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terça-feira, 7 de abril de 2009

Literatura contemporanêa


ORFEU SPAM APOSTILAS

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Alexandre O'Neil

Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões (1924-1986) nasceu e faleceu em Lisboa. Dedicou-se à publicidade e desde cedo se juntou às primeiras manifestações do Surrealismo em Portugal. Publica em 1948, e dentro desta corrente, o volume de colagens A Ampola Miraculosa, integrado na colecção dos Cadernos Surrealistas. Afasta-se do grupo surrealista e colabora nos Cadernos de Poesia. Obras: No Reino da Dinamarca (1958), Abandono Vigiado (1960), Poemas com Endereço (1962), Feira Cabisbaixa (1965), De Ombro na Ombreira (1969), As Andorinhas não têm Restaurante (1970), Entre a Cortina e a Vidraça (1972), A Saca de Orelhas (1979), Uma Coisa em Forma de Assim (1980), As Horas já de Números Vestidas (1981).

Redacção
Uma senhora pediu-me
um poema de amor.

Não de amor por ela,
mas «de amor, de amor».

À parte aquelas
trivialidades «minha rosa, lua do meu céu interior»
que podia eu dizer
para ela, a não destinatária,
que não fosse por ela?

Sem objecto, o poema
é uma redacção
dos 100 Modelos
de Cartas de Amor.

Amigo

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra «amigo».

«Amigo» é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

«Amigo» (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
«Amigo» é o contrário de inimigo!
«Amigo» é o erro corrigido,

Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

«Amigo» é a solidão derrotada!

«Amigo» é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
«Amigo» vai ser, é já uma grande festa!


FALA!

Fala a sério e fala no gozo
fá-la p'la calada e fala claro
fala deveras saboroso
fala barato e fala caro

Fala ao ouvido fala ao coração
falinhas mansas ou palavrão
Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe
Fala franciú fala béu-béu
Fala fininho e fala grosso
desentulha a garganta levanta o pescoço
Fala como se falar fosse andar
fala com elegência muita e devagar.

Há Palavras Que Nos Beijam

Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca,

Palavras de amor, de esperança,

De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas

Quando a noite perde o rosto,

Palavras que se recusam

Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas

Entre palavras sem cor,

Esperadas, inesperadas

Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama

Letra a letra revelado

No mármore distraído,

No papel abandonado)

Palavras que nos transportam

Aonde a noite é mais forte,

Ao silêncio dos amantes

Soneto a duas mãos

A mão que me sustenta e eu sustento

é mão capaz das vinte e cinco linhas

e do selado azul de um requerimento

ou doutras diligências comesinhas...

Habituada por secretarias,

esperta, decidiu de um grave acento,

a vírgulas guindou torpes cedilhas

e mastigou papel, seu alimento...

Contraiu calos, revoltou-se às vezes,

contra certos despachos, tão soezes

que até o dedo auricular se ria...

Com dois dedos de aumento se curvava

e logo, altiva, à esquerda se mostrava... Agora?

Estão as duas na poesia...

Inventário

Um dente d'ouro a rir dos panfletos

Um marido afinal ignorante

Dois corvos mesmo muito pretos

Um polícia que diz que garante

A costureira muito desgraçada

Uma máquina infernal de fazer fumo

Um professor que não sabe quase nada

Um colossalmente bom aluno

Um revolver já desiludido

Uma criança doida de alegria

Um imenso tempo perdido

Um adepto da simetria

Um conde que cora ao ser condecorado

Um homem que ri de tristeza

Um amante perdido encontrado

Um gafanhoto chamado surpresa

O desertor cantando no coreto

Um malandrão que vem pe-ante-pé

Um senhor vestidíssimo de preto

Um organista que perde a fé

Um sujeito enganando os amorosos

Um cachimbo cantando a marselhesa

Dois detidos de fato perigosos

Um instantinho de beleza

Um octogenário divertido

Um menino coleccionando estampas

Um congressista que diz Eu não prossigo

Uma velha que morre a páginas tantas

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos

vigora ainda o mais rigoroso amor

a luz dos ombros pura e a sombra

duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo

à roda em que apodreço

apodrecemos

a esta pata ensanguentada que vacila

quase medita

e avança mugindo pelo túnel

de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira

onde passo o dia burocrático

o dia-a-dia da miséria

que sobe aos olhos vem às mãos

aos sorrisos

ao amor mal soletrado

à estupidez ao desespero sem boca

ao medo perfilado

à alegria sonâmbula à vírgula maníaca

do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo

em trânsito mortal até ao dia sórdido

canino

policial

até ao dia que não vem da promessa

puríssima da madrugada

mas da miséria de uma noite gerada

por um dia igual

Não podias ficar presa comigo

à pequena dor que cada um de nós

traz docemente pela mão

a esta pequena dor à portuguesa

tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces

esta roda de náusea em que giramos

até à idiotia

esta pequena morte

e o seu minucioso e porco ritual

esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira

da cidade onde o amor encontra as suas ruas

e o cemitério ardente

da sua morte

tu és da cidade onde vives por um fio

de puro acaso

onde morres ou vives não de asfixia

mas às mãos de uma aventura de um comércio puro

sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante

que vai ser que já é o teu desaparecimento

digo-te adeus

e como um adolescente

tropeço de ternura

por ti
Soneto
Sonetos garantidos por dois anos.

E é muito já, leitor que mos compraste

Para encontrar a alma, que trocaste

Por rádios, frigoríficos, enganos ...

Essa tristeza sobre pernas faz-te

Temeroso e cruel e tonto e traste.

Nem pior nem melhor que outros fulanos,

Não vês a Bomba e crês nos marcianos ...

E é para ti que escrevo, é para ti

Que um verso lanço - O mão! - como o destino,

e nele ponho mesura, desatino,

Rasgo, invenção, lugar-comum, protesto?

Antes para soldado ou para resto,

Escroto de velho, ronco de suíno ...

Velha Fábula em Bossa Nova

Minuciosa formiga

não tem que se lhe diga:

leva a sua palhinha

asinha, asinha.

Assim devera eu ser

e não esta cigarra

que se põe a cantar

e me deita a perder.

Assim devera eu ser:

de patinhas no chão,

formiguinha ao trabalho

e ao tostão.

Assim devera eu ser

se não fora

não querer.

(-Obrigado, formiga!

Mas a palha não cabe

onde você sabe...)

Gaivota

Se uma gaivota viesse

trazer-me o céu de Lisboa

no desenho que fizesse,

nesse céu onde o olhar

é uma asa que não voa,

esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração

no meu peito bateria,

meu amor na tua mão,

nessa mão onde cabia

perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,

dos sete mares andarilho,

fosse quem sabe o primeiro

a contar-me o que inventasse,

se um olhar de novo brilho

no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração

no meu peito bateria,

meu amor na tua mão,

nessa mão onde cabia

perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida

as aves todas do céu,

me dessem na despedida

o teu olhar derradeiro,

esse olhar que era só teu,

amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração

no meu peito morreria,

meu amor na tua mão,

nessa mão onde perfeito

bateu o meu coração.

A meu favor

A meu favor

Tenho o verde secreto dos teus olhos

Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor

O tapete que vai partir para o infinito

Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor

As paredes que insultam devagar

Certo refúgio acima do murmúrio

Que da vida corrente teime em vir

O barco escondido pela folhagem

O jardim onde a aventura recomeça.

Portugal

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,

linda vista para o mar,

Minho verde, Algarve de cal,

jerico rapando o espinhaço da terra,

surdo e miudinho,

moinho a braços com um vento

testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,

se fosses só o sal, o sol, o sul,

o ladino pardal,

o manso boi coloquial,

a rechinante sardinha,

a desancada varina,

o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,

a muda queixa amendoada

duns olhos pestanítidos,

se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,

o ferrugento cão asmático das praias,

o grilo engaiolado, a grila no lábio,

o calendário na parede, o emblema na lapela,

ó Portugal, se fosses só três sílabas

de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,

rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,

não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,

galo que cante a cores na minha prateleira,

alvura arrendada para ó meu devaneio,

bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,

golpe até ao osso, fome sem entretém,

perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,

rocim engraxado,

feira cabisbaixa,

meu remorso,

meu remorso de todos nós...

O tempo dum corisco

Dos turcos desce a palavra

e aqui entreluz, naufraga.

A palavra a ninguém salva.

Melhor metê-la, sem esperança,

sem recado, na garrafa.

Sempre é da minha lavra.

Duas moscas ou a mesma?

1

- Onde já vi esta mosca?

- Mas em toda a parte, filha,

desde o bolo de noivado

à minha tépida v'rilha!

2

Eis a mosca popular

aferroada aos miúdos,

avioneta escolar

para fugir aos estudos!

A saca de orelhas

Sentenças delirantes dum poeta para si próprio em tempo de cabeças pensantes

1

Não te ataques com os atacadores dos outros.

Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção.

0 mesmo deves fazer com os açaimos.

E com os botões.

2

Não te candidates, nem te demitas. Assiste.

Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira.

Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia.

3

Tira as rodas ao peixe congelado,

mas sempre na tua mão.

Depois, faz um berreiro.

Quando tiveres bastante gente à tua volta,

descongela a posta e oferece um bocado a cada um.

4

Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre

um caixote com serradura à tua espera.

Pode haver. Se houver, melhor...

Esta deve ser a tua filosofia.

5

Tudo tem os seus trâmites, meu filho!

Não faças brincos de cerejas

sem te darem, primeiro, as orelhas.

Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia.

6

Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que

te puseram em cima da cabeça?

Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.

É provável que te sintas logo muito melhor.

Sai, então, de baixo da pedra.

7

Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra.

Poderias atrapalhar os trabalhos.

Os de pedra sobre pedra, entenda-se.

Mas dá sempre um "Bom dia!" ao pessoal do estaleiro.

Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa.

8

Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre

com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo

a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia.

Oxalá o consigas!

(...)

11

Resume todas estas sentenças delirantes numa única

[sentença:

Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa





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Almeida Faria nasceu em Montemor-o-Novo (Alentejo), a 6 de Maio de 1943. Em Lisboa frequentou as Faculdades de Direito e de Letras, sendo licenciado em Filosofia, e é actualmente professor de Estética na Universidade Nova de Lisboa. Viveu como escritor residente (1968-69) nos Estados Unidos (International Writing Program, Iowa City) e em Berlim, onde fez parte do Berliner Künstlerprogram no qual participaram, entre outros, Gombrowicz, Michel Butor, Peter Handke e Mario Vargas Llosa. Tem colaborado em diversas publicações colectivas, nomeadamente em revistas alemãs, brasileiras, francesas, holandesas, italianas, suecas e norte-americanas. Os seus romances foram objecto de várias teses universitárias em Itália, Holanda, Brasil, França e, mais recentemente, também em Portugal. Em 1979 seleccionou e traduziu Poemas Políticos de Hans Magnus Enzensberger.

Ficcionista e ensaísta, Almeida Faria obteve o Prémio Revelação de Romance da Sociedade Portuguesa de Escritores com o livro Rumor Branco (1962), confirmando depois a sua maturidade literária com A Paixão (1965), primeiro romance de uma «Tetralogia Lusitana» de que fazem parte Cortes (1978) - Prémio Aquilino Ribeiro da Academia das Ciências de Lisboa, Lusitânia (1980) - Prémio Dom Dinis da Fundação da Casa de Mateus, e Cavaleiro Andante (1983) Prémio Originais de Ficção da Associação Portuguesa de Escritores. Os seus livros estão traduzidos em várias línguas.

Almeida Faria publicou ainda o conto Os Passeios do Sonhador Solitário (1982) e o ensaio Do Poeta-Pintor ao Pintor-Poeta (1988). O seu último romance, O Conquistador, foi dado à estampa em 1990. Em 1997 adaptou ao teatro o romance A Paixão, sob o título Vozes da Paixão (1998), peça que não pretende ser subsidiária do romance, até por ter sido escrita em verso livre. Nesse mesmo ano, foi estreada em Lisboa no Centro Cultural de Belém. Em 1999, na colecção "Caminho de Abril", publicou a peça intitulada A Reviravolta.

A tetralogia Lusitana

Paródia, solidão e o não-dito: a Tetralogia Lusitana de Almeida Faria

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

Tetralogia Lusitana reune um conjunto de quatro volumes, vindos a lume entre os anos de 1965 e 1983. Na obra, faz-se eco de um tempo histórico, interposto pelos acontecimentos do 25 de Abril de 1974, em Portugal, lugar simbólico com que o título genérico dos quatro romances que compõem a Tetralogia estabelece uma relação íntima, metafórica e de claro indício de que, entre outras, uma questão identidade nacional se postula. A Paixão (1965), Cortes (1978), Lusitânia (1980) e Cavaleiro Andante (1983) enunciam o relato da ficcionalização de uma era em curso que, de modo gradativo, se ampliará a outras temporalidades através de um discurso fragmentário, dominado pela intencionalidade de múltiplos referentes culturais, acabando sempre, contudo, por retomar ou evocar os caminhos de uma memória inicial, o illud tempus dos primórdios, para utilzar a expressão de M.Eliade.

O leitmotiv ficcional de toda a trama é delimitado por um núcleo doméstico, uma casa fechada sobre si própria numa vila rural, habitada por grandes proprietários alentejanos. A domus escolhida reflecte uma tradição que se esvai rapidamente, dominada que é por claros sinais de degenerescência de um determinado ciclo de poder. Ao fim e ao cabo, esse ciclo não é apenas rural e, ao longo da Tetralogia, a ideia de ruptura e de corte expandir-se-á a nível de todo o país, nomeadamente, na crise aberta pelo legado colonial, nas várias lucubrações geracionais, na hipertrofia do passado, enfim, no sonho que sucede à repetição ritual do quotidiano irremissível. Este desafio que a Tetralogia tenta pôr a nu assume sobretudo a natureza de uma desagregação, ou do percurso de um itinerário limiar onde, ao mesmo tempo que a grande casa inicial definha ou se esvai, o espaço-tempo romancesco se amplia. Deste modo, os personagens divergem, cruzam países, continentes, alteridades quase irredutíveis, de tal modo que, no palco final da Tetralogia, pouco mais emergirá que o perfil gasto de Lusitânia, uma terra inteiramente à deriva e a braços com o secreto imobilismo de séculos. No entanto, a redenção esperada caberá por inteiro à hierofania do estético, à textualização das diferentes solidões, ao testemunho epistolográfico, ou ainda ao espaço de negação subitamente instaurado nas subtis fissuras do horizonte ficcional de Almeida Faria.

Este decantar nacional e simbólico, perpassado pela tentativa de reinventar a póetica de uma qualquer pátria ideal, não se sujeita, porém, à linearidade histórica. Desde o início de Tetralogia Lusitana que variados modelos de cronotopo dominam o pano de fundo da narratividade, de que são exemplo o calendário litúrgico cristão e o desígnio mítico. Os dois primeiros volumes de Tetralogia Lusitana, A Paixão e Cortes, passam-se, respectivamente, numa Sexta-feira e num Sábado de Páscoa, projectando na existência estrita de vinte e quatro horas mundanas a alegoria silenciosa de um tempo perpétuo e sempre original. Lusitânia, por seu lado, estabelece a mediação entre os Domingos da quadra pascal de 1974 e de 1975, progredindo no mesmo tempo histórico que os dois volumes anteriores já haviam convocado e abrindo igualmente horizontes novos, próximos da revolução portuguesa, que, em Cavaleiro Andante, atingem a sua consumação mítica, intertextual e onírica. No final, a Tetralogia consuma-se em pleno Domingo de Advento, talvez porque à depuração radical acabe por suceder uma inevitável e subliminar silhueta de salvação.

