quanto neste pó se encerra;
Diz-me outro vento que esse pó vil erra...
Qual destes a verdade solicita?
Pois, se mente este pó, que foi do mundo?
Que é do gosto? Que é do ócio? Que é da idade?
Que é do vigor constante e amor jocundo?
Que é da velhice? Que é da mocidade?
Tragou-me a vida inteira o mar profundo!
Ora quem diz: - "sou pó" - falou verdade.
O CANTO DE BABILÓNIA

Sôbolas águas correntes
de aqueles Rios cantados
que a Babilónia levados
com lágrimas dos ausentes
chegam ricos e cansados,

Úa tarde me assentei
cheio de dor e fadiga
e hoje do que lá passei
me manda o tempo que diga
quanto em lágrimas direi.

Espalhei meu triste canto
pelas desertas areas:
os olhos foram as veas,
a música foi o pranto,
o instrumento as cadeas.

Ali com grandes tormentos
vi não passar minhas mágoas,
vi voar meus pensamentos.
vi que levavam as águas
quanto trouxeram os ventos.

Tudo quanto em outra idade
se fez amar e querer,
antes de bem se entender,
ali mandava a verdade
que se fosse a conhecer.

Mas eu, vendo-me cativo,
bradei na força da queixa:
dize, pensamento esquivo,
já que a memória me deixa,
porque lhe dizes que vivo?

Ela, inda bem não se ouviu
nomear, quando já chega,
tão vingativa e tão cega
que de um golpe destruiu
quanta paz alma lhe entrega.

Eis aquela paz antiga
que sem memória gozava,
já me mata e me castiga:
e a dor, que antes se humilhava,
ei-la soberba enemiga.

Fados maus, dura violência,
vil afronta, triste história,
grave dor, mudada glória.
com tudo pode a paciência
só não pode co'a memória.

Memória tão diligente,
Faze estar quedos os anos!
Passou-se a vida contente;
deixa vir os desenganos,
que eles vêm por si somente.

Eu me queixo, tu te queixas,
eu grito, tu arrezoas,
levas-me as lembranças boas
e dizes que, nas que deixas,
grandes culpas me perdoas.

Eu estava, que o não nego,
sem ver, sem me lembrar nada:
foste-me fazer tão cego
que de úa glória passada
me mandas fazer emprego.

E, para ver que passou,
me vendes um vidro raro,
por onde veja bem claro
o bem. Mas, se me deixou,
por que mo vendes tão caro?

Oh, que bem! Quem nunca o vira!
Oh, que ser! Quem nunca fora!
Falso Deus, que a quem o adora
mais depressa se retira
para as sombras donde mora!

Não é este o desejado
(que passou) Bem tão contino,
que até tinha de divino
deixar que fosse esperado,
como do justo, do indino.

Onde aquele dia é já
em que o sol alegre vi?
Se escuro ou claro estará?
E, porque fugiu de mi,
quanto mundo alegrará?

Essas horas que passaram
tão ledas, adonde vão?
Ai, e em que parte serão?
Que, pois tal vento levaram,
quem sabe se tornarão"

Que é de aqueles medos leves
e as honestas cobardias,
risos e lágrimas breves?
Que é do bem daqueles dias,
contra calmas, contra neves?

Onde é lançada a manhã?
A noite adonde parou?
E o ar, que brando assoprou
por dentro da nuvem vã,
que tempestade o levou?

Aquela serenidade
da vida antiga e ditosa,
quem a roubou desta idade?
E quem de cousa saudosa
tolher-nos quer a saudade?

Logo, se eu saudoso for
de tal vida eternamente,
acha-me disculpa a gente,
porque às vezes mata a dor,
e de justa não se sente.

Oh Terra Sião chamada,
de cujo pó tive vida,
se da sorte me és vedada,
nunca outra terra nacida
a meus ossos dê morada!

Da alta esfera em que se encerra,
me arrebate o fogo ou vento!
Morra no estranho elemento,
mas não caia em outra terra
nem cinza, nem pensamento!

Tu, por mais que lide a morte,
serás sempre doce e quista,
mas que o ferro ou pese, ou corte;
vingue-se a sorte da vista,
que o Amor me vinga da sorte.

Serás o perpétuo ofício
dos olhos d'alma queixosa,
que, em vítima saborosa,
se ofereça em sacrifício
nas aras da fé piedosa.

Mas neste campo de errónia,
de injúria e de maldição,
que merece a ceremónia
de se lembrar de Sião
quem padece em Babilónia?

Quem se lembra na miséria,
não califica a vontade;
lembrar na prosperidade,
essa lembrança é matéria
de toda a amiga verdade.

Aqui donde se injuria
a desgraça como o erro,
e a razão, presa à porfia,
tem por certo ser o ferro
o menos da tirania.

Que mereço em me lembrar
de ti, cidade a melhor,
pois, se a lembrança não for,
como poderei levar
nem a mi, nem minha dor?

Úa só hora daquelas
val por muitos padeceres.
Inda assi, tomara havê-las,
mas que um só dos seus prazeres
custara cem mil cautelas.

Ou que elas não foram tais,
ou, se o fossem, não passassem,
ou pelo menos tornassem
algúas suas iguais,
que as passadas consolassem.

Mas olhai, que vão desejo
pedir ao tempo a tornada!
Como se a vida que vejo
não fora já tão cansada,
que a passada é de sobejo!

Passa um dia, o outro vem,
tal como essoutro passado.
Não é o tempo o mudado:
um foi bom, e outro também;
o gosto, si, que é trocado.

Aquele Sol me aquentou,
e esse mesmo Sol me aquenta:
e a Lúa, que alumiou,
se se mingua, ou se acrecenta,
a mesma lúa ficou.

Passou um Janeiro frio,
voltou um Março amoroso,
chegou Maio, e foi ventoso,
veio Agosto, e fez Estio,
e entrou Novembro chuvoso.

Torna a vir outro Janeiro,
eis este como aquele ano,
na ordem por derradeiro;
porém no gosto ou no engano
nenhum dia tem praceiro.

O verão da mocidade
pouco e leve tempo dura ;
e aquela alegre verdura,
vista despois de outra idade,
já parece sombra escura.

Logo, se é nossa a mudança,
não jogo do tempo vão,
quem se mata ou quem se cansa
pela Desesperação,
por se vingar da Esperança?

Calidade atroz da vida
não ter hora de firmeza;
e tendo tal natureza,
ser tão buscada e tão crida
da nossa forte frequeza!

Pois quem no mesmo perigo
quis fazer seu certo assento,
que se queixa do castigo?
Leve consigo o tormento,
pois traz o engano consigo.

Um só modo descobriu,
contra o tempo e a mudança,
Amor, que à leve balança
das gentes não consentiu
Desejo nem Esperança.

Esta só virtude rara,
mal usada dos humanos,
de sorte o bem nos depara,
que, detendo o pé dos anos,
para imortais nos prepara.

Ditoso seja e louvado
justamente o pensamento
que, na glória e no tormento,
se deixa ser governado
pelas mãos do entendimento.

Ame-se o que é para amar;
veja-se o que é para ver;
ver só para venerar,
venerar para entender,
entender para louvar.

Se conheces no alto objeito
o valor e a perfeição,
não temas a sujeição,
porque do culto e respeito
nace a justa adoração.

Transportar no amado espírito,
unindo à pura vontade,
e lá por modo esquisito,
enxirir na eternidade
como infinito o finito;
Cativar o fero bruto
da liberdade atrevida,
e a razão, sempre subida
sôbolo desejo astuto,
viver triunfante e temida.

Quem nos diz que o mundo é
injusto? Quem nos diz tal,
contra o que nele se vê,
nem crê nos males do Mal,
nem nos bens do Bem tem fé.

Amar o bem da Virtude
é virtude e reverência,
Agora gema a insolência,
que eu fico que ao bem não mude
da fé para a contingência.

Nem as duras confusões,
nem os casos, nem os erros,
nem cadeias, nem grilhões,
nem ausências, nem desterros,
mudam do peito as razões.

Pois quem no deserto escuro
viva luz lhe apareceu,
que o bom caminho lhe deu,
porque suspira o seguro,
se ele próprio a luz perdeu?

Mas, se a segue, se conjura
a noite contra ele em vão,
pois, por mais que cerre escura,
firme passa o coração
e a vontade vai segura.

Contra o pinheiro do monte
forceje o Sul indinado,
que, quando muito forçado,
se a rama lhe muda a fronte,
o tronco nunca é mudado.

Os tristes bens da riqueza
ramos são, podem dobrar
c'o peso; mas a firmeza
sempre no home há-de estar
de úa própria natureza.

Os braços da adversidade
quando lutam c'o varão,
fortes e destros serão;
porém a contrariedade
faz-se ao corpo, à alma não.

Que era o que dizer queria
com tão valentes razões
Epicteto (entre aflições),
quando a Júpiter pedia
nova chuva de paixões?

Quando Anaxarco ante o povo
pisado foi duramente
que bradava ao Rei e à gente,
senão: Pisa-me de novo,
porque Anaxarco não sente?

Que era Comédia e grão festa
dos Deuses, disse o gentil,
a mais justa e mais honesta,
ver um peito varonil
lutar co'a sorte molesta.

Cruel condição que pôs
a Fortuna em seu morgado,
que não possa ser herdado
jamais, acerca de nós,
sem mudança e sem cuidado!

Quem se chama venturoso,
sem contenda e sem perigo.
ele pode ser mimoso;
mas viver sem enemigo,
não é sinal de ditoso.

Eu persigo ao meu vezinho
ele ao seu, continuamente,
e ordenou o céu providente
que pelo próprio caminho
a mi me encontre o parente.

Conto o Pai, conto o Irmão.
Homem és? És enemigo.
Oh fruto da maldição!
Os dentes de Cadmo antigo
somos os filhos de Adão.

Senhor!, que forjaste logo
mais gládio que nos moleste,
se aos homens nos homens deste
dura fome, ingrato fogo,
guerra crua e mortal peste?

Que fome tão desumana,
que fogo tão comedor,
ou que guerra tão tirana,
que peste, como o furor
desta vil fraqueza humana?!

Aquele Rei que lançou
Daniel aos leões úa hora,
(e qual se clemência fora)
com que mistério mandou
cerrar-lhe as portas por fora?

Que nos quis dizer então,
senão que, no lago escuro,
Daniel, se tem razão,
ele o dava por seguro
das feras, dos homens não?

O tálamo conjugal,
olhai por que o troca aquele:
pela vida e pela pele
do manso e pobre animal,
que as merece melhor que ele!

Essa alimária escondida
com que doesto o afrontou,
para lhe tirar a vida?
C'o trabalho que a buscou
entre a espinhosa guarida.

Contra a lebre sempre ousado,
do lobo foge que avoa;
grande pesca na alagoa,
e, em chegando ao Mar salgado,
treme do Mar, porque zoa.

Redes, laços, esparrelas,
que enganos e que falsia!
E metido o zelo entre elas...
Senhor, manda-nos um dia,
em que a luz mostre as cautelas!

Já com risos e brandura
assigura a paz da gente;
peçonha menos urgente
nas águas da fonte pura
deixa a fingida serpente.

Manda tu contra este mal
(pois és das verdades centro)
úa vista divinal;
ou, para nós vermos dentro,
faze os peitos de cristal.

Do crocodrilo do Nilo
exclamarn os naturais,
porque, chamando com ais,
mata como crocodrilo
quando criança o buscais.

Que dissera Plínio agora
à vista não do deserto,
quando täo certo lhe fora
que o crocodrilo mais certo
entre nós nas cortes mora?

Triste idade fraudulenta,
donde todo o mal respira
e a verdade se retira,
porque os campos que apascenta
lh'os vem pastando a mentira.

Foge tu, pelos presságios
do que vês lá nas areas,
gozando como sufrágios
pelos ecos das sereas
o escarmento dos naufrágios.

Deixa a doutrina do dano,
não fies da contingência,
e adora com reverência,
antes que o do Desengano,
o templo da Providência.

Se vês arder o casal
ou do parente ou do amigo,
teme-te da sorte igual;
que, se ele vira o perigo,
nunca o dano fora tal.

Mas tu, mas eu que faremos,
se nós mesmos fabricamos
o cavalo que adoramos
e dentro d'alma metemos
o fogo em que nos queimamos?

Qual Sínon nos fez o dano,
com que indústria ou que profia,
quem traçou, Grego ou Troiano,
senão nossa fantesia
a traça do nosso engano?

Quem te obriga a levantar
altas torres sobre o vento?
Quem lhe deu ao pensamento
as asas para voar,
senão teu próprio ardimento?

Então, se a cera oportuna
não saíu, e te desterra
a luz do Sol importuna,
quando caies sobre a terra
porque infamas a Fortuna?

Fortuna, não, providência
é da mão que o mundo rege,
por mais que o esprito forceje,
pôr-lhe tudo em contingência,
para que nada deseje.

Aquele sempre temer,
aquele nunca acertar,
aquele nada entender,
aquele tanto enganar,
que outra cousa quer dizer?

Quantas vezes, persuadido
da fé dos olhos, errei,
e quantas vezes busquei
rosas no campo florido,
onde só serpes achei!

E quantas, bem diferente,
temendo-me dos abrolhos,
caminhada impaciente,
e contra o voto dos olhos
fui parar ditosamente!

Ai de quem se persuade
da teima do pensamento,
e para julgar o intento
manda assentar a Vontade
no trono do Entendimento!

Tal o processo seria
qual do juiz a eleição:
a prova será profia,
as rezões, a sem-razão,
e a sentença, tirania.

Eis-me aqui, sem diferença:
doutro tal juiz que elejo
executado me vejo,
e por outro tal sentença
que foi dar o meu desejo.

Eu, carregado de ferros,
ele, de lástimas feas,
ambos pagamos os erros;
eu, arrastando as cadeas,
ele, chorando os desterros.

Cada dia exprimentada
nova dor, nova penúria;
e, entre os golpes desta fúria,
apenas úa é passada,
quando já chega outra injúria.

A Enveja, a Detracção,
a Fraude, o Engano, o Temor,
a Dúvida, a Confusão,
a Indignação, o Rigor,
sobretudo a Sem-razão.

Logo, com que confiança,
Sião amado e propício,
achar posso um leve indício
que me assigure a esperança
no fumo do sacrifício?

Pois é já força que viva
nesta escravidão incauta
e manda a Fortuna esquiva,
que enterrada fique a frauta
e a liberdade cativa.

Alto Senhor, sempiterno,
sem primeiro e sem segundo,
em cujo peito profundo
consiste o comum governo
deste mundo e desse mundo

Permita teu ser divino
mostrar-lhe a via e a verdade
àquele espírito indino
que vai à tua cidade,
miserável peregrino!

Põe-lhe diante a esperança;
acompanha-o c'o Temor;
acrecenta-lhe o Valor;
manda afastar a Lembrança:
caminhará vencedor.

Tu , que és fogo e que és coluna,
dá luz e dá fortaleza
contra essa força importuna
das trevas da Natureza
e dos braços da Fortuna.

Mas, pois que tenho acabado
quanto lá cantei ao vento,
fique a voz ao esquecimento,
e c'o canto sepultado,
fique também o instrumento.

E, se eu, por vida cruel,
idolatrar contra ti,
ó Jerusalém fiel,
dure eternamente em mi
a confusão de Babel!


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Francisco de Vasconcelos (1665-1723) nasceu no Funchal, frequentou a Universidade de Coimbra entre 1686 e 1697 e foi nomeado ouvidor da Capitania do Funchal em 1697. É um dos mais importantes poetas da Fénix Renascida, estando representado no volume I e no volume II. Em 1729, já depois da sua morte, foram publicadas as obras "Feudo do Parnaso", um panegírico a D. João V em tercetos, e Hecatombe Métrico, obra composta por cem sonetos onde se narra a história da redenção do homem, desde o pecado de Adão até à paixão e morte de Cristo. David Mourão-Ferreira, no Hospital das Letras, afirmou que Francisco de Vasconcelos faz parte do elo indispensável que liga o lirismo camoniano ao pré-romantismo.
ALGUNS SONETOS
À fragilidade da vida humana

Esse baixel nas praias derrotado
Foi nas ondas narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.

Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse Estio em vesúvios incendido
Foi zéfiro suave, em doce agrado.

Se a nau, o Sol, a rosa, a Primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,

Olha, cego mortal, e considera
Que é rosa, Primavera, Sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.
À morte de F.

Esse jasmim, que arminhos desacata,
Essa aurora, que nácares aviva,
Essa fonte, que aljôfares deriva,
Essa rosa, que púrpuras desata;

Troca em cinza voraz lustrosa prata,
Brota em pranto cruel púrpura viva,
Profana em turvo pez prata nativa,
Muda em luto infeliz tersa escarlata.

Jasmim na alvura foi, na luz Aurora,
Fonte na graça, rosa no atributo,
Essa heróica deidade que em luz repousa.

Porém fora melhor que assim não fora,
Pois a ser cinza, pranto, barro e luto,
Nasceu jasmim, aurora, fonte, rosa.
A F., Agradecendo-lhe umas rosas

Estes mimos da luz, do campo alarde,
Mariposas do Sol, línguas da Aurora,
Sendo alinhos de Abril, troféus de Flora,
São galas na manhã, lutos na tarde.

Sem que do fado insano o Sol as guarde,
Marchita as flores, quando as enamora,
Pois cada rosa que com luzes dora
É borboleta que nas chamas arde.

Fílis, mais do que amante, andais ingrata,
Querendo dos rigores fazer moda,
Embuçando o favor na tirania,

Pois, no caduco ser desta escarlata,
Dais a um amor, que dura a vida toda,
Um galardão que apenas dura um dia.
Ao seu cuidado

No verdor da floresta deleitosa,
Quando de Abril a Aurora é mais serena,
Reclinado nos braços da açucena,
Vi o purpúreo carmim da mesma rosa.

Essa de âmbar fragante mariposa,
Vi bordar, de escarlata a selva amena.
E em quebros vi cantar a filomena,
Entre as ramas de Dafne mais frondosa.

De Flora o campo cheio de harmonias,
De aljôfar guarnecendo os verdes prados,
Essas de Tétis líquidas sangrias,

Tudo em fragrâncias concedia agrados...
Mas ai! que, entre tão doces melodias,
Somente me elevaram meus cuidados!
Ao mesmo assunto

Baixel de confusão em mares de ânsia,
Edifício caduco em vil terreno,
Rosa murchada já no campo ameno,
Berço trocado em tumba desda infância;

Fraqueza sustentada em arrogância,
Néctar suave em campo de veneno,
Escura noite em lúcido sereno,
Sereia alegre em triste consonância;

Viração lisonjeira em vento forte,
Riqueza falsa em venturosa mina,
Estrela errante em fementido norte;

Verdade que o engano contamina,
Triunfo no temor, troféu da morte
É nossa vida vã, nossa ruína.

A um rouxinol cantando

Ramalhete animado, flor do vento,
Que alegremente teus ciúmes choras
Tu, cantando teu mal, teu mal melhoras,
Eu, chorando meu mal, meu mal aumento.

Eu digo minha dor ao sofrimento
Tu cantas teu pesar a quem namoras,
Tu esperas o bem todas as horas,
Eu tenho qualquer mal tudo o momento.

Ambos agora estamos padecendo
Por decreto cruel do deus mínimo;
Mas eu padeço mais só porque entendo.

Que é tão duro e cruel o meu destino
Que tu choras o mal que estás sofrendo,
Tu choro o mal que sofro e que imagino.
[Qual sarça de Moisés que verde ardia]

Qual sarça de Moisés que verde ardia,
Carro de Elias que o esplendor cercava,
Nas chamas os verdores conservava,
Nas luzes sem estrago os céus corria;

Qual o forno que em chamas só luzia
E todo labaredas não queimava,
Jerusalém que a chama circundava
E de um muro de fogo se cingia,

Assim Maria, carro luminoso,
Furno brilhante, ardente sarça amena,
Jerusalém que em fogo ilustra o barro,

Sem risco, eclipse, horror penoso,
No ardor, na chama, no pavor, na pena,
É Jerusalém, forno, sarça e carro.




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Francisco Rodrigues Lobo (1579-1621) é um dos mais importantes discípulos de Camões. Tendo sido influenciado por Gôngora, é considerado o iniciador do Barroco na literatura portuguesa. Era de uma família de cristãos-novos, formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, não se conhecendo quaisquer cargos públicos que tenha exercido. Morreu afogado numa viagem de barco que fazia entre Santarém e Lisboa. A nível poético, escreveu romances bucólicos, éclogas e sonetos Éclogas, Primavera, Condestabre e O Pastor Peregrino). Em prosa escreveu a Corte na Aldeia (1619), que é uma colecção de diálogos didácticos sobre preceitos da vida na corte. Esta obra reflecte a frustração da nobreza portuguesa pelo desaparecimento da corte nacional sob a dominação filipina.
ALGUNS POEMAS
[Fermoso Tejo meu, quão diferente]

Fermoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista em que consiste
O meu viver contente ou descontente!

Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh, quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!

Mas lá virá a fresca Primavera:
Tu tornarás a ser quem eras dantes,
Eu não sei se serei quem dantes era.

[Mil anos há que busco a minha estrela]

Mil anos há que busco a minha estrela
E os Fados dizem que ma têm guardada;
Levantei-me de noite e madrugada,
Por mais que madruguei, não pude vê-la.

Já não espero haver alcance dela
Senão depois da vida rematada,
Que deve estar nos céus tão remontada
Que só lá poderei gozá-la e tê-la.

Pensamentos, desejos, esperança,
Não vos canseis em vão, não movais guerra,
Façamos entre os mais üa mudança:

Para me procurar vida segura
Deixemos tudo aquilo que há na terra,
Vamos para onde temos a ventura.

[Fermoso rio Lis, que entre arvoredos]
I
Fermoso rio Lis, que entre arvoredos
Ides detendo as águas vagarosas,
Até que üas sobre outras, de invejosas,
Ficam cobrindo o vão destes penedos;

Verdes lapas, que ao pé de altos rochedos
Sois morada das Ninfas mais fermosas,
Fontes, árvores, ervas, lírios, rosas,
Em quem esconde Amor tantos segredos;

Se vós, livres de humano sentimento,
Em quem não cabe escolha nem vontade,
Também às leis de Amor guardais respeito.

Como se há-de livrar meu pensamento
De render alma, vida e liberdade,
Se conhece a razão de estar sujeito?

[Águas que, penduradas desta altura]

Águas que, penduradas desta altura,
Caís sobre os penedos descuidadas,
Aonde, em branca escuma levantadas,
Ofendidas mostrais mais fermosura,

Se achais essa dureza tão segura,
Para que porfiais, águas cansadas?
Hei tantos anos já desenganadas,
E esta rocha mais áspera e mais dura.

Voltai atrás por entre os arvoredos,
Aonde caminhais com liberdade
Até chegar ao fim tão desejado.

Mas ai! que são de amor estes segredos.
Que vos não valerá própria vontade
Como a mim não valeu no meu cuidado.

Pastoral
Mote
Vai o rio de monte a monte,
Como passarei sem ponte?

Voltas
É o vau mui arriscado,
Só nele é certo o perigo;
O tempo como inimigo
Tem-me o caminho tomado.
Num monte está meu cuidado,
E eu, posto aqui noutro monte,
Como passarei sem ponte?

Tudo quanto a vista alcança
Coberto de males vejo:
D'aquém fica meu desejo
E d'além minha esperança.
Esta, contínua, me cansa
Porque está sempre defronte:
Como passarei sem ponte?

ÉCLOGA I

Dizem que já noutra idade
falaram os animais,
e eu creio que por sinais
inda hoje falam verdade.

Ouvi contar como então
se fez valente e temido
um vil jumento, escondido
nos despojos de um leão.

Enquanto de longe o viam
os outros fugiam dele:
eram milagres da pele
do rei, a que eles temiam.


Quis falar, buscou seus danos,
que os outros, com raiva crua,
fazem pagar pela sua
da outra pele os enganos.

Quantos há, na nossa aldeia,
leões e lobos fingidos,
que houveram de andar despidos,
se não fora a pele alheia!

ÉCLOGA IV
Ontem, quando o Sol naceu,
me pus sobre aquele outeiro,
que a vista me faleceu,
tão triste como o primeiro
que a tristeza conheceu.

Pus estes olhos cansados
no lugar e na ribeira,
nas cabanas e nos gados;
levantei-os de maneira
que estavam d água alagados.

Vi muito gado perdido,
sem pastor, sem pegureiro,
por entre as balsas metido:
aqui, balava um cordeiro,
sem ser da mãe socorrido;

acolá, dava outro balo
a mimosa ovelha branca;
outra jaz morta no valo;
outra, sem poder saltá-lo,
vem entresilhada e manca.

As cabras vão pelo outeiro;
cada qual toma um atalho;
cada qual segue um carreiro;
já não as guarda o rafeiro;
já não nas guia o chocalho.

Já no vale não parece
pastora que o gado leve;
se algum pastor se oferece,
ou sente o mal que padece,
ou teme e sente os que deve.

A terra o gado recebe,
por costume e sem engano;
dá-lhe o de que come e bebe;
não há valado nem sebe,
nem quem o acoime do dano.

Tudo está como deserto;
o mato só se povoa,
e n'aldeia em descoberto,
assim como por acerto
se divisa üa pessoa.

Estão sem gado os currais,
e os pastores sem abrigo;
nas brenhas e pedregais,
moram, como em tempo antigo,
os homens e os animais.

ÉCLOGA X

Antes que o sol se levante
Mote
Antes que o Sol se levante,
vai Vilante ver seu gado,
mas não vê Sol levantado
quem vê primeiro a Vilante.

Voltas
É tanta a graça que tem
com üa touca mal envolta,
manga de camisa solta,
faixa pregada ao desdém,
que se o Sol a vir diante,
quando vai mungir o gado,
ficará como enleado
ante os olhos de Vilante.

Descalça, às vezes, se atreve
ir em mangas de camisa;
se entre as ervas neve pisa,
não se julga qual é neve.
Duvida o que está diante,
quando a vê mungir o gado,
se é tudo leite amassado,
se tudo as mãos de Vilante.

Se acaso o braço levanta,
porque a beatilha encolhe,
de qualquer pastor que a olhe
leva a alma na garganta.
E inda que o Sol se levante
a dar graça e luz ao prado,
já Vilante lha tem dado,
que o Sol tomou de Vilante.
[Coração, olha o que queres]
MOTE
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...

VOLTAS
Tão tirana e desigual
Sustentam sempre a vontade,
Que a quem lhes quer de verdade
Confessam que querem mal;
Se Amor para elas não val,
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...


Se algüa tem afeição
Há-de ser a quem lha nega,
Porque nenhüa se entrega
Fora desta condição;
Não lhe queiras, coração,
E senão, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres...

São tais, que é melhor partido
Para obrigá-las e tê-las,
Ir sempre fugindo delas,
Que andar por elas perdido;
E pois o tens conhecido,
Coração, que mais lhe queres?
Que, em fim, todas as mulheres!


VILANCETE

Zagala, os teus olhos,
Picam, e não são tojos!
Nos bois o aguilhão
Não faz tanto dano
Como um seu engano
No meu coração.
Num jeito que dão,
Zagala, os teus olhos,
Picam mais que tojos!

Nem naquele ensejo,
Quando mosca o gado,
Fica tão picado
Como eu quando os vejo;
Este meu desejo,
Zagala, e teus olhos,
Picam, e não são tojos!

Se, de mim zombando,
Sorrindo-te os mudas,
Com pontas agudas
Me estão traspassando;
Mais picado ando
De ver os teus olhos
Que de arrancar tojos!

Setas no ferir
São suas pestanas
Que eu temo, e me enganas
Em vendo-as bulir;
Mas não sei fugir
Piques dos teus olhos,
Que são mais que tojos!


CANTIGA

Descalça vai para a fonte,
Leanor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.

A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição,
Saia de cor de limão,
Beatilha soqueixada;
Cantando de madrugada,
Pisa as flores na verdura:
Vai fermosa, e não segura.

Leva na mão a rodilha,
Feita da sua toalha;
Com üa sustenta a talha,
Ergue com outra a fraldilha;
Mostra os pés por maravilha,
Que a neve deixam escura:
Vai fermosa, e não segura.

As flores, por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem cor,
E de vergonha com graça;
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura:
Vai formosa, e não segura.

Não na ver o Sol lhe val,
Por não ter novo inimigo;
Mas ela corre perigo,
Se na fonte se vê tal;
Descuidada deste mal,
Se vai ver na fonte pura:
Vai fermosa, e não segura.

[Também nós imos já perto da Fonte]
Também nós imos já perto da Fonte;
E, Em quanto no cantar nos entretemos,
Temo que a vinda cá pouco nos monte.

Dizes bem; melhor é nos desviemos,
Por que nos não divisam nem por sonho,
Que, uma só que nos veja, as não veremos.

E mais, se eu não vou cego, daqui ponho
Que são as que lá assomam na treposta.
De só cuidares isso me envergonho.

Tu não me queres crer? Vá sobre aposta.
Mui bem dizes, daquelas são sem falta;
Passas tu como furão pola posta?

Madanela é de todas a mais alta,
Que aparece vestida de pombinho;
Também Andresa vai: nada nos falta.

O adufe ouço, ouço o pandeirinho;
Vamo-nos por detrás deste valado:
Iremos encontrá-las ao caminho.
Afasta ora estas silvas com o cajado.

Carta que o autor escreveu a um amigo que estava fugido da peste em uma quinta sua, com a Écloga seguinte, que compôs no mesmo tempo.

Cá neste monte estéril, seco e alto,
Para onde vim fugindo do castigo
Que em tantos montes deu tão grande assalto,

À vista do destroço e do perigo
Que me ameaça, estou continuamente
Fazendo estreitas contas só comigo.

Mas até neste estado descontente,
Aonde não tem lugar outra lembrança,
Sempre, senhor, na minha estais presente.

Lá voa o pensamento e lá descansa,
Aonde vós, descuidado, descansais,
Se em tal tormenta alguém goza bonança!

Se lá não chega o eco de meus ais,
O sentimento e mal de minhas dores,
Que à vista das alheias crescem mais,

Os queixumes ouvi dos meus pastores,
Como algum hora, mais alegre, ouvistes
As graças e o louvor de seus amores.

E, pelo que em meus olhos sempre vistes,
Julgareis se fugi com força ou gosto
De quem (para mor mal) foge dos tristes.

Porém o couto é tal, aonde estou posto,
Que mais tem semelhança do tormento
Do que para os fugidos melhor rosto.

Graças ao meu provado sofrimento,
Que faz tão pouca conta do seu dano
Que ainda culpa o fado de avarento,

Lá vos envio Gil, Franco e Montano;
Eles darão sinal do que eu padeço,
Sem refolho, sem erro e sem engano.

O que há neste desvio vos ofreço:
O estilo, as palavras tão singelas,
A que tirou a arte a graça e preço.

Porém não dana ouvi-las e sabê-las;
Tirai-lhe a casca como a qualquer fruta
E então direis do fruito que achais nelas.

E, se algum dos censores que me escuta
(Que, por mais fundo vau que estê diante,
Sem asas quer passar com a roupa enxuta)

Disser que é ser pastor ser ignorante,
Nem as razões estão só no concerto,
Nem no vestir custoso o ser galante.

Vós que a verdade vedes mais ao perto,
Aceitai, Paiva ilustre, o meu cuidado,
Que vai qual sofre o mal deste deserto.

