Páginas

terça-feira, 7 de abril de 2009

Neo modernismo


ORFEU SPAM APOSTILAS

[Volta à Página Principal]

GAIBÉUS - Alves Redol - comentário e trecho

Alves Redol nasceu em Vila Franca de Xira no dia 29 de Dezembro de 1911 e faleceu em Lisboa no dia 29 de Novembro de 1969. Era filho de um comerciante modesto. Trabalhou como operário em Angola durante alguns anos. Quando regressou a Portugal em 1936, juntou-se ao movimento que se opunha ao Estado Novo, tornando-se militante do Partido Comunista. Dedica-se à ficção tornando-se um dos principais romancistas de tendência neo-realista.

Das suas obras descam-se os seguintes romances: Gaibéus (1939), Marés (1941); Avieiros (1942); Fanga (1943); Porto Manso (1946); Ciclo Port-Wine: Horizonte Cerrado (1949), Os Homens e as Sombras (1951), Vindima de Sangue (1953); Olhos de Água (1954); A Barca dos Sete Lemes (1958); Uma Fenda na Muralha (1959), O Cavalo Espantado (1960); Barranco de Cegos (1962); Histórias Afluentes (1963); O Muro Branco (1966). Postumamente, saiu o volume de teatro Os Reinegros (1974).

Gaibéus - Alves Redol

Esse escritor do neo-realismo português revela-se, através de Gaibéus, um perfeito organizador de sensações e impressões, criando imagens de variados tipos, a partir do discurso poético. Sua linguagem expressa elevado grau de visualismo nas descrições das paisagens ribatejanas e nos gestos e expressões de suas personagens. Através da correspondência entre o discurso verbal e o discurso pictórico, Alves Redol consegue criar no leitor, a ilusão de ser um espectador que assiste a um espetáculo ou a sensação de estar diante de um quadro.

"Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem."
O romance Gaibéus foi publicado pela primeira vez em 1939. É o ponto de partida da obra romanesca de Alves Redol. Mas é também o ponto de chegada de uma longa reflexão do autor sobre o significado e o papel da arte, o primeiro edifício do programa de uma literatura nova. Dessa reflexão de Redol ficou uma série de artigos publicados em jornais de Vila Franca de Xira, onde vivia - Vida Ribatejana (entre 1927 e 1934) e Mensageiro do Ribatejo (entre 1934 e 1940). De destacar ainda a conferência sobre arte, proferida em Vila Franca em 1936. Fiel ao seu ideário, Redol, antes de escrever Gaibéus, realizou um amplo trabalho de campo - deslocou-se repetidas vezes à lezíria, chegou mesmo a instalar-se no campo para recolher dados sobre o trabalho nos arrozais. Os seus blocos de apontamentos contêm numerosas indicações técnicas sobre o cultivo do arroz. As próprias relações familiares lhe serviram de documento - o pai de Redol era oriundo da região de origem dos gaibéus. Hoje Gaibéus é comumente aceite como o romance que marca o aparecimento do neo-realismo em Portugal. Eis o mundo que Alves Redol nos apresenta no seu primeiro romance. História da alienação de uma comunidade de trabalhadores, ficamos a saber até que ponto são explorados, e até que ponto essa exploração se deve à falta de união com outras comunidades de jornaleiros. Gaibéus é, assim, o romance do divórcio entre ganhões, uns procurando resgatar algumas bouças ou sulcos que ainda lhes pertencem, outros alheios ao que seja possuir qualquer chalorda ou mesmo canteiro. História simbólica do embate de duas diferentes mentalidades, a desunião entre gaibéus e rabezanos é triste e profético paradigma das oposições, ainda hoje bem marcadas, entre os camponeses dos minifúndios e os dos latifúndios. Redol acreditava que seria possível o casamento entre uns e outros quando descobrissem que a mesma fome os une. É disso exemplo simbólico a parábola dos quatro jovens rabezanos e dos três jovens gaibéus. Alexandre Pinheiro Torres


Trechos da obra...
Pareciam cercados no trabalho pelo braseiro de um fogo que alastrasse na Lezíria Grande. Como se da Ponta de Erva ao Vau a leiva se consumisse nas labaredas de um incêndio que irrompesse ao mesmo tempo por toda a parte.
O ar escaldava; lambia-lhes de febre os rostos corridos pelo suor e vincados por esgares que o esforço da ceifa provocava. O Sol desaparecera há muito, envolvido pela massa cinzenta das nuvens cerradas. Os ceifeiros não o sentiam penetrar-lhes a carne abalada pela fadiga. Lento, mas persistente, parecia ter-se dissolvido no ar que respiravam, pastoso e espesso. Trabalhavam à porta de uma fornalha que lhes alimentava os pulmões com metal em fusão.
Quase exaustos, os peitos arfavam num ritmo de máquinas velhas saturadas de movimento.
A ceifa, porém, não parava, e ainda bem - a ceifa levava o seu tempo marcado. Se chovesse, o patrão apanharia um boléu de aleijar, diziam os rabezanos na sua linguagem taurina. Eles próprios não a desejavam; se as foices não cortassem arroz, as jornas acabariam também. E se ao sábado o apontador não enchesse a folha, as fateiras não trariam pão e conduto da vila.
Então os dias tornar-se-iam ainda mais penosos e o degredo por terras estranhas mais insuportável.
Vencidos pelo torpor os braços não param. Lançam as foices no eito, juntando os pés de arroz na mão esquerda, e o hábito arrasta-os em gestos quase automáticos, mais um passo e outro, a caminho da maracha que fecha o extremo de cada canteiro. Caminham sempre no mesmo balouçar de ombros; as pegadas do seu esforço ficam marcadas na resteva lodosa.
Talvez muitos deles pensem que o arroz deitado nas gavelas repousa primeiro do que os seus corpos. Se pudessem deter-se também, por instantes, e descansarem depois a cabeça nos montes de espigas que deixam atrás de si, a ceifa poderia animar.
Mas o bafo que vem da seara queima mais em cada minuto e as cabeças dos alugados pesam já tanto como o cabo das foices nos braços esgotados. Estão atulhados de amarelo, de pensamentos e de grãos de fogo que a canícula doente lhes insuflou no sangue.
Ninguém entoa cantigas para animar, embora os capatazes tenham incitado as raparigas cantaroleiras para o fazer. Nos ranchos não há agora quem saiba cantar.
Como podem as cachopas entrar em cantos ao desafio, se os peitos parecem fendidos pela fadiga e o ar que respiram se tornou lava do vulcão da planície?!
--Auga!... Auga!... - Gritam os rapazes aguadeiros.
Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.
Os seus brados parecem vogar sobre o rancho e não se dissolvem. Ficam a boiar na massa espessa da lava de fogo e angústia que cobre as searas. As palavras não naufragam.
Talvez por isso também as raparigas não cantem. Agora só saberiam canções tristes que lhes recordassem a sua condição de alugadas.
Alves Redol, Gaibéus, 1940


ORFEU SPAM APOSTILAS

[Volta à Página Principal]

A Sibila - Agustina Bessa-Luís - resumo

Adapt. De site do curso Universitário

O romance A Sibila narra a história de três gerações da família Teixeira, cuja figura principal é Quina, que, por seu profundo e controverso discurso de sabedoria humana, é caracterizada como uma sibila, ou seja, alguém dotado de poderes especiais em relação à previsão do futuro e à obtenção de favores divinos mediante preces.

Ao longo de seus dezenove capítulos, a narrativa vai acompanhar, da queda ao apogeu, os acontecimentos que determinam a vida dessa família e de sua propriedade: a casa da Vessada, destacando o comportamento das mulheres, que são diretamente responsáveis pela reedificação do patrimônio. Paralelamente a essa história, outras histórias são recuperadas, sempre na intenção de ilustrar o sistema de valores que cerca a família Teixeira.

O primeiro capítulo inicia-se com o diálogo entre a personagem Germa (Germana) e o seu primo Bernardo Sanches, quando visitavam a quase abandonada casa da Vessada. Germa, distraída da conversa, começa a rememorar os fatos do passado e pergunta a si mesma sobre quem fora Quina, a tia que lhe fez herdeira.

Começa então a narrativa da história da família, primeiramente descrevendo o nascimento de Quina, Joaquina Augusta, e depois retornando ao casamento dos pais de Quina, Francisco Teixeira e Maria da Encarnação, que são apresentados detalhadamente.

Nesse primeiro capítulo ainda se conta o incêndio que destruiu a casa da família, antes mesmo do nascimento das crianças.

O segundo capítulo traz informações sobre a vida desregrada de Francisco Teixeira e as aflições que Maria sofria, esperando por ele. Descreve-se também as circunstâncias da morte dos três primeiros filhos do casal e o nascimento de Justina, nome de batismo da primeira criança que sobreviveu.

Caracteriza-se, nesse capítulo, a diferença de tratamento que a mãe, Maria, dispensava às duas primeiras filhas: Estina era tratada com carinhos e cuidados especiais, enquanto à Quina eram destinados os trabalhos mais pesados.

O pai, Francisco, reconhece tais diferenças e, sempre que possível, toma partido da filha mais nova.

No terceiro capítulo, é narrada uma série de infortúnios que atinge a família Teixeira. A morte de Abílio, o filho adolescente que foi para o Brasil tentar fortuna e voltou atacado de febres. A falta de dinheiro e as inúmeras dívidas decorrentes da fanfarronice de Francisco, bem como sua morte.

Ocorre ainda a ruptura dos namoros das duas irmãs: Estina, cujo namorado desapareceu ao perceber a falência da família, e Quina, que renunciou ao pretendente, para que este pudesse encontrar casamento de maiores dotes.

O quarto capítulo focaliza Quina. Apresenta-se o desenvolvimento de suas capacidades sibilinas, que eram já previstas pela mancha de nascença que a menina apresentava no pulso e que começaram a ser notadas desde que uma grave doença a atingiu quando não tinha ainda mais de quinze anos e todos pensaram que iria morrer. A partir desse incidente, Quina percebe que pode exercer alguma influência sobre as pessoas que a cercam.

O processo de reconstrução econômica da casa da Vessada é o assunto do quinto capítulo. As três mulheres são as responsáveis pelo reerguimento da propriedade, urna vez que os rapazes têm muito do comportamento do pai.

A filha mais velha, Estina, casa-se por conveniência com Inácio Lucas e passa a viver não muito distante da família. Encontra-se com a mãe e a irmã periodicamente, quando vai ao mosteiro para assistir à missa.

Quina e a mãe, Maria passam a viver em aliança e, aos poucos, Quina toma a frente nos negócios da família. Daí para frente, Quina dedica-se a enriquecer materialmente e tornar-se, a cada dia, mais influente e respeitada na região.

No sexto capítulo, as mulheres continuam na rotina do trabalho, quando João anuncia que irá se casar. Maria não aprova a noiva escolhida pelo filho, recebendo-a mal, mesmo depois de casada.

Abel, o outro filho, vive em andanças pelo mundo afora, tentando fazer fortuna. De passagem pela casa da Vessada, peregrina pela comarca, fazendo visitas, reencontrando amigos, freqüentando casas de autoridades.

Quina o acompanha, convivendo pela primeira vez com a sociedade. Mesmo depois da partida de Abel, ela continua sendo recebida em algumas casas fidalgas, tomando-se mesmo confidente de algumas damas, entre elas, Elisa Aida, a condessa de Monteros.

O sétimo capítulo é dedicado à visita de Quina à casa de Elisa Aida. Esta a convidara após viver uma intriga romanesca, na qual o desfecho, que era um não casamento, fora previsto por Quina. É essa espécie de profecia concretizada que faz com que a condessa trate Quina como "a sibila".