O calendário litúrgico é apenas um dos elementos que torna a parascese cristã numa espécie de rede semântica com empatia mais geral no enredo e no discurso que o conta. Para além desse aspecto matricial, refiram-se ainda os personagens (os nomes escolhidos e as posturas sucessivas), mas também as alusões, as catálises e os próprios eventos nodais da diegese, enquanto amálgama expressiva de elementos codificados por uma natureza cristã. Se este testemunho paródico é evidente, associando a regeneração pascal ao prenúncio de novos tempos para o país, não menos evidente é a alba inicial de A Paixão que, por sua vez, liga a magia da terra ancestral aos seus ritos e ao puro discurso mítico da natureza, decerto anterior à conceptualização cristã. De facto, a sacralização do tempo que se enuncia no início da Tetralogia parece configurar uma espécie de discurso cristalino das origens, toldado por uma imobilidade quase sem fim:

"Será na primavera; no princípio de tudo (P,17)

"...enterram-se raízes uma a uma, em seguida regaram, regá-las-ão até aos dias sem data"(P,63)

"...festejaremos a preparação da Páscoa e após termos comido lavaremos as mãos na água da ribeira e juntos partiremos pela planície"(P,16-17)

""Eis que caminha pela manhã da névoa, quando ainda a charneca está cheia dessas aves que cantam como sendo pingos lentos que caem, e, a caminho da missa diária, assalta-o o nevoeiro" (P,50)

"...é Sexta-feira dita a santa" (P,38).

Estes registos de A Paixão celebram um autêntico advento fertilizador. Trata-se, de facto, de um culto telúrico onde se reatam ressonâncias antigas, fixadas no texto através de um cuidado ritmo de longa frase que, aqui e ali, lembra o fôlego largo de um Bernardim Ribeiro. Este eco de paisagem aberta à própria sintaxe adapta-se permanentemente ao discurso pluridimensional e de múltiplos narradores, no seio do qual os eventos ordinários ou domésticos e os extraordinários ou de ruptura se tornam consanguíneos. Com efeito, a convocação mítica perpetua a cadência do quotidiano, mas, ao mesmo tempo, a atmosfera ritual aproxima aquele da esfera profana e da acção. Este vaivém recheado de sigilosas aproximações, ou de sobreposição de diferentes níveis, garante à Tetralogia Lusitana uma leitura sempre multipolar, reforçada pelos efeitos metonímicos provenientes da contiguidade entre capítulos residuais, ou, em última análise, entre os quatros volumes que a compõem (num traçado de verdadeira obra aberta).

A partir de Lusitânia desperta quase obsessivamente um novo tipo de enunciado no discurso da Tetralogia. Trata-se do enunciado epistolográfico que, ao retomar cenários romanescos das luzes gaulesas, acaba aqui por votar os personagens a uma clausura implorativa, solitária, fechada à nudez da voz. Deste modo, o ruído do presente revolucionário surge-nos dissuadido ou iludido, quando não arrastado pela mais pura catarse estético-onírica e, no caso dos personagens mais jovens, Jô e Tiago, transposta até ao limiar da fantasmagoria paródica dos Romances de Cavalaria. O progressivo alargar do corpus mítico-ficcional e dos seus arquitextos, a par de uma abordagem subjacente da inquietações identitárias portuguesas, constituirá o caudal último que, no termo da Tetralogia Lusitana, assiste aos mais diversos e simultâneos clímaxes, abertos desenlaces e territórios do não-dito. Coincidirão nesse termo (algo indefinido e sobretudo des-diferenciado) a morte exorcizante de André, o relato indirecto do golpe militar do 25 de Novembro (com que a crise revolucionária se ultima); a independência de Angola (marca simbólica do fim do império) e a própria morte de Galaaz (no discurso onírico de Jô), para além do Domingo de Advento (que, de certo modo, sinaliza a pródiga alba mítica com que tudo afinal se iniciara).

O intertexto histórico-literário constitui-se, ao longo de toda a Tetralogia Lusitana, como uma cenografia que certifica e até confirma o desconcerto súbito de valores, as interrogaçõe perenes e a rota das grandes alteridades do mundo e da vida. No âmbito de uma tal cenografia simbólica, Veneza aparece, precisamente a meio da Tetralogia, como a silhueta mais adequada para a divagação sobre a fidelidade, o amor, as senhas de um Portugal longínquo e conturbado, o cosmopolitismo estético e sobretudo as várias vias que opõem os destinos do mundo aos destinos individuais.

O tempo com que se encerra a Tetralogia Lusitana é um tempo em suspenso, embora, até Cortes, algumas esperanças se pudessem associar claramente ao itinerário dos personagens. Contudo, as diferentes quêtes da Tetralogia acabarão por esvair esses sentidos de esperança, sobretudo no momento em que a emergência do tempo histórico, evocado em Lusitânia, acaba por colocar os personagens à deriva, sem serem capazes de controlar a roda do destino e isolando-se em cidades vazias ou transfiguradas pelo que Saint-John Perse definiu como "citadelles démantelées au son des flûtes de guerre"(s/d:183). As demandas pelo paraíso impossível, as súbitas fendas de identidade, a memória atraiçoada, os sonhos terríveis parecem então passar a dominar a cadência ficcional da Tetralogia. No entanto, a essa aparente e progressiva aparição meteórica, vem-se justapor uma postura de preservação, mediada pela discussão estética e pelo desígnio da perfeição, de que Marta e JC, como personagens, e a cadência descritiva enquanto elo discursivo, são os mais directos agentes. Esta necessidade de preservação pode ser entendida como uma espécie de presente ideal que urge subitamente tornar habitável, possível e realizável, acabando, no final do relato da Tetralogia, por assumir sentidos de um certo misticismo próprio dos poetas românticos e até do expressionismo alemão (a noite, o mistério, a revelação, ou a demanda isolada no meio do mais informe dos caos).

É justamente esta justaposição de ângulos que está na base do cronotopo do limiar que assiste a toda a Tetralogia: até Lusitânia, o futuro submete-se a uma aparente, mas inevitável, progressão (acabando até por gerar uma dada ética liberdadora, sobretudo através dos actos e do destino de JC); a partir desse volume, o futuro é praticamente deposto, assumindo a dimensão de uma ameaça, de um precipício talvez mais imanente do que iminente (acabando por gerar posturas e enunciados mais ligados intimidade, ao ser dos personagens e ao seu destino nas malhas desordenadas do mundo).

Neste quadro, são de especial importância os registos discursivos que, de variadas formas, questionam a identidade nacional. Esta ensaística subjacente à ficção propaga-se a partir da fuga de JC da sua casa inicial (em A Paixão) e adquire uma intensidade muito particular, quando a acção da Tetralogia se desdobra para além das fronteiras do país. Nas próximas páginas analisaremos esse conjunto fragmentário de registos, bem como uma outra ensaística, essa de natureza estética, que, de modo também tansversal, contribui para cimentar e orientar os caminhos da diegese da Tetralogia Lusitana. Por outro lado, daremos atenção a alguns aspectos da onírica fabular de Jô e Tiago, assim como a certos aspectos discursivos de fundamental importância para a narrativa de Almeida Faria (o fragmento, a epistolografia, a paródia, etc). Por fim, precedendo as áreas conclusivas que tentarão pôr a nu o possível risoma de sentidos unificadores da Tetralogia, dedicaremos algum espaço às variadas temporalidades que, no decurso da Tetralogia Lusitana, cruzam constantemente o enigma e o quotidiano, o signo e o segno (o que não corresponde à ordem natural das coisas), o desígnio de perfectibilidade e a crise.

O Cavaleiro Andante

Personagens:

João Carlos ou J.C.: fez 20 anos em maio de 1975 é o terceiro filho de Francisco e Marina.

Marta: tem dezoito anos e namora João Carlos, apesar de ter decidido viver em Veneza quando o namorado regressou a Portugal.

Marina: 50 anos, mãe de André, Arminda, João Carlos, Jó e Tiago.

André: 23 anos, namora Sónia, vai ter com ela a Angola, após trabalhar no Brasil.

Sónia: 21 anos, nasceu em Angola, de pais portugueses, estudava em Lisboa em Abril de 1974, mas voltou a Luanda logo que a Revolução de Abril abriu novas perspectivas ao seu país.

Jó (diminutivo de Jerónimo), tem 13 anos e foi ele quem, no ano passado, descobriu o cadáver do pai assassinado.

Tiago: 12 anos, é o Benjamin e talvez o maus perturbado pela morte do pai.

Arminda: 21 anos, estuda na Faculdade de Letras de Lisboa, namora Samuel e é amiga de Sónia.

Enredo:

Romance de característica epistolar, em que se destacam as cartas trocadas entre os casais de namorados JC e Marta e André e Sónia. O par JC/Marta tem cartas de caráter dominado pelo tom artístico e literário. Marta está estudando arte em Veneza, hospedada no palácio do nobre italiano Carlo Ítalo. JC é comissário de bordo de uma companhia aérea e vive a voar pelos ares da Europa. As cartas desses dois personagens são marcadas por várias referências de obras e autores das artes e da literatura. Marta acaba confessando a JC o assédio que vem sofrendo de Carlo Ítalo, mas intenta permanecer fiel à espera da volta do amado. O par André e Sónia tem o enfoque na questão política e social. Sónia volta a Luanda para participar da luta de independência do país. André vai em busca de Sónia, passa também pelo Brasil em busca de trabalho, conhece um terreiro de umbanda. Para manter o tom de romance epistolar, ainda existe no romance uma página de diário de Marina, uma redação de Tiago. Completam a estrutura do romance os sonhos e divagações da imaginação de Jó, Tiago. Alguns capítulos que se compõem de pensamentos de Marina. A leitura do romance busca demonstrar o distanciamento e a diáspora da família do clã de Montemínimo, ocorrida principalmente após a revolução dos cravos e a morte do pai.

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Os cus de Judas - Antonio Lobo Antune -Resumo

Seis anos após o término da guerra colonial, é lançado Os Cus de Judas, de Antonio Lobo Antunes que conta a trajetória de um soldado português que servira o exército colonial em Angola e, a partir desse contacto com a situação em África, vê sua vida, seus valores sendo destruídos.

Segundo o autor, em entrevista publicada em Lisboa em abril de 1994, o livro é parte de uma trilogia que inclui Memória de Elefante (anterior) e, Conhecimento do Inferno (posterior) a obra em questão. O retrato da guerra colonial é a marca dessa etapa ou ciclo de sua vida, como ele mesmo afirma.

O texto de Antunes não se enquadra no gênero de narrativa de viagem tal como é concebido pela literatura moderna, entretanto, é possível a leitura de um discurso de viagem apanhado de viés, ou seja; a desconstrução ou a ante-viagem (se é que podemos utilizar esses termos) , visto sob a óptica de uma simbologia atual.

Discutir o tema da viagem como resgate de uma experiência humana dolorosa, num cenário em que os atores não dialogam amigavelmente, não desejam trocas de experiências culturais e, se sobreviverem, trarão no corpo as marcas de uma guerra fratricida, é o cerne dessa comunicação.

Os oceanos Índico e Atlântico, palco da aventura marítima lusitana, caminhos líquidos por onde a língua portuguesa navegou, aportando em outras terras, conforme palavras de Carmen Lucia Tindó Ribeiro, remete-nos à Camões, observando que a viagem como aventura em busca do desconhecido era algo assustador, porém, desejável para aqueles intrépidos destemidos navegantes. O poeta maior da Nação lusitana exaltava no Canto Primeiro de sua obra prima:

I
As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram

II
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando
Cantando espalharei por toda parte
Se a tanto me ajudar o engenho e arte

Os feitos grandiosos, de que nos fala o poeta, dos heróis navegantes portugueses, que realmente fundaram novo reino em África, ao apagar das luzes do século XX, adquiriu outros sabores e outros contornos. A par da história recente dos países africanos colonizados por Portugal e, ao contrário da viagem desejável, temos em Os cus de Judas, a viagem indesejada, de uma personagem que absolutamente odeia a colônia (Angola) e, os colonizadores que 'inventaram a guerra', nos territórios ultramarinos.

Optamos, fazendo um recorte necessário, destacar alguns pontos da viagem histórica a que eram submetidos os soldados portugueses comparando-a com a viagem literária da personagem de Lobo Antunes.

"A viagem para África começava muito antes do embarque. O processo que levava um jovem até Angola, Guiné ou Moçambique iniciava-se habitualmente logo após o final da instrução da especialidade."Jl

A personagem não nomeada de Antunes é incitada por membros de sua família, tradicional portuguesa, a acreditar que o exército fabrica homens de verdade. As maiores virtudes tais como; valentia, honestidade, caráter entre outras, são atributos da farda, não do homem.

"Estás magro (...) . Felizmente que a tropa há de torná-lo homem. ( Os cus de Judas pág.12)

Numa crescente angústia o soldado mobilizado para combater em terras de além-mar, vai sendo conduzido, como um boi para o abatedor. Imagens do navio se afastando do cais a incerteza da volta, o choro, as lágrimas, talvez a última visão da cidade vão sendo retratadas.

"...Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada vez mais atenuado de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostos trágicos e imóveis da despedida..." (idem, pág. 16)

Porém, nem todos os que eram mobilizados deixavam-se levar nessa viagem quase suicida. Registros militares davam conta de um sem números de faltosos por ocasião da chamada para o engajamento final. O procedimento é assim descrito pelo jornal Diário de Notícias.

"Nos primeiros tempos, o capelão rezava uma missa campal, que depois caiu em desuso; o comandante da unidade mobilizadora, um coronel, proferia umas palavras alusivas à missão e entregava o guião ao comandante do batalhão mobilizado, um tenente-coronel, ou então da companhia, um capitão; (...) era concedida a licença de dez dias antes de embarque e pagas as ajudas de custo.

Neste momento, o militar era um mobilizado, ia a casa, despedia-se da família, fazia umas asneiras por conta, arranjava umas correspondentes para lhe escreverem, ou umas madrinhas de guerra e voltava à unidade mobilizadora para daí iniciar verdadeiramente a viagem.

Neste regresso faltavam uns quantos camaradas, que tinham decidido dar o salto para o estrangeiro ou baixado ao hospital com uma doença mesmo a calhar, mas os que restavam formavam de novo na parada do quartel..." (Jornal Diário de Notícias- Fasc. 5 pág. 50)

Para aqueles que iam sendo embarcados a viagem não é de busca, nem de aventura, tampouco trata da questão de conhecimento ou de experiências novas que se buscam por iniciativas próprias. São seres humanos que não entendem por devem ir matar outros de sua espécie em prol de um poder político que não lhes dizia respeito nem sequer o exerciam.

"Por volta do meio-dia, o navio recolhia as escadas e os cabos, a sirena apitava e, durante alguns anos, a instalação sonora tocava uma marcha intitulada 'Angola é nossa', independentemente do destino - um ritual abandonado nos anos mais próximos do fim da guerra.

O navio afastava-se lentamente, virava a proa à foz do Tejo, passava por baixo da ponte e deslizava diante da Torre de Belém" (J D.N. pág.5l)

O mar: estrada líquida pela qual Portugal alcançou a notoriedade em função da rota de suas caravelas, é, neste caso, símbolo de agruras para a soldadesca em cujo destino preferem não pensar. Os pioneiros navegantes contemplaram suas águas salgadas com outros olhos, com espanto e admiração. Estes, que vão rumo aos Cus de Judas, quase não o reparam e, se o fazem, o maldizem.