E, enquanto nele vivo desterrado,
Aonde nenhum prazer já me convida,
Me avisai se estais livre e descansado;
Terei prazer, descanso, gosto e vida.
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Jerónimo Baía, ou Vaía (1620/30-1688) nasceu em Coimbra, tendo professado no convento de São Martinho de Tibães (Braga), da Ordem Beneditina, a 4 de Maio de 1643. Frequentou a Universidade de Coimbra, foi nomeado cronista da ordem e mais tarde pregador na corte do rei D. Afonso VI. Com a deposição do rei, terá sido obrigado a regressar ao convento. Celebrizou-se como poeta lírico, e sobretudo burlesco, o que lhe valeu o cognome de «Poeta Folgazão». Além das composições poéticas que vêm publicadas na Fénix Renascida, escreveu as obras Lampadário de Cristal e Tardes de Verão, esta última em prosa e que narra os principais acontecimentos históricos do seu tempo. É considerado um dos autores mais significativos da literatura barroca em Portugal.
LAMPADÁRIO DE CRISTAL
(extractos)
Lampadário de Cristal que mandou a Duquesa de Saboia à Real Majestade da Poderosíssima Rainha de Portugal sua irmã. Idílio Panegírico a suas Altezas Reais o Príncipe D. Pedro, e sua Augusta Consorte D. Maria Francisca Isabel de Saboia.
Alpe luzido, luminar nevado,
Pompa da Régia sala,
Tesouro no valor, brinco na gala,
Onde à matéria vasta a subtil arte,
Fazendo ilustre excesso,
O preço abate sublimando o preço:
Confusão, porém clara,
Da luzida no Céu, na terra escura
Ciência, que reparte
Fortuna a Vénus, e infortúnio a Marte;
Porque quando separa
Do cristalino Céu Céu estrelado,
Vosso puro cristal, vossa luz pura
Une, fazendo próprio o peregrino,
Com estrelado Céu Céu cristalino.
Lâmpada soberana,
Digníssima do templo de Diana,
Mas se nele tivera
Vossa luz sua esfera,
Com tal excesso brilha,
Brilha tão sem exemplo,
Que fora mais estranha maravilha
A lâmpada que o templo;
Que fora o templo, emulação do Pólo,
De Diana por si, por vós de Apolo.
Belo farol luzente,
Mais do que objecto, admiração da gente,
Digno da torre, não menor que Atlante,
Da torre que segundo
Milagre foi do Mundo,
Antes mais que da torre, do Gigante,
Que se vira tão lúcidos assombros
Em seus robustos estrelados ombros,
A todo o Céu tratara com desprezo,
Pois vós tendes mais luz, e o Céu mais peso.
Rica facha pomposa,
A cuja luz, mais que as estrelas clara,
Aquela ave famosa,
Não sei se verdadeira ou fabulosa,
Aquela ave do Sol e Sol das aves
De ser Fénix deixara
Só por ser borboleta,
E sendo borboleta a ser tornara
Outra vez ave do maior Planeta,
Pois Fénix entre incêndios tão suaves,
Borboleta entre tochas tão luzidas,
Com gostos imortais, perpétuas sortes,
Qual Fénix renovara inda mais vidas
Por lograr borboleta inda mais mortes.
Nocturno Sol fermoso,
A cuja luz, mais que à do Sol, quisera
Ícaro derreter vanglorioso,
Asas não só, mas corações de cera,
Porém, se os derretera
No fogo lisonjeiro,
Não chorara perdida
No salgado cristal a doce vida,
Que entre suaves mágoas
Lha tiraram primeiro
Os incêndios que as águas,
As luzes, que os incêndios,
E não seria só luz tão brilhante
Que deixa ao Sol estrela
Da vida juvenil Átropos bela,
Mas ainda seria
Parca gentil do artífice elegante,
Que com tantos dispêndios
Depois de Autor foi réu do labirinto,
Pois quando faz que a noite vença o dia,
Sendo ocaso da luz à luz de Cinto,
Tanto aos olhos namora
Que quem Dédalo foi, Ícaro fora.
Fermoso Sol nocturno,
Cuja luz tanto admira,
Que se a vira o varão, vira o mancebo
De Jápeto penhor, penhor de Febo,
Que tendo em larga idade escassa sorte
Não morre à vida por viver à morte:
Que tendo em Céu sereno escuro fado,
Com ser filho do Sol é desgraçado;
Um nunca encarcerado, e sempre preso,
Pois vê livre e sujeito
O monte aberto, como aberto o peito:
Outro mais frio quando mais aceso,
Pois chora extinto num outro elemento
De fogo a morte, de água o monumento;
Ou se a vira Faetonte,
Se Prometeu a vira,
Quando qual Sol e Aurora
Na cera quanto bela derretida,
Lagrimosa não menos que luzida,
Alegre como Sol, como Alva chora,
Nem Faetonte prezara,
Nem Prometeu roubara.
Fogo celestial, farol diurno,
Só por vós mais ousado
Fora seu furto e brio,
E se aquele no rio,
E se estoutro no monte,
Por tão lustroso crime
Ou fora preso ou fora sepultado,
Em virtude de causa tão sublime,
Por glória reputara
O primeiro, o segundo delinquente
A corrente, a corrente
Que aperta, que desata
O Cáucaso de ferro, o Pó de prata.
Claridade excessiva, antes imensa,
Em luzes rara porque em luzes densa,
Ilustre, singular, prenda admirada,
Que com digna de si Real grandeza,
Por mão de Embaixador excelso manda
À Majestade mor a mor Alteza,
Que manda... (Oh, se meu canto
Aqui subisse tanto,
Que pudesse passar da terra ao vento,
Do vento ao Céu, do Céu ao Firmamento,
E desde o Firmamento até ao Empírio!)
Que manda a rosa ao lírio,
Antes o brinco à jóia,
Antes ao Sol a estrela,
Antes a bela irmã à irmã mais bela,
Esta de Lísia, aquela de Saboia,
Que o ser irmão é mais nesta e naquela
Do que o ser fermosa, e mais fermosa.
(...)
OUTROS POEMAS
Ao rigor de Lísi

Mais dura, mais cruel, mais rigorosa
Sois, Lísi, que o cometa, rocha ou muro
Mais rigoroso, mais cruel, mais duro,
Que o Céu vê, cerca o mar, a terra goza.

Sois mais rica, mais bela, mais lustrosa
Que a perla, rosa, Sol ou jasmim puro,
Pois por vós fica feio, pobre e escuro,
Sol em Céu, perla em mar, em jardim rosa.

Não viu tão doce, plácida e amena,
(Brame o mar, trema a terra, o Céu se agrave),
Luz o Céu, ave a terra, o mar sirena.

Vós triunfais de sirena', luz e ave,
Claro Sol, perla fina, rosa amena,
Mor cometa, árduo muro, rocha grave.

Sonhando que via a Márcia

Pintais, sono gentil, com belo ornato
Meu claro sol na vossa sombra escura,
Que posto que da morte sois retrato,
Retrato sabeis ser da fermosura.

Eu, vendo o grato rosto e peito ingrato,
Quando fermosa a sigo a temo dura;
Porém firme no amor, fácil no trato,
Me coroa a esperança, a fé me jura.

Cante pois por tal glória, por tal sorte,
Cante vosso louvor, minha Talia
No Ocaso, no Oriente, Sul e Borte;

Chame-vos clara luz, não sombra fria,
Causa da vida, não irmão da morte,
Filho da noite não, mas pai do dia.

A uma trança de cabelos negros

Diversa em cor, igual em bizarria
Sois, bela trança, ao lustre de Sofala,
Luto por negra, por vistosa gala,
Nas cores noite, na beleza dia.

Negra, porém de amor na monarquia
Reinais senhora, não servis vassala;
Sombra, mas toda a luz não vos iguala;
Tristeza, mas venceis toda a alegria.

Tudo sois, mas eu tenho resoluto
Que sois só na aparência enganadora
Negra, noite, tristeza, sombra, luto.

Porém na essência, ó doce matadora,
Quem não dirá que sois, e não diz muito,
Dia, gala, alegria, luz, senhora?

A F., favorecendo com a boca
e desprezando com os olhos

Quando o Sol nasce e a sombra principia,
A doce abelha, a borboleta airosa
Procura luz ardente e fresca rosa,
Que faz a Terra céu e a noite dia.

Mas quando à flor se entrega, à luz se fia,
Uma fica infeliz, outra ditosa,
Pois vive a abelha e morre a mariposa
Na favorável rosa e chama impia.

Fílis, abelha sou, sou borboleta
Que com afecto igual, com igual sorte,
Busco em vós melhor luz, flor mais selecta,

Mas quando a flor é branda, a chama é forte,
Néctar acho na flor, na luz cometa,
A boca me dá vida, os olhos morte.

A um pé pequeno

Pues os jusgan las ansias del sentido
Instante de jasmin, concepto breve,
Atomo de açucena presumido,
Sospecha de crystal, susto de nieve;

No pié, mentira sois, pues, como aleve,
Ni verdad en un punto haveis cumplido.
Antes digo que escrupulo haveis sido,
Pues de ser o no ser la duda os mueve.

Como, si idea sois de ojos tan claros,
Hazeis la vista fé para creeros,
Y hazeis los ojos fé para miraros?

Yo me persuado en fin, que hede perderos,
Porque si el veros es imaginaros,
Siendo imaginacion, como hede veros?

Mandando El-Rei D. Pedro enterrar o coração do Marquez de Marialva ao pé do túmulo de El-Rei D. João IV

Ceda ó Jove na paz, Marte na guerra,
Pedro o primeiro, a Pedro sem segundo,
Pois este humano, aquele furibundo
Corações tira, mortos desenterra:

Adonde expira Inês Pedro se encerra,
Um medo ao Reino, o outro amor ao mundo,
Pois faz a um morto, a outro moribundo,
Grave este o fogo, leve aquele a terra.

Três corações, dous Janos, & um Mavorte,
Entregue ao Letes um, outro à memória,
Um coroa o amor, outro a consorte.

Mas ai com tanto excesso, alta vitória,
De Pedro a Pedro, o que da gloria à morte,
Ele é morte de dous, vós de um sois glória.

À morte do Conde de Castelo Melhor

O Castelo melhor, o melhor forte,
Glória do Minho, horror de Salvaterra,
Quando subiu ao Céu, caiu à terra;
Cato, ai triste caso! ai dura sorte!

Da maior fortaleza de Mavorte
Um jaspe só toda a ruína encerra.
O tempo fez o que não fez a guerra;
O que não pôde Marte, pôde a Morte.

Fosso lhe deu, serviu-lhe de estacada
Pio o Galego, o Castelhano exangue,
Com cadáveres um, outro com sangue.

E fora extinta, e fora aniquilada,
A ter mais duração ou mais estrela,
Deste Castelo só toda Castela.

Falando com Deus

Só vos conhece, amor, quem se conhece;
Só vos entende bem quem bem se entende;
Só quem se ofende a si, não vos ofende,
E só vos pode amar quem se aborrece.

Só quem se mortifica em vós floresce;
Só é senhor de si quem se vos rende;
Só sabe pretender quem vos pretende,
E só sobe por vós quem por vós desce.

Quem tudo por vós perde, tudo ganha,
Pois tudo quanto há, tudo em vós cabe.
Ditoso quem no vosso amor se inflama,

Pois faz troca tão alta e tão estranha.
Mas só vos pode amar o que vos sabe,
Só vos pode saber o que vos ama.
Ao Menino-Deus nascido

Não choreis, belo Menino,
Se de amante vos prezais,
Porque amor que chora mais
É sempre amor menos fino:
Limpai o rosto divino,
A quem a minha alma adora,
Que se vossa Mãe vos chora,
Meu Deus, com tantos rigores,
É porque ao nascer das flores,
Costuma chorar a Aurora.

Madrigal a uma crueldade formosa

A minha bela ingrata
Cabelo de ouro tem, fronte de prata,
De bronze o coração, de aço o peito;
São os olhos reluzentes
(Por quem choro e suspiro,
Desfeito em cinza, em lágrimas desfeito),
Celestial safiro;
Os beiços são rubins, perlas os dentes;
A lustrosa garganta
De mármore polido;
A mão de jaspe, de alabastro a planta.
Que muito, pois, Cupido,
Que tenha tal rigor tanta lindeza,
As feições milagrosas,
Para igualar desdéns a formosuras,
De preciosos metais, pedras preciosas,
E de duros metais, de pedras duras?

Ao menino deus em metáfora de doce

ROMANCE

– Quem quer fruta doce?
– Mostre lá! Que é isso?
– É doce coberto;
É manjar divino.

– Vejamos o doce,
E, depois que o virmos,
Compraremos todo,
Se for todo rico.

– Venha ao portal logo:
Verá que não minto,
Pois de várias sortes
É doce infinito.

Desculpa, minha alma.
– Mas ah! que diviso?
Envolto em mantilhas,
Um infante lindo!

– Pois de que se admira,
Quando este Menino
É doce coberto,
É manjar divino?

– Diga o como é doce,
Que ignoro o prodígio.
– Não sabe o mistério?
Ora vá ouvindo:

Muito antes de Santa Ana
Teve este doce princípio,
Porque já do Salvador
Se davam muitos indícios.

Mas na Anunciada dizem
Que houve mais expresso aviso,
E logo na Encarnação
Se entrou por modo divino.

Esteve pois na Esperança
Muitos tempos escondido.
Saiu da Madre de Deus,
Depois às Claras foi visto.

Fazem dele estimação
As freiras com tal capricho,
Que apuram para este doce
Todos os cinco sentidos.

Afirmam que no Calvário
Terá Seu termo finito,
Sendo que no Sacramento
Há-de ter novo artifício.

Que seja doce este Infante,
A razão o está pedindo,
Porque é certo que é morgado,
Sendo unigénito Filho!

Exposto ao rigor do tempo,
Quando tirita nuzinho,
Um caramelo parece
Pelo branco e pelo frio.

Tal doce é, que porque farte
Ao pecador mais faminto,
Será de pão com espécies,
Substancial doce divino.

É manjar tão soberano,
Regalo tão peregrino,
Que os espíritos levanta,
Tornando aos mortos vivos.

Tão delicioso bocado
Será de gosto infinito,
manjar real, verdadeiro,
Manjar branco parecido!

Que é manjar dos Anjos, dizem
Talentos mui fidedignos,
Por ser pão-de-ló, que aos Anjos
Foi em figura oferecido.

Retrato

Vi Fílis, a bela,
Lume dos meus olhos,
Olhos de minha alma,
Alma de meu corpo.
Vi-a, e logo amor.
Vi-a, e Febo logo
Quer que a pinte a cores,
Quer que a cante a coros.
Meti-me em debuxos,
E saí com tonos.
Quem me fora Apeles!
Quem me fora Apolo!
Seu rico cabelo,
Do mais precioso,
Mil troféus alcança
E logra mil louros.
Os raios enlaça,
Para mal dos olhos.
Todo ele é nós cegos,
E nós, cegos todos.
O campo da testa
Belo e belicoso,
Faz de neve fronte
A esquadrão de fogo.
Seus olhos rasgados
De avarentos noto,
Pois quanto mais ricos
Tanto estão mais rotos.
São mar de beleza
Que me tem absorto,
E suas meninas
São os seus cachopos.
Dormidos se mostram,
Mas sabem (que assombro!)
Mais eles dormidos
Que espertos os outros.
Altamente dormem,
Mas entre os seus sonhos,
Mais que de dormidos,
Roncam de formosos.
Feito de apanhia,
Mistura o seu rosto
Com o branco o tinto,
De neve entre copos.
O nariz e as faces
Têm câmbio cheiroso:
Elas flores dão,
Ele dá Favónios.
A boca parece,
Se mal a não apodo,
Pela cor, ferida,
Pelo breve, ponto.
De seus dentes, quando
Descobre o tesouro,
O aljôfar se mete
Nas conchas medroso.
Por ser tão tenrinho,
Tão de leite todo,
Seu colo podia
Andar inda ao colo.
É tão rica jóia,
Brinco tão formoso,
Que todos os dias
O traz ao pescoço.
Põe a mão galharda,
Por quem vivo e morro,
O papel de tinta,
A neve de lodo.
Tudo nela é branco;
Porém eu me assombro
De topar as setas
Onde o alvo topo.
São seus pés tão breves,
Que estes versos toscos
Com ser tão pequenos,
Lhe ficam mui longos.


Ao Santíssimo Sacramento, em tempo, que os castelhanos tinham de cerco a praça de Elvas

Ó Divino Pão do Céu,
A quem o Povo inclemente
Segou tão barbaramente,
Tão cruelmente moeu,

Livrai, livrai de perigos
Meus versos desalinhados,
Mas não temo vão errados,
Bem que vão por estes trigos.