A casa da condessa é descrita com detalhes e a conversa entre as mulheres é variada. Ao sair da casa da condessa, Quina aproveita para visitar a irmã, Estina.

Uma parte da história de Estina é recordada. Esta tivera dois filhos que morreram já quase moços, devido à brutalidade do pai, e uma filha, que sofria de alucinações. Apesar dos maus-tratos do marido, não abandona a casa para não desonrar a família.

No oitavo capítulo, Quina será novamente o foco central. Fala-se sobre os pretendentes que a cobiçam, mesmo estando ela com quarenta anos; sobre as suas habilidades nos negócios, que fazem prosperar a casa da Vessada; sobre sua vaidade, não em relação aos atributos físicos, mas em relação à esperteza e à psicologia com que conquista sempre mais e mais espaço.

Há também, nesse capítulo, uma referência ao progresso da aldeia, com a chegada da energia elétrica, e outra, ao poder das rezas de Quina, que, com astúcia, impressionava as pessoas que a ouviam rezar.

O nono capítulo marca o encontro das três gerações da família Teixeira: Maria, Quina e Germa.

Inicia-se com o anúncio do nascimento de Germana, através de um cartão-postal trazido pelo carteiro. Narram-se, depois, algumas visitas que a pequena Germa faz à casa da Vessada.

A morte de Maria é contada no décimo capítulo. Germa é quem focaliza as personagens: a tia Estina, o tio Inácio Lucas, a tia Quina.

Neste capítulo, também ocorre o desaparecimento da filha "louca" de Estina e Inácio Lucas. Quina é chamada pela irmã para que reze pelo reencontro da sobrinha, porém é destratada pelo cunhado.

A "louca" só será encontrada no capítulo seguinte.

No décimo primeiro capítulo, a morte também é um tema constante. Primeiramente é a morte da filha de Estina, encontrada, um mês após seu desaparecimento, em um cenário medonho: o interior de uma mina abandonada, repleta de morcegos.

Depois vem a morte de Elisa Aida, que é descrita ressaltando-se os pormenores de sua vida teatral. Um escudeiro, que o povo suspeitava ser filho da condessa, ficou desamparado com sua morte e foi acolhido como empregado por Quina.

Finalmente, conta-se a morte de uma prostituta, com quem o escudeiro da condessa tivera um filho.

O próximo capítulo, décimo segundo, é dedicado a contar a decisão de Quina, já aos cinqüenta e oito anos: tomar conta do filho da prostituta.

Quina desenvolve grande afeição pelo menino de quatro anos, batizado por ela com o nome de Emilio, embora todos o chamassem de Custódio, que era a forma como as crianças eram designadas antes do batismo.

No décimo terceiro capítulo, reaparecem os irmãos Abel e João. O primeiro, após saber da adoção realizada pela irmã, preocupa-se com o destino da herança da família e vai visitar o irmão João, em busca de aliança contra Quina. Encontra o irmão envelhecido, pois não se viam há mais de dez anos, mas não consegue o apoio que procurava.

Nesse capítulo, aparecem ainda descrições do comportamento que Custódio adota perante sua benfeitora, Quina, e um perfil de Libória, empregada da casa da Vessada.

O capítulo décimo quarto narra o isolamento crescente de Quina.

Parte desse isolamento é devido ao envelhecimento natural e parte se deve à proteção dada a Custódio. Mesmo diante da indignação de parentes e conhecidos, ela aceita o comportamento degenerado de Custódio, que se envolve com o bandido Morte e pratica pequenos roubos.

Quina adoece no décimo quinto capítulo e é Libória quem dela cuida. Estina, a irmã, passa uma semana lhe fazendo companhia no auge da doença.

O ex-namorado, Adão, de quem Quina se tornou confidente, também vai visitá-la e aproveita para tocar no assunto do testamento.

Abel, o irmão, visita a irmã quando ela já está se restabelecendo e a convida para passar alguns dias em sua casa, na cidade, a fim de se tratar.

A visita de Quina à cidade, afastando-se da casa da Vessada pela primeira vez na vida, é o assunto narrado no capítulo décimo sexto. Durante essa visita, ela se hospeda na casa de Abel, mas aproveita para visitar também a casa da cunhada e do irmão João.

Três dias após sua chegada, Quina recebe uma carta de Libória, dizendo que Custódio adoecera. Quina retoma imediatamente à casa da Vessada, antes mesmo de saber os resultados de seus exames de saúde. Descrevem-se então os sentimentos de contentação de Quina ao rever Custódio.

No décimo sétimo capítulo, a saúde de Quina volta a fraquejar, desta vez, definitivamente. E quando Libória, a empregada, aproveita para agoniar Custódio, lembrando a ele que, após a morte de Quina, ficará desamparado.

Quina, por sua vez, revive na memória momentos da vida familiar: a mãe, os irmãos ainda jovens, o pai. Ao receber a visita do médico, ela se recorda da condessa de Monteros, de quem ele é descendente.

Custódio inquieta-se com o estado de saúde de sua benfeitora, chegando mesmo a perguntar a ela o que será dele após sua morte. Libória aumenta a perturbação de Custódio, contando casos de miseráveis e mendigos que perambulavam pelas ruas da aldeia.

No penúltimo capítulo, décimo oitavo, Custódio muda de comportamento, passando a agir com interesse e cuidados em relação à Quina e à propriedade da Vessada. Constantemente ele interroga Quina sobre sua situação após a morte dela. Essa insistência chega a irritá-la, embora sinta pena do rapaz.

Na noite em que Libória e Custódio estavam jogando cartas em outro cômodo da casa, Quina morre, sozinha em seu leito.

O último capítulo é uma retomada do primeiro, dando notícia dos acontecimentos ocorridos após a morte de Quina.

O funeral de Quina é narrado. Germa, filha de Abel, irmão que tinha sido registrado com sobrenome materno, é a única herdeira de Quina.

A Custódio coube o direito ao usufruto de duas propriedades que Quina adquiriu após a morte da mãe. No entanto, ele só partiu da casa da Vessada após ser expulso por Germa. Foi, então, trabalhar como empregado na propriedade dos herdeiros da condessa Monteros. Como se metesse em fofocas, foi despedido e, vendo-se sozinho novamente, suicidou-se.

Estina faleceu e seu marido, Inácio Lucas, casou-se com uma velha parenta.

A cena que encerra o livro é a mesma que o iniciou: a conversa de Germana com o primo Bernardo. O livro é encerrado com reticências, quando Germa questiona a personalidade da "sibila".

Foco narrativo

O romance A Sibila apresenta uma estrutura bastante particular. Seu primeiro início é dado por uma fala da personagem Germa, durante diálogo que mantém com o primo Bernardo Sanches.

Fazendo uma retrospectiva do passado em busca de saber quem fora Quina, Germa abre caminho para o narrador propriamente dito. Este, um narrador onisciente de terceira pessoa, segue o ritmo da memória, evocando aqui e ali fatos e pensamentos que vão construindo o sentido da história da família Teixeira.

Ora o narrador demonstra saber tudo sobre os fatos ocorridos, pois antecipa notícias e conta episódios de um passado distante, ora ele delega às próprias personagens a tarefa de reconstruir a história e a própria personalidade de cada uma, através das inúmeras narrativas que fluem da memória individual ou coletiva.

Nesse entrelaçamento de narrativas, o diálogo inicial entre os primos funciona como um prólogo à matéria principal que será narrada.

Tempo

No romance A Sibila, o tempo da narrativa não acompanha o tempo cronológico. É a memória, com seus volteios e desvios característicos, que orienta o desenrolar da história de três gerações.

Apesar de uma estrutura aparentemente confusa, o tempo no romance pode ser recuperado indiretamente, como um quebra-cabeça, juntando-se as marcações temporais espalhadas ao longo do texto.

É no primeiro capítulo que se situam os dados mais relevantes para reconstruir a linha do tempo familiar: "por alturas de 1870" ocorreu o incêndio, "pouco depois da chegada de Maria", que conheceu Francisco "com nove anos" e com ele se casou "onze anos depois".

Em relação ao início do romance, Quina nascera "setenta e seis anos antes" e era a segunda filha que vingava "num matrimônio de sete anos".

Todavia, o início da história da família tem que ser calculado com base em dados recortados ao longo dos diversos capítulos.

A reconstrução do tempo leva ao traçado da linha cronológica da família Teixeira em três gerações: um século. Essa linha cronológica também permite seguir algumas mudanças que ocorrem na mentalidade da própria sociedade portuguesa, principalmente no que diz respeito ao comportamento feminino. Maria e Estina são representantes de uma ordem social na qual as mulheres se submetem aos homens, mesmo quando têm condições morais e econômicas de superá-los. Quina é prenúncio de uma nova realidade, uma mulher que se responsabiliza pelo próprio sustento e não se submete às imposições oriundas da relação matrimonial. Germana representa o avanço, as mulheres de meados do século XX, a partir do qual a situação feminina caminha em direção à igualdade de direitos e deveres com os homens.

Espaço

O cenário de maior parte da narrativa d'A Sibila é a propriedade da família Teixeira, denominada casa da Vessada.

Tal propriedade está inserida no espaço rural de uma zona do Norte de Portugal.

A ambientação rústica e o clima rural vão ser reforçados durante todo o romance, com freqüentes referências ao modo de vida do lugar e uma série de recursos lingüísticos que incluem regionalismos, indumentárias, objetos, vegetação e crendices, típicos de um universo social determinado.

É comum a referência à aldeia para marcar o centro geográfico da região, bem como a classificação de comarca, para se referir à área mais abrangente.

As propriedades: casa da Vessada, palacete da Água Levada, casa de Morouços, casa de Folgozinho, casa do Freixo determinam não só espaços, como também características das personagens. Funcionam como sobrenomes na identificação de quem é quem.

Personagens

As principais personagens do romance A Sibila são os membros da família Teixeira, que podemos localizar na seguinte árvore genealógica:



No interior do romance, há um intenso trânsito de personagens secundárias que têm suas histórias narradas apenas para caracterizar melhor as personagens principais. E o caso, por exemplo, de Isidra, cuja história de seus amores com Francisco Teixeira serve para reforçar o comportamento desregrado desse.

Há também personagens secundárias, que aparecem momentaneamente, sem mesmo ter nomes. Novamente possuem funções que contribuem para destacar características das principais figuras. São numerosas: abade, cocheiro, avô (de Isidra), carteiro, irmã (da seduzida pelos filhos do caseiro), marido (de Adriana), moço (a quem tardava a virilidade), pai (de Maria), prostituta, vendeiro, dentre muitas outras. De um modo geral, são denominadas por profissões ou pelo grau de parentesco com personagens nomeadas. É notável a presença de representantes de praticamente todos os estratos da sociedade portuguesa.

Destaca-se o descaso para com os membros agregados à família, Inácio Lucas e as mulheres de Abel e João. O primeiro ao menos é nomeado, apesar de ser praticamente ignorado pelas mulheres da família, inclusive por sua esposa. As outras duas não têm sequer seus nomes citados, tão diminuta é sua importância.

A descrição física das personagens é irrelevante, marcando apenas algumas características muito superficiais: as mulheres da família eram bonitas, Francisco era muito bonito. Quina era muito magra e Estina muito gorda. É a caracterização psicológica que vai estabelecer as relações que movem a trama do romance.

No plano das personagens principais, há que se destacar a oposição entre as masculinas e as femininas. Tal oposição favorece as personagens femininas, que são as verdadeiras guias da intriga, "Elas tinham habituado a contar apenas com o seu pulso, a serem sós, (...) Por isso o seu caráter não podia deixar de adquirir acentos viris, assim como as suas mãos tinham calos e nodosidades, como o seu espírito se abstinha de manifestações supérfluas. E a entranhada aversão pelo homem, pelo ser inútil e despótico, egoísta, cedendo aos vícios e a corrupção com uma facilidade fatalista, desenvolveu-se nelas cada vez com mais intensidade...".