Por dentro das águas há quadros e sonhos/E coisas que sonham o mundo dos vivos
Peixes milagrosos, insetos nocivos/Paisagens abertas, desertos medonhos
Léguas cansativas, caminhos tristonhos/Que fazem o homem se desenganar
Há peixes que lutam para se salvar/ Daqueles que caçam em mar revoltoso
Outros que devoram com gênio assombroso/As vidas que caem na beira do mar
( Zé Ramalho )

Na poesia popular brasileira, o mar é via de chegada dos colonizadores, contributo por inserir aqui sua cultura, línguas e religiões, mas também, pode adquirir 'um valor metafórico absoluto' como reserva de uma memória intemporal, 'essências pressentidas' e guarda ainda ancestralidades e ecos misteriosos no presente.

Entretanto para o soldado português combatente na guerra colonial na obra de Antunes tanto a cidade como o mar são visto como símbolos negativos.

Cidade colonial pretensiosa e suja de que nunca gostei, gordura de umidade e calor, detesto as tuas ruas sem destino, o teu Atlântico domesticado de barrela (...) O meu país, Ruy Belo, é o que o mar não quer (Os cus de Judas, pág. 68)

Para a personagem de Antunes, a água do mar de Luanda 'assemelhava-se a creme solar turvo' (pág.19), e eles (soldados), não passavam de 'peixes mudos em aquários(pág.86), ratificando a simbologia do mar que já constatara na poesia Melo e Castro.

Após a chegada dos portugueses(...) o mar passa a ser, não só a via da invasão européia portadora da descaracterização cultural, mas também, a via da partida, da ruína e da morte causadas pela captura e venda dos escravos, pela emigração forçada e pelo drama dos contratados. Mar, espaço da morte, de onde se não volta mais.( págs. 11-16)

À guisa de conclusão, diríamos que Lobo Antunes tece um discurso que nos deixa pistas sobre a desconstrução da viagem no contexto colonial português, que se revelará em outras obras como As Naus. Neste cenário o encontro com a situação de guerra vai expor as feridas que ainda ecoam no contato entre colonizador e colonizado.

OS CUS DE JUDAS - resumo - António Lobo Antunes

Extraído de resumo de Célia N. Passoni - Editora Núcleo

Os estilhaços que recompõem os contornos da memória nos romances de Lobo Antunes recolhem informações vividas em espaços de tempo variados, mas contados em breves períodos, de chofre, de um só fôlego. No caso de Os Cus de Judas, o "ato de contar" tem as ações transcorrendo em uma só noite. Se o tempo é breve no presente da narrativa -- entre a mesa de um bar, algumas boas doses de uísque, um convite e o anseio para vencer a solidão - o tempo recolhido pela memória é elástico, é um tempo que se volta para a infância remota, as recordações da família, um tempo em que ele se alista nas fileiras da força colonialista portuguesa, um tempo em que ele parte e, finalmente, um tempo em que ele sobrevive na África, numa luta que lhe parece vazia de sentido.

Com vinte e três capítulos curtos, seqüenciados de A a Z, sem interrupções na ordem do alfabeto, desenrolam-se ações em dois planos temporais: um cronológico, período de tempo de uma noite, que vai do encontro do narrador com uma mulher em um bar até o amanhecer deles, depois de uma noite de sexo, sem amor. O tempo cronológico constitui-se no tempo da fala, no tempo de um enorme monólogo em que o narrador expõe a uma mulher não nomeada suas angústias e a mediocridade da vida que o cerca; outro passado, um tempo elástico reconstituído a partir de fragmentos soltos, recolhidos dos escombros das memórias constituem uma coleção de insucessos que o levam a sentir-se um ser espúrio, um pária, um fracassado.

Convém lembrar que a sensação de fracasso que domina o narrador está intimamente associada aos insucessos dos tempos em que ele exercia funções no exército português de combate às guerrilhas africanas.

Passamos vinte e sete meses juntos nos cus de Judas, vinte e sete meses de angústia e de morte juntos nos cus de Judas, nas areias do Leste, nas picadas dos Quiocos e nos girassóis do Cassanje, comemos a mesma saudade, a mesma merda, o mesmo medo, e separamo-nos em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, um vago abraço, e eis que as pessoas desaparecem, vergadas ao peso da bagagem, pela porta de armas, evaporadas no redemoinho civil da cidade.

Durante uma única noite, o narrador tece o enredo da obra, elaborando um relato em que confunde as ações de guerra, a política desenvolvida pelo seu país quanto às colônias na África e as posições assumidas por ele (país) e ele (narrador) após o término do conflito, o passado, o casamento, enfim, misturam-se os fatos todos da vida que afloram pelas doses excessivas de álcool e de solidão.

2. Algumas informações históricas

Para melhor conhecer os pontos de vista que o narrador assumirá no transcorrer da narrativa de Os Cus de Judas, é necessário fazer uma breve explanação sobre a situação histórica da relação entre Portugal e Angola, bem como a relação entre o colonizador que luta para manter seu império ultramarino e o colonizado em sua luta pela independência.

O interesse de Portugal pelas terras angolanas esteve ligado, desde o início da colonização, com a exploração da mão-de-obra escrava para abastecer o mercado brasileiro. A partir do século XVIII teve de disputar com os ingleses, os franceses e os holandeses o rendoso comércio de escravos. Com as tendências abolicionistas, o tráfico de escravos passou a ser feito quase que totalmente pelos portugueses e de forma clandestina. Em 1836, a Coroa portuguesa proibiu qualquer comércio negreiro, fato esse que, associado aos movimentos de libertação dos escravos, veio a diminuir sobremaneira a intensidade do tráfico.

O fato de o Brasil ter se tornado independente levou a Coroa portuguesa a voltar seus olhos para as colônias da África. Somente então começaram a promover melhorias nos seus territórios africanos, construindo estradas e incentivando a criação de núcleos urbanos brancos. A população de portugueses em Angola começou a crescer somente a partir do século XX. Entre 1930 e 1960, o governo salazarista teve a preocupação de mudar a nomenclatura de "colônia" para "província ultramarina", com a finalidade de evitar o desgaste que a associação "metrópole-colônia" possuía.

A manutenção do colonialismo português em Angola despertou acirrados confrontos, a partir do final da década de 1950, com o desenvolvimento do nacionalismo político no continente africano. Surgem em Angola vários movimentos que reivindicam a independência política de Portugal. Em 1956, forma-se o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), liderado por Agostinho Neto; em 1962, a FNLA (Frente Nacional para a Libertação de Angola), chefiada por Holden Roberto e, em 1966, a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), dissidência da FNLA, comandada por Jonas Savimbi, que contava com a participação de forças sul-africanas. Na década de 1960, os grupos nacionalistas, tanto de tendências socialistas como os não-socialistas, armam-se e começam a enfrentar com tática de guerrilha as forças portuguesas que tinham sido enviadas por Salazar para Angola. O Estado Novo (1933-1974), que instaurou a ditadura salazarista, buscou o estabelecimento da ordem interna nas colônias ultramarinas e criou um sistema de repressão a partir da formação de milícias como a PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado).

Diante das pressões tanto da ONU quanto dos grupos de libertação, Portugal, ao invés de ceder, opta por intensificar sua repressão, procurando manter pela força seus domínios além-mar. Em nome dessa soberania, inicia-se uma luta que é conhecida na História como Guerra Colonial ou Guerra de Angola (1961-1975).

As forças portuguesas eram compostas por um exército mal formado, que não conseguia adaptar-se ao território africano, e, principalmente, sem o devido treinamento para enfrentar a guerra de guerrilha. Os homens tinham dificuldade para movimentar-se, utilizavam fardas inadequadas para o verão africano e, principalmente, não possuíam armamento moderno: Portugal enfrentou não somente os guerrilheiros acostumados com a adversidade das terras africanas, como emboscadas armadas pela própria natureza, com florestas virgens e agressivas. Com armamento pesado, fome, selva impenetrável, os portugueses passaram de atacantes a alvos fáceis dos ataques surpresa e das minas terrestres que os guerrilheiros colocavam como empecilhos para o avanço das tropas.

Com a Revolução dos Cravos, que destituiu o regime salazarista (1974) e objetivando o fim das hostilidades, Portugal passou a buscar entendimento com as colônias africanas. Para isso, intensificou o contato com as três forças libertadoras e concordou com a formação de um governo provisório. Os líderes angolanos assinaram o acordo de Alvor (1975), que fixava a independência de suas terras para 11 de novembro de 1975. No entanto, os líderes da FNLA e UNITA aliaram-se contra o presidente Agostinho Neto do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e, quando da independência, o novo país já surgia imerso em grave crise, com dois governos, um sediado em Luanda e outro em Huambo e os angolanos encontravam-se em plena guerra civil. Contando com o apoio de tropas cubanas e abastecido de armas soviéticas, o MPLA forçou a retirada das forças sul-africanas invasoras e obteve a vitória militar sobre seus adversários internos. Em 1976, o governo de Agostinho Neto foi reconhecido como legítimo pela ONU e por grande número de países.

3. A literatura neo-realista

A trajetória da prosa portuguesa do século XX está inicialmente ligada ao movimento que se costumou chamar de presencismo, uma geração que procurou equilibrar o passado poético que tradicionalmente marcou a Literatura Portuguesa, com a produção romanesca de tendências intuicionistas e/ou memorialistas, em busca do que existe de mais profundo no ser, portanto, isenta de preocupações ideológicas ou sociais.

No final da década de 1930, influenciados principalmente pelo que se fazia nos Estados Unidos e no Brasil, os prosadores voltaram-se para uma literatura engajada, através da qual procuravam denunciar as mazelas e a podridão de uma sociedade que enfrentava (e enfrenta) problemas concretos. O gosto neo-realista é pelo documento vazado em relatos secos, diretos na ânsia de registrar a verdade por meio da propagação de uma doutrina de ideais políticos, numa arte comprometida, a serviço de uma causa. A literatura passa a ser vista como uma possível forma de intervir no real, transformando-se em uma arma de combate e uma forma de propor rumos novos para o destino da sociedade.

Durante a ditadura salazarista, a literatura foi censurada e, dos subterrâneos, passou a metaforizar a realidade de forma a poder expor os pontos de vista pessoais associados a uma nova forma de narrar, mais elíptica e utilizando-se de recursos como o discurso indireto livre e o fluxo da consciência, a multifacetação do narrador, da ambiguidade e da possibilidade de penetração na consciência de personagens. Supera-se assim o neo-realismo tradicional, para se poder conhecer melhor as diferentes faces da sociedade, agora também voltadas para o meio burguês, e o indivíduo. Por meio de uma análise mais profunda de seus circuitos psicológicos, passa-se a analisar o ser humano como um ser complexo e total, tanto indivíduo psicológico como homem inserido em seu contexto social.

4. Um narrador estilhaçado

Em Os Cus de Judas, Lobo Antunes faz uma narrativa em que presta depoimento da situação vivenciada por ele durante os anos em que esteve em Angola, entre 1971 e 1973, exercendo a função de clínico de um batalhão operacional, primeiramente nas por ele denominadas "terras do fim do mundo", situadas no leste e, depois, na Baixa do Cassanje, junto à fronteira do Congo.

O narrador, em primeira pessoa, apresenta-se ao longo da narrativa como um médico que procura exorcizar seu passado, registrando sua dura experiência na Guerra de Angola. Como enviado das forças de defesa da Metrópole, potencialmente defensor da política portuguesa para a África, ele testemunha as cruezas de uma guerra, cujos sofrimentos e desvarios o marcaram profundamente e o enchem de angústia pela sensação de absurdo da situação: ele, o narrador, um homem culto, conhecedor de História, de Artes e de Ciências, cuja experiência de vida, até a ida para a guerra, era exclusivamente metropolitana e burguesa

Poderíamos envelhecer perto um do outro e da televisão da sala, com a qual constituiríamos os vértices de um triângulo eqüilátero doméstico protegido pela sombra tutelar do abat-jour de folhos e de uma natureza-morta de perdizes e maçãs, melancólica como o sorriso de um cego, e encontrar na garrafa de Drambuie do aparador um antídoto açucarado contra a conformação do reumático. Poderíamos friccionar-nos mutuamente os bicos de papagaio com bálsamo Menopausol, pingar em uníssono, no termo das refeições, as mesmas gotas para a tensão, e aos domingos, depois do cinema, graças ao último beijo do filme indiano do Avis, unirmo-nos em abraços espasmódicos de recém-nascidos, a soprar pelas dentaduras postiças bronquites aflitas de chaleira. E eu, deitado de costas no colchão ortopédico reduzido a uma tábua dura de faquir a fim de prevenir as guinadas da ciática, lembrar-me-ia do jovem saudável e ardente que há muitos anos fui, capaz de repetir sem azia o frango na púcara, para quem o horizonte do futuro não era limitado pelo perfil de cordilheiras dos Andes de um electrocardiograma ameaçador, a regressar da guerra de África para conhecer a filha, numa dessas madrugadas de Novembro tristes como a chuva num pátio de colégio, durante a lição de Matemática.

...passa alguns anos vivendo em um espaço totalmente desconhecido, engajado em uma luta que se lhe torna particularmente indiferente: afinal, matar e/ou morrer transformam-se no cotidiano vivenciado por ele na África. No retorno a Portugal, a experiência dos anos de guerra continua a amargurá-lo porque deixa profundas marcas no seu presente, marcas que se tornam sua fraqueza e das quais ele não consegue se desvencilhar.

O narrador confessa-se um homem solitário, mergulhado no consolo da bebida servida nas mesas de um bar, em busca de um conforto, de uma companhia para ouvi-lo, para com ele enfrentar a noite, e assim solucionar suas fraquezas físicas e psicológicas. Ele apenas conversa, desabafa por meio de uma fala longa, sem pausas, sem ordem, feita de retalhos justapostos e alineares. No entanto, não há desabafos eficazes para o mal que o acompanha, sente-se cada vez mais inadaptado, encontra-se deslocado no mundo que não parou apesar da guerra. E suas falas vêm marcadas pelo desespero de não poder escapar da experiência do passado que o destruiu psicologicamente.

Quer um uísque? Este banal líquido amarelo constitui, nos tempos de hoje, depois da viagem de circunavegação e da chegada do primeiro escafandro à Lua, a nossa única possibilidade de aventura: ao quinto copo o soalho adquire insensivelmente uma agradável inclinação de convés, ao oitavo, o futuro ganha vitoriosas amplidões de Austerlitz, ao décimo, deslizamos devagar para um coma pastoso, gaguejando as sílabas difíceis da alegria: de forma que, se me dá licença, instalo-me no sofá ao pé de si para ver melhor o rio, e brindo pelo futuro e pelo coma.