Dai-me instrumento inaudito,
Voz sonora, e frase aceita,
Que certo adágio receita,
A bom bocado bom grito.

Dai-me graça nesta acção,
E não noteis esta traça,
Que eu sempre vos peço graça,
Como quem vos pede pão.

Em palhas fostes nascido,
Em terra virgem criado,
Se dos Judeus pão trilhado,
Dos fiéis pão escolhido.

Por alvo vos tem o Mundo,
Pão que o Mundo fazeis alvo,
Porém sendo pão tão alvo,
Não deixais de ser segundo.

Com ser de farinha pura,
Sem ter joio misturado,
Se sois no peito encerrado,
Deixais nele alimpadura.

Sois pão muito regalado,
Mas pareceis rigoroso,
Porque sendo tão mimoso,
Não podeis ser mastigado.

Sois pão de trigo de Egipto,
Pois tendes tal condição,
Que sendo um único grão,
Sempre sois pão infinito.

Mas é para admirar
Que sendo um pão tão mimoso,
O Hebreu cego aleivoso
Vos não possa inda tragar.

Não se vos dê disto nada,
Que o pão de trigo excelente
Não serve para esta gente,
Cujo comer é cevada.

Sois liberal com tal traça,
Pródigo com tal excesso,
Que sendo pão de mui preço,
Vos dais sempre mui de graça.

Em vós se vê pão sagrado,
Todo o algarismo perdido,
Pois quando sois repartido,
Então sois multiplicado.

Minha alma vos traz a rol,
Porque lhe dais muitos dias
Tão delgadas as fatias,
Que vê por elas o Sol.

Tendes tal propriedade,
Sendo pão de entendimento,
Que dais melhor nutrimento
A quem vos tem boa vontade.

Mas quando mais franco estais,
Sois como rico avarento,
Não vos dais por alimento,
Mas por relíquias vos dais.

Prometeis com larga mão,
Mas não vos dais à mão cheia,
Pois prometendo uma ceia,
Nos dais uma comunhão.

Nunca de vós nos fartamos,
Antes sempre fome temos,
Porque quanto mais comemos,
Tanto mais Anjos ficamos.

Sois pão do Céu, que a Trindade
Mandou para ser vendido
Na nossa terra, metido
No saco da humanidade.

Trigo, que a fome alivia,
Sois, e dizem, que do mar
Os que vos viram embarcar
Em a Nau Santa Maria.

Sois pão das almas amigo,
Mas por modo milagroso,
Quando sois todo amoroso,
Então não sois todo trigo.

Nossa Fé nos assegura
Que é este pão soberano,
Por ser divino, e humano,
O pão da melhor mistura.

E tem suavidade tanta
Este pão celeste, e santo
Junto com esforço tanto
Que os espíritos levanta.

Sois pão alvo como vemos,
Porém não vos enxergamos,
Pois quando vos comungamos,
Sempre às escuras comemos.

Em chamas de amor ardentes
Sois, meu pão, todo abrasado,
Que enfermo de namorado,
Sempre estais com acidentes.

Por Esposo vos procuram
Muitos, que por vós se abrasam,
Os bons convosco se casam,
Os maus somente vos juram.

Termos vejo encontrados
Nos amigos, que escolheis,
Pois tendes por mais fiéis
Os mais reconciliados.

Oh, notável estranheza
Nesta de amor doce calma,
Pois são os amigos da alma
Os mesmos que o são da mesa.

Estes são de vós amados,
Se bem quando vos recebem,
Então o sangue vos bebem,
Então vos comem a bocados.

Sois Rei, e Rei muito lhano,
Mas os Ministros amados
Andam mui endeusados,
Quando vós sois mais humano.

Tendes condição tão boa,
Tendes mãos tão liberais
Que o vosso poder lhes dais,
E lhes pondes a coroa.

Eles amantes requebram
Vossos divinos primores.
Mas não são aduladores,
Bem que sempre vos celebram.

Ser Rei dos pães é mui certo,
E assim vos peço esta vez
Que sejais Rei Português,
Pois que sois Rei encoberto.

Dai-nos paz, pois que vos praz
Ter à paz inclinação,
Mas que muito se sois pão,
Sejais amigo de paz?

Tenha Portugal sossego,
E veja nosso inimigo
Que sois do Alentejo trigo,
E não sois trigo Galego.

Item mais à Ordem minha
Dai, meu Senhor, vossa mão,
Para que com tão bom pão
Façamos boa farinha.