Germa é a última descendente viva. É ela quem alimenta, através da memória, a vida do clã familiar, do qual Maria é a iniciante. Nesse percurso de gerações, percebe-se o próprio desenvolvimento da sociedade portuguesa, através da transformação da mentalidade das personagens, sobretudo as femininas. Enquanto Maria, a avó, "Educara-se na sujeição e no trabalho"; Germa, a neta, reagia com hostilidade "àquele imposto de sujeição que o mundo lhe queria exigir, que as criaturas lhe pediam para prestar".

Estina e Quina têm personalidades diferentes, que vão determinar destinos bastante diversos. Em vários momentos da narrativa elas se opõem. Primeiramente na forma de tratamento que recebiam da mãe, depois, no tipo de comportamento que adotaram para garantir a manutenção do patrimônio da família. Estina resolveu casar-se: "Casando, ela aumentava as possibilidades de um dia licitar sobre os bens (...)", enquanto Quina optou por defender a casa da Vessada "com seu tato político a respeito de relações, negócios, contratos", tomando-se conhecida e respeitada na região.

Revela-se em Estina uma mentalidade tradicionalista, acomodada, sem coragem de reagir às imposições do destino; seu caráter não evolui com o passar do tempo. Ela funciona como um espelho da própria mãe, pois ambas ao "recusar influências, encontravam a paz. Elas não precisavam do mundo, e viviam com uma plenitude inigualável", resignando-se diante dos abusos cometidos por seus maridos e colaborando para a manutenção dos privilégios masculinos.

Quina, por sua vez, reverteu a ordem vigente em seu tempo, com um caráter no qual imperavam a independência e a auto-suficiência. Buscou a realização de seus próprios anseios, não se sujeitando a ter a sobrevivência condicionada a um casamento. Pode-se dizer que ela tinha uma mentalidade progressista.

Entre Germa e Quina há muitos pontos de identificação, bem como entre Estina e Maria. De certo modo, nesses pares, as primeiras repetem as atitudes das segundas. Germana dá seqüência ao espírito independente de Quina, enquanto Estina segue o comportamento de submissão da mãe, Maria.

Quanto aos homens da família, vão ser destacados os traços de personalidade que fazem deles degeneradores do patrimônio familiar. João não era ambicioso, ao contrário de Abel, que acalentava ideais de riqueza, mas ambos herdaram do pai o gosto pelos amores dispersos e a pouca disposição para o trabalho: "Os homens tinham sido sempre fatais para a casa da Vesada. Francisco Teixeira, pródigo e desinteressado, contava como seu próprio pai entregava mais afoitamente a regência do lar a uma filha que tinha (...)".

Os homens dispersam o patrimônio familiar, símbolo máximo da tradição, e as mulheres o recuperam. Nesse sentido, os elementos femininos se ligam à terra como fundamento da permanência, enquanto os homens representam a instabilidade, como filhos pródigos.

Dentre todas as personagens, a de maior destaque é, sem dúvida, Quina, cujo suposto atributo sobrenatural dá o título ao romance. Grande parte da narrativa busca caracterizá-la, a fim de responder à pergunta: quem fora Quina? - lançada no primeiro capítulo e retomada no capítulo final.

É para destacar alguns atributos de Quina, por exemplo, sua capacidade de amar, que aparece o personagem Custódio, nos capítulos finais do livro. Esse personagem vem, praticamente redimir a sibila, pois ela dedica a este a afeição que tinha pelo pai, Francisco.

Outras personagens que ocupam espaços significativos na narrativa, como o ex-namorado Adão, a condessa Elisa Aida e a criada Libória, se relacionam diretamente com Quina, sendo por essa razão importantes elementos na caracterização desta protagonista.

É importante destacar que, no interior do romance, as relações entre as personagens são de grande valor para constituir a verossimilhança de cada uma. O problema das relações humanas e suas conseqüências para a formação do caráter dos indivíduos reforçam o entrelaçamento das personagens, realçando sobremaneira a perfeição da organização interna da obra.





ORFEU SPAM APOSTILAS

[Volta à Página Principal]

Uma Abelha Na chuva - Carlos de Oliveira

O romance é constituído pelas relações conflituosas entre Álvaro Silvestre e D. Maria dos Prazeres, relações que se complicam com a participação de outros personagens. Álvaro Silvestre apresenta um comportamento indiferente em relação à tensão emocional que vive D. Maria dos Prazeres.

Álvaro Silvestre se opõe à D. Maria dos Prazeres, simbolizam a união de concepções antagônicas. D. Maria dos Prazeres de origem aristocrática, representa a tradição e o poder familiar. Álvaro Silvestre, a indiferença e a frieza diante de seus objetivos mesquinhos. Álvaro chega a agredir quadros que representavam essa tradição familiar. Álvaro Silvestre, dotado duma consciência pequeno-burguesa, vai pouco a pouco, percebendo a ruína que se apossava daquela casa: objetos da casa eram vendidos: lustres, arcas de madeira, cadeiras. Participa como eminência parda no assassinato de Jacinto, por ver que a relação entre Jacinto e Clara fere seus preceitos acerca da ordem social. No fundo, por temer que se possa efetivamente ser feliz no amor e que há quem se lance a isso.

Por sua vez, D. Maria dos Prazeres vai pouco a pouco reconhecendo que é uma representante de uma classe social decadente

Paralelamente desenvolve-se a história de Jacinto e Clara. Existe ainda os rumores acerca das relações amorosas entre o Padre Abel e D. Violante, a timidez de Cláudia e as concepções existenciais do Dr. Neto.

Jacinto é assassinado por Marcelo, a mando do pai de Clara, António, oleiro cego, que prometera a filha ao rival de Jacinto e que objetivava com o casamento a posse da terra. Após o crime, Marcelo foge. Clara, grávida, suicida-se atirando-se a um poço.

D. Cláudia e o Dr. Neto formam outro casal no romance. Dr. Neto é naturalista enquanto D. Cláudia tem temores com a Natureza., causam-lhe receios o sol, o mar, a chuva.

Dentro desse panorama, percebe-se que o para Álvaro Silvestre/ D. Maria dos Prazeres representa o passado, a decadência do presente e se fundamentam num sentimento de remorso e de vingança. Os amantes que têm um final trágico, Jacinto e Clara olham para o futuro que, porém, não logram alcançar por ação violenta do meio social em que vivem. A cena "Jovem Casal no Palheiro" tem no romance a intenção de sugerir a esperança em que a mulher grávida e o casal cercado por uma vaca e um jumento simbolizam o (re)nascimento de Cristo.

Após a morte de Jacinto, o povo da aldeia supõe que Álvaro estivesse por detrás do fato, e correm até a casa do casal Álvaro/Maria dos Prazeres gritando contra eles e quebrando as vidraças.



ORFEU SPAM APOSTILAS

[Volta à Página Principal]

Pequenos Burgueses - Carlos de Oliveira

O Major é casado com D. Lúcia, tem uma fazenda que produz muitas frutas nos pomares. Tem dois filhos: Cilinha que namora o Delegado e Ricardo que estuda num colégio em Lisboa.

Maria da Luz, criada na casa do Major é filha de Raimundo da Mula, sujeito um pouco parvo que tem a obsessão de possuir uma mula. O Major e D. Lúcia estão ficando velhos. O Major reclama que sua atração por D. Lúcia não é a mesma, daí a necessidade de uma amante jovem, Rosário, que mora em Corgos. Porém Rosário também tem um caso com o Delegado. Mal sai da casa dela o Major e logo chega o Delegado. O Dr. Neto, conformista fica a repetir "as coisas são o que são".

No cap. XXIII a carrinha da polícia é metamorfoseada em percevejo.

Mestre Horácio, ferreiro, na perspectiva de Raimundo, figura respeitabilíssima, cuja palavra significava sempre a verdade.

Num jogo de cartas jogam Pablo Florez e d. Álvaro Medeiros (diretor da Comarca de Corgos), o Major e o Delegado. O Delegado perde dinheiro jogo e resolve continuar jogando agora com o dinheiro que separara para o presente de aniversário de Cilinha, filha do Major. D. Álvaro que herdou um solar em ruínas, em pouco tempo o restaura e constrói a bela casa de campo nos arredores de Fonterrada. D. Álvaro é um bom jogador de cartas e ganha muito dinheiro do Delegado, do Medeiros, do Cortês das Finanças, do Pablo Florez e do Navarro.

O desabafo interior é de Pablo Florez, personagem cuja experiência está justamente no sentido de tolher qualquer forma de comunicação que pudesse gira ao nível do "ser". Há uma tenção estilística entre as palavras do idioma espanhol, ou português-espanhol, e do português que a personagem procura dominar.

D. Álvaro não perdia negócio, certa feita comprou uma mula velha de um sujeito que a estava a vender por necessidade. D. Álvaro mandou pintar a mula e a engordou com muita ração. Tempos depois o sujeito que vendera a mula disse que precisava de uma para o trabalho, D. Álvaro disse que não podia alugar aquela que o sujeito lhe vendera, mas uma outra, mais forte e mais bela. O sujeito pagou vinte notas pelo aluguel do animal, chegando em casa, mandou um criado dar banho no animal e viu ela se distingir e revelar o antigo animal, velho e sarnento, porém gordo.

O Major mantém duas casas, numa ele, D. Lúcia e os filhos (Cilinha e Ricardo que estuda num colégio de Lisboa), na outra, ele e Rosário.O Major considera as moças jovens como mulas e como tal devem ser montadas.

O delegado namora com Cilinha. Numa festa na casa do Major o Delegado dá um anel de noivado a Cilinha. A certo momento, um alvoroço e confusão, um bando de homens entra no terreiro procurando por Xanto, um rapaz da casa. Ele se esconde, mas os perseguidores o encontram e o levam para fora da casa para matá-lo. O Delegado manda um bilhete, por Paulino, urgente para que venha o sargento da guarda com policiais. Quando chega a guarda só resta desamarrar o corpo do morto que fora enforcado e levado muitas pedradas. O Delegado promete investigar a história.

&#No cap. XXXII, Raimundo, numa mistura de realidade e magia, vai encontrar o bruxo, que poderia concretizar a sua obsessão de possuir uma mula, já morto e em estado de putrefação. Raimundo depois desse encontro vai percebendo a impossibilidade de um dia possuir uma mula.


ORFEU SPAM APOSTILAS

[Volta à Página Principal]

O HOMEM DISFARÇADO - Fernando Namora

O personagem principal é João Eduardo, médico de prestígio profissional. João Eduardo é casado com Luísa, tem dois filhos Carlitos e Teresinha em idade escolar.

A narrativa começa demonstrando uma das características da personalidade de João Eduardo, sua impassibilidade e seu receio diante das coisas. As primeiras palavras do livro são "Acudam! Acudam!". O médico está esperando seu carro ser lavado, quando um rapaz lhe informa que uma mulher pede por socorro uma vez que seu filho ficou entalado no elevador. Indeciso entre prestar ajuda e esconder-se, opta pela segunda alternativa uma vez que acredita que pouco poderá fazer ou o que poderá fazer talvez não valha a pena. Logo chega uma ambulância e leva a mãe e o garoto ao hospital.

Em casa, sua relação com a mulher tem esfriado. Luísa vai se tornando mais distante e mais impessoal. Compara-a com Silvina, sua amante, uma dançarina de casas noturnas que está a caminho da prostituição. Com Silvina sente-se seguro para contar suas impaciências, dúvidas e frustrações, o que não ocorre com a companhia de Luísa.