O Leste? Ainda lá estou de certo modo, sentado ao lado do condutor numa das camionetas da coluna, a pular pelas picadas de areia a caminho de Malanje. Ninda, Luate, Lusse, Nengo, rios que a chuva engrossara sob as pontes de pau, aldeias de leprosos, a terra vermelha de Gago Coutinho que se prende à pele e aos cabelos, o tenente-coronel eternamente aflito a encolher os ombros diante do licor de cacau, os agentes da PIDE no café do Mete-Lenha, lançando soslaios foscos de ódio para os negros que bebiam nas mesas próximas as cervejas tímidas do medo. Quem veio aqui não consegue voltar o mesmo, explicava eu ao capitão de óculos moles e dedos membranosos colocando delicadamente no tabuleiro, em gestos de ourives, as peças de xadrez, cada um de nós, os vivos, tem várias pernas a menos, vários braços a menos, vários metros de intestino a menos, quando se amputou a coxa gangrenada ao guerrilheiro do MPLA apanhado no Mussuma os soldados tiraram o retrato com ela num orgulho de troféu, a guerra tornou-nos em bichos, percebe, bichos cruéis e estúpidos ensinados a matar, não sobrava um centímetro de parede nas casernas sem uma gravura de mulher nua, masturbávamo-nos e disparávamos, o mundo-que-o-português-criou são estes luchazes côncavos de fome que nos não entendem a língua, a doença do sono, o paludismo, a amibíase, a miséria, à chegada ao Luso veio um jeep avisar-nos que o general não consentia que dormíssemos na cidade, que expuséssemos na messe as nossas chagas evidentes. Nós não somos cães raivosos, berrava o tenente de cabeça perdida para o enviado do comando de Zona, diga a esse caralho do catano que nós não somos cães raivosos, um alferes ameaçava baixinho destruir a messe com as bazookas Fodemos aquela porra toda meu tenente, não sobeja um cabrão sequer para nos enconar o juízo, Um ano no cu de Judas não nos dá direito a dormir uma noite numa cama argumentava em sentido o oficial de operações, o tenente espalmou um murro enorme no capot do jeep Diga ao nosso general que vá levar na anilha, Nós não éramos cães raivosos quando chegamos aqui disse eu ao tenente que rodopiava de indignação furiosa, não éramos cães raivosos antes das cartas censuradas, dos ataques, das emboscadas, das minas, da falta de comida, de tabaco, de refrigerantes, de fósforos, de água, de caixões, antes de uma berliet valer mais do que um homem e antes de um homem valer uma notícia de três linhas no jornal, Faleceu em combate na província de Angola, não éramos cães raivosos mas éramos nada para o Estado de sacristia que se cagava em nós e nos utilizava como ratos de laboratório e agora pelo menos nos tem medo, tem tanto medo da nossa presença, da imprevisibilidade das nossas reacções e do remorso que representamos que muda de passeio se nos vê ao longe, evita-nos, foge de enfrentar um batalhão destroçado em nome de cínicos ideais em que ninguém acredita, um batalhão destroçado para defender o dinheiro das três ou quatro famílias que sustentam o regime, o tenente gigantesco voltou-se para mim, tocou-me no braço e suplicou numa voz súbita de menino Doutor arranje-me a tal doença antes que eu rebente aqui na estrada da merda que tenho dentro.

Seu casamento mal começado - ele se casara quatro meses antes de partir

...depois de breves encontros de fim-de-semana em que fazíamos amor numa raiva de urgência, inventando uma desesperada ternura em que se adivinhava a angústia da separação próxima, e despedimo-nos sob a chuva, no cais, de olhos secos, presos um ao outro num abraço de órfãos.

...estilhaça-se pela distância - ela em Portugal, ele na África - e nem a notícia do nascimento de uma filha pôde auxiliá-lo na recuperação de seu trauma. Um nascimento no meio de mortes deveria ser um brado à vida, mas chega em meio ao ruído da guerra, à interferência de códigos em um lugar distante, isolado e miserável:

Como na tarde de 22 de Junho de 71, no Chiúme, em que me chamaram ao rádio para me anunciar de Gago Coutinho, letra a letra, o nascimento da minha filha, rómio, alfa, papá, alfa, rómio, índia, golf, alfa, paredes forradas de fotografias de mulheres nuas para a masturbação da sesta, mamas enormes que começaram de súbito a avançar e a recuar, segurei com força as costas da cadeira do cabo de transmissões e pensei Vai-me dar qualquer merda e estou fodido.

Ao conversar com sua interlocutora, revela o que de mais profundo atormenta sua consciência. No entanto, a interlocutora não se apresenta como "aquela que responde" ou "aquela que efetivamente o ouve", "aquela que participa de uma experiência frustrante", apenas "está lá" e o leitor conhece-a por meio das falas do narrador, o que transforma a narrativa em um imenso monólogo em que ele se volta quase exclusivamente para si mesmo. Não há espaço para o outro, não há outras vozes e os sons que o leitor ouve são aqueles que atormentam o narrador, estão nas vivências passadas, reconstituídas aos tropeços e difíceis de serem superadas.

Do que eu gostava mais no Jardim Zoológico era do rinque de patinagem sob as árvores e do professor preto muito direito a deslizar para trás no cimento em elipses vagarosas sem mover um músculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuíam seguramente vozes tão de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos aviões, sílabas de algodão que se dissolvem nos ouvidos à maneira de fins de rebuçado na concha da língua. Não sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manhã, quando nós lá íamos com o meu pai, os bichos eram mais bichos, a solidão de esparguete da girafa assemelhava-se à de um Gulliver triste, e das lápides do cemitério dos cães subiam de tempos a tempos latidos aflitos de caniche. Cheirava aos corredores do Coliseu ao ar livre, cheios de esquisitos pássaros inventados em gaiolas de rede, avestruzes idênticas a professoras de ginástica solteiras, pingüins trôpegos de joanetes de contínuo, catatuas de cabeça à banda como apreciadores de quadros; no tanque dos hipopótamos inchava a lenta tranqüilidade dos gordos, as cobras enrolavam-se em espirais moles de cagalhão, e os crocodilos acomodavam-se sem custo ao seu destino terciário de lagartixas patibulares. (...)

Se fôssemos, por exemplo, papa-formigas, a senhora e eu, em lugar de conversarmos um com o outro neste ângulo de bar, talvez que eu me acomodasse melhor ao seu silêncio, às suas mãos paradas no copo, aos seus olhos de pescada de vidro boiando algures na minha calva ou no meu umbigo, talvez que nos pudéssemos entender numa cumplicidade de trombas inquietas farejando a meias no cimento saudades de insectos que não há, talvez que nos uníssemos, a coberto do escuro, em coitos tão tristes como as noites de Lisboa, quando os neptunos dos lagos se despem do lodo do seu musgo e passeiam nas praças vazias ansiosas órbitas ferrugentas.

Na medida em que a longa conversa vai se desenrolando, vão-se equilibrando aspectos de um passado remoto que vêm à tona com imagens tomadas das recordações da infância: a casa dos pais, a casa dos avós, o professor a deslizar no rinque de patinação, a visita ao jardim zoológico. Do passado remoto surgem as únicas imagens menos agressivas, levadas ao leitor por construções da memória e da linguagem que contêm uma certa amargura saudosa, sem contudo ser despojada de uma ironia irreverente. O olhar irônico recai principalmente no bizarro ou ridículo das cenas que a memória seleciona no passado.

O espectro de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas de Espírito Santo corporativo, salvando-nos da idéia tenebrosa e deletéria do socialismo. A PIDE prosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noção sinistra de democracia, primeiro passo para o desaparecimento, nos bolsos ávidos de ardinas e marçanos, do faqueiro de cristofle. O cardeal Cerejeira, emoldurado, garantia, de um canto, a perpetuidade da Conferência de São Vicente de Paula, e, por inerência, dos pobres domesticados. O desenho que representava o povo em uivos de júbilo ateu em torno de uma guilhotina libertária fora definitivamente exilado para o sótão, entre bidés velhos e cadeiras coxas, que uma fresta poeirenta de sol aureolava do mistério que acentua as inutilidades abandonadas. De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anônima semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria morte.

O passado só pode ser reconstruído por uma seleção voluntária da memória e pela ordem de importância que assume para quem narra. Ao revelar a passagem para a vida adulta, o narrador enfrenta não só o trauma de se conhecer adulto, como a cobrança de uma sociedade que o quer "Homem", que o quer tomando decisões, que o quer participante e é como ser participante que essa mesma sociedade lhe revela a experiência sangrenta da guerra.

- Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.

Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e da adolescência por dentaduras postiças de indiscutível autoridade, prolongava-se em ecos estridentes nas mesas de canasta, onde as fêmeas do clã forneciam à missa dos domingos um contrapeso pagão a dois centavos o ponto, quantia nominal que lhes servia de pretexto para expelirem, a propósito de um beste, ódios antigos pacientemente segregados. Os homens da família, cuja solenidade pomposa me fascinara antes da primeira comunhão, quando eu não entendia ainda que os seus conciliábulos sussurrados, inacessíveis e vitais como as assembléias de deuses, se destinavam simplesmente a discutir os méritos fofos das nádegas da criada, apoiavam gravemente as tias no intuito de afastarem uma futura mão rival em beliscões furtivos durante o levantar dos pratos.

Uma travessia inumana

Mas afinal, para que lhe serviu estar engajado na guerra? Ela se converteu em uma experiência traumática que teve como resultado imediato a desumanização do protagonista, que o transformou em um bicho (humano?) rancoroso. A guerra anulou a poesia que porventura existia nas coisas, impregnou o mundo de prostituição, de corrupção: os homens se vendem por qualquer bagatela, porque através da guerra sempre se contempla o espectro da morte próxima. O que mantém o homem vivo é uma falsa esperança de final e a consciência de fragilidade adquirida no confronto sangrento com o outro. Mas, justamente porque o narrador não partilha totalmente das opiniões da Metrópole, o universo da guerra não lhe diz respeito, lhe é indiferente, ele não tem um motivo plausível para lutar, porque não luta imbuído de uma ideologia, qualquer que seja ela. A única certeza que a guerra lhe traz são as dúvidas.

Mas não podíamos urinar sobre a guerra, sobre a vileza e a corrupção da guerra: era a guerra que urinava sobre nós os seus estilhaços e os seus tiros, nos confinava à estreiteza da angústia e nos tornava em tristes bichos rancorosos, violando mulheres contra o frio branco e luzidio dos azulejos, ou nos fazia masturbar à noite, na cama, à espera do ataque, pesados de resignação e de uísque, encolhidos nos lençóis, à laia de fetos espavoridos, a escutar os dedos gasosos do vento nos eucaliptos, idênticos a falanges muito leves roçando por um piano de folhas emudecidas.

Nessa dura travessia da guerra, a comunicação torna-se cada vez mais escassa, mais frágil. Os laços fraternais desaparecem, cada um pensa somente em si mesmo, isola-se na sua amargura, no seu desespero e o silêncio separa os guerreiros, o diálogo desaparece, não há comunicação entre os homens.

(...) Abril de 71, a dez mil quilômetros da minha cidade, da minha mulher grávida, dos meus irmãos de olhos azuis cujas cartas afectuosas se me enrolavam nas tripas em espirais de ternura, Foda-se, disse o furriel que limpava as botas com os dedos, Pois é, disse eu, e acho que até hoje nunca tive um diálogo tão comprido com quem quer que fosse.

Nem mesmo o ato de amor é capaz de redimi-lo. É necessário desnudar-se mais e mais, porque ele é um indivíduo sem rumo, marcado pelas reminiscências da guerra, pelo mundo agonizante de que fez parte, cujos espectros retornam a todos os momentos e o fazem sofrer e refletir. Não há escape, não há atos heróicos, não há sonhos e dormir se torna um ato quase impossível.

No momento em que os seus joelhos se afastarem docemente, os cotovelos me apertarem as costelas, e o seu púbis ruivo descerrar as pétalas carnudas numa húmida entrega de valvas quentes e macias, penetrarei em si, percebe, como um cachorro humilde e sarnento num vão de escada para tentar dormir, procurando um aconchego impossível na madeira dura dos degraus, porque o tipo de Mangando e todos os tipos de Mangando e Marimbanguengo e Cessa e Mussuma e Ninda e Chiúme se erguerão no interior de mim nos seus caixões de chumbo, envoltos em ligaduras sangrentas que esvoaçam, exigindo-me, nos resignados lamentos dos mortos, o que por medo lhes não dei: o grito de revolta que esperavam de mim e a insubmissão contra os senhores da guerra de Lisboa, os que nos quartel do Carmo se cagavam e choravam vergonhosamente, tontos de pânico, no dia da sua miserável derrota, perante o mar em triunfo do povo, que arrastava, no seu impetuoso canto, como o Tejo, as árvores magras do Largo. (...) Não era o rancho que estava em causa, percebe, todos comíamos o mesmo alimento turvo, quase podre, que as crianças da sanzala, munidas de latas ferrugentas, desejavam com grandes órbitas côncavas de fome penduradas suplicantemente do arame, era a guerra, a cabronice da guerra, os calendários imóveis em intermináveis dias, fundos como os tristes e suaves sorrisos das mulheres sozinhas, eram as silhuetas dos camaradas assassinados que rondavam as casernas à noite conversando conosco na pálida voz amarela dos defuntos, fitando-nos com as pupilas magoadas e acusadoras dos esqueléticos cães vadios do quartel. Os soldados acreditavam em mim, viam-me trabalhar na enfermaria os seus corpos esquartejados pelas minas, viam-me à beira dos beliches se tiritavam de paludismo nos lençóis desfeitos, de modo que, sabe como é, me cuidavam um deles, pronto a encabeçar a sua zanga e o seu protesto, assistiram à minha entrada na caserna onde um homem se trancara brandindo uma catana e ameaçando matar toda a gente e a si próprio, e viram-me sair com ele, momentos depois, a soluçar no meu ombro abandonos de bebé disforme, os soldados julgavam-me capaz de os acompanhar e de lutar por eles, de me unir ao seu ingênuo ódio contra os senhores de Lisboa que disparavam sobre nós as balas envenenadas dos seus discursos patrióticos, e assistiram enojados à minha passividade imóvel, aos meus braços pendentes, à minha ausência de combatividade e de coragem, à minha pobre conformação de prisioneiro.

Espere mais um pouco, deixe-me abraçá-la devagar, sentir o latir de suas veias no meu ventre, o crescer de onda do desejo que se nos espalha pela pele e canta (...)

A noite está se findando e o narrador não conseguiu a paz que tanto almejava. Sua busca é contínua e clara, mas ele continua insatisfeito e não satisfez sua companheira. A esperança de um retorno, de uma continuidade no relacionamento fracassa, tanto quanto fracassou com sua esposa, com a guerra, com a profissão. Enfim, o homem não obtém êxito em suas buscas mais simples, não se realiza nem no sexo, no prazer mais primário do homem. Tampouco é incapaz de realizar a mulher que o acompanhou e que o esquecerá com a mesma facilidade com que se esquecem dos encontros casuais. A solidão volta a dominá-lo. Não há esperança. Só existe uma certeza: da reconstituição do inferno resta a imagem sem unidade, incapaz de unir passado e presente.

Gostou? Assim, assim? Desculpe, não estou em forma hoje, sinto-me azelha, alheado, não domino o meu corpo, o uísque inquina-me o hálito de um relento de urina, a dolorosa consciência das minhas insuficiências preocupa-me. Durante muitos anos pensei em inscrever-me num desses cursos de que nos enviam os prospectos desdobráveis pelo correio, e que em quinze dias nos transformam em Hércules eficazes, bem penteados, bem barbeados, nodosos de músculos, cercados por uma nuvem admirativa de raparigas maravilhadas:

EM SUA CASA, SEM APARELHOS, COM DEZ MINUTOS DE EXERCÍCIO APENAS, TORNE-SE UM HOMEM. (...).

Consinta-me que tente outra vez, dê outra oportunidade à minha aflição sem esperança, porque desisti de a seduzir, de a fazer render-se às minhas proezas ou ao meu encanto, de a conceber a procurar o meu nome na lista dos telefones, para me pedir, no sábado, para jantar consigo, e ficar fitando-me, esquecida do rosbife e do tempo, num maravilhamento de descoberta.

A trajetória desse herói problemático de Os Cus de Judas coincide com os destroços em que mergulhou o país. Os grandes momentos de Portugal tornam-se esquecidos nas lições de História. Protagonista e país se identificam no fracasso, pessoal para aquele que viveu a guerra e recolheu os farrapos, e histórico para aquele que não obteve êxito em sua investida política além-mar. Como sempre, o fracasso é propulsor de crises e inadaptações.