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As Duas Cruzes do Império – Memórias da Inquisição
SERMÃO DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA
NA CIDADE DE ANGRA
Qui habet aures audiendi, audiat.
Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça.
Este aviso é de Cristo Senhor nosso. Mas por que o terá feito o Divino Mestre, que nunca disse uma palavra em vão? Não será que os ouvidos não servem senão para ouvir, e é inútil apelar ao que servem se a outra cousa não servem? Cristo sabia a quem falava, e conhecia os ouvidos de cada um dos Seus ouvintes. E, assim como há olhos que, olhando, não vêem, há ouvidos que, ouvindo, não escutam. (Quia videntes non vident, et audientes non audiente neque intellegunt.) Mas como pode acontecer que, tendo os ouvidos no ouvir a sua função, e havendo quem lhes fale, não ouçam? Ou porque os homens, ouvindo, não queiram ouvir (audientes non audiunt) ou porque não entendem (neque intellegunt). E são estas as piores formas de não ouvir, sendo a segunda sem malícia, por ignorância, e a primeira semelhante à maldade do Demónio, por não atender à verdade.
Se aqui vindes para ouvir sem escutar, melhor fora que não viésseis nem vos falasse eu. Porque nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que vem da boca de Deus. (Non in solo pane vivit homo, sed omni verbo quod procedit de ore Dei.) E a boca de Deus (oh! cristãos, indigníssimo sou eu de falar por ela), não vos é dada outra, agora, senão a minha. Mas, se não há quem fale, não há quem ouça; se não há quem ouça, não há quem escute; se não há quem escute, não há quem aprenda; e, se não há quem aprenda, não haverá quem saiba.
Vários são os passos da Sagrada Escritura em que se lê que a boca tem poder de vida e poder de morte. Ah, que maravilhoso e terrível poder! Pela boca se alimenta o como, mas, desatenta do que come, o matará se engolir peçonha. Assim são as palavras, que podem servir à salvação de muitas almas ou trabalhar na perdição de tantas outras. Com a falsidade das suas bocas perversas, quiseram os velhos luxuriosos perder a fiel Susana; mas com a mentira delas se condenaram ambos, porque um disse que a vira debaixo de um lentisco e, o outro, de um carvalho. De maneira que se salvou o lírio de ser arrancado ao jardim da sua vida, e foram arrancados ao paul, de que era a deles, os dois perversos.
Temos, pois, que servindo a boca a variadas funções, as principais são servir o corpo, alimentando-o, e servir o pensamento, falando. E tomará o gosto do que come, para que o comer mais apeteça, e o gosto do que diz, para que possa convencer quem ouve. Porque, se o que fazemos sem gosto de o fazer não pode ser exemplo de que outros por gosto o façam, falar sem gosto, ou sem acreditar no que se diz, não convence. E quantos de nós não estaríamos mortos já, ou decerto todos, se a boca não nos valesse quando o nariz, que tem de sua natureza própria respirar, não o consegue! Mas nem só a isto ele serve, porque os cheiros bons ou maus no-los dá a perceber, e até o paladar se perde quando ao cheiro ele não serve. Deus, na Sua infinita sabedoria e pela Sua omnipotência, permitiu a cada um destes órgãos distintas funções, para não nos fazer disformes de cara ou monstros de várias cabeças. E até os olhos, que parecem servir só para ver e não mais que isso, são necessários ao sono, fechados quando dormimos, e inúteis, como se estivessem fechados, quando caminhamos na escuridão. Só os ouvidos não servem para mais que uma função, e nunca se fecham nem recusam a vigiar por nós, quando os outros sentidos temos desapercebidos no esquecimento do sono ou na escuridão da noite. De que serve à sentinela ter olhos, quando não vê? Um cego pode estar de vigia em noite negra, e nisso ele até melhor que nós, porque o habituou a necessidade a ver sem olhos. E, se os olhos precisam de claridade e de estar voltados para o que vêem para poderem ver, aos ouvidos não faz falta a luz, e mais ouvem sem ela que com ela, tudo ouvindo sem importar de onde vêm os sons que ouvem.
Pode a boca recusar-se a comer ou a falar, e cabe-lhe escolher, pelo saber e o sabor, o que mais convém à saúde do corpo; e, pela boa razão, dizer só o que mais convém que seja dito. E, se os cheiros nos previnem onde há a podridão ou nos atraem ao perfume, é fácil fugir de uma ou demorar na deleitação do outro, como é fácil também que os olhos se desviem do que não queremos ver. Só aos ouvidos, feitos para sempre ouvir, não há como fugir-lhes a que cumpram tal função. De maneira que, como diz o livro do Eclesiástico, devemos cercar os ouvidos com espinhos. (Sepi aures tuas spinis.) Com espinhos, meus irmãos! Olhai que antes será melhor sofrê-los que atender ao que nos pode perder a alma. Esta a grande lição que daqui havemos de tomar: que se é difícil fugir a que se ouça, grave é a responsabilidade, entre tantos sons e arrazoados, tantas confusas ideias e palavras sábias, tanto soar de ocos címbalos ou mui iluminados pensamentos, de escolher o que mais importa à salvação das nossas almas. Foi isso ao que viestes, e é isso que sempre haveis de buscar mais que tudo em vossas vidas.
Contudo aos ouvidos que não ouvem é inútil falar, ainda que o mesmo Deus o faça. Não se deitam pérolas a porcos, que preferem a lama que os refresca a um tesouro de que não podem tirar proveito. E não importa serem sábios os ouvintes porque, muitas vezes, os ignorantes são mais sábios a ouvir. E nesse mesmo livro de sagrada sabedoria se diz que é melhor um homem com pouca sabedoria e fraco senso que teme o Altíssimo, que outro de abundante senso que não cumpre a Sua lei. (Melior est homo qui minuitur sapientia et deficiens sensu in timore, quam qui abundans sensu, et transgreditur legem Altissimi.) Vede como deu Cristo graças ao Pai por revelar as verdades da salvação aos ignorantes, escondendo-as a sábios e poderosos. E, se aqui nos parece Deus injusto, é porque não O entendemos e, se O não entendemos, é porque O não sabemos escutar. Pois estes são os falsos sábios, que cuidam que o seu saber lhes basta e a nenhum outro dão ouvidos ; e os poderosos são aqueles que cuidam que o poder lhes dá razão, e a outras razões não atendem senão às suas. Sábio era Nicodemos, mas quis ouvir as razões de Cristo, e convenceu- o a verdade; poderoso era o centurião, mas humilhou-se perante o poder de Cristo, e Este lhe curou o servo e exaltou tão admirável fé. E, das almas mortas pelo pecado, só às que se fazem pequenas pode Cristo erguer da morte e ressuscitá-las para a vida eterna, como ordenando a cada uma delas: Talitha kum. (Menina, levanta-te!) Qual dos dois saiu justificado do templo? O fariseu que se proclamava cumpridor da Lei, ou o publicano que se confessava pecador? De nada valeu a um ter proclamado o que não era, e muito foi para o outro ter confessado o que julgava ser.
Mas que é a verdade? Quid est veritas? A esta pergunta de Pilatos calou Cristo, como se não soubesse responder. Se Deus tudo sabe, por forte razão terá calado. E a razão não foi outra senão conhecer os ouvidos que O ouviam, sabendo que nenhuns deles estavam dispostos a aceitar como verdade o que Ele dissesse que era a verdade. Omni qui est ex veritate, audit vocem meam. Quem é da verdade ouve a Minha voz, foi a resposta de Cristo a Pilatos, que não era homem da verdade nem nenhuns outros que com ele estavam. E assim perderam muitos, que Lhe ouviam as palavras mas ouvindo só o que queriam e como queriam, uma oportuna ocasião de se converterem à Verdade que lhes era ali proposta.
Sendo que Deus cala por inútil falar ao auditório (ou porque não mereça, ou não entenda, ou não queira escutar), é semelhante a nós no ouvir, porque os Seus ouvidos, infinitamente mais que os nossos, não se fecham nunca. De maneira que não pode escusar-Se Deus a saber que palavras saem da nossa boca, porque, assim como não cai uma pena a uma ave nem um cabelo às nossas cabeças sem que Ele o perceba, assim a nenhuma palavra pode fugir Deus de a entender. E, o estar em toda a parte, e conhecer todas as cousas e acções e pensamentos e intenções de cada homem, torna Deus testemunha de todos os instantes da nossa vida. Et in omnibus his insensatuns est cor, et omne cor intelligitur ab illo. Pois, cristãos, ainda que seja o coração humano insensato, Deus vê tudo nos nossos corações. Oh! se pensáramos nisto, se tivéssemos a mesma vergonha ou temor de ser vistos por Deus ou por Ele ouvidos como temos de ser por outros homens, quão santa seria a nossa vida, quantos males se evitariam neste mundo, e quantas almas, que se perdem, haveriam de ser salvas! Deus, porém, não nos quer justos pelo temor mas pelas boas intenções, porque se nenhuma acção é má se não é feita com maldade, nenhuma será boa se só por medo evitamos ser maldosos.
Por que não fala Deus no nosso tempo como falou a patriarcas e profetas e muitos santos do povo eleito, no Velho Testamento? Por que só vos envia homens como eu, que sou pecador como vós, que não sou mais que vós e que mais não sei de Deus? Como podereis acreditar que as minhas palavras são as que Cristo haveria de dizer e não outras? Não será porém, cristãos, que o falar de Deus aos homens é o mesmo ainda, como foi no tempo de Abraão, de Moisés, de Elias e de todos os santos varões e santas mulheres que viveram antes da vinda de Cristo? Não será que, sendo Deus o mesmo, o modo de Ele falar aos homens não poderá ter-se mudado nunca? Não será que, se houve mudança (e que desgraçada mudança!), essa foi nossa, que deixámos fechar-se o coração e não somos capazes de escutar Deus? Talvez cuideis que seríeis santos se vísseis o mesmo Cristo, quando, em vez de um Cristo somente, tendes em cada homem, nosso irmão, a presença de outro Cristo. Tratai com todos eles acreditando que o são ( e é isso que são e não menos ) e vivereis como viveríeis acompanhando a Jesus na Galileia ou na Judeia. E sereis santos. Mas vós, que vos conheceis a vós mesmos melhor que aqueles que não vêem mais que as vossas acções e não ouvem mais que as vossas palavras, sabeis que os vossos pecados vos impedem de ser uma sombra da imitação de Cristo, quanto mais um Cristo verdadeiro! Porém Deus não manda que cada um de nós se julgue Cristo, senão que trate com cada um dos outros como se na verdade o fosse. Deus criou o Céu e a Terra para todos os homens. E se há Inferno para os que não merecem o Céu depois da vida na Terra, também aqui pode haver já Céu e já Inferno. E sabeis quem mais faz com que o Inferno seja Inferno e mais almas leva a ele? Não é outro senão o Demónio. Se viveis com todos os homens como se cada um deles fosse Cristo, antecipais o Céu na Terra; mas se, para os vossos irmãos, tornais a Terra um Inferno, fazeis o trabalho do Demónio. Sofremos muitas tentações, e em muitas delas caímos. Olhai que paciente é Deus para connosco, que uma só vez pecou Lúcifer no orgulho de não querer obedecer-Lhe, e foi condenado eternamente. E o Senhor permite-nos pecar muito, sem perdermos a esperança da salvação. Vigilate et orate,ut non intretis in tentationem. Vigiai e orai, para não entrardes em tentação. Fecharam-se os olhos aos apóstolos pelo sono, não se fechem os vossos ouvidos às palavras de Cristo. Vigiemos, cristãos, que ninguém pode pôr outro de vigia à sua alma enquanto esta dorme, que é o mesmo que dizer enquanto não cuida do bem dela. Podem dormir todos os marinheiros e o capitão do navio, só não há descanso para quem vigia o mar ou vai ao leme. E se a vida é como o mar, e a nossa alma o navio que navega nele, e queremos que chegue a porto seguro, que é o Céu, temos de ser o capitão e o piloto e o vigia e o timoneiro e o grumete. Porque, se não formos cada um tudo isso para a nossa alma, qualquer rochedo, ou baixio, ou vaga de través poderá perder-nos para sempre.
A que trabalhos se dão os homens pela fortuna do corpo! Se uma pequena parte desse cuidado, se uns momentos só desse penar, se a intenção ao menos do que põem no sofrer pelas riquezas do Mundo fosse posta na salvação da alma, não lhes fariam falta nem pregadores, nem outras penitências, nem nenhum arrependimento. Olhai no meio de que dor saem os navegantes que em longes terras, entre desconhecidas e temidas gentes, acumulam tesouros neste mundo. Ouvi como nos previne Cristo: Nolite tesaurisare vobis tesauros in terra. Mas que ouvireis e vereis aqui? Quantos choros, quantas lágrimas, quantos gritos, quantos desesperos, quantas incertezas de ver regressar quem parte! Quanto disso tudo e mais o medo de não voltar a ver quem fica, que os perigos do mar (que duas vezes experimentei mais duramente) são tão feios e medonhos e tormentosos que outros não haverá de causas naturais que os superem. E tal desconcerto por riquezas que ninguém está seguro de alcançar, nem estarão elas seguras nunca depois de alcançadas. Podem durar uns poucos dias, podem durar muitos anos, mas, por mais que durem, sempre será pouco o tempo que durarem.
Estote ergo vos perfectis, sicut et pater vester caelestis perfectis est.
Cuidava eu que me bastava a oração e a penitência, a pobreza de nada ter de meu e a obediência que devo a quem devo, que não me pedia Cristo mais que servir os homens e pregar-lhes a verdade, que tinha por certa a virtude só com evitar o pecado. E que ouço da boca do Divino Mestre? Que só serei perfeito quando for igual ao Pai celeste! Que impossível para um homem que, só por ser homem, é imperfeito já! Não sabemos que ninguém é perfeito senão Deus? E como me pede Cristo a mim que o seja? Mas não o pede, só previne; não o exige, só o aconselha; não me põe por condição ser igual a Ele, só avisa que, como eu nunca serei perfeito como o Pai, não poderei descansar nas virtudes da minha alma, por maiores e mais provadas e mais constantes que sejam. Isto me quereis dizer, Senhor, e isto terei eu de fazer, sabendo que à perfeição não se chega nunca. Isto tornou santos os santos, isto fez de homens como eu a Vossa imitação na Terra. Nenhum deles foi perfeito, e ninguém jamais será. Diz Santo Agostinho que o nosso coração vive inquieto enquanto não repousa em Deus. Com que admirável verdade nos inquieta o bispo de Hipona! Bem sabia ele, por tanto ter experimentado o pecado e a virtude, a diferença que há entre um e outra, e que nem naquele nem por esta pode ser feliz o homem. A inquietação do pecador nasce do medo da perdição eterna, a inquietação do santo nasce da vontade de ver a Deus; a inquietação do pecador é fruto das suas culpas, a inquietação do santo é fruto das suas virtudes; a inquietação do pecador resulta de não querer desapegar-se dos bens terrenos, a inquietação do santo resulta da ânsia de se libertar dos males deste mundo. Oh! quão longe desta virtude ando eu, que estando em perigo de morte no alto mar, e cuidando-me perto de me encontrar com o Pai que está no Céu, tomou-me um tal temor que parecia esperar-me a mais terrível das condenações e não um tão doce encontro. Vim mandado até vós, meus irmãos, um pouco como Jonas a Nínive. Nunca recusei pregar a palavra do Senhor, e assim se poderia dizer que sou melhor que Jonas. Mas, quando o mar embraveceu, o profeta rebelde quis ser lançado a ele para salvar os que estavam no barco; e eu, pobre pecador, dei à minha vida um valor tamanho qual se outras não houvesse ali senão a minha e não tivessem todas de salvar-se para me eu salvar também. Nem eu sou Jonas, nem vós sois ninivitas. E bem podeis dizer-me que, quem tão pouco está seguro de merecer a divina protecção, não merece ser acreditado no que prega. Que se abram, pois, vossos ouvidos, para que o entendimento da verdade seja coisa mais deles que da boca que a diz, pois esta indigna é, e temerosa, e como que muda, se comparada à perfeição a que Deus nos aconselha.
Nós já conhecemos Cristo e O confessamos por Senhor; nada de novo nos podes dizer, ó padre! Tereis razão, talvez. Mas como O conheceis e como O confessais? Pelo que sabeis dele ou pelas obras que praticais? Ou não é verdade que podeis estar dispostos até a dar a vida por Cristo, e não cumprir a Sua vontade? Ninguém conheceu Cristo melhor que os Seus apóstolos. E quais deles O defenderam no julgamento de Caifás, de Herodes e de Pilatos? Onde estavam Bartolomeu e André e Filipe e outros seis dos que Ele mais amava ? Escondidos com medo dos Judeus. E quem O acompanhou? João, porque era amigo do Sumo Sacerdote, e Pedro, levado por João, mas que O negou três vezes. E nem do mesmo João se ouviu uma palavra a testemunhar em seu favor! Como estaria angustiada a Sua alma, sem amigos, sem justiça, sem piedade à sua volta! Mas houve alguém que o defendeu, e sabeis quem? Aquele que o traiu e aquele que O condenou à morte!
Enlouqueceste, padre! Se nenhum de vós o diz, ao menos alguns certamente o terão pensado. Mas eu vos provarei que a pressa do vosso juízo vos engana. Pois enquanto nove apóstolos se escondiam longe do seu Mestre, um O seguia porque era conhecido do Sumo Sacerdote, mas em silêncio, e o outro que também O seguia negava-O três vezes. Dos doze, somente Judas, vendo que condenavam Jesus à morte, procurou os que queriam condená-lo, e se enfureceu contra eles. Não vendera o Mestre para ser morto, e, tendo-lhes lançado o dinheiro da traição, foi enforcar-se. Morreu por amor a Cristo, e de que lhe terá valido isso? Faltou-lhe nada mais que a esperança na misericórdia de Deus para ouvir de Jesus o que haveria de ouvir, pouco depois, o ladrão bom. E o segundo defensor de Cristo não foi outro senão Pilatos. Não quis ele convencer os sacerdotes de que não encontrava em Cristo culpa alguma? Ergo nullam invenio in eo causam. Não quis trocar por Ele um criminoso, dando à escolha o pior que estava preso, a ver se lhes comovia os corações ou lhes quebrava o ânimo sabendo eles quem seria solto? Quantas vezes nos é posto de um lado Cristo e do outro Barrabás! Quantas vezes nos é dado a escolher entre trinta dinheiros e a nossa alma! E nós, loucos, a ir ao pecado em vez da virtude; e nós, néscios, aos bens que passam em vez da segurança eterna!
Mas quando trocámos Cristo por Barrabás? Quando vendemos Cristo por trinta dinheiros? Muitos de vós, ou talvez todos, o estarão pensando e negando ao mesmo tempo. E eu vos respondo que talvez não todos, mas certamente alguns ou muitos de vós o fizestes já, e pior que isso. Pilatos permitiu que matassem Cristo, o que não quisera que fosse feito, e Judas entregou-O por tão vil preço, mas sem cuidar que O matavam. Nenhum deles, porém, calou as palavras do Mestre, que haviam sido ditas para permanecerem eternamente. Nenhum dos dois anulou uma só das acções com as quais Jesus provou que era Filho de Deus. Nenhum pôde calar a verdade, nem destruir a vida, nem mudar o caminho que, ouvida de Cristo, e sendo Cristo, e indo por Cristo, conduzem à eternidade. Ego sum via, veritas et vita. E que fazeis vós, quando fechais o coração à verdade, quando recusais a vida, quando fugis de andar pelo caminho da salvação? Fazeis mais que vender Cristo e mais até que matá-Lo. O que fazeis, cristãos, ( e aqui vacilo em vos chamar cristãos) é tornar tão inútil a vida de Cristo como se Ele não tivesse vivido nunca. E é infinitamente pior não existir que viver não muito mais que trinta anos e morrer de morte tão injusta e terrível. Pois que, se os algozes que O mataram não puderam evitar a Sua ressurreição, vós o fazeis por não permitir que Cristo viva em vós.
Os atenienses, a quem S. Paulo chamou os mais religiosos dos homens (e isto ainda que adorassem muitos falsos deuses a quem devotamente prestavam culto), tinham num altar vazio uma inscrição somente: Agnosto Teo, o que na língua dos Gregos é o mesmo que dizer na nossa: Deus desconhecido. Davam, assim, por imperfeita ou incompleta a sua fé, e Deus lhes enviou Paulo paro os instruir em Cristo. Eles não sabiam nem o nome, nem o poder, nem a bondade do único Deus verdadeiro, do único Senhor e Criador do Universo, mas bem se dirá se se disser que, no fundo dos seus corações, O adoravam já. E quantos cristãos há que do seu Deus sabem pouco mais que o nome, não lhes importando conhecê-Lo e amá-Lo e adorá-Lo e obedecer-Lhe como convém à salvação das almas e à harmonia do Mundo! Que não seja este o vosso caso, nem que, sabendo que há um só Deus e Cristo é o Seu Verbo feito homem, nada mais vos sirva de sinal como cristãos. Sereis, se assim fordes, muito menos merecedores da salvação que os atenienses. Santo Agostinho nos diz que podemos amar a Deus e fazer o que quisermos. De sorte que parece que temos aqui um santo, e um sábio, a dizer-nos o que basta para agradar a Deus, e servir o Diabo quando for caso que nos convenha. Pois se é possível amar Deus e fazer tudo o que se quer, não mais havemos de vigiar os maus instintos e os ruins impulsos. Mas quem há que, amando veramente alguém, lhe seja adverso? Debalde o procurais se o tentardes. Quem ama não ofende, e quem não ofende não peca. Assim que amar a Deus nos afasta do pecado, pois ninguém que O ame O ofende, na Sua Divina Pessoa ou na humana dos homens nossos irmãos. E aquilo que disse Francisca de Rimini (que o seu amor a tinha posto no Inferno) é impossível repetir se o amor é entre nós e Deus, pois pelo amor a Deus ninguém se perde. Não podem perder-se os que O amam, nem podem perder-se outros por causa desse amor.
Seja que confessais a Cristo por Senhor. E, no mais, que terá a vossa vida de cristã? Se vos é pedido amor, e só vos defendeis com a fé; se vos são pedidas obras, e só respondeis com palavras; se vos é pedida a perfeição, e só vos desculpais com serdes homens. Deus julgará os gentios como gentios, e os cristãos como cristãos. E a todos julgará como justos ou pecadores. Não vos adianteis a ocupar os primeiros lugares, porque o Senhor do banquete pode fechar-vos a porta que não soubestes merecer que se vos abrisse. Porventura não devemos confiar na misericórdia de Deus? Perguntais bem, mas eu vos desengano. E, ainda que vindo a vós um pouco como Jonas a Nínive, não vos anuncio um castigo do Senhor. Sois vós mesmos que vos castigais, se caminhais para a perdição eterna. E tão alegremente o fazeis, tão nesciamente e consentis, que nem vos dais conta do perigo em que estais. Mais vos valera então gozar a vida como vos aprouvesse, porque, perdidos que estais (e falo àqueles que o estão por não quererem emendar-se) de nada vos servem os poucos gozos a que vos não dais e as penitências que fazeis, para simular que sois cristãos. Fora eu como vós (que sou pecador, mas Deus sabe quanto não quisera ser!) e não me preocuparia com rezas e devoções, com jejuns e abstinências nos dias de preceito. Nem viria ouvir um pregador a que não daria ouvidos. Só temos esta vida, que é fugaz, para ganhar a outra, que é eterna. Se duas vidas temos ( a primeira, que tão depressa se acaba, e a outra, que é sem fim), ao menos uma haveria eu de gozar como melhor quisesse. Eu vos desengano, pois. Não confieis demasiado na misericórdia de Deus. Cuidais que sou herege, porque o digo? Cuidais que enlouqueci, porque o afirmo? Cuidais que sou ignorante das Escrituras porque estou seguro de que vos enganais com essa confiança? Ouvi o que está escrito no livro do Eclesiástico, e julgai-me depois. Et ne dicas: Miseratio Domini magna est, multitudinis peccatorum meorum miserebitur. Não digas: A misericórdia do Senhor é grande, Ele terá compaixão da multidão dos meus pecados. Espanta-vos e assusta-vos que assim seja? Se não o sabíeis, deveríeis ao menos tê-lo imaginado. Estais prevenidos pela Sagrada Escritura: Initium sapientiae, timor Domine. E se o temor de Deus é o princípio da mais alta sabedoria, da única e verdadeira e notável entre todas, ouvi ainda outro conselho do filho de Sirac, também ele com o nome santo de Jesus: Ante obitum tuum operare justitiam, quoniam non est apud inferos invenire cibum. É isto, meus irmãos, ou é esta a hora em que deveis praticar a justiça. Não a deixeis para depois da vossa morte, porque à sepultura não chega alimento a vossas almas. Ainda não confiais no que vos digo? Ainda vos não fiais de mim? Ainda cuidais que vos espanto e assusto com o Inferno para vos fazer temerosos, como muitos pregadores gostam de fazer que o auditório seja, e é bom que o façam? Eu, porém, não vos quero temerosos, senão confiantes; não desesperados da eternidade, senão cheios de esperança nela; não desiludidos da vida, senão aborrecidos do pecado.