Sua vida profissional, embora de sucesso, estava lhe causando enfado. D. Emília uma vizinha e uma das primeiras clientes que tivera na cidade, era uma velha que vivia a bisbilhotar a vida alheia. Ela era casada com um velho doente que João Eduardo tratava também. Durante a narrativa, por vezes, João Eduardo busca saber o destino do garoto que ficara ferido no elevador, pergunta no hospital se algum garoto naquelas condições dera entrada, chega a ir à porta do apartamento da mãe perguntar pela sua saúde, mas a mãe não responde por estranhar-lhe os modos tensos e fecha a porta.

Há um amigo de infância, doente, tuberculoso, chama-se Jaime. Atualmente João Eduardo não só acompanha o tratamento de Jaime como o ajuda emprestando dinheiro que sabe dificilmente será pago. Rita, a mulher de Jaime, compreende a gravidade da situação e vê em João o único apoio para suportar o fim trágico que se anuncia para seu marido.

Na sua vida profissional, embora seja admirado pelo seu sucesso, João relembra que começou como médico de vilarejo no interior de Portugal, que lá podia atender os pobres e ajudá-los, mas a necessidade progredir na profissão e de ter uma clientela mais apta a gastos maiores o fez seguir na direção de trabalhar na capital, Lisboa. Jaime, o amigo, por outro lado, sempre fora dado a aventuras, chegara a ser guia de viagens num barco apenas pelo prazer e se sentir livre, além do que adorava beberagens, daí contraíra a tuberculose. O casamento com Rita se dera quase na mesma época em que se diagnosticara sua doença.

Um outro amigo do interior de Portugal e do início dos estudos era o Magalhães. Este continuava um modesto médico do interior e ansiava trabalhar na capital para melhorar de vida. Por pressão de Luísa que tinha simpatia por Magalhães e por sua esposa, João Eduardo chega a pensar em tentar arrumar alguma colocação para o amigo, embora lá no fundo, não nutrisse muita admiração por Magalhães, ao contrário da admiração que tinha pela ousadia de Jaime.

Fica sabendo que um médico morrera no Banco das Índias e que um cargo se abria. Foi até diretor financeiro averiguar a possibilidade de se dar esse cargo ao amigo provinciano, mas para sua surpresa o cargo estava sendo oferecido a ele, João Eduardo. Logo quis recusar mas acabou sendo convencido, até com relativa facilidade a aceitar o cargo. Isso criaria uma animosidade com a mulher e com o amigo provinciano, mesmo porque ele, João Eduardo, não precisava de mais um cargo.

O diretor do hospital, professor Cunha Ferreira é uma pessoa importante de suas relações profissionais. No entanto, o professor Cunha Ferreira sustentara o seu poder numa série de negociatas e conchavos. Dava parte dos honorários recebidos nas operações para os médicos que lhes encaminhassem doentes, fazia coincidir o dia das operações com o dia em que estava no hospital, entre outras coisas, e por vezes, João Eduardo participara desses arranjos.

Por outro lado, existia a figura de Medeiros. Medeiros era um médico respeitado por sua carreira pautada a honestidade e nos valores éticos. João Eduardo oscilava entre esses dois modelos de comportamento, mas via de regra tendia a seguir o professor Cunha Ferreira.

No hospital, o professor Cunha Ferreira convida João Eduardo e sua esposa para um jantar em que estará presente também o Medeiros. João Eduardo começa a desconfiar das intenções do professor nesse jantar. Se ele pretendesse arregimentar o Medeiros para o seu lado dificilmente conseguiria. Soube João Eduardo que Medeiros já reprovara algumas chapas médicas que fundamentavam algumas das operações feitas por Cunha Ferreira.

No jantar que contou com a presença de um certo rico vinhateiro, senhor Trigueiros, João Eduardo teme por um conflito entre as duas personalidades médicas. Mas com o apoio da habilidade de Luísa, o Medeiros vai se esquivando das inferências do professor Cunha Ferreira e consegue terminar o jantar sem abrir diretamente uma discussão.

Já altas horas da noite, sob a desculpa de atender um paciente, João Eduardo vai visitar Silvina num teatro de cabaré de terceira categoria. Para sua surpresa, Silvina está tensa e confidencia-lhe que tem uma filha, coisa que sempre escondera de João Eduardo e de todos os seus amantes. João descobre que Silvina tentava dar à filha uma educação decente e que escondera da filha sua profissão. Porém a filha descobrira por meio de outras pessoas e agora recusava em vê-la. João e Silvina bebem até ficarem bêbados.

João Eduardo tivera outras amantes, uma de que se lembra o nome era Clara, saíra com ela uma única vez, mas sua personalidade lhe impressionara, nunca mais a vira. Tinha um apartamento em que marcava os seus encontros e Silvina tinha acesso irrestrito àquele lugar.

Depois da deixar Silvina, após beberem juntos chega em casa já quase amanhecendo e a mulher, Luísa ainda acordada lhe informa que o amigo Jaime morrera, essa, aliás, é a última frase do romance.





ORFEU SPAM APOSTILAS

[Volta à Página Principal]

Fernando Namora - Casa da Malta

A Inserção Narrativa em Casa da Malta, de Fernando Namora

Antony C. Bezerra

1 Introdução

Procuramos, neste trabalho, observar como se estrutura a inserção narrativa em Casa da Malta, novela de Fernando Namora. Foi nosso intuito verificar a função assumida pelas seis narrativas inseridas em relação à narrativa primária e, principalmente, à obra como um todo.

Nossas considerações estarão divididas, fundamentalmente, em três momentos: apresentação do escritor português Fernando Namora e de Casa da Malta (2); exposição da noção de inserção narrativa segundo Bal (1994) e Prince ([19__]) (3); análise propriamente dita da novela, incluindo a apreciação de quatro excertos de narrativas inseridas (4).

2 Casa da Malta no Contexto da Obra de Fernando Namora

O poeta, romancista e ensaísta Fernando Namora (n. 1919 - f. 1989) é dos autores mais representativos do Neo-Realismo literário em Portugal. Desenvolvendo paralelamente à vida literária a atividade de médico, Namora buscou na realidade de sua profissão a matéria-prima para a composição de considerável parte de seus livros. São estes, portanto, refratados do testemunho de vida deste escritor, que atravessou várias fases em sua carreira.

Com base em Mendonça (1978: ), dividimos em quatro momentos a criação literária de Fernando Namora: (1) o 'ciclo estudantil', com obras que retratam a vida no liceu e na universidade; (2) o 'ciclo rural', onde se insere Casa da Malta, publicada em l945; (3) o 'ciclo urbano', fruto da mudança do médico do campo para a cidade; (4) os 'cadernos de um escritor', influenciados pelas viagens do literato ao estrangeiro.

Ao lermos um romance de Namora, facilmente percebemos que suas personagens não são tipos contaminados de automatismos, mas sim indivíduos dotados de especificidade, que sofrem e lutam para compreender - e modificar - o ambiente social em que vivem. Tal asserção é sancionada por Monteiro apud Camocardi (1978: 27) que, com propriedade, crê que as figuras criadas pelo escritor-médico não são o camponês, o engenheiro ou o mineiro; mas sim um camponês, um engenheiro e um mineiro. Compartilha da mesma perspectiva Sacramento ([1967]: 73-74), quando diz que Fernando Namora «virá a criar uma galeria de personagens em que não é o número ou a variedade que contam, mas a exemplaridade ou o enquadramento específico.».

Escrita em apenas oito dias, Casa da Malta é fruto da estada do médico recém-formado na região da Beira Baixa, Portugal. O caráter testemunhal da narrativa se confirma no Prefácio à obra - escrito pelo próprio novelista em 1961 - em que reconhece ter se inspirado num casebre, próximo ao seu consultório, que abrigava indivíduos postos à margem da sociedade - a malta (Namora, 1988: 25).

Tendo na estrutura básica um evento central - o nascimento de uma criança cigana - a narrativa congrega, ao longo de seis capítulos, histórias que revelam episódios do passado de seis diferentes personagens: Abílio, Ricocas, Graça, Troupas, Manel e Carminda.

3 A Narratologia e a Inserção Narrativa

O fenômeno de inserção narrativa é recorrente tanto em narrativas de experiência pessoal (orais) como também em textos literários. Não deve ser confundido com as narrativas difusas (citadas por Toolan, 1988: 169), pois nestas não se estabelece uma relação hierárquica - há muito mais uma justaposição de narrativas. Assim, como destaca Bal (1994: 142), só falaremos de inserção narrativa quando houver uma demarcação entre a narrativa primária e as narrativas inseridas.

Prince ([19__]: 35), ao estudar o fenômeno de narrativas múltiplas, observa que não é apenas em casos de narrações intercaladas que «há várias narrativas nas quais encontramos mais de uma narração. [...] em uma dada narrativa, pode haver um número indefinido de narrativas [...] apresentadas em uma ordem cronológica ou não.» [tradução nossa].

Pouco depois, diz o narratólogo: «Quando há várias narrações em uma narrativa, uma delas pode introduzir outra que, por sua vez, introduz mais uma outra, e assim por diante; ou uma delas pode introduzir várias outras em sucessão, e assim por diante.» (Prince, [19__]: 35) [tradução nossa]. Este processo pode ocorrer de duas maneiras: (1) sem retornar à narrativa primária («principal», em suas palavras); (2) retornando à narrativa primária. O autor acredita ainda que seria relevante, numa análise de inserções narrativas, observar a significação tanto no relacionamento da narrativa primária com as inseridas como destas entre si. É justamente por este caminho que seguimos em nossa abordagem de Casa da Malta.

Bal (1994: 144) ressalta que, em havendo relações entre a trama da narrativa inserida e a da narrativa primária, aquela pode explicar apenas, ou, mais ainda, explicar e determinar a narrativa primária. No primeiro caso, a narrativa inserida tem por papel esclarecer a situação presente da narrativa primária (caso particular do nosso objeto de estudo). No segundo, a narrativa inserida não só explica a situação presente, como também pode modificar os rumos do desenrolar da narrativa primária.

Para dar termo à exposição de nosso instrumental narratológico, trataremos do modelo de análise de narrativas de experiência pessoal desenvolvido por Labov (1972: 363). A justificativa para tal está no fato de, nas inserções narrativas de Casa da Malta, ser estabelecida uma relação entre as partes da narrativa segundo a caracterização proposta pelo sociolingüista norte-americano. Cabe destacar que o modelo laboviano, desenvolvido para narrativas orais, já foi utilizado para narrativas literárias com sucesso por Pratt (1979) e Carter (1997). Destarte, não soará estranha a sua aplicação na novela que ora estudamos.

Em seu estudo das narrativas orais produzidas entre jovens falantes do Inglês Negro Vernáculo (INV), Labov observou a recorrência de determinadas estruturas. Tal fato conduziu-o à divisão da narrativa em seis partes, a saber: resumo, orientação, complicação, avaliação, resolução e coda. Vale lembrar que a posição destes elementos na narrativa não é fixa. Este fator, inclusive, é gerador do que Labov chama de «point» - o fulcro de interesse da narrativa (1972: 366).

No caso particular de Casa da Malta, merecem destaque o resumo e a coda, pois são estes os elementos responsáveis pelo encadeamento estrutural das narrativas, conforme aferiremos.

4 A Inserção Narrativa em Casa da Malta

Há, no âmbito da narrativa primária, dois episódios: (1) a chegada de Abílio à vila de Penedo - sua terra natal; (2) o nascimento do filho de uma cigana que está hospedada na casa da malta - episódio mais destacado do ponto de vista da novela como um todo.

Das seis personagens caracterizadas através de narrativas inseridas, cinco - a exceção é Abílio - compartilham do espaço da casa de vagabundos. Daí, podemos observar uma relação íntima entre o fato de se estar no espaço físico do galpão e ter algum episódio do passado relatado pelo narrador.