Em entrevista concedida ao autor de A Voz Itinerante2, Lobo Antunes afirma:

Essa visão heróica dos portugueses eu nunca tive. Em minha família, os portugueses não foram apresentados como pessoas que desbravaram o mundo. Sempre via meu pai lendo as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, do Antero. Aquela que me foi apresentada desde a infância foi muito mais a decadência do que a grandeza. Os livros de história sempre me fizeram muita confusão com o gesto heróico dos portugueses. (...) Quanto ao uísque, é uma tragédia, porque até nem gosto de uísque. Mas isso de concreto tinha a ver com aquela personagem que fala no livro, que é um homem detestável, sob certos aspectos. O tipo usa de uma série de estratagemas para seduzir a mulher: a guerra, a vida e depois é uma catástrofe na cama...

(2) Álvaro Cardoso Gomes, A Voz Itinerante, São Paulo, Edusp, 1993.



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António Ramos Rosa nasceu em Faro no dia 17 de Outubro de 1924. Fez estudos secundários, trabalhando como empregado de escritório, correspondente comercial, professor e tradutor. Nos anos 50, radica-se em Lisboa, vindo a ser director das revistas literárias Árvore, Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia, tornando-se conhecido como ensaísta e crítico literário. A partir de 1958, com a publicação do livro Grito Claro, torna-se conhecido como poeta. São fundamentais na sua obra poética os temas da terra, da água, do fogo e do ar. Em 1976 recebeu o prémio de tradução da Fondation de Hautvilliers e em 1988 foi-lhe atribuído o Prémio Fernando Pessoa.

Obras poéticas: Grito Claro (1958), Viagem através de uma Nebulosa (1960), Voz Inicial (1961), Sobre o Rosto da Terra (1961), Ocupação do Espaço (1963), Terrear (1964), Estou Vivo e Escrevo Sol (1969), A Construção do Corpo (1969), Nos Seus Olhos de Silêncio (1970), A Pedra Nua (1972), Não Posso Adiar o Coração (1974), Ciclo do Cavalo (1975), Animal Olhar (1975), Respirar a Sombra Via (1975), Boca Incompleta (1977), A Imagem (1977), As Marcas no Deserto (1978), A Nuvem sobre a Página (1978), Círculo Aberto (1979), O Centro na Distância (1981), Dinâmico Subtil (1984), Clamores (1993), O Centro Inteiro (1993, em colaboração com Agripina Costa Marques e António Magalhães), O Teu Rosto (1994), Pela Primeira Vez (1996), A Imobilidade Fulminante (1998). Publicou ainda as antologias A Mão de Água e A Mão de Fogo. Ensaio: Poesia, Liberdade Livre (1962), A Poesia Moderna e a Interrogação do Real (1979 e 1980), Incisões Oblíquas (1987), A Parede Azul (1991), As Palavras (2001).

Poemas
Na grande confusão
deste medo
deste não querer saber
na falta de coragem
ou na coragem de
me perder me afundar
perto de ti tão longe
tão nu
tão evidente
tão pobre como tu
oh diz-me quem sou eu
quem és tu?

Tal como antigamente

Tal como antigamente tal como agora
essa estrela esse muro
esse lento
esse morto
sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair

Porque não soube merecer

Porque não soube merecer a glória, a mais suave
de me deitar a teu lado
e que o sangue a palavra
abolisse a diferença entre o meu corpo e a minha voz
porque te perdi
não sei quem sou

Que cor ó telhados de miséria

Que cor ó telhados de miséria
onde nasci
de tanta pequenez de tão humildes ovos
de nenhum querer
a que horas nasceram as estrelas que
um dia foram
a que horas nasci?

Não vim embarcado não me encontrei
na rua
não nos vimos
não nos beijamos
nunca parti

Não sei que idade tenho

Quando havia antes um antigamente
havia uma esperança
agora no próprio coração da ilusão
onde a água limpa as pedras das ruínas
entre destroços límpidos
deito-me sobre a minha sombra e durmo
e durmo

Quando havia antes um amanhecer
à beira do abismo
agora no próprio coração do coração
durmo estrangulando um monstro inerme
um palhaço de palha seca e pálido
quando havia antes um caminho

Não houve nunca amigos nem, pureza
Nem carinhos de mãe salvam a noite
É preciso ir mais longe na incerteza
É preciso no silêncio não escutar

A manhã que eu procuro não foi sonhada
Uma árvore me ignora na raiz
Perfeitamente desesperado é o meu sonho
Os pássaros insultam-me na cama
Só com doidos com doidos amaria
perfeitamente presente na frescura
do mar

Uma casa para eu ter a humildade de ser espaço
a líquida frescura duma jarra
um passo leve e certo em cada sombra
um ninho em cada ouvido
de doces abelhas cegas

Uma casa uma caixa de música e sossego
Um violão adormecido na doçura
Um mar longínquo à volta atrás do campo
Uma inundação de verdura e espessa paz
Uma repetida e vasta constelação de grilos
e os galos álacres do silêncio

Um mar de espuma e alegria obscura
um mar de espuma e alegria clara
entre o verde e a brisa

Na brancura dos quartos
a inocência poderá sonhar desnuda
os insetos poderão entrar
juntamente com as plantas e as aves
Uma longa asa passará
O mundo e o silêncio a mesma ave
e o mar
o mudo leão longínquo e fresco
faiscará entre o ver e as lâminas solares
Poema dum Funcionário Cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal [em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu [dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu [cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.

Uma pausa, não de plumas, mas elástica
1
Uma pausa, não de plumas, mas elástica,
que demorasse em si a paz ardente
e o ardor profundo de uma alta instância.
Que fosse o esquecimento na folhagem
e a espessa transparência da matéria.
O pulso pronunciaria a amplitude
do instante inocente. A obra acender-se-ia
na inteligência dos signos mais aéreos.
2
A inadvertência pode ser um prelúdio carnal
na volúvel leitura de quem adormeceu.
O sono dá ao sangue o ócio e as cores do enxofre.
Por uma forma ausente a matéria ramifica-se
na insolência branda de umas ruínas perfeitas.
Um aroma rebenta da axila negra de um animal de vidro.
Como um veleiro de fogo uma cabeleira ondula.
A garganta do mar atira os seus pássaros de espuma.
Uma rapariga de pedra caminha entre os arbustos de fogo.
É a abundâcia da origem e o seu orvalho azul.
São as armas vegetais sobre as janelas da terra.
É a frescura do vidro nas cintilantes sílabas.
3
Na justa monotonia do meio-dia
oiço o prodígio do repouso e a paixão adormecida.
O concêntrico sopro imobiliza-se. É uma lâmpada
de pedra fulgurante. Tudo é nítido mas ausente.
O mundo todo cabe no olvido e o olvido é transparência
de um denso torso que a nostalgia acende.
No silêncio sinto numa só cadência
a vociferação e o tumulto das pálpebras e dos astros.
Pelas veias o fogo da cal é branco e liso
e a mais remota substância culmina num rumor redondo.

No fundo Aberto

Escrevo-te enquanto algo resvala, acaricia, foge
e eu procuro tocar-te com as sílabas do repouso
como se tocasse o vento ou só um pássaro ou uma folha.
Chegaste comigo ao fundo aberto sob um céu marinho,
sobre o qual se desenham as nuvens e as árvores.
Estamos na aurícola do coração do mundo.
O que perdemos ganhamo-lo na ondulação da terra.
Tudo o que queremos dizer sai dos lábios do ar
e é a felicidade da língua vegetal
ou a cabeça leve que se inclina para o oriente.
Ali tocamos um nó, uma sílaba verde, uma pedra de sangue
e um harmonioso astro se eleva como uma espádua [fulgurante
enquanto um sopro fresco passa sobre as luzes e os [lábios.

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.

Uma Voz de Pedra

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta [nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

O Olhar de Murilo Mendes

O olhar de Murilo Mendes abre-se às forças da origem
e num lento silêncio até ao fundo do imóvel
inaugura a nupcial articulação.
Vazio e presença, ruptura e aliança
na atenção aguda à evidência e ao enigma.
Os deuses mostram-se então na imobilidade do ar
e no puro instante da contemplação irisam-se.
E o olhar abre-se imensamente às nascentes nocturnas
captando o eco perdido em cada coisa.
Nessa glória que ilumina tudo, é alta e rapidíssima
a língua da visão que contorna os confins
e deixa transparecer o indivisível círculo
que em si preserva o silêncio divino e o fulgor
de umas quantas palavras que pulsam como estrelas





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BOLOR - Augusto Abelaira

Romance da fragmentação da personagem. O livro é construído na forma de um diário, por isso os capítulos são intitulados por datas, começando em 11 de dezembro e terminando em 18 de maio ou pouco depois, já que os dois últimos episódios são rotulados como "Sem data". No entanto, como não há referência explícita ao ano, mas só aos dias e aos meses, pode-se supor que não se fala de um período de um final de ano (dezembro) para os meses do ano subseqüente até maio. Com efeito, Nely Novaes Coelho identifica na obra uma desconstrução do tempo, uma vez que o tempo seguiria normalmente até 24 de março, mas o capítulo seguinte é datado como 10 de janeiro, e existem outros capítulos em que se pode mostrar esse retorno no tempo.

O narrador do diário é inicialmente Humberto, homem casado com Maria dos Remédios. É seu segundo casamento, anteriormente fora casado com Catarina que morrera, depois de algum tempo viúvo conhece Maria dos Remédios por quem se apaixona, porém as comparações entre as duas mulheres são inevitáveis para Humberto.

O diário é descoberto por Maria dos Remédios que passa a também escrever nele como uma forma de tentar recuperar o diálogo que se estava perdendo na convivência do casal. Maria dos Remédios escreve fazendo confissões de coisas que naturalmente não diria a Humberto. Por meio do diário, discutem seus pontos de vista acerca do casamento, de que como se sentiam presos e sufocados por essa relação, de como o casamento estava matando o amor de ambos.

Num determinado momento, Maria dos Remédios insinua e depois fala claramente que possui um amante, Aleixo (ou Guilherme, existe uma ligeira alteração dos nomes em alguns episódios) colega de trabalho. Explica a Humberto como sentiu necessidade dessa aventura, de como essa aventura veio preencher um vazio, e mais, de como era necessária a presença de Aleixo para que ela compreendesse a real dimensão de seu amor por Humberto.

Humberto explica acerca do sentimento que teve quando da morte da primeira esposa, de que ao morrer Catarina ele sentiu a possibilidade de renascer uma vez que o casamento significava a morte contínua da experiência amorosa.

Mais adiante, na fala de Maria dos Remédios começamos a sentir a presença de Aleixo, e a partir daí o narrador está completamente fragmentado: "Divirto-me: neste momento sou o Humberto que sonha ser o Aleixo ou o Aleixo que sonha ser o Humberto? Ou o Humberto que sonha ser a Maria dos Remédios que por sua vez sonha ser o Humberto que por sua vez sonha... Ou o Aleixo que sonha ser a Maria dos Remédios que por sua vez sonha ser o Humberto que por sua vez..."

Existe na obra uma relação entre tempo interior e tempo exterior, uma vez que muitas vezes quando o narrador escreve, faz referências às ações que a outra personagem está fazendo naquele momento em que o narrador escreve ou pensa.

Assim, em Bolor o tempo labiríntico e o narrador fragmentado criam uma atmosfera em que a escrita se torna personagem: "Que vou escreve - eu, a quem nada no mundo obriga a escrever? Eu, antecipadamente sabedor da inutilidade das linhas que nesse momento ainda não redigi, dentro de alguns minutos (de alguns anos) finalmente redigidas?"

No último capítulo, sem data, Maria dos Remédios pergunta a Humberto: "-Por que casaste comigo em vez de casar com outra? Por que me escolheste a mim como imagem da vida quotidiana, ponto de referência em relação ao qual uma diferente vida é possível - vida, parêntesis, na realidade inútil de todos os dias?"



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Bernardo Santareno (1920-1980), pseudónimo de António Martinho do Rosário, nasceu em Santarém e faleceu em Lisboa. Licenciou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, tendo-se especializado em psiquiatria. É considerado o mais importante dramaturgo português do século XX. Obras poéticas: A Morte na Raiz (1954), Romances do Mar (1955), Os Olhos da Víbora (1957). Teatro: A Promessa, O Bailarino e A Excomungada (as três peças publicadas em conjunto em 1957); O Lugre e O Crime de Aldeia Velha (as duas peças publicadas em conjunto em 1959); António Marinheiro, O Duelo e O Pecado de João Agonia (as três peças publicadas em conjunto em 1961); Anunciação (1962); O Judeu (1966); O Inferno (1967); A Traição do Padre Martinho (1969); O Punho (1974); Os Marginais e a Revolução (1979). Outros: Português, Escritor; 45 Anos de Idade (1974).

De Tebas a Alfama: Bernardo Santareno e o mito de édipo*

Maria Eugénia Pereira
Universidade de Aveiro


C'est tentant de photographier la Grèce en aéroplane.
On lui découvre un aspect tout neuf.
A vol d'oiseau de grandes beautés disparaissent,
d'autres surgissent; il se forme des rapprochements,
des blocs, des ombres, des angles, des reliefs inattendus.
Cocteau, Antigone

Presente na nossa linguagem quotidiana, definido de forma singular pelos eruditos, o mito representa um campo de batalha onde historiadores, historiadores das religiões, antropólogos, psiquiatras procuram dar provas do seu saber. Mas, como nos diz Mircea Eliade, porque «o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ter uma abordagem e uma interpretação em perspectivas múltiplas e complementares»1, a sua designação resulta de um conjunto de noções que se sobrepõem e que se opõem, delimitando o tipo de abordagem realizado pela corrente de pensamento de uma época.

Também não falta uma série de interpretações do mito de Édipo uma vez que os teóricos o tomaram como exemplo para estabelecer a pertinência dos seus métodos, mas, talvez a representação filosófica e histórica do mito seja aquela que melhor se adeque à adaptação, no século XX, de mitos antigos, gregos e romanos. O desejo de querer fugir de uma sociedade, que pretende ser lógica e objectiva, leva a que o mito seja utilizado ou recriado, tornando-se um dos suportes mentais do homo sapiens. Dado que o tempo que o homem dedica à imaginação é cada vez menor, e tem tendência para desaparecer, há, pois, que lutar contra esse fenómeno para conseguir sobreviver, para estabelecer um equilíbrio na vida. Victor Jabouille diz-nos a esse respeito que:

Depois de Freud, Jung, Fromm, Bachelard e Durand, sabemos que o homem, para sobreviver,
precisa não só de imagens como, sobretudo, de fabricar sequências com essas imagens.2

Bernardo Santareno sentiu essa necessidade de se afastar da vida real e procurou instalar-se num mundo onde pretendia encontrar novas forças para criar ou inventar e esse mundo é o do mito. É nesse universo mítico que se desenvolve a sua peça em 3 actos António Marinheiro (o Édipo de Alfama). Nela, o autor exprime, através de uma transposição popular directa da tragédia grega Rei Édipo de Sófocles, e de uma transposição indirecta do complexo de Édipo, a sua verdade, a da maldição que pesa sobre as mulheres e a da inibição para o amor dos homens.

Partindo do princípio que o mito é a verdade de um universo primitivo onde predomina a unidade absoluta entre os seres, os deuses e as coisas, talvez possamos debruçar-nos sobre a representação filosófica e histórica do mito, concebida e exposta por Gusdorf na sua tese Mythe et métaphysique3, para explicar a natureza do mito na obra de Bernardo Santareno.

Gusdorf estuda o mito e a sua natureza em três momentos diferentes da sua história: o primeiro, do mito vivido pela consciência mítica nos tempos imemoriáveis de um Éden pré-adamita; o segundo, do mito pensado e organizado pela consciência intelectual da época clássica - essa submissão à inteligência anula qualquer possibilidade de autenticidade e redu-lo à simples forma de um discurso - ; o terceiro, do mito readmitido pela consciência existencial que permanece insatisfeita perante as explicações da razão triunfante.