Que justiça haveis de praticar antes da morte? Não sabeis que justiça é essa e o que é ela? Eu vos ensino em um momento. Vedes aquele homem ou mulher que vive junto a vós? Vedes todos os homens, e mulheres, e crianças, e velhos, e enfermos que conheceis? Cuidai que cada um deles sois vós mesmos e tratai com eles como haveríeis de querer que eles, sendo vós e vós sendo eles, tratassem convosco. Omnia ergo quaecumque vultus ut faciant vobis homines, et vos facite illis. Esta é a justiça. Esta é a única via para que Deus possa ser misericordioso convosco e perdoar a multidão dos vossos pecados. E que morte é essa antes da qual havereis de praticar a justiça? Antes da morte do corpo, certamente. Mas eu vos admoesto mui seriamente que estejais alerta: fazei-o antes de outra morte mil vezes mil pior que ela. Muitos deixam para os dias em que estão desenganados da vida, e sabem já que vão morrer, todas as boas obras que deveriam ter feito em outro tempo. E dispõem em testamento tantos mil réis aos pobres, tantos cruzados a uma igreja, tantos moios de terra a um convento, tanto de esmolas para muitas missas por sua alma. Eu vos digo, porém: é tarde já. Se assim fazeis, ou se assim pensais fazer, tereis gozado a vida com tudo o que pudestes, e depois, quando nada vos fizer falta, o dareis para perdão do que pecastes. Sede vós os juizes, e julgai se isto é justiça ou se o camelo pode passar pelo buraco da agulha. Que disse o anjo S. Rafael a Tobias? Bona est oratio cum jejunio. Que é boa a oração com o jejum; e melhor é a esmola que os tesouros que se acumulam. Et eleemosina magis quam tesaurari auri recondere. Sendo Rafael um dos sete anjos que apresentam a Deus as orações dos crentes, sabia do que falava. E mais disse ainda acerca desse assunto: quoniam eleemosina a morte liberat, et ipsa, quae purgat peccata, et facit inam. Que a esmola limpa todos os pecados e livra da morte aquele que a pratica. Estas coisas se hão-de fazer em vida, e quando se a crê ainda longa e a morte longe, e não quando a velhice já anuncia o fim que, sendo sempre incerto quanto ao tempo em que há-de vir, é certo que na velhice em breve chegará. E jovem era Tobias a quem o anjo louvou o espírito de oração e caridade. Mas se ninguém pode livrar-se da morte, de que morte falava Rafael? Não de outra senão a da alma. Temos pois, cristãos, que a morte antes da qual haveis de praticar a justiça é a morte da alma. Mas acaso a alma morre? Para muitos melhor fora que morresse de morte verdadeira, ou que fossem seus corpos desalmados. Morre a alma quando os homens se acostumam tanto ao pecado que não querem ou não podem deixar de pecar. Morre a alma quando os homens pensam: gozarei a vida e deixarei para os últimos dos meus dias arrepender-me e fazer penitência. Essa alma, nem o mesmo cristo, que ressuscitou Lázaro depois de sepultado durante quatro dias, poderá torná-la à vida. Lázaro, por estar morto, não podia opor-se à vontade de Deus, em caso de não querer ser ressuscitado, mas uma alma morta, num corpo vivo, ainda pensa, ainda tem vontade, e a sua vontade é não cumprir a vontade de Deus.
Fiat voluntas tua. Vós orais assim? Melhor vos fora dizer como Acaz: Non petam et non tentabo Dominum. Não pedirei, e não tentarei o Senhor. Pois se o fazeis, e não cumpris a vontade do Senhor, pecais gravemente cada vez que rezais o Pater Noster. Pecar rezando? E de que maneira! Não será escarnecer de Deus pedir-lhe que se faça o que Ele quer, e fazer sempre o que se quer? E se isso que quereis fazer e o fazeis é contrário à vontade do Senhor, não O tornais motivo de mofa em vossos lábios, por O invocardes como testemunha falsa que finja não saber quando pecais? Não haverá modo, pois, de alcançar a misericórdia de Deus? Os que têm a alma no estado de morte que venho dizendo desenganem-se, porque o não há. E se em algum de vós existe ódio no seu coração e se está disposto a sair daqui zeloso no seu ódio, o melhor que faz é que saia já. De nada lhe serve ouvir a palavra de Deus que, se é um remédio para os pecadores arrependidos e uma consolação para os justos, é como o mais terrível dos venenos para os que teimam em persistir no seu pecado. Se ainda vos rege a antiga lei de que por olho é olho e por dente é dente, sois gentios e não cristãos. Atendei a isto muito seriamente: ou estais dispostos a perdoar e ser perdoados, ou vos arriscais à perdição eterna. E tornar-vos-eis ainda (o que é muito menos mas não é pouco) motivo de escárnio para os que conhecem o vosso ódio e sabem que ele não muda, porque, se não estais dispostos a mudar, sois falsos e mentirosos publicamente, fingindo devoção quando pertenceis à pior espécie de gente que há na Terra. Que cuidais que possa prometer-vos como justiça para esse ódio que não muda? Nada menos que a perdição eterna, como disse que era o risco em que vos encontrais.
Assim chegamos a um ponto em que estarei a parecer-me aos pregadores que gostam de tornar temeroso o auditório. E não terei palavras de esperança? Tenho-as, cristãos, mas por bom preço as vendo. Se quereis comprar bem, tereis que pagar bem; se quereis trocar por bom, tereis de dar em troca o que tiverdes de melhor. Esta é a lei com que comprais na Terra, não a cuideis mais branda para comprar no Céu, que é onde a maior e mais segura compra poderá ser feita. Dai-me a vossa alma arrependida, dai-me a vossa vida mudada toda, e eu vos dou em troca o Céu. Diz o Eclesiástico que quem compra coisas por baixo preço acaba por pagá-las com sete vezes o seu valor. Est qui multa redimat modico pretio, et restituens et in septuplum. Eu vos digo que neste negócio dais muito pouco, ainda que eu vos tenha pedido muito. Pois vos pedi que mudeis de vida, o que pode ser penoso e mui difícil; mas o que adquiris em troca não vale sete vezes o que haveis de dar, vale infinitamente mais, porque estareis a dar um tempo, que é tão breve, em troca de outro tempo (que não é tempo porque é eternidade) que durará para sempre. Qual de vós não trocaria um fruto por árvore que muitos como ele produzisse em cada ano e por toda a sua vida? Bom negócio seria esse, mas em nada comparável àquele que vos proponho. Pois será vosso o Céu não pelo preço da vossa vida, mas pelo preço de mudar de vida; não pelo preço do que possuís, mas pelo preço do que vos não faz falta; não pelo preço do que sois, mas pelo preço do que não deveríeis ser. Com tal negócio garantido, tendo-o em conta Midas é mendigo; Salomão é Lázaro; a mais fina seda é parra; a mais bela púrpura é cinza. Mas por que não havemos de confiar demasiado na misericórdia de Deus? Porque, se imploramos a misericórdia do Senhor, pode bem ser que O queiramos tornar injusto. Implorai a misericórdia do Senhor e confiai nela, quando os vossos pecados forem coisa só havida entre vós e Ele. Olhai que tormentos passou Cristo: que pavor o seu até de suar sangue; que solidão entre as injustíssimas justiças deste mundo ( de Anás para Caifás, de Caifás para Pilatos, de Pilatos para Herodes, de Herodes para Pilatos outra vez); que opróbrio ser trocado por um criminoso, que martírio o dos flagelos; que atrocidade a da coroa de espinhos; que escárnio o do manto que Lhe puseram em cima e a cana nas mãos como se não fosse rei e muito mais que isso; que penoso caminhar com a cruz, que nem pôde chegar com ela ao Calvário sem ajuda; que padecimento o dos cravos nas mãos e nos pés; que agonia medonha até à morte! Tudo isso Lhe foi feito, e como acabou Cristo? Pedindo ao Pai que perdoasse aos que tamanho mal Lhe haviam feito. Blasfemastes, vacilastes na vossa fé, revoltou-se contra Deus o vosso coração? Invejastes o alheio, encheu-vos a soberba pelo orgulho do que sois? Cedestes à gula sem que por isso outros passassem fome, ou venceu-vos a luxúria ainda que tenhais voto de castidade? Se estais arrependidos e com nenhum destes pecados provocastes escândalo público, confiai na misericórdia do Senhor. Mas se sois ladrões de bens ou de honra alheia? Se pedirdes a misericórdia de Deus para convosco, estareis a querer que Ele seja injusto para com aqueles que roubastes. Restituí primeiro a riqueza que não vos pertence, devolvei a honra difamada, e só então podereis confiar na misericórdia de Deus e, pedindo-a, ser ouvidos. E como pode um assassino esperar de Deus misericórdia? Se Deus lhe é misericordioso, não estará a ser injusto com o assassinado? Ah! e os juízes deste mundo! Quantas vezes julgam com tal rigor que mandam à forca quem não merecera mais que uns açoites, ou talvez nem isso! São mil vezes piores que o criminoso a quem a ira cegou por uns instantes! Não será pedir que Deus seja injusto ao esperar dele misericórdia para os seus crimes? Quantas vezes usam as leis para estar contra a Lei! Quantas vezes se valem do julgamento, para estar contra a Justiça! Quantas vezes se sentam no tribunal para calcar a verdade a seus pés! É com esta rigorosíssima medida que serão julgados! Eadem quippe mensura, qua mensito fueritis, remetietur vobis.
Estava Herodes no número daqueles por quem Jesus implorou: Pater, dimitti illis non enim sciunt quid faciem. Pai, perdoa-lhes, que não sabem o que fazem. Jesus não disse: perdoa alguns; disse: perdoa-lhes. (Dimitti illis.) A todos, cristãos. Mas lembrai-vos como foi impiedoso a julgar esse mesmo Herodes pelos seus outros crimes. E cuidareis que o maior de todos foi ter morto o Baptista, que era um santo. Pois eu vos digo: quando a ira vos dominar o coração, escolhei um santo para matar. Não seja o caso que, matando um pecador, lhe mates corpo e alma ao mesmo tempo. Pois que se o matas sem que possa arrepender-se e fazer penitência pelos seus pecados, a sua alma cairá no Inferno eternamente. E podes merecer o Céu, quando, por tua causa, haverá uma alma a penar para sempre? Esperar depois disto a misericórdia de Deus não será esperar também que seja injusto? Emendai-vos, corrigi a vossa vida, tornai-vos atentos à palavra do Senhor, para que não sejam tantos os vossos pecados até ao ponto de o mesmo Deus vos fechar o coração ao arrependimento, para não ser com uns injusto por ser convosco misericordioso.
Bem posso cuidar que pensais que não há diferença entre nenhuns pregadores, que todos pregam contra vós como se todos fôsseis incrédulos, luxuriosos, ladrões e assassinos. E eu acredito que é melhor pregar um só assunto, pois se muitos levanta o pregador muito se arrisca a confundir o auditório. E, se da variedade das flores fazem as abelhas um mel de uma só cor e um só sabor, e este melhor que outro que assim não fosse feito, à palavra do pregador se pede que seja exacta e metódica e clara; que não a torne confusa, nem dispersa, nem obscura. Mas não vos prego senão o pecado, o qual, sendo uma ofensa a Deus, é múltiplo e variado e distinto, já na forma, já na gravidade, já na intenção de O ofender. E não quero mais que exortar vossos ouvidos, e o entendimento da vossa alma, a estarem atentos à palavra de Deus, que é o único modo de vivermos em rectidão e santidade. E isto, cristãos, é um assunto só e não muitos. Mas soubera eu quem são os luxuriosos, e haveria de chamá-los a eles e pregar sobre a luxúria; e, se conhecesse os ladrões, tendo-os todos juntos lhes pregaria sobre o sétimo mandamento; e, se percebesse quem foram ou virão a ser os assassinos, haveria, a eles com mais ninguém mas com a graça de Deus, de persuadir à mansidão; e, se tivesse a certeza de quais são, de entre vós, os mais descrentes, indo a eles sem estar com outros, lhes diria um sermão sobre a Fé. E os mais, cada um segundo a sua condição e, a cada condição, sua pregação. Porém a muitos haveria de pregar várias vezes, pois os pecadores costumam ser de várias espécies de pecados e não de uma somente. Assim é nossa mesquinha frouxidão: que, caindo em uma falta uma vez, as outras caídas depois dela vão-se tornando mais fáceis de acontecer. E de tal modo que, se lhe custara ao Demónio muito trabalho nosso primeiro pecado, dia virá em que ele já nem trate connosco, porque fazemos o nosso e o trabalho dele. E não prego contra vós, prego em favor daqueles contra quem exerceis vossas culpas. Ainda que só pareça acusar-vos, é a esses que defendo; ainda que só seja desagradável a vossos ouvidos, é para esses que peço a vossa compaixão, que é Justiça; ainda que só vos comparara com o Diabo, seria em Deus que vos quisera confiantes; ainda que só vos assustara com o Inferno, seria o Céu que vos dera por esperança.
Mas o pior pecado do nosso tempo, o mais medonho e injusto e terrível; aquele que mais ofende a Deus e prejudica homens feitos à Sua imagem e semelhança; aquele que mais é contra a mesma natureza humana, não é outro senão o vergonhoso comércio dos escravos; não é outro senão que haja gente tratada como qualquer irracional. Porém nenhum homem é comparável ao boi que tira pela carroça ou pelo arado, nem ao cavalo de montaria, nem a nenhuma besta de carga. E dos escravos se faz tudo isso, e por eles e com eles se conseguem fortunas que afrontam a Deus e à inteligência humana. E bem diria eu se dissesse que este crime é pior que matar por ódio, por vingança ou por ira. Podeis cuidar que me engano, que se for dado a escolher a um desgraçado escravo se quer ser morto ou continuar escravo, sobre escolher a liberdade sem vida, ele há-de preferir a vida sem liberdade. Essa é a matéria do pecado, mas nem sempre a gravidade da acção depende da matéria dele senão da sua qualidade. E, se é grande e abominável crime encurtar os anos da vida de um homem contra a vontade de Deus, maior crime e mais abominável ainda é fazê-lo escravo e como tal o manter. Pois que a morte é o fim natural de todos os homens, enquanto pertence à sua natureza a liberdade. E é uma imagem feita à semelhança de Deus, que assim nos criou Ele, que reduzis a tão miserável servidão. Aos que entram neste iníquo comércio (invenção do Demónio, certamente, porque nem a pior das criaturas sem ser ele seria capaz de o ter imaginado), eu digo em nome de Deus: não tereis a vida eterna. Se vos atreveis a esperar o Céu, e tendes em casa ainda que seja o mais amado dos escravos, sois néscios.
Lá teria este padre de chegar a falar-nos dos escravos, estareis pensando. E eu vos lanço um desafio: suba um qualquer de vós a este púlpito, onde só deve ser pregada a palavra de Deus, que eu trocarei de lugar com ele. Venha um aqui, e cuide que é meu escravo e eu seu senhor, e com toda a liberdade diga o que entender que há-de ser dito. Com que justa dureza de palavras, com que exacta violência de impropérios, haveria esse, que a tal fosse capaz de atrever-se, de condenar-me! Pois nenhum homem é menor aos olhos de Deus, nem menos digno de ser homem que qualquer de vós. Muitos se desculpam que, de outro modo, os infelizes que são feitos escravos em África ou no Brasil não seriam tornados cristãos, e assim salvam suas almas. E eu vos digo que, pela misericórdia de Deus, diferentes caminhos haveria que os levassem até às portas do Céu. Ou cuidais que os homens são mais bondosos, na sua impiedade, que Deus, na Sua infinita misericórdia? Pois que se salvem eles por serem cativos, que bem o merecem. E sabeis o que há-de acontecer? Se cuidais que lhes garantis o Céu, hão-de eles ocupar vossos lugares. Ouvistes o que cantaram, no desespero do cativeiro da Babilónia, os filhos de Sião:
Si oblitus ero tui, Jerusalem,
oblivioni detur dextera mea!
Adhaereat lingua mea fancibus meis
si non meminero tui.
Que a minha dextra seque se me esqueço de ti, Jerusalém; que a língua me fique presa ao paladar, se não me lembrar de ti! E que terrível e justa ira, meus irmãos, com que o salmista termina!
Filia Babilonis vastatrix: beatus qui rependit tibi mala quae
intulisti nobis!
Beatus qui apprehendit et allidit
parvulos tuos ad petram!
Devastadora filha de Babilónia: feliz o que te retribuir o mal que nos fizeste! Feliz o que agarrar e esmagar os teus filhos pequeninos contra uma pedra!
Se o povo santo de Deus se revoltava a tal ponto com os seus opressores, cuidais que esses desgraçados cativos, que só à força muitas vezes e com grande ignorância são tornados cristãos, amam menos a sua pátria e a sua liberdade que aqueles? Não vos desculpa que o rei o consinta ou o mesmo papa o tolere. Pois que chegou a um tão lamentável estado a cristandade que não haveria fortunas, quais as que há em Portugal, se não fossem os escravos; e não seria de metade o número dos cristãos sacramentados se os senhores deles fossem todos excomungados como deveriam ser. Mas nenhum pecado, por mais repetido que seja, pode mudar a lei do Senhor. Dia virá em que este abominável comércio há-de acabar, ainda que tenha Deus de faltar à Sua palavra e mandar outro dilúvio, para que assim seja. Eu vos exorto, cristãos, a apressar o dia da misericórdia do Senhor, dando primeiro o exemplo de libertar vossos irmãos. Assim lhes consentis serem felizes nesta vida, por serem livres, e não sereis vós desgraçados na outra, por cativos do Demónio. Sabeis o que disse o apóstolo Jacob na sua epístola? Ecce merces operariorum qui messuerunt regiones vestras, quae fraudata est a vobis, clamat, et clamor eorum in aures Domini sabaoth intraivit. Defraudastes aqueles que ceifaram vossas searas, e o seu clamor chegou aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Isto diz o apóstolo a que chamamos Sant'Iago, e o diz de homens livres que não são retribuídos como lhes é devido. Isto o diz de ricos que contratam, mas recusam um salário justo, sabendo que quem contratam não tem aonde ir que mais receba. De que serve jejuar a quem não paga como deve? Porventura não será que mais valera ao injusto pagador comer e beber bem todos os dias, ainda que fosse Sexta-Feira da Paixão de Cristo, mas tendo os seus operários o que comer nos dias que não são de jejum nem abstinência, pois estes para eles o são o ano inteiro? Cuidais que não ter precisão de trabalhar é grande honra? Se Deus o deu por sentença aos homens, e se é sentença para cumprir nesta vida, e a não cumpris, quando havereis de a cumprir? Obrigais outros à parte que vos coubera de trabalho, e mais que isso lhes roubais o trabalho e a liberdade. Assim que pecais em dobro: por preguiça, que é pecado capital; e por furto, que é contrário à lei de Deus dada a Moisés. E tereis de multiplicar tantas vezes a segunda parte deste pecar quantos os homens a quem roubais o trabalho e a liberdade. Os que ajudam a manter o comércio dos escravos não o confessam certamente como pecado, assim como se não confessam de possuir casas e palácios e quintas e herdades e outras fazendas, tal se fosse tudo a mesma cousa. Mas se nenhum homem é uma cousa que outro homem deva possuir, ainda que bárbaro e gentio, muito menos o será alguém que já seja baptizado e se tenha feito cristão. Irmãos meus eclesiásticos: gravíssima é a nossa culpa se absolvemos esta espécie tão ruim de pecadores. Bem sabeis que, ao dizer ego te absolvo, não falamos em nosso nome mas no de Deus. Se absolveis nestas condições, ego não será na vossa boca palavra usada como se o mesmo Deus falasse; e te absolvo torna-se responsabilidade vossa. O Senhor não perdoará o pecador que absolvestes e, se ele cuida que está absolvido e perdoado, não está nem perdoado nem absolvido; e permanecem em sua alma seus pecados, com mais esse, muito grave, de uma hipócrita e falsa confissão. As suas culpas cairão sobre vós mesmos, de maneira que, se confessais e absolveis cem pecadores como esse, as culpas dos cem pecadores pesarão como terrível carga em vossas almas. E bem nos bastam as nossas culpas, para que ainda tenhamos de responder pelas alheias sem lhas tirarmos a eles. Nesta matéria, não vos canseis nunca de pregar, de exortar, de admoestar, de insistir sempre oportuna e inoportunamente, e de amaldiçoar até. Não vos deu Deus o dom da palavra? Usai o do exemplo, que é mais forte. E vós todos, meus irmãos, que aqui me ouvis: dais-vos acaso ao gosto de saborear açúcar do Brasil? Tal doçura é um veneno para vossas almas, porque não só quem escraviza peca, e sem perdão de Deus, mas todos aqueles que ajudam a que esse negócio de morte seja proveitoso. Se adoçais a boca com açúcar, não é doce o que tomais, mas é fel, e verdadeiro e humano; e se o tendes posto em alguma bebida, o que bebeis é sangue.
Ah! meu Deus e Senhor meu! Abri os ouvidos aos que me ouvem, ou tornai-me mudo para não sofrer a aflição de falar sem ser ouvido, pois eu prego a multidões que não me escutam. Aqui me vedes, vox clamantis in deserto, como se não houvesse nunca auditório, nunca ouvidos, nunca almas, senão deserto e surdos e pedras brutas. João bradava no deserto, e abrandava o coração dos pecadores; João pregava em Vosso nome santo, e muitos ouvidos se lhe abriam; João proclamava que o Vosso reino havia de chegar, e até as pedras convertia em filhos de Abraão. Eu brado a pecadores, eu prego em Vosso nome, eu proclamo que viestes já. E o deserto permanece árido, os surdos não ouvem, as pedras não se comovem. Se é minha a culpa, seja Vossa a redenção, se é minha a indignidade, seja Vosso o mérito; se é minha a ignorância, seja Vossa a razão. Nada peço para mim, senão para os mais desgraçados dos Vossos filhos. E os mais desgraçados de Vossos filhos são antes os que me ouvem e não os que sofrem as suas iniquidades. E bem mais me dói o futuro eterno e tenebroso daqueles, que o presente efémero e desgraçado destes. Mas uns têm culpa e consciência de, por seu alvedrio, serem o que querem ser, e os outros são obrigados à força a serem o que nunca quiseram nem deveriam ser. Que tão grandes pecadores não mereçam a Vossa misericórdia, eu Vos concedo, Senhor; mas, se os não converteis, não livrais de suas cadeias quem eles atormentam; se não lhes moveis o coração para Vós, não dareis sossego a tantas vidas inocentes; se não os fazeis Vossos, os que padecem por sua causa não Vos perceberão nunca como Senhor de misericórdia e de justiça. Quereis tão ruim fama entre os homens, Vós, Senhor meu, que sois justo e santo e misericordioso, e tudo isto em grau sem medida?
Sermões são palavras, que outra cousa não quer dizer sermão senão palavras. E se saís daqui, irmãos, já esquecidos delas, tereis perdido este pouco tempo vosso e talvez a vida toda. Não faz efeito o remédio que o doente, logo que o bebe, o devolve. Quisera eu ter a certeza de ter sido ouvido como se fosse o mesmo Cristo ou um Seu profeta, e vós todos Zaqueus e Madalenas. Ainda que eu seja indigno de ser profeta de Cristo, quanto mais a sua voz entre vós! Mas quem tem bons ouvidos para ouvir entende até o silêncio, que é de Deus mais que todas as palavras que há no Mundo. Pois talvez vos falte, cristãos, ter em silêncio a alma muitas vezes, porque os negócios e tentações deste mundo são o ruído infernal que vos distrai da Palavra de Deus e vos afasta do Verbo, que é Seu Filho feito homem.
In Nomine Domini, dixit.
Daniel de Sá, As Duas Cruzes do Império – Memórias da Inquisição, Lisboa, Salamandra, 1999, pp. 103-126.