Antes de nos dedicarmos ao texto de Casa da Malta, acreditamos ser pertinente a apresentação de dois quadros que dizem respeito aos capítulos da narrativa (Quadro 1) e à maneira como se organizam a narrativa primária e as inseridas (Quadro 2). Ambos são importantes na medida em que facilitam a identificação dos episódios abordados em nossa análise - em que capítulo estão contidos, e se estão na narrativa primária ou em uma narrativa inserida.

Quadro 1: Distribuição dos capítulos em Casa da Malta

CapítuloPrimeiro CapítuloSegundo CapítuloTerceiro CapítuloQuarto CapítuloQuinto CapítuloSexto
páginas 35-57 59-71 73-90 91-100 101-110 111-117

Quadro 2: Disposição das narrativas primária e inseridas em Casa da Malta

NarrativaPrimária NarrativaInserida 1(Abílio) NarrativaInserida 2(Ricocas) NarrativaInserida 3(Graça) NarrativaInserida 4(Troupas) NarrativaInserida 5(Manel) NarrativaInserida 6(Carminda)
páginas 35-4348-5769-7189-9098-100109-110 43-48 59-68 73-88 91-97 101-108 111-117

Conforme se pode notar no Quadro 1, a extensão dos capítulos é variável. A partir do Quadro 2, podemos averiguar que, gradativamente, a narrativa primária vai aflorando no texto da novela de maneira cada vez mais breve. É de se notar ainda que há uma narrativa inserida por capítulo, e que a novela tem seu fim com uma narrativa inserida - a de Carminda.

Antes da apreciação dos excertos, julgamos ser relevante referir-nos ao mecanismo através do qual se encadeiam as narrativas. Como já dissemos, existe a relação entre a coda de um capítulo e o resumo do subsequente. Isto ocorre da segunda maneira: a coda da narrativa primária de um capítulo será o título (resumo) do capítulo a seguir. No desfecho do primeiro capítulo, p. ex., quando a personagem Graça quer saber do alfaiate Ricocas sobre a passagem que este teve na prisão, obtém como resposta do rapaz: «- Frio. Eu conto.» (Namora, 1988: 57). Ora, 'Eu conto' é justamente o título do Capítulo Segundo (Namora, 1988: 59). Com base nisto, percebemos que os títulos dos capítulos dizem respeito muito mais às narrativas inseridas que propriamente à primária - o nascimento do ciganito.

Conforme mencionado, a narrativa de Casa da Malta tem início como primária. Reproduz a chegada de Abílio - depois de três anos integrado a uma trupe circense - à sua vila natal. No âmbito da narrativa primária, não é revelada claramente a razão pela qual o rapaz resolve voltar. A resposta para tal está na narrativa inserida 1: o ambiente do miserável circo não era nada alentador, o que fazia com que o rapaz tivesse saudades de suas raízes.

Excerto 1 - Abílio

«O circo acabara numa aldeia escura da Beira. Quando chegaram a esses sítios amaldiçoados em penedias e estevas já o grupo tinha minguado: as raparigas gordas fugidas na companhia de meliantes, a velha e as duas crianças mortas de doença e miséria.

A velha arrastara ainda por um ano uma perna ulcerada e imunda. [...]

Mas era ainda a velha que cozinhava umas sopas para o grupo, apesar do nojo dessa mistura de chagas, trapos purulentos e de comida. [...]

Tinham chegado pela tarde, famintos. Abílio correu as ruas, atroando os ares com o tambor e distribuindo programas do espetáculo, ainda do tempo em que o circo reunia quase toda a família.»

(Namora, 1988: 43-45).

Esta convivência mórbida, portanto, foi decisiva para que crescesse em Abílio a saudade de sua vila (sentimento indicado no título do capítulo). Assim, podemos notar, por meio da narrativa inserida 1, o porquê da volta do ex-trompetista de circo às origens.

Na mesma carroça em que vai Abílio com seu atual patrão (um tendeiro), está o alfaiate Ricocas, que pediu carona após cumprir pena na «choça» (Namora, 1999: 42). Lá estava por ter agredido um policial. Como já vimos acima, Graça - que também viajava de favor no veículo - pede a Ricocas que conte sobre a estada na cadeia. A narrativa inserida 2, portanto, ao mesmo tempo que esclarece Graça sobre este episódio na vida do alfaiate, revela alguns traços do comportamento do mesmo. O seguinte trecho apresenta o momento em que, no tribunal, Ricocas é argüido pelo juiz.

Excerto 2 - Ricocas

«- Basta. E hoje por que está aqui?

- Aqui?

- Sim, aqui: a responder perante este tribunal.

- Por me virar a uma autoridade. - O juiz ia a abrir a boca para falar, mas o homem, com uma tranquilidade que tanto parecia inconsciente como audaciosa, concluiu: - E ele a mim.

- Por que fez isso?

- Por ele se virar a mim primeiro.»

(Namora, 1988: 64).

Ficam nítidos, nesta passagem, tanto o caráter irônico da personagem como seu atrevimento - mesmo perante um juiz de direito ele não se inibe. É de se notar que a narrativa inserida 2, demandada por Graça, não é narrada pela personagem Ricocas (não é ele quem 'conta'), mas sim pelo mesmo narrador da narrativa primária. Assim ocorre também com a narrativa inserida 3. Ricocas, desejoso de saber mais acerca de Graça, esta «rapariga de rugazinhas na face bonita e olhos tristes que afogavam todo o resto da expressão. [...] O vestido dela era bom. As suas mãos, brancas e macias.» (Namora, 1988: 70), pergunta sobre o passado dela. A moça evita esta revelação, dizendo que sua vida «não tem importância» (Namora, 1988: 70). Enquanto para Ricocas a trajetória da moça continua sendo um mistério, os receptores da novela têm a oportunidade de, através da narrativa inserida 3, saber da promíscua juventude de Graça num bairro estudantil da cidade de Coimbra. O extrato que a seguir apresentamos retrata o momento em que a moça é abandonada pelo seu amante - o Dr. Alceu.

Excerto 3 - Graça

«Mas depois de uma noite em que se reavivaram as horas felizes do passado, o Dr. Alceu teve as mesmas frases polidas, geladas... E mandou-a embora.

Ela não podia aparecer assim em Coimbra! Não podia. E foi o seu começo de deambular de terra em terra, por casas de má nota, oferecida ao acaso: alguém desesperado à beira do abismo, que sente a irresistível, a dolorosa atracção…»

(Namora, 1988: 88).

Após viver em concubinato com o Dr. Alceu - antes ainda entregara-se a vários rapazes universitários -, Graça, envergonhada, sai pelo mundo em busca da sobrevivência, que chega através da prostituição. É numa destas andanças que a moça se encontra com o alfaiate Ricocas.

A última personagem contemplada com uma narrativa inserida é Carminda, que, na narrativa primária, não chega a habitar efetivamente a casa da malta. É uma moradora do litoral que, de origem serrana, não aceita dar à luz o seu filho próxima ao mar. No trecho que segue, notamos a falta de identidade entre a personagem e o lugar onde mora.

Excerto 4 - Carminda

«O seu filho havia de ser da serra, da terra. Ali só havia mar e areia esboroada, nada que firmasse os pés. Seus pais e avós tinham nascido na terra, do arado, do suor nos campos de milho [...].»

(Namora, 1988: 112-113).

Nessa jornada em busca da serra, Carminda encontra a casa de vagabundos. Chega no exato momento em que se podia ouvir o «choro débil da criança cigana e a vida e o calor que para lá se adivinhavam.» (Namora, 1988: 117). É com este trecho que termina o livro: marca o desfecho tanto da narrativa primária (o nascimento da criança cigana) como o da inserida 6 (Carminda poderá ter o filho nas serras). Este momento caracteriza, simultaneamente, a coda do segundo episódio da narrativa primária e a resolução da última narrativa inserida. A concepção cíclica da casa da malta fica, assim, clara: lá nasceu a criança cigana e, também lá, será gerado o filho de Carminda.

5 Conclusão

Realizada a análise, estamos seguros de ter atingido dois fins em especial: (1) observar como o narrador de Casa da Malta se utiliza da inserção narrativa para caracterizar as personagens da novela; (2) comprovar que uma análise literária baseada nas contribuições da lingüística, quando despida de reducionismo, mostra-se eficaz e contribui decisivamente para uma melhor compreensão do texto literário. Ademais, pudemos perceber que todo indivíduo tem motivos distintos para ir a um determinado lugar, pois seres humanos não são produzidos em série - possuem traços bem particulares em sua personalidade. Fernando Namora, ao escrever Casa da Malta, provou ter esta consciência.

Referências Bibliográficas

Bal, Mieke. Narratology: introduction to the theory of narrative. Toronto: University of Toronto Press, 1994. chap. 3, p. 119-153: Text: words.

Camocardi, Elêusis M. Fernando Namora: um cronista no território da ficção. Assis: ILHPA; São Paulo: HUCITEC, 1978.

Carter, Ronald. Investigating English Discourse: language, literacy and literature. London: Routledge, 1997. chap. 9, p: 171-191: Teaching Language and Literariness.

Labov, William. Language in the Inner City. Oxford: Basil Blackwell, 1972. chap. 9, p. 354-396: The Transformation of Experience in Narrative Syntax.

Mendonça, Fernando. Breve Diagnose da Obra de Fernando Namora: excertos. In: Fernando Namora: 40 anos de vida literária. Amadora: Bertrand, 1978. não paginado.

Namora, Fernando. Casa da Malta. 13. ed. rev. Mem Martins: Europa-América, 1988.

Pratt, Mary Louise. Toward a Speech Act Theory of Literary Discourse. Bloomington: Indiana University Press, 1977. chap. 2, p. 38-78: Natural Narrative: what is "ordinary language" really like?.

Prince, Gerald. Narratology: the form and functioning of narrative. Berlin: Mouton, [19__].

Toolan, Michael J. Narrative: a critical linguistic introduction. London: Routledge, 1988. cap. 5, p. 146-182: Narrative as Socially Situated: the sociolinguistic approach.