Partindo do pressuposto que o mito deve ser encarado e vivido como a verdade, e já não como uma lenda, um relato de acontecimentos extraordinários, ele «constitui um formulário ou uma estilística do comportamento humano na sua inserção entre as coisas»4.Não sendo separado do contexto existencial a que pertence, ele adquire uma função de participação, de intervenção que ajuda o homem a compreender-se.

Bernardo Santareno também vai utilizar o mito para exprimir a sua verdade, a de uma realidade vivida num universo autêntico, mas, não podendo abstrair-se da cultura e do pensamento da sua época, a sua criação vai querer partilhar o discurso e o modo de pensamento de grande parte dos intelectuais da sua época5.

Tal como os seus contemporâneos, Gide, Cocteau, Giraudoux e Anouilh, Bernardo Santareno vai apoderar-se da evolução do mito, que vai do seu estado primitivo de verdade autêntica e vivida à forma intelectual que adquiriu finalmente. A mitologia, assim integrada no universo do discurso, transforma-se num dispositivo intemporal, tornando-se palavra explicativa das situações e dos seres, e reduto das formas de escrita e de pensamento. Exprime, pois, a reflexão de uma época e a consciência humana de todos os tempos.

Nessa perspectiva, e segundo também Ana Paula Medeiros, na sua tese Do Teatro em Bernardo Santareno, se deve situar o dramaturgo que possui «um misto de concepções românticas (…) - que correspondem à necessidade de regresso a uma pureza perdida - e, simultaneamente, uma atracção pela mítica cultura grega»6, sendo esta uma referência permanente em toda a sua obra.

A sua obra, António Marinheiro (O Édipo de Alfama), depende fortemente do tempo histórico em que se encontra ancorada sem deixar, contudo, de renovar o mais antigo dos discursos literários, a fábula mitológica do rei de Tebas, para tentar reaver um absoluto, um tempo que está, definitivamente, perdido para o homem.

Procurando um público que fosse capaz de o entender, de penetrar o significado do seu discurso, o poeta pensou encontrar na mitologia o meio mais seguro de alcançar a consciência universal.

No entanto, o autor transcende a mera recriação de uma linguagem ou de um modo de comunicação: ele respeita também o ser singular que ele representa. Na sua imitação, retém, antes de mais, o que os verdadeiros criadores de mitos lhe deixaram e transforma o que a sua intuição, quase infalível, lhe determinava escolher. O mito adquire, assim, a forma íntima do seu ser e das suas angústias.

A dramaturgia "santariana" exprime e exterioriza as próprias perplexidades do autor, originadas pela experiência pessoal, mas não esquece o contexto estilístico, idelógico e social que a circunda:

A obra de um dramaturgo autêntico terá de ser, em grande parte, o homem que ele for. É claro que não me refiro a grosseiros aspectos biográficos; penso na sua realidade interior, nas coordenadas éticas, políticas e religiosas que o norteiam. Assim é que Bertholt Brecht criou um teatro sociológico, Ionesco o auto-teatro e Paul Claudel um teatro católico. (…) Aliás, se é autêntico, o dramaturgo não pode realmente, mesmo que queira, sair de si, do seu mundo, das suas verdades, dos seus obscuros movimentos de afectos e instinto. Pode, sim, alargá-los, engrendecê-los, fazendo-os viver por personagens muito acima do homem que ele é.»7

O autor existe na e para a sua obra, na medida em que escreve para actuar, para alterar o panorama político e cultural da sua época. Confrontado com o autoritarismo do poder censório, Santareno procurava criar o seu próprio caminho no seio da dramaturgia quer portuguesa, quer europeia. A liberdade escolhida pelas suas personagens Amália e António encontramo-la no dramaturgo quando tematiza problemas da actualidade. Tendo a realidade portuguesa como pano de fundo, Bernardo Santareno pretende questionar essa mesma realidade. Mais ainda, ele pretende circunscrever essa realidade a um local preciso, bem determinado: Portugal, Lisboa e, mais precisamente, o bairro de Alfama.

Mas entenda-se por vontade de localizar, de recriar uma cenografia portuguesa, um meio de alcançar o universal. Como ele próprio nos diz (no Jornal de Letras e Artes):

Quero, sempre e cada vez mais a partir do «local», esforçar-me, ampliar-me no sentido de chegar ao «universal». (…) Cada vez estou menos disposto a «cosmopolizar-me»: cada vez mais, as minhas peças serão testemunho do meu povo, nesta hora. Testemunho interessado, participante e interveniente, comovido.»8

Assim, em António Marinheiro, o autor retira as suas personagens do interior das muralhas de Tebas, antes de Jesus Cristo, e coloca-as na segunda metade do século XX, fá-las viver num cenário típico onde o fado, o vinho e a taberna são elementos caracterizadores de uma mentalidade pitorescamente portuguesa. O marujo lisboeta que é António Marinheiro, a costureira que é Amália são o Édipo e a Jocasta de Sófocles despojados da sua realeza. O drama desceu até ao povo, o povo português para tratar problemas universais, comuns a todos os homens: o desespero, o medo, o amor, a morte, a liberdade, o destino.

Em António Marinheiro (O Édipo de Alfama), o artista afere a validade de alguns processos dramatúrgicos conhecidos da modernidade europeia, apesar de estes serem mais evidentes na segunda fase da sua obra, depois da sua peça o Judeu de 1966. Fascinado pela tragédia antiga, Santareno reescreve-a para testemunhar a tragicidade contemporânea onde se encontra o «sentimento trágico da existência» que Lorca, Sartre, Genet, assim como Beckett e Ionesco, já exprimiam. Esta peça surge, pois, de uma articulação entre uma influência longínqua - o trágico grego - e uma influência mais próxima - o absurdo9 «como que a confirmar que o trágico não está, pois, nos acontecimentos, nem exclusivamente nos homens. Reside, essencialmente, na especial relação que os implica (…)».10

António Marinheiro obedece, tal como Édipo, a forças superiores - o destino, aqui o fado - que o vão dilacerando até que se reencontre com a sua verdadeira identidade: avança, passo a passo, para a catástrofe. Como diz a personagem Rosa: «É este o meu fado: cada qual é pró que nasce…»11.

António é conduzido para o mal involuntariamente: «Antes de te encontrar, eu não me sentia bem em nenhum lado: tinha uma coisa aqui dentro sempre a roer, a roer… uma força que, sem descanso, me empurrava nem sei pra onde»12. Ele é empurrado para o assassínio de um homem e é levado a apaixonar-se por uma mulher que lhe corresponderá: é o fado, o destino, mau, porque esse homem era seu pai e essa mulher sua mãe. Onde esteve a liberdade?

Descoberto o mal - o incesto e o parricídio -, as normas sociais deveriam levar à culpabilidade e ao castigo das personagens principais - Amália e António -, mas, recusando a penitência social, fazem do destino o «derradeiro obstáculo à plena realização da liberdade humana.»13 As personagens lutando contra a normatividade e escolhendo o seu caminho, afirmam o seu eu sincero. O povo do bairro de Alfama reclama a morte de António e de Amália pelo incesto cometido mas, assumindo, definitivamente, o seu papel de marido e mulher que se amam, correm um para o outro e beijam-se desesperadamente mas, também, apaixonadamente14. Esta novidade "santariana" obriga a um desenlace forçosamente diferente da obra modelo: António afirma a sua liberdade partindo com Rui, e Amália, contrariando a propensão maternal, presente em todas as outras adaptações edipianas, decide-se pela mullher e não pela mãe. Por isso, perante a exigência do povo que se mate15, a mulher apaixonada, inocente no crime, na medida em que ignorava os laços de sangue que a uniam a António, decide viver: «Quero viver!!… Hei-de viver, Rosa!… Que ninguém me toque!… Que ninguém me faça mal!!… Hei-de viver»16. Como nos diz Vítor Jabouille na sua tese intitulada Édipo: da antiguidade aos nossos dias, «(…) Amália afirma o abater da moral e o erigir uma nova em que imperam os sentimentos individuais sobre os conceitos pré-estabelecidos e impostos»17.

Menos inocente que no mito clássico - onde Édipo recebe Jocasta em casamento porque venceu a esfinge -, o relacionamento de António e Amália repousa sobre o assassínio de José, marido de Amália, por António. Perante o povo do bairro de Alfama, e de toda uma sociedade impregnada de falsa moralidade ou, melhor dizendo, de um código moral muito tradicional, - aqui, constantemente representado por Bernarda - , a aproximação entre os dois é logo amaldiçoada. Já, nesta sua afirmação do amor, apesar do homicídio cometido, as duas personagens principais afirmam a sua liberdade porque decidiram que se concretizasse o amor entre ambos e que se realizasse o casamento. Esta liberdade de acção vai culminar, no final da obra, numa liberdade existencial.

A afirmação da liberdade, que valoriza a obra santariana, tem uma função de intervençã,o na medida em que contribui para uma maior consciencialização do que é humano. A acção humana é, nesta peça, orientada segundo um horizonte previamente definido: a moral tradicional. O homem, para cumprir o seu verdadeiro papel, que é o de desmascarar, de denunciar e de libertar, desafia o seu próprio destino e a sociedade evitando a morte e o castigo do modelo clássico.

As estruturas do mito de Édipo, sendo permanentes, voltaram a ser colocadas no presente para perpetuar uma realidade ontológica. Bernardo Santareno reinterpreta o papel exemplar dos heróis clássicos para alcançar o universo primitivo: o da realidade da vida humana fora do tempo.

Através dos dilemas e conflitos da sua heroína, o autor pretende contestar, intervir e actuar para um mundo melhor, onde a pureza existe no seu estado primitivo, despojada de qualquer artefacto socializante que impeça a individualização do ser humano. Assim sendo, a sua peça António Marinheiro ganha significação intemporal.

Notas

* Esta comunicação foi patrocinada pelo Instituto Camões e pela Fundação da Ciência e da Tecnologia através do Programa Lusitânia.

1. Mircea Eliade, Aspects du mythe, Paris, Gallimard, 1963, p. 14.

2. Victor Jabouille, "Mito e literatura: algumas considerações acerca da permanência da mitologia clássica na literatura ocidental, Mito e literatura, Mem Martins, Editorial Inquérito, 1993, p. 10.

3. Paris, Flammarion, 1953.

4. Cf. op. cit. introdução p. 20.

5. Já Claudel, Gide, Proust, Valéry, Hofmannsthal, Giraudoux, Cocteau, Breton, Sartre, Anouilh e Camus, entre outros, tinham feito nascer os seus próprios mitos.

6. Coimbra, 1996, p. 19.

7. Bernardo Santareno, "A arte deverá ter por fim a verdade prática?", O Tempo e o Modo, Junho 1963, p. 136.

8. Bernardo Santareno, "Queria que o meu teatro fosse um acto de justiça", Jornal de Letras e Artes 31, 2 de Maio, p. 4.

9. Jean Marie Domenach, na sua obra Le retour du tragique (Paris, Seuil, 1967), explica e discute a tragicidade de hoje.

10. José Oliveira Barata, "A presença do trágico em Bernardo Santareno", Biblos LXVI, Coimbra ,1990, p. 226.

11.Bernardo Santareno, António Marinheiro (O Édipo de Alfama), Lisboa, Edições Ática, 1966, 2.ª Edição, p. 53.

12. Op. cit., p. 79.

13. José Oliveira Barata, "A presença do trágico em Bernardo Santareno", in Biblos LXVI, Coimbra, 1990, p. 231.

14. Cf Bernardo Santareno, António Marinheiro (O Édipo de Alfama), Lisboa, Edições Ática, 1966, 2.ª Edição, p. 141.

15. Cf. op. cit., p.144.

16. Ibid., p. 146.

17. Coimbra, 1971, p. 221.



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HERBERTO HELDER

Sobre o Poema

Um poema cresce inseguramente

na confusão da carne,

sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,

talvez como sangue

ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo.

Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol.

Fora, os corpos genuínos e inalteráveis

do nosso amor,

os rios, a grande paz exterior das coisas,

as folhas dormindo o silêncio,

as sementes à beira do vento,

-- a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.

Insustentável, único,

invade as órbitas, a face amorfa das paredes,

a miséria dos minutos,

a força sustida das coisas,

a redonda e livre harmonia do mundo.

-- Embaixo o instrumento perplexo ignora

a espinha do mistério.

-- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

O Amor em Visita

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra

e seu arbusto de sangue. Com ela

encantarei a noite.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.

Seus ombros beijarei, a pedra pequena

do sorriso de um momento.

Mulher quase incriada, mas com a gravidade

de dois seios, com o peso lúbrico e triste

da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,

Uma mulher com quem beber e morrer.

Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave

o atravessar trespassada por um grito marítimo

e o pão for invadido pelas ondas,

seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes

ele -- imagem inacessível e casta de um certo pensamento

de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim

sobre um lençol mordido por flores com água.

Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;

e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,

os bordões da melodia,

a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,

desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.

-- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob

as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,

mulher de pés no branco, transportadora

da morte e da alegria!

AS MUSAS CEGAS II

Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada

pelas vozes.

E enquanto dorme o leite, a minha casa

pousa no silêncio e arde pouco a pouco.

No círculo de pétalas veementes cai a cabeça -

e as palavras nascem.

- Límpidas e amargas.

Eis um tempo que começa: este é o tempo.

E se alguém morre num lugar de searas imperfeitas,

é o pensamento que verga de flores actuais e frias.

A confusão espalha sobre a carne o recôndito peso do ouro.

E as estrelas algures aniquilam-se para um campo sublevado

de seivas, para a noite que estremece

fundamente.

Melancolia com sua forma severa e arguta,

com maçãs dobradas à sombra do rubor.

Aqui está a primavera entre luas excepcionais e pedras soando

com a primeira música de água.

Apagaram-se as luzes. E eu sorrio, leve e destruído,

com esta coroa recente de ideias, esta mão

que na treva procura o vinho dos mortos, a mesa

onde o coração se consome devagar.

Algumas noites amei enquanto rodavam ribeiras

antigas, degrau a degrau subi o corpo daquela que se enchera

de minúsculas folhas eternas como uma árvore.

Degrau a degrau devorei a alegria -

eu, de garganta aberta como quem vai morrer entre águas

desvairadas, entre jarros transbordando

húmidos astros.

Algumas vezes amei lentamente porque havia de morrer

com os olhos queimados pelo poder da lua.

Por isso é de noite, é primavera de noite, e ao longe

procuro no meu silêncio uma outra forma

dos séculos. Esta é a alegria coberta de pólen, é

a casa ligeira colocada num espaço

de profundo fogo.

E apagaram-se as luzes.

- Onde aguardas por mim, espécie de ar transparente

para levantar as mãos? onde te pões sobre a minha palavra,

espécie de boca recolhida no começo?

E é tão certo o dia que se elabora.

Então eu beijo, de grau a degrau, a escadaria daquele corpo.

E não chames mais por mim,

pensamento agachado nas ogivas da noite.

É primavera. Arde além rodeada pelo sal,

por inúmeras laranjas.

Hoje descubro as grandes razões da loucura,

os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas.

Há lugares onde esperar a primavera

como tendo na alma o corpo todo nu.

Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego

que principia. - É preciso cantar como se alguém

soubesse como cantar.

AS MUSAS CEGAS VII

Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar.

Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois,

ressoando violentamente pelos corredores

e paredes e pátios desta própria casa

que eu sou. Que eu serei até não sei quando.

É uma doce pancada à porta, alguma coisa

que desfaz e refaz um homem. Uma pancada

breve, breve -

e eu estremeço como um archote. Eu diria

que cantam, depois de baterem, que a noite

se move um pouco para a frente, para a eternidade.