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Padre António Vieira (1608-1697) foi missionário, pregador, diplomata, político e escritor. Nasceu em Lisboa e aos sete anos parte com a família para a Baía, no Brasil, onde o pai exercia a função de secretário da Governação. Estuda no colégio jesuíta da Baía e ingressa na Companhia de Jesus, recebendo ordens em 1635 e iniciando nessa altura o seu trabalho como pregador. Em 1641 parte para Lisboa com o governador para apresentar ao rei D. João IV a adesão à causa da Restauração. O rei encarregou-o de várias missões diplomáticas na Holanda e em Roma. Não sendo bem sucedido nestes encargos, regressou novamente ao Brasil e dedicou-se à missionação dos índios. Após a morte de D. João IV, a Inquisição acusa-o de professar opiniões heréticas (1662-1667), mas é absolvido com a subida ao trono de D. Pedro II. Depois de novo e intenso período de trabalho como diplomata em Roma e como pregador, regressa definitivamente à Baía, onde morre com quase 90 anos de idade. Além dos Sermões (13 tomos publicados entre 1679 e 1699), escreveu Esperanças de Portugal, Clavis Prophetarum e História do Futuro.

SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES - trecho
Pregado em S. Luís do Maranhão, três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino
Vos estis sal terrae.
S. Mateus, V, 13.
I
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.
Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria nestщlaso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.
Se a Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto.
Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.
II
Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.
Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione: «Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus»: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.
Começando pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus maris et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae. Entre todos os animais do Mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante com a baleia? Por isso Moisés, cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela nomeou pelo seu: Creavit Deus cete grandia. E os três músicos da fornalha da Babilónia o cantaram também como singular entre todos: Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino. Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.
Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e grande afronta e confusão para os homens! Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do Mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio e com sinais de admiração e assenso (como se tiveram entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão.
Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas, pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?! Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.
Mas porque nestas duas acções teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.
No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque mão morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens, os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao Mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo Mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por isso os animais que viviam mais perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres.
Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo António – e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota, com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara e por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.

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Padre António Vieira (1608-1697) foi missionário, pregador, diplomata, político e escritor. Nasceu em Lisboa e aos sete anos parte com a família para a Baía, no Brasil, onde o pai exercia a função de secretário da Governação. Estuda no colégio jesuíta da Baía e ingressa na Companhia de Jesus, recebendo ordens em 1635 e iniciando nessa altura o seu trabalho como pregador. Em 1641 parte para Lisboa com o governador para apresentar ao rei D. João IV a adesão à causa da Restauração. O rei encarregou-o de várias missões diplomáticas na Holanda e em Roma. Não sendo bem sucedido nestes encargos, regressou novamente ao Brasil e dedicou-se à missionação dos índios. Após a morte de D. João IV, a Inquisição acusa-o de professar opiniões heréticas (1662-1667), mas é absolvido com a subida ao trono de D. Pedro II. Depois de novo e intenso período de trabalho como diplomata em Roma e como pregador, regressa definitivamente à Baía, onde morre com quase 90 anos de idade. Além dos Sermões (13 tomos publicados entre 1679 e 1699), escreveu Esperanças de Portugal, Clavis Prophetarum e História do Futuro.

SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES - trecho
Pregado em S. Luís do Maranhão, três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino
Vos estis sal terrae.
S. Mateus, V, 13.
I
Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário.
Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
Pregava Santo António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria nestщlaso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.
Se a Igreja quer que preguemos de Santo António sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o sabeis e eu por vós o sinto.
Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António, voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.
II
Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins.
Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Non carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et quae prosequenda sunt imitatione: «Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à rede de pescar, Sagenae missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons e lançaram fora os maus»: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.
Começando pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos animais da terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus maris et volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae. Entre todos os animais do Mundo, os peixes são os mais e os peixes os maiores. Que comparação têm em número as espécies das aves e as dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação na grandeza o elefante com a baleia? Por isso Moisés, cronista da criação, calando os nomes de todos os animais, só a ela nomeou pelo seu: Creavit Deus cete grandia. E os três músicos da fornalha da Babilónia o cantaram também como singular entre todos: Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino. Estes e outros louvores, estas e outras excelências de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens, que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a adulação, e não para o púlpito.
Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e grande afronta e confusão para os homens! Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do Mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio e com sinais de admiração e assenso (como se tiveram entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão.
Muito louvor mereceis, peixes, por este respeito e devoção que tivestes aos pregadores da palavra de Deus, e tanto mais quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas, pregador do mesmo Deus, embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes, e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse aqueles homens. É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens lançam ao mar os ministros da salvação?! Vede, peixes, e não vos venha vanglória, quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra.
Mas porque nestas duas acções teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas as milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comummente condenam esta condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não tendes memória.
No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque mão morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens, os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao Mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo Mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por isso os animais que viviam mais perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres.
Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais longe. Se isto vos pregou também Santo António – e foi este um dos benefícios de que vos exortou a dar graças ao Criador – bem vos pudera alegar consigo, que quanto mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de seus pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua clausura. E porque nem aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmente Portugal. Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e até a si mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota, com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com seus próprios irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se retirou a fazer vida solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara e por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado dos homens.

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Soror Mariana Alcoforado (1640-1723) nasceu e faleceu em Beja. Era uma religiosa que professou no Convento da Conceição em Beja, tendo sido escrivã e vigária do mesmo convento. Foi-lhe atribuída a autoria das Lettres Portugaises, publicadas em Paris em 1669 por Claude Barbin. No mesmo ano são publicadas em Colónia com o título Lettres d'amour d'une religieuse portugaise. Nesta última edição, uma nota informa que as cartas foram dirigidas ao cavaleiro de Chamilly e tinham sido traduzidas para francês por Guilleragues. Boissonade faz saber em 1810 que encontrou um manuscrito das cartas que indica que a autora das mesmas se chamava «Mariana Alcaforada, religiosa em Beja». Os investigadores actuais duvidam, no entanto, da atribuição desta autoria. As cartas tiveram várias traduções para português, sendo a última de Eugénio de Andrade (Lisboa, Assírio Alvim, 1993).
TERCEIRA CARTA (tradução portuguesa)
Que será de mim?....e que queres tu que eu faça?...
Vejo-me bem longe de tudo o que tinha imaginado!
Esperava que me escrevesses de todos os lugares por onde passasses; que as tuas cartas seriam mui extensas; que alimentarias a minha Paixão com as esperanças de ainda ver-te; que uma inteira confiança na tua fidelidade me daria alguma espécie de repouso; e que ficaria assim em um estado suportável, sem estrema dor.
Tinha até formado alguns leves projectos de fazer esforços que me fossem possíveis para curar-me, no caso de saber com certeza que me tinhas esquecido completamente.
A tua ausência, alguns toques de devoção, o receio natural de arruinar totalmente a pouca saúde que me resta por cansadas vigílias e tantas inquietações, a escassa aparência dá tua volta, a frieza da tua afeição e doa teus últimos adeuses, a tua partida fundada em frívolos pretextos, mil outras razões mais que boas e demasiado inúteis, pareciam prometer-me um auxílio assaz certo, se me viesse a ser necessário.
Não tendo enfim a combater senão comigo, mal podia desconfiar de todas as minhas fraquezas, nem aprender tudo o que hoje sofro...
Oh! triste de mim! Quanta compaixão mereço, visto não sermos ambos participantes das penas, mas eu só a desgraçada!...
Este pensamento mata-me, e morro de susto de que jamais tenhas sido extremamente sensível a todos os nossos prazeres.
Agora sim, conheço a má fé de todos os teus afectos...
Enganavas-me todas as vezes que me dizias ter sumo gosto de estar só comigo...
Às minhas importunações devo somente os teus desvelos e transportes...
De sangue frio formaste a tenção de me abraçar, e consideraste a minha paixão como um trofeu, sem que o teu coração jamais fosse comovido entranhavelmente...
Não deves tu ser bem infeliz, e ter bem pouca delicadeza, para nunca haver sabido colher outro fruto dos meus enlevamentos?...
E como é possível que com tanto Amor eu não tenha podido fazer-te completamente venturoso?
Lamento, por Amor de ti somente, as deleitações infinitas que perdeste...
Por que fatalidade não quiseste desfrutá-las?...
Ah! se as conhecesses, acharias sem dúvida que são mais sensíveis do que a satisfação de me ter seduzido, e terias experimentado que somos mais felizes, e sentimos qualquer coisa de mais fino mimo em amar ardentemente, do que em ser amados.
Não sei nem o que sou, nem o que faço, nem o que desejo...
Mil tormentos contrários me despedaçam!...
Quem poderá imaginar um estado mais deplorável?...
Amo-te como uma perdida, e modero-me ainda assim contigo, até não ousar talvez desejar-te as mesmas tribulações, os mesmos transportes que me agitam...
Matar-me-ia, ou a não fazê-lo, morreria de dor, se estivesse certa que nunca tinhas repouso, que a tua vida era uma contínua desordem e perturbação, que não cessavas de derramar lágrimas, e que tudo aborrecias...
Eu não me sinto com forças para os meus males, como poderia suportar a dor que me causariam os teus, mil vezes mais penetrantes?...
Contudo não posso do mesmo modo resolver-me a desejar que não me tragas no pensamento, e para falar-te sinceramente, sinto com furor ciúmes de tudo quanto possa causar-te alegria; comover ä teu coração, e dar-te gosto em França.
Ignoro por que motivo te escrevo...
Vejo que apenas terás dó de mim, e eu rejeito a tua compaixão, e nada quero dela;
Enfado-me contra mim mesma, quando faço reflexão sobre tudo o que te sacrifiquei...
Perdi a minha reputação; expus-me aos furores de meus pais e parentes, às severas leis deste Reino contra as religiosas... e à tua ingratidão, que me parece a maior de todas as desgraças...
Ainda assim eu sinto que os meus remorsos não são verdadeiros, e que do íntimo do meu coração quisera ter corrido muito maiores perigos por Amor de ti, e provo um funesto prazer de ter arriscado por ti vida e honra.
Tudo o que me é mais precioso não devia eu entregá-lo à tua disposição?...
E não devo eu ter muita satisfação de o ter empregado como fiz?...
Parece-me até não estar contente, nem dás minhas mágoas, nem do excesso de meu Amor, ainda que, ai de mim! não possa, mal pecado, lisonjear-me de estar contente de ti...
Vivo, e como desleal, faço tanto por conservar a vida, quanto perdê-la!...
Morro de vergonha... acaso a minha desesperação existe somente nas minhas ?...
Se eu te amasse com aquele extremo que milhares de vezes te disse, não teria eu já de longo tempo cessado de viver?...
Enganei-te... tens toda a razão de queixar-te de mim... Ah ! por que não te queixas?...
Vi-te partir; nenhumas esperanças posso ter de mais ver-te. e ainda respiro!... É uma traição...
Peço-te dela perdão.
Mas não mo concedas...
Trata-me rigorosamente.
Não julgues os meus sentimentos veementes...
Sê mais difícil de contentar...
Ordena-me nas tuas cartas que morra de Amor por ti...
Oh! conjuro-te de me dares esse auxílio para poder vencer a fraqueza do meu sexo, e pôr termo às minhas irresoluções, por um golpe de verdadeira desesperação.
Um fim trágico obrigar-te-ia, sem dúvida, a pensar muitas vezes em mim...
A minha memória te seria cara, e quiçá esta morte extraordinária te causaria uma sensível comoção.
E a morte não é porventura preferível ao estado a que me abaixaste?...
Adeus!
Muito quisera nunca haver posto os olhos em ti.
Ah! sinto vivamente a falsidade deste senti- mento, e conheço neste mesmo instante em que te escrevo, quanto prefiro e prezo mais ser infeliz amando-te, do que não te haver jamais visto.
Cedo sem murmurar à minha malfadada sorte, já que tu não quiseste torná-la melhor. Adeus.
Promete-me de conservar uma terna e maviosa saudade de mim, se eu falecer de dor; e assim possa ao menos a violência da minha paixão, inspirar-te desgosto e afastar-te de tudo!
Esta consolação me será suficiente, e, se é força que te abandone para sempre, desejara muito não deixar-te a outra.
Dize, não seria nímia crueldade a tua, se te servisses da minha desesperação para, pareceres mais amável, mostrando que acendeste a maior paixão que houve no mundo?
Adeus outra vez...
Escrevo-te cartas excessivamente longas, o que é uma falta de consideração para ti: peço-te mil perdões, e atrevo-me a esperar que terás alguma indulgência para com uma pobre insensata, que o não era, como tu bem sabes, antes de amar-te.
Adeus.
Parece-me que demasiadas vezes me dilato em falar do estado insuportável em que estou.
Contudo agradeço-te, do íntimo do meu coração, a desesperação que me causas, e aborreço o sossego em que vivi antes de conhecer-te...
Adeus.
A minha paixão cresce a cada momento.
Ah! quantas cousas tinha ainda para dizer-te!...
Tradução de Sousa Botelho, Morgado de Mateus