Trabalho apresentado no iii Encontro Nacional de Língua Falada e Escrita, realizada na Universidade Federal de Alagoas, Maceió (12-16 abr. 1999)

© Antony C. Bezerra, 1999


ORFEU SPAM APOSTILAS

[Volta à Página Principal]

A BALADA DA PRAIA DOS CÃES - José Cardoso Pires - resumo

(Texto de Paul Castro - acesse o texto completo no link ao final da página)

Escrito durante o período pós-revolucionário e publicado em 1982, Balada da Praia dos Cães relata a investigação de um assassínio. O cenário é o Portugal do início dos anos 60, chamado por Gérard e Pierrette Chalender de "época salazarista por exceléncia"(1). Este foi um período crucial para o regime fascista, dado que o país tinha acabado de perder os seus territórios na Índia e as sementes da revolta armada nas colônias Africanas tinham começaram a brotar. Embora este contexto político permaneça principalmente implícito, é crucial como pano de fundo contra o qual o enredo se desenrola. A Balada da Praia dos Cães pode ser qualificado como um romance policial, ainda que infrinja as supostas 'regras' do gênero. Segundo a análise estruturalista do romance policial feito por Todorov(2), pode-se dividir o enredo da Balada da Praia dos Cães em dois enredos, um que descreve o inquérito e outro, construído através desta investigação que conta o ocorrido do crime. O protagonista do primeiro história é Elias Santana, um chefe de brigada da Polícia Judiciária encarregado de encontrar os responsáveis pelo o assassínio de Major Dantas Castro. O Major, encarcerado por 'tentativa de sedição militar', ou seja, o seu envolvimento num golpe anti-salazarista abortado, tinha-se evadido da forte militar de Elvas onde se encontrava detido com a ajuda de três cúmplices. Uma vez fora da prisão fugiram para uma casa escondida cerca de vinte quilômetros de Lisboa alcunhada de 'Casa da Vereda'. Três meses depois da fuga o Major foi assassinado pelos seus cúmplices: Mena, uma jovem mulher com quem o Major tinha uma violenta e obsessiva relação antes do seu encarceramento, o arquitecto Fontenova, outro prisioneiro detido em Elvas por seu envolvimento com a revolta militar e membro do mesmo movimento de resistência anti-salazarista do Major, embora com atitudes políticas e morais muito diferentes das de Dantas Castro e o cabo Barroca, uma guarda do campo a cumprir o seu serviço militar. Até um certo ponto, podemos ver na casa da vereda um microcosmo de Portugal naquela altura. O Major, um verdadeiro Marialva, que vê Mena como um bem e uma prova do seu machismo, o intelectual sensível Fontenova com desprezo e um brutal paternalismo, e o camponês Barroca como o seu servo. Os habitantes estão ali escondidos à espera dum signo do 'Comodoro', nome de código do advogado Gama e Sá, o seu contacto na resistência que, ao que parece, quer distanciar-se do Major. Nós assistimos aos acontecimentos na casa através das descrições feitas pela Mena no seu depoimento a Elias Santana. Na sua detenção extrajudicial e nos metódos empregues por Covas para interrogá-la vimos um bocado os procedimentos da polícia da altura. A divisão entre 'bons' e 'maus', parte estrutural integrante do romance detetivesco tradicional, dificulta-se e começam a desmoronar-se as regras do gênero. Pelo testemunho da Mena, com a lucidez que se pode ter quando se olha para trás, mas mantendo o sentimento de obscura confusão que caracteriza a experiência humana (por oposição à 'clareza' da História.), nos vemos as pressões sociais e históricas que tornaram um homem de princípios ferrenhos num monstro irracional e levaram três pessoas de sensibilidade e inteligência a matarem brutalmente este homem que outrora amavam e respeitavam. O inquérito de Elias Santana visa elucidar esta segunda história, como compete a um agente da polícia judiciária. Contudo, a sua investigação revela muito além dos simples acontecimentos do caso, que desde cedo estão averiguados. Em acompanhando a sua atuação, nós vemos um país onde a verdade, outramente dita a história, é somente a versão do sucedido que mais arranja o poder, imposto à população pela PIDE e pela agência da Censura. Nós vemos, obscuramente, do ponto de vista de Santana as manipulações da PIDE, a desconfiança e da Polícia judiciária para com ela e os distorcimentos dos factos divulgados por uma imprensa majoritariamente servil, obediente ao regime e, em todo caso, censurado. Ao acompanhar Elias nas suas investigações também entrevemos a sua vida, esvaziada e cinzenta, com somente um lagarto altamente alegórico por companhia. Vemos nisso o cotidiano do fascismo, através de um dos seus protectores. Sem grande drama, a tragédia como Eduardo Lourenço chamou à realidade fascista. Através das suas deambulações pela Lisboa acanhada e apoquentada dos anos do fascismo, e as suas entrevista com suspeitas e testemunhas acerca do caso, proporcionado uma visão polifônica da sociedade contemporânea. O que vem complicar este romance é o facto de ser baseado num caso verídico De facto, em 1960 um militar foi assassinado pelos seus cúmplices, um dos quais, que viria a inspirar a personagem do arquitecto Fontenova, depois da sua captura, fez chegar às mãos de Cardoso Pires um relato dos acontecimentos. Tendo isto em mente, será Balada da Praia dos Cães, romance ou História, ou até romance histórico? Vem um outro factor a complicar o cenário, o facto de o livro ser extremamente metaficcional, fracturando sempre qualquer ilusão de 'representação de realidade' cara ao Neo-realismo. O livro alerta o leitor continuamente ao facto que uma ficção, possível e plausível muitas vezes está a ser escrita. Isto permite-nos chamar o livro de, segundo a designação de Linda Hutcheon "metaficção histórica".

************************************************************************************

Na sua introdução ao Everyday Studies Reader, Ben Highmore diz que "invocar o cotidiano pode ser invocar precisamente aquelas prácticas e vidas que tradicionalmente se deixaram de fora da História, varridos pela enxurrada de acontecimentos instigados pelas elites"(1). No retrato feito da investigação de Elias Santana, é precisamente isso que nós podemos ver, no pormenor reconstruído do caso da Casa da Vereda assim como na vida do detective, Elias Santana. Alias, como defende Kristin Ross, uma das características do romance policial é o seu foco no "emaranhamento cotidiano das pessoas no que as rodeia"(2). Highmore, cientista social por formação defende que para render 'visível ' o cotidiano é preciso uma poética, uma maneira de desfamiliarizá-lo. A metaficcionalidade da Balada da Praia dos Cães, podemos dizer, consegue isso. Segundo Highmore, o cotidiano existe entre dois pólos: o geral e o particular. Do lado do geral, há a agência do indivíduo, a sua resistência às estruturas do poder (que é do lado do geral). O cotidiano, podemos dizer é o lugar onde a actuação do poder se faz sentir na vida do indivíduo, onde os efeitos de poder são negociados, e onde a ideologia vigente se actualiza em prácticas concretas, atitudes ou conceitos. O cotidiano é também o lugar onde o ser se actualiza como tal, onde nós nos construímos, consciente ou inconscientemente, como pessoas. Uma das questões principais sobre a qual se debruçam os estudiosos deste campo de pesquisa é: aonde se encontra exactamente o cotidiano? Lugares recorrentes nesta discussão incluem a rua, a casa e os espaços instituições a partir donde se tenta reger a vida cotidiana dos demais. Todos estes lugares são proeminentes em Balada da Praia dos Cães. É o formato do romance policial que permite a investigação do quotidiano na cidade fascista em Balada da Praia dos Cães. A interrogação de suspeitos e testemunhas fornece uma audiência polifónica da sociedade Lisboeta da altura, dando uma visão histórica múltipla, e não única e homogênea como na historiografia convencional. No curso das investigações de Elias Santana ele atravessa muitos espaços físicos da cidade. Walter Benjamin(3) defendeu que a figura do detective na literatura descende da figura histórica do flâneur, e podemos ver traços disso em Balada da Praia dos Cães. Assim como ele perpassa vários espaços físicos da cidade, o detective Elias Santana perpassa também vários locais topográficos em Lisboa, desde o central da PIDE à casas privadas de suspeitos e testemunhos, atravessando praças e pausando em bares. Estes itinerários servem para mediar a experiência da época do Salazar para leitores contemporâneos. O conhecido café do bairro do Chiado, A Brasileira é um excelente exemplo. Outrora lugar de predileção da intelligentsia lisboeta, agora paragem obrigatória nos circuitos turísticos da cidade, então é nos dado a ver como um lugar cheio de políticos Salazaristas, agentes da PIDE e informadores. Isto é conseguido através das reflexões de Santana enquanto segue uma suspeita ao café ao ver um ministro sentado à mesa com um torturador conhecido. Isto contribui para uma visão da cidade como um lugar onde imagens de morosidade mórbida e incaração multiplicam-se inexaucívelmente.

Fonte: http://www.mml.cam.ac.uk/aspects/assets/pmc39/public_html/project2/pages/homepage




ORFEU SPAM APOSTILAS

[Volta à Página Principal]

O Delfim - José Cardoso Pires

O Escritor (narrador do romance) relembra os fatos de quando fizera uma viagem à Gafeira, aldeia do interior de Portugal. De como conhecera Tomás Manuel (o Delfim), também conhecido por alguns como O Infante, ou ainda como O Engenheiro. Relata as várias conversas que tivera com ele e comenta muito de sua personalidade. Homem mais importante daquela aldeia, herdeiro das terras que cercam a lagoa. A Lagoa é importante, pois a Gafeira tem como única atividade econômica importante a caça. O Delfim é dado às bebedeiras e às noitadas, embora seja casado com Maria das Mercês. Esta vive isolada na casa da fazenda e sente saudade do tempo em que tinha amigas e passeava. O criado Domingos vai se destacando por suas habilidades com as máquinas (o trator).

O Escritor está tentando compor uma história baseada no clã da família de Tomás Manuel, tem como apoio um texto antigo escrito pelo Abade Agostinho Saravia, escrito em 1801 intitulado Monografia do Termo da Gafeira. O exemplar que lera pertencia a dona de uma pensão da Gafeira, que avisa que ao que ela sabe, apenas o Tomás Manuel tem outro exemplar. De Tomás Manuel o escritor também consulta muito um livro intitulado Tratado das Aves, escrito por um anônimo.

Nas conversas com o Delfim, o Escritor vai citando obras e autores como Xenofonte (considerado o pai dos escritores-caçadores), Conan Doyle (Sherlock Homes, em que se discute a possibilidade do crime perfeito) e de uma poetisa local chamada Maria da Paz Soares (uma que escreve): "Todos os anos publica um livro de poemas e todos os anos muda de amante que é para manter os cornos do marido em forma." Citam-se ainda outros escritores. O Delfim tem para com a literatura e filosofia uma posição cética e parece conversar sobre tais assuntos com o Escritor apenas para aporrinhá-lo.

Dedica-se vários parágrafos no romance a se esclarecer a importância dos cães para os caçadores. A caça começa a se recuperar como atividade econômica quando Tomás Manuel começa a se tornar ausente da vila em razão de seus problemas pessoais. O, Regedor que tem uma loja de artefatos para caça, começa a vender licenças de caça para eventuais visitantes e turistas.

Tomás Manuel é motivo da conversa de várias pessoas do bar em que o Escritor freqüenta, muitos suspeitam que ele esteja envolvido nas mortes de sua esposa e do criado mas não existem provas concretas. O Escritor vai anotando as conversas dessas pessoas: O Padre Novo, o Batedor, o Velho, o Dono do Café.

Numa noite, Tomás Manuel fora visto discutindo com um casal no bar do posto de gasolina (Bar do Shell). Ao que parece, o casal era de fora, e Tomás Manuel acertara que ele dormiriam na cidade, mas eles queriam ir para a casa de Tomás. Na discussão, o Delfim - supõem alguns - teria arrancado uma orelha ao homem. Saiu do bar com seu Jaguar, não sem antes bater numa árvore, ficando ferido na ocasião. Ao chegar em casa, bêbado, encontra o corpo do criado morto na cama da esposa - o médico legista dirá que a causa da morte foi um colapso cardíaco (para o Escritor, a morte do criado pode ter sido o fato de que o criado tivera que acompanhar Tomás Manuel em muitas bebedeiras, mas não tinha físico para isso). A mulher de Tomás Manuel, Maria das Mercês fora encontrada morta, afogada na lagoa.

O Jaguar é um símbolo de status, representa o poder de Tomás Manuel, as pessoas admiram a beleza e a potência daquele carro esportivo. Domingos, o criado, aprendera a dirigir o carro e se tornara choffeur do Delfim.

Num dos primeiros capítulos do romance ficamos sabendo que o Engenheiro afirmara que gostaria de ser enterrado na lagoa, para que não sentisse sua carne sendo comida pelos vermes da terra, se fosse necessário que o coveiro usasse escafandro para tal tarefa. Maria das Mercês considera esse desejo do marido algo estranho e esdrúxulo. A morte da mulher na lagoa simbolicamente representa o sufocamento a que essa mulher sentia na sua vida. Mulher de educação urbana e moderna não conseguia se sujeitar totalmente ao estado repressivo a que estava sujeitada.

Os cães e as aves caçadas são também evocadas como conceitos alegóricos de qualidades e defeitos dos homens.