Eu diria que sangra um ponto secreto

do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente

ou se queima como uma face. Escuta:

que a noite vagarosamente se queima

como a minha face.

Essa criança tem boca, há tantas finas raízes

que sobem do meu sangue. Um novo instrumento,

uma taça situou-se na terra, e há tantas

finas raízes que sobem do meu sangue. E uma candeia,

uma flor, uma pequena lira,

podem erguer-se de um rio de sangue, sobre o mundo -

um novo instrumento rodeado de campânulas

inclinadas, por ligeiras pedras húmidas,

pelos animais que movem no seu calmo halo de fogo

as grandes cabeças sonhadoras.

Essa criança dorme sobre os meus lagos de treva.

Pensei algumas palavras para oferecer-lhe. Esqueço-me

tantas vezes dos mistérios dessa porta.

Porque então é muito estreita com os seus espelhos

detrás, com o vestíbulo frio.

Mas é tão belo uma criança ainda enevoada,

uma criança que ascende com uma

grande música

desta rede de ossos, deste espinho de sexo,

da confusa pungência, escuta: da pungente

confusão

de um homem restrito com a sua vida tão lenta.

Essa criança é uma coisa que está nos meus dedos;

às vezes debruço-me sobre as cisternas, e as vertigens,

e as virilhas em chama.

É a minha vida. Mas essa criança

é tão brusca, tão brusca, ela destrói e aumenta

o meu coração.

No outono eu olhava as águas lentas,

ou as pistas deixadas na neve

de fevereiro, ou a cor feroz,

ou a arcada do céu com um silêncio completo.

Misturava-se o vinho dentro de mim, misturava-se

a ciência da minha carne

atónita. Escuta: cada vez a minha vida

é mais hermética.

Essa criança tem os pés na minha boca

dolorosa.

Se ela um dia adormecer com cerejas junto à respiração

pequena, e sonhar

estes imensos arcos que os séculos vão colocando

sob os astros - e se de tudo

a sua cabeça estremecer como numa loucura,

com altos picos em volta, com enormes faróis

acendendo e apagando - escuta: se essa criança

imaginar, e todas as cordas se juntarem tensamente

para que ela invente o seu próprio rio

sem nome -

será ainda que do meu sangue se erguem finas

raízes, e o tenebroso tumulto das minhas sombras

está no fundo, no fundo da sua ingénua vida,

da sua terrível vida sem remédio.

Se ela morrer, escuta, será que a minha boca

diz lá em baixo

essas majestosas e violentas palavras

dos poemas.

Essa criança que aperta as veias que iluminam

a minha garganta. Ela dorme. Escuta:

a sua vida estala como uma brasa, a sua vida

deslumbrante estala e aumenta.

Se um dia os archotes incendiarem essa boca,

e as faúlhas cercarem

o silêncio tremendo dessa pequena boca, escuta:

a minha boca, lá em baixo, está coberta de fogo.

A CARTA DA PAIXÃO

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.


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HELDER MACEDO nasceu em 30 de Novembro de 1935.

O seu primeiro livro de poemas foi Vesperal (Colecção Folhas de Poesias, Lisboa, 1957). O mais recente é uma antologia poética reúne selecções de dez títulos: Viagem de Inverno e Outros Poemas (Editora Record, Rio de Janeiro, 2000).

Publicou três romances, com edições em Portugal (Editorial Presença) e no Brasil (Editora Record): Partes de África, Pedro e Paula e Vícios e Virtudes. Pedro e Paula será publicado em tradução italiana (Einaudi) e espanhola (Tusquets) em 2001.

É também autor de uma vasta obra ensaística, da qual o livro mais recente foi, Viagens do Olhar: Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português (Campo das Letras, Porto, 1998), escrito em colaboração com Fernando Gil (Prémio do PEN Clube Português e Prémio Jacinto do Prado Coelho da Associação Internacional dos Críticos Literários).

Reside em Londres, onde é professor catedrático de estudos portugueses no King's College (Camoens Professor of Portuguese). Foi Secretário de Estado da Cultura em Portugal, no governo de Maria de Lourdes Pintassilgo, (1979).

[Principiamos onde o outro acaba]
Principiamos onde o outro acaba

pois um ao outro

oferecemos mais

que a verdade consentida a cada um,

a vida inteira descobrindo

nossa

no mistério paralelo revelado.

[Nunca mais rosas mancharão teu ventre]

Nunca mais rosas mancharão teu ventre

que eu desvendei para poder partir.

Ganhei a vida quando te perdi.

Conhemos juntos o cair da noite

escorriam dedos pelo teu cabelo.

Nunca mais rosas meu amor perdido.

Alfange branco decepando o abismo,

sonho crispado no que fôra angústia,

dor libertada.

[Os laços lentamente deslaçados]

Os laços lentamente deslaçados

ergo o meu canto sem razão nem regra

ao mundo sem fronteiras que me afronta.

O rosto que compus já não comporta

o fogo original que aprisionou.

Falso destino meu que me guiaste

além de onde é possível fingimento,

se a alma gretaste de raízes ocas,

às verdadeiras que já não comando,

deste o caminho que tinha vedado.

E sei agora, que me desconheço,

que só inteiro poderei voltar

ao fértil todo amorfo donde fim.

Cinco poemas de Viagem de inverno

2

Um salto de raposa sobre a estrada

último sol à beira da fronteira.

Depois somente a sombra

duma lua diurna

a câmara dos ecos

e círculos de corvos sobre a neve.

Viagem de inverno

metáfora fechada deslizando

em espelho opaco

gotícula de sémen

pulsando sobre pele infecundada

contexto desconexo

viagem literalmente de inverno

literalmente viagem

por estradas escorrendo rios turvos

nas ondas congeladas das montanhas

com troncos encravados

mastros brancos de frotas soterradas

até que muito ao Leste

o hotel aberto

vazio e duvidoso

galo campestre em luxo desplumado

e onde o chefe já perdera a estrela

por exagero de maçã nos molhos.
7
Paguei a conta da viagem grátis

anos depois

a prestações com juros agravados

quando era já difícil recordar

para onde vim

e ao que vinha quando aqui cheguei.

Não sobra nunca muito a quem só chega

nem o regresso

que seria outro chegar ao não-lugar

que só existe no se ter deixado

e assim ficou

como um jardim coberto em selva escura.

Tenho ainda o recibo e a mala velha onde trazia

o guia de turismo traduzido

da língua original que já esqueci

ou nunca soube

noutra língua também desconhecida.

18

O laranjal coberto de limões

no corpo suculento da memória

os sulcos desgastados do inverno

no areal perene das marés músculos frouxos celulite veias

em ti amor em ti no que nós somos

o incenso e a mirra do desejo

a erecção precária e persistente

nos lábios das entranhas do luar

a noite a luz a sombra a madrugada.

20

Fui ver e era mesmo uma raposa

como a outra que atravessou a estrada

aguardando deitada na varanda

onde o gato capado dorme os dias

indiferente à vida libertária

em bocejos de carnes enlatadas.

Se a raposa chamava tinha de ir

dei ao gato a ração obrigatória

e a varanda era a selva a rua o mar

a raposa vermelha um autocarro

dos que não chegam nunca ou já passaram

e exigem sempre o pagamento exacto.

Donde parece que a moral da história

ficou suspensa entre raposa e gato

num protesto aos transportes colectivos

quando afinal a rua extravasou

a selva é sem regresso e sem saída

e todo o viajante é solitário.

23

Eu sabia por ela as estações

os esquilos os corvos as gaivotas.

Chegada a primavera abria os nós

em flores precipitadas e carnudas

de longas redondezas tacteantes

que batiam no vidro da janela.

Não dava fruto a minha castanheira

e na verdade não era sequer minha

ou só seria porque nos olhámos

cada manhã por mais de trinta anos.

Mas dava flores e esquilos e gaivotas

verão outono corvos primavera

sem contabilidades biológicas

doutras fertilidades transmissíveis.

Dava flores como se desse versos

sem precisar por isso de escrevê-los

como os amantes se amam num só corpo

sem ver onde um começa e o outro acaba

aberta toda em lábios vaginais

com uterinos longos falos brancos.

Também este ano floriu no tempo certo.

Mas o inverno chegou em plenas maias.

Disseram que a raiz rachou ao meio

que o centro do seu tronco estava oco

não percebiam como tinha flores.

Cortaram membro a membro a minha árvore

ficou só a raiz e o seu vazio

e sobre o campo em volta a neve quente

das suas flores perplexas

impossíveis.







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Levantado do Chão - José Saramago

Resumo e comentários

Introdução

Sobre seu estilo, o próprio Saramago define como um momento "dos mais belos de sua vida de escritor". Quando escrevia Levantado do Chão (1982), seu primeiro sucesso editorial, na forma de um texto convencional, ele conta: "Sem saber como, sem ter pensado nisso, começo a escrever como se tivesse contando aquela história, e contando aquela história, conto-a sem pontuação, da mesma maneira como falamos, com sons e pausas". E complementa: "Abolir a pontuação não foi decidido por alguém que quer escrever algo novo. Foi resultado lógico da aceitação de um tipo de narração que se confunde muito com a oralidade, tem a ver com essa mágica do conto oral. (...) O que eu quero é que o leitor ouça... ouça aquilo que está no livro" (ZERO HORA, 1998).

O título

Levantado do Chão, de 1980, título que simboliza, nesta hora, com perfeição, a vida e a produção literária de um autor que conheceu o desalento e a incompreensão mas que soube porfiar, erguendo-se do chão, qual fértil campo espiritual que Saramago cultivou e que neste dia frutificou de uma forma perene. Nesta obra de 1980, Saramago eleva em epopéia a vida dos trabalhadores alentejanos, em três gerações de dor e sofrimento, viajando como narrador (que se trata a si próprio como «o narrador») entre o passado do século XV e o tempo do presente acompanhando Domingos Mau-Tempo, o seu filho João, os seus netos António e Gracinda, casada com António Espada, personagem importante na diérese.

Narrador

A diferenciação existente entre Levantado do Chão e a tradição do romance histórico é mais nítida no estatuto do narrador e nas funções das personagens. Quanto ao primeiro aspecto, notamos a existência de um narrador que acompanha a ação, comenta e critica, em onisciência, que usa o aforismo ou a profecia levando o leitor a incorporar-se no texto numa dialética ativa entre passado, presente e futuro, na qual ele é guia e consciência.

As personagens são alvo da análise objetiva até à exposição do estatuto fictício e de inverosimilhança numa mistura de realista e ficcional, que é apresentada ao leitor revelando a meta-ficção histórica.

A reconstrução do romance histórico em Saramago tem na personagem, como já indiciamos, outro exemplo de subversão. Na tradicional ordenação das personagens do romance histórico, podíamos encontrar o protagonista-tipo, representante das evoluções do momento histórico-social e as figuras históricas típicas. Estes elementos são a antítese em Saramago.

Tempo

A história contada por Saramago atravessa vários períodos de Portugal, desde a época da monarquia, no início do século XX, o fim da monarquia, a república, a ditadura e a volta da liberdade no final do século XX.

Espaço

Portugal - Alentejo

Personagens

1ª geração: Tempo de silêncio. São pessoas acuadas pela religião, pela opressão do governo e exploradas pelos donos das terras. A vida é marcada pelo conformismo e não vêem nenhuma perspectiva de mudança. É representada por Domingos Mau-Tempo

2ª geração: tempo das perguntas. Os homens passam a questionar sua situação e a ver que algo pode mudar e que a mudança depende deles, da sua coragem para enfrentar os donos das terras , o governo e se revoltar contra a Igreja. É representada por João Mau-Tempo

3ª geração: Tempo da luta. Os homens passam a fazer greves e a lutar pelas mudanças que desejam. Nesse período, muitos são presos e outros tantos morrem. Manuel Espada é o revolucionário que marca essa época.

Maria Adelaide é a possível resposta para o tempo das perguntas, porque assiste ao fim da ditadura e da geração dela para frente, tudo pode ser construído de maneira diferente, só depende dela.

Igreja

"...afinal o padre Agamedes é humaníssimo padre, como em todos os tempos e lugares ao longo desta história se viu, e há de estimar, mesmo sem por hoje pensar nas necessidades de mão-de-obra do latifúndio, variáveis há de estimar que este homem se junte a esta mulher e façam filhos...e algum benefício trarão à igreja em nascimento, casamento e morte, como assistentes já derma e hão de dar."

Latifundiários

São os "bertos" (brilho). Mantêm a estrutura medieval em Portugal "Em casa de Norberto, as senhoras tinham as delicadezas do sexo, bebiam seu chá, faziam sua malha...Sobre o canapés da sala demoravam-se as revistas de moda de Paris, aonde estava decidido que a família iria.."

"Isso é conversa antiqüíssima, já no tempo dos senhores reis assim se dizia, e a república não mudou nada, não são coisas que se mudem por tirar um rei e pôr um presidente, o mal está noutras monarquias, de Lamberto nasceu Dagoberto, da Dagoberto nasceu Alberto, de Alberto nasceu Florisberto, e depois veio Norberto, Berto, Sigisberto, Adalberto, Gilberto, Ansberto, Contraberto, que admiração é terem tão parecidos nomes, é o mesmo quer dizer latifúndio e dono dele."

"Lamberto não é homem para trabalhar esta grande terra com suas próprias mãos."

Enredo

Introdução: O autor faz reflexões sobre a questão agrária: "o que mais há na terra é paisagem" e a importância do dinheiro: "o lugar do dinheiro é um céu, um alto lugar onde os santos mudam de nome quando vem a ter que ser, mas o latifúndio não." Propõe-se, então, a contar uma história diferente de toda a situação de amargura de desespero do homem do campo: crescei e multiplicai-me, diz o latifúndio Mas tudo pode ser contado de outra maneira."

1ª geração: Domingos Mau-Tempo e Sara da Conceição

O livro tem início com uma grande chuva, que marca a chegada da família em São Cristóvão: "Chamo-me Domingos Mau-Tempo e sou sapateiro Disse um dos homens sentados a sua graça, Mau tempo trouxe vocemecê." Essa família saiu de Monte Lavre porque a vida estava difícil. A mulher, Sara da Conceição, é extremamente oprimida pelo mundo masculino. O marido entra na taberna e ela é obriga a ficar com o filho João do lado de fora, pois "a taberna é sítio dos homens". Depois de saírem de lá, buscam um lugar para ficar, e encontram uma casa simples, sem janelas. Sara sente que está grávida novamente, mas teme comentar com o marido.

O primeiro filho do casal, João Mau-Tempo, se dá muito bem com a mãe. Ele foi a causa do casamento de Sara e Domingos, pois ela se entregou a ele, solteira, no meio dos trigos, no mês de Maio, ficando grávida. O menino nasceu com olhos azuis e o autor nos explica que isso é uma descendência germânica que aparece em alguns membros dessa família.

Com o passar do tempo, Domingos começa a beber muito e Sara constantemente é obrigada a ir buscá-lo no meio da noite, em lágrimas. Devido às dívidas que Domingos fez na taberna, a família foi obrigada a se mudar novamente e Sara dá a luz a Anselmo, no meio de muita dor e sofrimento.

Na outra cidade, Landeira, Domingos é acolhido pelo Igreja do padre Agamedes, mas não abandona a bebida a acaba cobiçando uma mulher que vivia com o padre. Devido a isso, passou a ser mal visto na paróquia, mas jurou que se vingaria do padre, que o havia repreendido. Nomeio de uma missa, brigou com o pároco e eles rolaram as escadas da Igreja. Por causa desse acontecimento, a família se viu obrigada a se mudar para outro lugar.