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Experimentos Visuais do Barroco Português


Luís Nunes Tinoco - Anagrama Poético (séc. XVII)
D. Francisco Manuel de Melo - Pirâmide Solene (séc. XVII)
Os Prodígios da Língua - Ana Hatherly
II Colóquio Internacional de Discuros e Práticas Alquímicas (1999)
Agradeço aos organizadores deste Encontro terem-me sugerido o título da minha comunicação, o qual, parafraseando o meu livro A Experiência do Prodígio, me encaminhou directamente para ele sem que eu tivesse de fazer qualquer esforço.
Considerando o tema geral deste Colóquio, tudo me encaminharia no sentido de fazer uma aproximação entre os processos da prática da alquimia - originalmente relacionada com o secreto processo de transmutação de metais vis em puro ouro - e os da prática da escrita, originalmente ligada a uma determinada concepção do segredo, que, operando com um material tão dúctil como é o vulgar material da língua, procurava obter construções que fossem, tanto quanto possível, incorruptíveis na sua consistência intrínseca, aspirando a um eterno (a memória ou a fama) que se opunha a um efémero (a vida) , o que equivalia a um ideal de perfeição.
Porém, como não sou especialista em matéria de alquimia, não me sinto preparada para fazer uma abordagem comparativa. Por outro lado, embora seja para mim evidente que existe uma íntima relação entre o segredo e o sagrado, também não irei aqui ocupar-me do aspecto transcendente da palavra como verbo, que me levaria para regiões onde não desejo agora entrar. Modestamente, irei apenas abordar o aspecto construtivo que, dentro do sistema duma língua e ao serviço de uma intencionalidade concreta, a palavra pode desempenhar, tomando como exemplo a construção do objecto cultural denominado poema. Na minha opinião, nesse processo construtivo a palavra pode sofrer uma verdadeira transmutação e, de comum objecto material, transformar-se em puro signo. Nesse caso, através da escrita poética, a palavra reencontra a sua original consistência de materia prima e, se para os velhos alquimistas, a pedra filosofal é uma pedra que não é pedra, para os velhos poetas, a palavra não é só palavra: tanto no seu todo como nos seus elementos constitutivos, a palavra, sobretudo escrita, surge como uma representação do mundo como enigma, enigma que ela simultaneamente revela e mimeticamente recria.
Essa concepção da palavra escrita, que se insere numa espécie de cosmologia poética que pode ser verificada ao longo de toda a história da cultura, é particularmente nítida na Europa durante o período barroco, quando se produz uma enorme confluência de saberes antigos em que predomina um pensamento hermético aliado a um culto do prodigioso, do fantástico e do misterioso, que incendeia as sensibilidades da época e que a modernidade de então incorpora nos objectos-actos que produz. E é precisamente esse o aspecto que me remete para os meus livros A Experiência do Prodígio (1) e A Casa das Musas (2) em que é abordada e ilustrada essa questão, retomada de outro ângulo em O Ladrão Cristalino (3) e em Poesia Incurável, ainda no prelo.
Em A Experiência do Prodígio, obra que, como sabem os que a conhecem, é uma antologia de textos visuais dos séculos XVII e XVIII, verifica-se que o fundamento teórico desses textos repousa numa concepção esotérica da escrita que se apoia numa tradição que, nalguns casos, é mantida e noutros transformada, pois o pacto lúdico que então passa a dominar sobrepõe-se por vezes aos ecos de um passado que assim se des-sacraliza, Por fim, o que se verifica é que essa concepção esotérica.ora se sacraliza ora se des-sacraliza, num vai-vem alternativo que ilustra as variedades criadas pela circunstância da sua produção.
Um dos exemplos mais flagrantes de persistência de um pensamento hermético (de origem sobretudo pitagórico-cabalística) podemos encontrá-la nos Anagramas Poéticos, construções que se baseiam em fundamentos teóricos que, em parte chegaram até nós, em que a língua, ou se quisermos, a palavra, e até a letra (não se usava ainda a designação de fonema) como mais tarde viria a acontecer no Concretismo, surgem como puros signos, sinais autónomos, substantivos, que, no entanto, se integram no sistema geral duma representação múltipla: por um lado, como representação codificada do sistema verbo-voco-visual a que pertencem; por outro, como representação dum universo de significação reservado, parcialmente secreto, o qual, por sua vez, é um simile (embora imperfeito) do universo geral que é o mundo da criação, pois se o mundo é um labirinto de Deus, como dizia o Padre Nieremberg na esteira de Plotino, esse mundo é um livro, onde a criação está escrita.
Justifica-se assim a importância da letra - sinal para ser lido. Luís Nunes Tinoco, um notável poeta-pintor-caígrafo português do século XVII, é autor de uma representativa colecção de anagramas poéticos em honra da Rainha D. Maria Sofia Isabel, segunda esposa de D. Pedro II, colectânea intitulada A Feniz de Portugal Prodígiosa, que se encontra num manuscrito de 1678, reproduzido em A Experiência do Prodígio. No texto introdutório, Luís Nunes Tinoco tece as seguintes admiráveis considerações:
He o mundo todo hum grande livro de que emana a Sciencia da Orthographia: cujos Tratados são as Idades, os Capítulos, os Séulos, as folhas os annos, os paragrafos os mezes, as Regras os Dias e as Letras as Horas. Logo que este admirárel Iivro sahio a luz acabado das mãos do seu Divino Autor, teve encadernação dourada na primeira Idade de Ouro. Perdeu este Lustre por cometer erratas em o Prologo o primeiro Leytor dele.
E mais adiante escreve: Foy Adam a primeira Letra do Alfabeto Racional que Deus tirou e criou do Nada, que hé Anagramma de Adam na língua espanhola (...) Com Estrellas de brilhante ouro escreveu Deus as Letras redondas sobre o azul dos Celestes Orbes: com flores de varias cores formou Alfabetos de diferentes matizes na Terra: com aves de diversas formas delineou vistozas penadas no Ar. Nesta cristalina lamina desse humido Elemento abriu o subtil buril da Divina Providencia Letras de prata que posto sejam só Mutas, e Líquidas não deixam de se soletrar nellas innumeraveis maravilhas da Natureza, que se lêm como Agua. (...) Finalmente nesta Machína do Orbe todas as criaturas são A B C de Deos, como diz Santo Ambrosio, por onde cada natureza he huma letra cada vínculo huma sylaba e cada geração muytas dicções: não havendo criatura alguma por pequena que seja que não sirva de folhano volume do Mundo. (pp. 210-211).
Como já noutro local observei, para o pensamento da época, a representação toma-se, mais do que nunca, um espaço de reflexão, não só do visível mas do invisível e "se essa preocupação com a decifração dos sinais do oculto no visível atinge todas as formas de expressão, as artes da palavra e as artes visuais são veículos privilegiados para transmitir pela representação (e pela interpretação que suscitam) simultaneamente o oculto e o patente, o sagrado e o profano, o visível e o invisível, uma vez que, para o pensamento cristão, o Criador pode ser conhecido através da criação". (4)
Os esforços para atingir a compreensão desse saber, esteticizados no pacto lúdico que é a escrita poética, são o que nos transmitem as prodigiosas construções que são os poemas-visuais da época barroca (e seus antepassados históricos, gregos alexandrinos e medievais), construções em que o processo de codificação (que é o da sua escrita, da sua construção) é tão complexo quanto o da sua des-codificação (que é a sua leitura), representando, uma, o poder de criar, e a outra, o poder de interpretar, igualmente criador, que em si mesmo encontra a recompensa. Mas é preciso merecê-la, e assim nem todos podem aceder a ela, ou seja, nem todos atingem esse ouro, essa forma de perfeição reservada, de certo modo demiúrgica.
Considerando o Anagrama como um dos textos-visuais tipicos do periodo barroco escolhido para ilustrar esses princípios, direi que o fundamento teórico do anagrama como composição poética está claramente descrito em A Experiência do Prodígio nos textos de Alonso de Alcalá y Herrera e de Luís Nunes Tinoco, incluídos nessa Antologia, onde se pode verificar a complexa origem e a complexa prática desses enigmáticos textos-visuais que a sua construção e a sua descodificação exigem e que aqui não poderemos abordar em profundidade. Remetendo os interessados para a leitura dessa teorização, limitar-me-ei aqui a citar Alonso de Alcalá y Herrera, que na sua extraordinária obra intitulada Jardim Anagramatico de Divinas Flores, impresso em Lisboa, na Officina Craesbeckiana em 1654, onde apresenta 683 Anagramas em prosa e em verso, do ponto de vista teórico define assim o anagrama:
He pois ANAGRAMA nome Grego, cõposto de duas dicções - ANA - preposiçaõ, & GRAMMA - nome que significa letra - que delle tambem se deriva Grãmatica -, E assi ANAGRAMA val o mesmo que trãsposisçaõ de letras, porque se deriva de Anagrammatizin, que he o mesmo que trãsposiçaõ dellas, assi no escrever, como no falar: de sorte, que com as mesmas letras de hum nome, ou nomes, & periodos, trocadas as syllabas, ou as letras, se pronuncie, ou escreva outro nome ou nomes, & periodos differentes, sem que se tire nem acrescente letra algua, porque em se lhe tirando ou acrecentando, já naõ fica verdadeiro Anagrama. (pp.195-196).
Simples exemplos da aplicação do princípio do anagrama podemos ver nas seguintes transposições: Maria=Arima; Isabel=Belisa; Paraiso=Rosa Pia, etc. .Mas há aqui a notar a diferença entre anagrama e palindroma, uma vez que, se no anagrama a transposição das letras pode fazer-se por qualquer ordem, no palindroma a transposição das letras é feita apenas na leitura, sem inversão da sua ordem escrita: por exemplo: Ana que se lê sempre do mesmo modo, quer a leitura seja feita a direito ou ao revés e o mesmo se pode fazer com frases inteiras.
Voltando ao anagrama, a questão da transposição das letras complica-se quando o seu processo se aplica á construção de todo um texto. Sendo o anagrama um texto essencialmente programático, é necessário comprovar a sua exactidão, quer dizer, a sua fidelidade ao princípio estruturante, daí que os Anagramas Poéticos Aritméticos venham acompanhados do seu respectivo quadro de verificação. Considerem-se os seguintes exemplos, atribuídos a Luís Nunes Tinoco.

Em primeiro lugar, o Anagrama Poético, que faz parte da extensa obra manuscrita com data de 1678, atribuída a Luís Nunes Tinoco e intitulada A Pheniz de Portugal Prodigiosa em seus nomes Maria Sofia Isabel Raynha Sereníssima & Sra. Nossa, que já referimos e que é um prodigioso Panegirico. Estamos aqui perante um soneto que é um complexo anagrama poético acróstico sobre as letras que constituem o nome da Rainha - Maria Sofia lsabel - que,em anagrama, dá là LI Sabia Fermosa.
Sendo o nome da Rainha constituído por 16 letras, na Tábua de Comprovação verifica-se que, somado o número de vezes que no nome da rainha, como no seu anagrama, e ao longo do poema, aparecem as letras que o constituem, obtém-se o número 16, com o que se comprova a sua exactidão, independentemente do seu valor simbólico.

Vejamos agora um outro exemplo, retirado do mesmo Panegírico, em que o valor simbólico de letras e de números é considerado. Quanto à sua leitura descodificadora escreve o seu autor (aqui citado em ortografia actualizada para melhor compreensão):
Todos os números estão cheios de Mistérios e contêm grandes virtudes, como dizem muitos Autores. Os nomes de Maria Sofia Isabel têm 16 letras e são constituídos por três unidades. O número 3 sign!fica a apreensão da Divina Vontade. O número 6 denota perfeição e bondade. O número 10 é a ideia de Perfeição. Têm mais os 3 nomes que em cada um dos primeiros há o número 5 e no terceiro 6. O número 5 significa Bondade e o 6 perfeição da Bondade. Ambos se provam pelo 5° e 6° Dia da Criação, que no 5° se diz (Gen. 25 e 31) Vidu Deus quod esset Bonum e no 6° Et erant valdi Bona. Dá-se na Aritmética estas 3 casas ou termos: Unidade, Dezena, Centena (e assim se vão seguindo outras, como Unidade de Milhar, dezena de Milhar, Centena de Milhar, etc.) que fazem triângulo e se expressam pelo nosso Anagrama. Ensinam-se também 4 espécies que fazem um quadrado (e se estendem pelos 4 lados do quadrado, os quais se nomeiam; somar, diminuir, multiplicar, repartir, começando em 4 letras). Raro prodígio! E que outra cousa vem a ser estas 4 letras senão umas breves cifras da Rainha N. Sra. que dizem Dona Maria Sofia Rainha. E dizendo muito, estas 4 letras não dizem mais nada, deixando o discurso suspenso na última dicção e não sofrendo a curiosidade que fique em silêncio o Reino de que é Rainha, o explique a Ortografia.
Há outros tipos de Anagramas Poéticos, como sejam os Cronológicos, em cuja base de construção está a atribuição de um valor numérico, um valor de ordem, sistema de numerologia, que duplica o valor simbólico do signo. Assim se estabelece uma complicada trama processual em que a materia prima do alfabeto, como elemento de representação da fala, ou seja, da lingua, do qual resulta o texto poemático, sofre uma fantástica transmutação, passando de simples matéria-prima a espelho da complexa significação cifrada do mundo.
Vejam-se os seguintes dois exemplos de uma Hymnodia Chronologica da Autoria de Alonso de Alcalá y Herrera, incluída no já referido volume Jardim Anagramático de Divinas Flores:


No primeiro podemos ver a explicação do processo utilizado nos seis Hinos que compõem esse capítulo da obra. No segundo a aplicação do processo. Tudo para celebrar o ano de 1651. Estas elaboradas composições são acompanhadas de uma extensa exposição em que são interpretadas especulativamente e a uma luz mística o valor das letras e o das cifras, em que claramente se revela a sua origem esotérica, cabalística, aliás declarada como tal pelo seu autor.
Esta breve incursão no universo enigmático da escrita poética baseada numa tradição tão esotérica e proibida como foi a da alquimia, permitir-nos-ia talvez estabelecer entre ambas curiosas pontes, se para tal dispuséssemos aqui de tempo. Como isso não sucede, fico por aqui, desejando que os presentes ouvintes se tornem futuros leitores.