Outros aspectos conotados na obra: o Vinho e o Whisky. A primeira bebida é usada sem, no entanto, causar maiores danos que uma série de conversas e boatos entre os freqüentadores dos bares. O Whisky, por sua vez, é a bebida predileta de Tomás Manuel e a que vai causar seus maiores destemperos e estado agressivo.

No bodégon (o café) um cartaz de um toureiro espanhol serve de motivo para que se fale dos toureiros que morreram vítima de touros, e Tomás Manuel conhece o nome desses touros.

Como observa Nelly Novaes Coelho: "O Engenheiro encarna a sobrevivência de uma mentalidade medieval: arrogante orgulho de superioridade frente aos inferiores, contraposto a um sentimental paternalismo".



ORFEU SPAM APOSTILAS

[Volta à Página Principal]

O ANJO ANCORADO - José Cardoso Pires

Em 1957, um casal burguês, João e Guida, vão num carro esportivo, um Talbot Lago a um povoado distante junto à praia, São Romão. O objetivo de João é praticar pesca submarina. João é um misto de analista lúcido e de aristocrata acomodado e apático, mas que "navega na crista da onda". Guida, jovem moderna, lúcida, racional. Ambos da geração de pós-guerra. A certa altura conversam sobre o que faziam em 1945 (ano que indica o fim da II Guerra Mundial). João e Guida representam a elite. Nas conversas do casal são citados vários artistas e escritores: Van Gogh, Van Dyck, Fernando Pessoa, Calder, Hyeronimus Bosch e citam lugares que viajaram pela Europa.

No povoado enquanto João se prepara para mergulhar conhecem um menino que tenta vender rendas, um velho ladino que caça um filhote de perdigoto e Ernestina, a moça que faz as rendas.Essas personagens representam a pobreza e o círculo pequeno de relações sociais que existem no povoado de São Romão.

O menino consegue vender rendas para o casal burguês, João paga-lhe dez escudos (uma ninharia) mais para que pare de segui-lo do que pela renda em si que ainda tem que ser feita por Ernestina, é uma venda por encomenda.

O velho consegue com muito esforço pegar o filhote de perdigoto, ao passar diante do casal, Guida sente dó pela pureza e fragilidade do animalzinho e diante da afirmação do velho de que naquele povoado, costumam os habitantes comer perdigotos, mesmo ainda filhotes, convence João a comprar o filhote. O plano de Guida é soltá-lo na mata quando saírem do povoado. Porém, quando o fazem, o velho já desconfiado disso, estava à espreita para pegar novamente o animalzinho. Guida fica a amaldiçoar o velho e quisera voltar à vila e brigar com o velho, mas João segue seu caminho rumo à Lisboa levando como resultado da caça submarina um enorme mero, peixe grande de águas mais fundas e que causara espanto e admiração no povoado





ORFEU SPAM APOSTILAS

[Volta à Página Principal]

Cerromaior - Manuel da Fonseca (resumo)

Adriano, personagem principal, inicia o romance na cadeia e numa seqüência de flash backs voltamos ao passado e ao final temos a cena de Adriano entrando na cela.

Cerromaior é o nome da vila em que vive Adriano. Doninha, o carteiro enlouquecido, grita lá fora, no Paço do Concelho e Adriano se ergue para tentar vê-lo das grades. Adriano vai lembrando e narrando o seu passado e isso vai criando uma tomada de consciência da própria personagem. Cerromaior é uma vila interiorana de Portugal, marcada pelo marasmo, pela sonolência, pelo isolamento e pela solidão.

Adriano, órfão, herdeiro da Casa Vã, tem como condição social o pertencer a dos proprietários de terras. Sua prima, Lena, irmã de Carlos Runa, é um dos seus casos amorosos. D. Céu, mulher casada, é outro caso amoroso e Antoninha, criada, órfã como Adriano, mas de condição social inferior é a outra mulher de sua vida amorosa.

Adriano não se sente realizado em nenhum desses casos amorosos.

Por outro lado, por influência da pouca lembrança que tem da mãe, que lhe falava acerca da justiça com que se devia tratar os pobres, e de como se devia buscar diminuir a miséria, o personagem principal vai desenvolvendo um comportamento de aproximação com os pobres ceifeiros, compreendendo-lhes as dores e a opressão do sistema em que vivem. O Maltês, Valmansinho, Tónio Revel são personagens que representam os miseráveis ceifeiros.

Cria-se um conflito entre os donos de terra e os trabalhadores rurais e o modo como Adriano se aproxima dos pobres, faz com que Carlos Runa o repreenda perguntando inclusive se havia bandeado de lado. Numa ocasião, em que os ânimos estavam mais exaltados, um ceifeiro agride Carlos Runa. O ceifeiro é levado preso e um soldado espanca o ceifeiro, Adriano intercede, agride o soldado e dá fuga ao ceifeiro. Por esse motivo Adriano é preso.O romance vai assim demonstrando o conflito de classes no âmbito rural da vila de Cerromaior. Adriano é o herói problemático que não se adapta ao meio e como resultado disso tende a ser reprimido pelos membros de sua própria classe social. Os amores que não lhe trazem satisfação, a ausência dos pais, o comportamento explorador dos primos, principalmente de Carlos Runa, tudo faz com que o Adriano se sinta desajustando no seu meio.



ORFEU SPAM APOSTILAS

[Volta à Página Principal]

POESIA NEO-REALISTA PORTUGUESA

João José Cochofel

João José Cochofel (1919-1982) natural de Coimbra onde se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas.

Algumas das suas obras: Os Dias Íntimos, poesia, Coimbra, 1950; Uma Rosa no Tempo, poesia, Lisboa, 1970; Obra Poética, Lisboa, 1988

Joaquim Namorado

Joaquim Namorado (1914-1986) nasceu em Alter do Chão, Alentejo. Licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Unviersidade de Coimbra, dedicando-se ao ensino. Notabilizou-se como poeta neo-realista, tendo colaborado nas revistas Seara Nova, Sol Nascente, Vértice, etc. Obras poéticas: Aviso à Navegação (1941), Incomodidade (1945), A Poesia Necessária (1966). Ensaio: Uma Poética da Culutra (1994).

José Gomes Ferreira

José Gomes Ferreira (1900-1985) nasceu no Porto e faleceu em Lisboa. Foi poeta e ficcionista, tendo evoluído de um romantismo saudosista para uma postura literária de algum modo ligada ao Neo-realismo. A sua poesia encontra-se reunida em Poesia Militante (volumes I, II e III). Aventuras de João Sem Medo (histórias humorísticas do mundo juvenil), Tempo Escandinavo (contos, 1969) e O Sabor das Trevas (romance-alegoria, 1976) são algumas das suas obras de ficção. Dedicou-se igualmente à literatura de memórias, tendo escrito: Imitação dos Dias - Diário Inventado (1965), A Memória das Palavras ou o Gosto de Falar de Mim (1965), Calçada do Sol (1983), Dias Comuns - I. Passos Efémeros (obra póstuma, 1990), Dias Comuns - II. A Idade do Malogro (obra póstuma, 1998).

Manuel da Fonseca

Manuel Dias da Fonseca nasceu no dia 15 de Outubro de 1911 em Santiago do Cacém e faleceu no dia 11 de Março de 1993. Fez os estudos secundários em Lisboa, tendo-se dedicado desde cedo ao jornalismo. Colaborou em várias publicações, de que se destacam as revistas Afinidades, Altitude, Árvore, Vértice e os jornais O Diabo e Diário. Juntou-se ao grupo de escritores neo-realistas que publicaram no Novo Cancioneiro. Estreou-se em livro com a colectânea poética Rosa dos Ventos (1940). Publicou ainda, em poesia, as seguintes obras: Planície (1941), Poemas Completos (1958) e Poemas Dispersos (1958). Em ficção, publicou: Aldeia Nova (contos, 1942), Cerromaior (romance, 1943), O Fogo e as Cinzas (contos, 1951), Seara de Vento (romance, 1958), Um Anjo no Trapézio (novela e contos, 1968), Tempo de Solidão (contos, 1973). Publicou ainda a colectânea de crónicas intitulada Crónicas Algarvias (1986).

Carlos de Oliveira

Carlos de Oliveira (1921-1981) nasceu em Belém do Pará, Brasil, e faleceu em Lisboa. Licenciou-se na Universidade de Coimbra em Ciências Histórico-Filosóficas. A sua obra poética e ficcional centra-se na vida campestre. Obras poéticas: Turismo (1942), Mãe Pobre (1945), Descida aos Infernos (1949), Terra de harmonia (1950), Cantata (1960), Sobre o Lado Esquerdo (1968), Micropaisagem (1969), Entre Duas Memórias (1971), Trabalho Poético (2 vols., 1977-1978), Pastoral (1977). Obras de ficção: Casa na Duna (1943), Alcateia (1944), Pequenos Burgueses (1948), Uma Abelha na Chuva (1953), Finisterra (1978). Crónicas: O Aprendiz de Feiticeiro (1971).

O Verão estala por todos os poros
da casca das árvores,
da língua dos cães,
das asas das cigarras,
do bico do peito das mulheres
tão acerado
que rasga o céu de calor
com um golpe preciso
de lanceta.
João José Cochofel,
In Quatro Andamentos, 1964.

******

Paraíso Perdido

Que vens aqui fazer, espírito velho
de tudo o que foi perdido
e nunca mais achei?

Então...
ainda eu olhava o mundo
com meus olhos de manhãs azuis,
e nos lábios
havia ainda a ternura dos beijos moços como a relva dos [prados.

Foi mais tarde...
que a vida me entardeceu.

(Tardes enevoadas e frias,
abandonadas,
ermas
tristes como eu... )
Foi mais tarde...
que a tal desgraça se deu.

João José Cochofel.

******

Os Dias Íntimos

Mói música um realejo,

poético de convenção.

Mas é hoje o que agrada

ao meu coração.

Com castanhas assadas,

chuva na imaginação,

e luzes molhadas

no asfalto do chão,

Egoísmo de bicho,

simulado ou não,

mas que bem me sabe

esta solidão.

Ó comedida felicidade,

com teu ópio vão

sobre tanta náusea

passa a tua mão.

João José Cochofel

******

Pórtico

Outros serão

os poetas da força e da ousadia.

Para mim

- ficará a delicadeza dos instantes que fogem

a inutilidade das lágrimas que rolam

a alegria sem motivo duma manhã de sol

o encantamento das tardes mornas

a calma dos beijos longos.

(Um ócio grande. Morre tudo

dum morrer suave e brando...

Que os outros fiquem com o seu fel

as suas imprecações

o seu sarcasmo.

Para mim

será esta melancolia mansa

que me é dada pela certeza de saber

que a culpa é sempre minha

se as lágrimas correm ...

João José Cochofel

******

Legenda para a vida
de um vagabundo

Nasci vagabundo em qualquer país, minhas fronteiras são as do mundo. Esta sina vem-me no sangue:
não me fartar! Um desejo morto,
mais de dez a matar.

O caminho é longo!…
-- Mas nada é longe e distante
quando se quer realmente…
E nunca o cansaço é tão grande
que um passo mais senão possa dar.

Joaquim Namorado

******

Mania das Grandezas

Pois bem, confesso:

fui eu quem destruiu as Babilônias

e descobriu a pólvora...

Acredite,

a estrela Sírius, de primeira grandeza,

(única no mercado)

deixou-me meu tio-avô em testamento.

No meu bolso esconde-se o segredo

das alquimias

e a metafísica das religiões

-- tudo por inspiração!

Que querem?

Sou poeta

e tenho a mania das grandezas...

Talvez ainda venha a ser Presidente da República...

Joaquim Namorado

******

ARS

Os muros brancos da indiferença

desafiam os pintores

a pintar neles a esperança

amarelos sóis girando

roxos violetas azuis

gente animais árvores flores

como há e não há inventados

largas janelas abertas

para a vida e para o sonho

vermelhos entusiasmos

castanhos terra serenos

verdes e verdes terrenos

de horizontes rasgados

onde caibam os países

e os continentes e os mares ainda por descobrir

e o homem caiba inteiro

na verdadeira grandeza

em profundas perspectivas

tudo o que é grande e pequeno

dos outros o que a nós pertence

de nós o que a todos damos

a noite intensa povoada de sóis

que outros dias iluminam

a esperança neles pintada

a Paz o Pão o Amor.

E nas mansardas escuras

com os brancos muros em frente

da gelada indiferença

os artistas febris

esboçam em traços difusos

a própria morte do sonho.

Mas já na sombra da sombra

que sobre os brancos muros se estende

O coro das carpideiras

tece flores de retórica

para coroar-lhes as caveiras

e os conservadores misantropos

dos museus do que já foi

fazem o espólio das artes

com requintes de molduras.

Nos muros brancos da indiferença

gela o frio esquecimento…

Joaquim Namorado

*******

Manhã de Abril

Olho o céu nas poças da rua
que a chuva de ontem deixou,
como pássaros verdes as primeiras folhas
empoleiram-se nos ramos enegrecidos a do inverno
e o sol entorna sobre o casario miserável
uma chuva de falso oiro.
Que raiva me dá...
Foi hoje a enterrar aquela miúda loura
que via brincar na rua
com as tranças apertadas nos laços vermelhos
- morressem antes os velhos
que da vida nada esperam,
já sem amor, já sem esperança,
roídos de chagas e da lepra dos dias.
que não morresse ninguém, valá!
mas ela...
levaram-lhe flores os outros meninos da rua,
iam contentes como para uma festa,
e a mãe atrás do caixão chorando,
e as folhas verdes
e as flores nos canteiros e nas janelas
como se florir fosse uma coisa natural e inevitável
e o velho mendigo cego estendendo a mão,
e a gente educada tirando o chapéu por hábito...

Que raiva me dá a Primavera sobre a dor do Mundo!

Joaquim Namorado

*********

SONETO FIEL

Vocábulos de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que têm se é beleza.

O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.

As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me nas mãos desde o início.

O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
a noite que cercou o meu ofício.

Carlos de Oliveira

*******

CARTA DA INFÂNCIA

Amigo Luar:
Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
e eu nem sequer tenho duas estrelas nos meus olhos.
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te oiço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.

Carlos de Oliveira
Trabalho Poético
Lisboa, Sá da Costa, 1998 (3ª ed.).

*********

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os [dias
(O soneto que só errado ficou certo)
Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os [dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva

José Gomes Ferreira
*******
Entrei no café com um rio na algibeira

Entrei no café com um rio na algibeira

e pu-lo no chão,

a vê-lo correr

da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do colete

nuvens e estrelas

e estendi um tapete

de flores

a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,

tirei da boca um pássaro a cantar

e enfeitei com ele a Natureza

das árvores em torno

a cheirarem ao luar

que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir

A melodia sem contorno

Deste acaso de existir

-onde só procuro a Beleza

para me iludir

dum destino.

José Gomes Ferreira

********

Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?

Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.

José Gomes Ferreira

*******

O amor que sinto

O amor que sinto

é um labirinto.

Nele me perdi

com o coração

cheio de ter fome

do mundo e de ti

(sabes o teu nome),

sombra necessária

de um Sol que não vejo,

onde cabe o pária,

a Revolução

e a Reforma Agrária

sonho do Alentejo.

Só assim me pinto

neste Amor que sinto.

Amor que me fere,

chame-se mulher,

onda de veludo,

pátria mal-amada,

chame-se "amar nada"

chame-se "amar tudo".

E porque não minto

sou um labirinto.

José Gomes Ferreira

********

O general

("Depois de fortemente bombardeada, a cidade X foi ocupada pelas nossas tropas.")

O general entrou na cidade

ao som de cornetas e tambores ...

Mas por que não há "vivas"

nem flores?

Onde está a multidão

para o aplaudir, em filas na rua?

E este silêncio

Caiu de alguma cidade da Lua?

Só mortos por toda a parte.

Mortos nas árvores e nas telhas,

nas pedras e nas grades,

nos muros e nos canos ...

Mortos a enfeitarem as varandas

de colchas sangrentas

com franjas de mãos ...

Mortos nas goteiras.

Mortos nas nuvens.

Mortos no Sol.

E prédios cobertos de mortos.

E o céu forrado de pele de mortos.

E o universo todo a desabar cadáveres.

Mortos, mortos, mortos, mortos ...

Eh! levantai-vos das sarjetas

e vinde aplaudir o general

que entrou agora mesmo na cidade,

ao som de tambores e de cornetas!

Levantai-vos!

É preciso continuar a fingir vida,

E, para multidão, para dar palmas,

até os mortos servem,

sem o peso das almas.

José Gomes Ferreira

********

Homens do futuro

Homens do futuro:

ouvi, ouvi este poeta ignorado

que cá de longe fechado numa gaveta

no suor do século vinte

rodeado de chamas e de trovões,

vai atirar para o mundo

versos duros e sonâmbulos como eu.

Versos afiados como dentes duma serra em mãos de injúria.

Versos agrestes como azorragues de nojo.

Versos rudes como machados de decepar.

Versos de lâmina contra a Paisagem do mundo

-- essa prostituta que parece andar às ordens dos ricos

para adormecer os poetas.

Fora, fora do planeta,

tu, mulher lânguida

de braços verdes

e cantos de pássaros no coração!

Fora, fora as árvores inúteis

-- ninfas paradas

para o cio dos faunos

escondidos no vento...

Fora, fora o céu

com nuvens onde não há chuva

mas cores para quadros de exposição!

Fora, fora os poentes

com sangue sem cadáveres

a iludiremos de campos de batalha suspensos!

Fora, fora as rosas vermelhas,

flâmulas de revolta para enterros na primavera

dos revolucionários mortos na cama!

Fora, fora as fontes

com água envenenada da solidão

para adormecer o desespero dos homens!

Fora, fora as heras nos muros

a vestirem de luz verde as sombras dos nossos mortos sempre

de pé!

Fora, fora os rios

a esquecerem-nos as lágrimas dos pobres!

Fora, fora as papoilas,

tão contentes de parecerem o rosto de sangue heróico dum

fantasma ferido!

Fora, fora tudo o que amoleça de afrodites

a teima das nossas garras

curvas de futuro!

Fora! Fora! Fora! Fora!

Deixem-nos o planeta descarnado e áspero

para vermos bem os esqueletos de tudo, até das nuvens.

Deixem-nos um planeta sem vales rumorosos de ecos [úmidos

nem mulheres de flores nas planícies estendidas.

Uma planeta feito de lágrimas e montes de sucata

com morcegos a trazerem nas asas a penumbra das tocas.

E estrelas que rompem do ferro fundente dos fornos!

E cavalos negros nas nuvens de fumo das fábricas!

E flores de punhos cerrados das multidões em alma!

E barracões, e vielas, e vícios, e escravos

a suarem um simulacro de vida

entre bolor, fome, mãos de súplica e cadáveres,

montes de cadáveres, milhões de cadáveres, silêncios de [cadáveres

e pedras!

Deixem-nos um planeta sem árvores de estrelas

a nós os poetas que estrangulamos os pássaros

para ouvirmos mais alto o silêncio dos homens

-- terríveis, à espera, na sombra do chão

sujo da nossa morte.

José Gomes Ferreira

*********

Poema da Menina Tonta

A menina tonta passa metade do dia

a namorar quem passa na rua,

que a outra metade fica

p'ra namorar-se ao espelho.

A menina tonta tem olhos de retrós preto,

cabelos de linha de bordar,

e a boca é um pedaço de qualquer tecido vermelho.

A menina tonta tem vestidos de seda

e sapatos de seda,

é toda fria, fria como a seda:

as olheiras postiças de crepe amarrotado,

as mãos viúvas entre flores emurchecidas,

caídas da janela,

desfolham pétalas de papel...

No passeio em frente estão os namorados

com os olhos cansados de esperar

com os braços cansados de acenar

com a boca cansada de pedir...

A menina tonta tem coração sem corda

a boca sem desejos

os olhos sem luz...

E os namorados cansados de namorar...

Eles não sabem que a menina tonta

tem a cabeça cheia de farelos.

Manuel da Fonseca

*********

Ruas da Cidade

Na noite calada e quieta como um grande segredo,

andando ao deus-dará nestas ruas desertas,

saio lá do fundo do meu sonho

e olho ao redor de mim.

Cá fora há tudo o que não é do meu sonho:

o frio, e os altos prédios fechados,

e as ruas mortas como paisagem de cemitérios.

E a claridade fugidia dos candeeiros cansados,

como pálpebras que se vão fechar.

E o torpor saindo de todas as coisas

e pairando no ar, como um desmaio iminente...

Só eu ainda tenho passos para andar

e uma não sei que ternura

para todos que estão, para lá das paredes

adormecidos e descuidados

à morte que espreita escondida no mistério da noite...

Em que casa e andar estará dormindo

aquela de quem não sei o nome nem a vida,

mas descobri a cor dos cabelos e a melodia do corpo

quando nos cruzamos esta manhã?

Nesse momento,

ou fosse porque chovia sol sobre a algazarra de gestos

das gentes que iam e vinham e se falavam e continuavam

ou porque nos olhássemos de certa maneira que não [saberei contar,

mesmo de longe, dissemos com os olhos, um para o outro

-- Hoje é um dia de glória!

Mas tão estranho me pareceu

aquele milagre entre dois desconhecidos,

que nem voltei a cabeça para trás...

Agora este desânimo sem nome

de quem traiu um dia inteiro de vida

e teima ir pela noite dentro

à espera nem sabe de quê ...

De tantas horas iguais estou farto!

Mas ao fim e sempre a mesma esperança:

"um dia virá..."

E eu que tenho a vida desarrumada

como se fosse um milionário bêbado,

ergo-me e saio para a rua deslumbrado

e ressuscitado, todos os dias, ao amanhecer.

E vai a coisa tão certa como uma religião,

quanto pressinto que me olham de todas as caras

como se espiassem um louco...

Onde estão ouvidos que entendam as minhas falas?

E a noite vem encontrar-me deserto e abandonado...

Ah, um dia, quando a morte chegar,

hei de erguer para ela os meus olhos molhados,

e hei de contar-lhe a indiferença do mundo

e a amargura dos altos sonhos desfeitos...

-- assim como um menino fazendo queixas a sua mãe.

Manuel da Fonseca

********

Romance do Terceiro Oficial de Finanças

Ah! as coisas incríveis que eu te contava

assim misturadas com luas e estrelas

e a voz vagarosa como o andar da noite!

As coisas incríveis que eu te contava

e me deixavam hirto de surpresa

na solidão da vila quieta!...

Que eu vinha alta noite

como quem vem de longe

e sabe os segredos dos grandes silêncios

-- os meus braços no jeito de pedir

e os meus olhos pedindo

o corpo que tu mal debruçavas da varanda!...

(As coisas incríveis eu só as contava

depois de as ouvir do teu corpo, da noite

e da estrela, por cima dos teus cabelos.

Aquela estrela que parecia de propósito para enfeitar os teus cabelos

quando eu ia nomarar-te...)

Mas tudo isso, que era tudo para nós,

não era nada na vida!...

Da vida é isto que a vida faz.

Ah! sim, isto que a vida faz!

-- isto de tu seres a esposa séria e triste

de um terceiro oficial de finanças da Câmara Municipal!...

Manuel da Fonseca

******

Nenhum comentário:

Postar um comentário