Nesse momento, o narrador interrompe a história para localizar o leitor no momento histórico que Portugal atravessava. A monarquia havia caído e chegara a República, mas nada mudou na vida do homem do campo: "ente o latifúndio monárquico e o latifúndio republicano, não se viam diferenças."

Nessa época, os camponeses resolveram se juntar e ir ao administrador da fazenda, pedir melhores condições de vida. Lamberto, dono do latifúndio chama a polícia e muitos apanham e são presos e mortos.

Retomando a narrativa, percebemos que Sara têm mais dois filhos, Maria da Conceição e Domingos, entretanto, somente João tinha olhos azuis.

Com a passar dos anos, Domingos começou a desaparecer por algum tempo e depois voltar para casa. Sara, desesperada, voltou para a casa dos pais com os filhos. Domingos chegou a procurá-la algumas vezes, mas ela se separou definitivamente e se escondia dele. Sem ver sentido em sua vida, Domingos se enforca. Sara ainda cuida dos filhos e dos netos, mas passa a ter sonhos com Domingos e acaba ficando louca e morrendo doente.

2ª geração: João Mau-Tempo e Faustina

João, como filho mais velho, assume a família e começa a trabalhar desde pequeno. O mundo está em guerra e eles passam muitas dificuldades. "João não tem corpo de herói. É um pelém de dez anos retacos, um cavaco de gente que ainda olha as árvores... É uma injustiça que se lhe faz obrigá-lo a levantar-se ainda noite fechada, andar meio a dormir e com o estômago frouxo o pouco ou muito caminho que o separa do lugar de trabalho e depois dia fora, até o sol posto, para tornar a casa outra vez de noite, morto de fadiga, se isto é ainda fadiga, se não é já transe de morte."

Um pouco mais velho, João, então, conhece seu grande amor, Faustina, e decidem se casar. A família da menina não permitiu a união e eles fugiram, levando um pedaço de pão e chouriço para comer : "Em pouco tempo perdeu Faustina a sua donzela, e, quando terminaram lembrou-se João do pão de do chouriço, e como marido e mulher o repartiram"

Enquanto isso, o povo continuava a viver oprimido pelos bertos, apanhando muito do feitor da fazenda, sem poder reclamar.

João e Faustina têm três filhos, Antônio, Amélia e Gracinda. Antônio começa a trabalhar desde cedo, como o pai. O trabalho no campo é duro e os homens começam a se organizar em torno do comunismo. Sobre isso, o narrador afirma: "Outros, porém, já se levantaram, não no sentido próprio de quem suspirando se arranca do doloroso conforto... mas naquele outro e singular sentido que é acordar em pleno meio dia e descobrir que um minuto antes ainda era noite." João acaba se envolvendo em um manifesto e vai preso. Historicamente, Salazar tinha assumido o poder em Portugal. O padre Agamedes, continuava trabalhando para oprimir o povo e tinha sempre um discurso de conformismo, fazendo os homens aceitarem a situação. Nesse período, um jovem idealista, chamado Manuel Espada se destaca, por ser revolucionário e querer mudanças para a vida do trabalhador. Ele e Antônio, filho de João Mau-Tempo, tornam-se amigos. Movidos pelo discurso comunista, Manuel, João e outro vão aos patrões para reclamar das condições de trabalho e pedir melhores salários. Acabam sendo presos por muito tempo. Faustina vai até lá, juntamente com as filhas Gracinda e Amélia . Manuel Espada e Gracinda se vêem e se apaixonam. Todos acabam voltando livres para casa e Manuel e Gracinda começam a namorar, apesar dele ser sete anos mais velho que ela.

3ª geração: Manuel Espada e Gracinda Mau-Tempo

O casal não pode se unir de imediato, porque Gracinda é muito jovem e não tinha enxoval. Nesse período, Manuel é tido como o primeiro grevista de Monte Lavre, porque não aceita a opressão dos latifundiários. Gracinda, depois de três anos, sente-se pronta para casar e demonstra ter um pressentimento de que sua criança seria especial.

Finalmente, chega o dia da festa e a cerimônia é realizada pela padre Agamedes. O narrador deixa claro que o padre não é o mesmo do início do livro: "nem o padre é o mesmo, as pessoas não são eternas". Na verdade, essa figura representa a igreja. O padre começa a fazer o seu discurso: se não fôssemos nós, a igreja e o latifúndio, duas pessoas da santíssima trindade, sendo a terceira o Estado.. como sustentariam eles a alma e o corpo..." Antônio Mau-Tempo interrompe a fala do padre e faz um discurso altamente revolucionário, sabendo colocar o padre em seu lugar. O casamento se realiza e no dia seguinte, Manuel já tem que trabalhar.

As agitações políticas no latifúndio aumentam e João acaba sendo preso novamente. A família fica em lágrimas e ele é condenado a trinta dias de isolamento. Lá, sofre muito, sendo insultado e espancado nas pernas. Quando João sai da cadeia, já está velho, mas seus olhos têm o mesmo brilho azul de outrora. Antônio que estava no exército, volta para casa porque tem problemas de saúde, e vem trabalhar no latifúndio. Gracinda fica grávida e Manuel e Antônio passam a trabalhar juntos.

A criança do casal representa uma mudança "Quem em tudo isso não encontrar novidades, precisa que lhe tirem as escamas dos olhos ou lhe abram um buraco na orelha"

A menina chama-se Maria Adelaide Espada, e nasce com os mesmos olhos azuis do avô. O narrador antecipa o significado disso: "quando ele chegar faremos a comparação e então ficaremos a saber de que azul enfim se trata". João chega e vai ver a menina "João Mau-Tempo vê que seus olhos são imortais"

Historicamente, percebemos que a ditadura continua. O narrador, que domina o texto, demonstra sua tristeza por perceber que a história não mudava, porém, os latifundiários se organizam novamente e o povo passa a pedir eleições livres: "o mar levanta-se, levantam-se os braços, as mãos trazem as rédeas ou trazem pedras apanhadas do chão (...) Era uma cena de batalha digna... Esta foi a carga do vinte e três de junho fixai bem a data na memória E quando os dragões passaram João Mau-Tempo não pode segurar as lágrimas, de raiva eram e de uma grande tristeza também. Quando será que acaba o nosso martírio" João chorava porque a ditadura não caíra com a insurreição dos camponeses.

Porém, mais uma vez, os trabalhadores se organizaram e foi um grande momento da história do latifúndio. Era o mês de abril, período em que aconteceu em Portugal a Revolução dos Cravos, que finalmente acabou com a ditadura. "foi-se deslaçando a sagrada aliança" João fica doente e sabe que vai morrer. A neta Maria Adelaide vem para se despedir do avô e, ao se olharem, é como se "tivessem trocado de olhos".

A menina está crescida e desde cedo começa a trabalhar longe. Já tem 19 anos e percebe que não foi criada para ser princesa, mas tem sonhos. Um dia, quando está voltando do trabalho para casa, percebe que algo mudou. Pressente que a ditadura chegou ao fim pela revolução do povo. "é como se tivesse vivido sempre com os olhos fechados e agora, enfim, os tivesse 'abrido' ...é dona da sua liberdade." Maria Adelaide começa a chorar e a gritar: "Viva Portugal". No dia 1º de maio, dia do trabalho, ela caminha pelas ruas de seu país: está aqui escrito que o primeiro de Maio será festejado livremente, é dia feriado em todo o país "Tanto se apregoou de mudanças e de esperanças, saíram as tropas dos quartéis, coroaram-se os canhões de ramos e de eucalipto e os cravos encarnados, diga vermelhos, minha senhora, diga vermelhos, que agora já se pode".

"Depois se Maria Adelaide começar a chorar não se admirem, chorará nesta mesma noite quando ouvir dizer a voz na rádio, Viva Portugal, será nesse mesmo instante, ou já terá sido antes, às primeiras notícias de ontem, quando atravessou rua para ver mais perto os solados...ela sabe, percebe que a vida mudou." No meio da festa do povo e junto de Maria Adelaide, estão Domingos, Sara, João, Faustina, e tantos outros que morreram na luta pela liberdade e pela reforma agrária. Todos vieram ver de perto esse dia "levantado e principal".

Comentários

Mau-Tempo

Família que representa o sofrimento do homem do campo português e o mau tempo da ditadura.

"Há quem diga que sem o nome que temos não saberíamos quem somos, é um dito que parece perspicaz e filosófico."

"Esta família Mau-Tempo parece escolhida pelo destino para negros casos"

Olhos Azuis

Certas pessoas dessa família nascem com olhos azuis.

"...outra rapariga, quase quinhentos anos antes, que estando um dia sozinha na fonte a encher sua infusa, viu chegar-se um daqueles estrangeiros que...desatendendo aos gritos e rogos da donzela, a levou a uma espessura de fetos, onde, a seu prazer, a forçou. Era um galhardo homem de pele branca e olhos azuis, que não tinha outra culpa que o atiçado no sangue... Assim, durante quatro séculos estes olhos azuis vindos da Germânia apareceram e desapareceram, tal como cometas que se perdem no caminho e regressam quando com eles já não se conta..."

História de Portugal

Monarquia/República: "O trono caíra, o altar dizia que por ora não era este reino o seu mundo, o latifúndio percebeu tudo e deixou-se estar, e um litro de azeite custava mais de dois mil réis, dez vezes a jornada de um homem. Viva a República! Viva o patrão!"

Guerra: "É a guerra aquele monstro que primeiro devore os homens lhes despeja os bolos, um por um, moeda atrás de moeda... Em alguns lugares ao redor houve gente que pôs o luto, o nosso parente morreu na guerra. O governo mandava condolências, sentidos pêsames e dizia que a pátria."

Ditadura de Salazar: "Viva Portugal...estamos aqui reunidos....como continuadores da grande gesta lusa e daqueles nossos maiores que deram novos mundos ao mundo e dilataram a fé e o império, mais dizemos que ao toque do clarim nos reunimos como um só homem, ao redor de Salazar, o gênio que consagrou a sua vida, aqui tudo grita Salazar Salazar, ...abaixo o comunismo, morram os traidores da pátria , morram..."

Fim da Ditadura: Revolução dos Cravos

É importante lembrar que o período revolucionário dos Cravos tem início com as conturbações dos anos sessenta; passa pela eclosão do 25 de Abril de 1974 e chega a uma fase vista como de repercussão do processo revolucionário, de abertura político-social, que cobre toda a década seguinte. Na relação com o contexto social, essa narrativa ficcional é, por um lado, impulsionada pelas circunstâncias históricas e, por outro lado, é impulsionadora da reflexão crítica sobre o processo revolucionário.

Posição da Mulher

Percebe-se que a mulher também se levanta do chão. Sara é oprimida pelo mundo masculino; Faustina tem maior participação na vida da família e na vida do marido; Gracinda é mais decidida e tem opinião forte, personalidade; Maria Adelaide marca o levantar da mulher na sociedade, porque é independente, trabalha desde cedo e recebe a missão de mudar (olhos azuis).

"De mulheres nem vale a pena falar, tão constante é o seu fado de parideiras e animais de carga" (Sara)

"De homens se continuará a falar, mas também cada vez mais de mulheres... é que os tempos vêm aí..." (Faustina)

"afinal não é tão grande a diferença assim entre mulher e homem, a não ser o salário." (Gracinda)

"ela sabe, percebe que a vida mudou." (Maria Adelaide)

Latifúndio X mar

"O latifúndio é o mar interior. Tem seus cardumes de peixes miúdos e comestíveis, suas barrancudas e piranhas de má morte... É mediterrâneo...dizer que o latifúndio é um mar...se esta água agitarmos , toda a outra em redor se move, às vezes de tão longe que os olhos o negam, por isso chamaríamos enganadamente pântano a este mar, e o que fosse.. Este é o grande mar do latifúndio... A este mar do latifúndio chegam ressacas, pancadas, empurrões das águas e quando às vezes basta derrubar um muro, ou simplesmente saltá-lo...muito se irá falar do latifúndio, qual mar, qual nada, o que isto é, é terra as mais das vezes seca, por isso é que os homens dizem Quando será que matamos a sede.

Camões X Fernando Pessoa X José Saramago

Tanto Camões quanto Fernando Pessoa relacionam Portugal com o mar.

Camões escreveu OS LUSÍADAS no momento em que Portugal atingia sua soberania, conseguida através das grandes navegações

Fernando Pessoa escreveu MENSAGEM. Nessa obra poética, ele defende que o Rei D. Sebastião, que sumiu em uma batalha voltaria pelo mar e salvaria Portugal da decadência.

Saramago inova, porque com o livro LEVANTADO DO CHÃO, demonstra que a única solução para Portugal é 'levantar do chão'. Deixar de aguardar soluções maravilhosas e míticas e lutar pelo país.

Santíssima Trindade do Latifúndio

Latifúndio X Igreja X Governo

Utilização da Parábolas

"Primeiro há de encontrar uma boa pedra plana, com mão travessa de altura e larga bastante par ameia folha de jornal. O dia não será de vento, para que se não espalhe o montinho de pimenta que, na confusão dos títulos e a da letrinha miúda itálica e redonda, vai ser o gatilho desta espingarda. Como toda a gente sabe, a lebre é curiosa, Ainda mais do que o gato; Nem há comparação basta dizer-se que o gato não quer saber do que vai pelo mundo, a ele tanto se lhe dá, ao passo que a lebre não pode ver um jornal caído numa estrada que não vá logo ver o que se passa, e tanto assim, que há caçadores que descobriram um sistema, põem-se atalaia atrás dum valado q quando a lebre se chega para saber as notícias, trás, fogo nela, o pior é que o jornal fica esfarrapado...o sítio é mau para as lebres, às vezes acontece daí a pouco aparece a primeira lebre, aos saltos, morde além, trinca por este lado, e de repente fica com as orelhas espetadas, viu o jornal, Que faz ela, Coitada, nem desconfia , vai naquela ânsia de saber notícias, corre para o jornal e começa a ler, é uma lebre feliz, contente, não lhe escapa uma linha , E o que é que acontece...Pergunte a quem quiser, até uma criança de colo sabe essas coisas.

São os homens feitos de maneira que mesmo quando mentem dizem outra verdade, se pelo contrário é a verdade que querem lançar da boca para fora, vai sempre com ela uma forma de mentir, mesmo não havendo o propósito... Querem ver que vocemecê também é como as lebres."


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Memorial do Convento - José Saramago

D. João V está casado com D. Maria Ana Josefa há mais de dois anos, mas ela ainda não engravidou. A rainha reza novenas e, duas vezes por semana, recebe o rei em seus aposentos.É preciso dizer aqui que o rei, quando ambos se casaram, dormia com ela todos os dias, mas resolveu separar os aposentos por causa de um cobertor de penas de ganso que trouxe ela da Áustria, e, com o passar do tempos, somando-se a ele humores de ambos, passou a ter cheiro insuportável.O rei não fez ainda 22 anos e monta, para se distrair e porque gosta, a réplica da Basílica de S. Pedro.

Mas, "O cântaro está à espera da fonte." metáfora para definir que a rainha está à espera do rei como se fora um vaso onde ele depositará seu sucessor. E para os aposentos da rainha o rei se dirige, mas , como se fosse um apresentador, o narrador nos informa que chegou ao castelo D. Nuno da Cunha, bispo inquisidor, e traz consigo um franciscano velho. Afirma o bispo que o frei Antônio de São José assegurou que se o rei se dignasse a construir um convento em Mafra, teria descendência:Enquanto isso, a rainha conversa com a marquesa de Unhão, rezam jaculatórias e proferem nomes de santos. Saído o bispo e o frei, o rei se anuncia D. Maria tem que "guardar o choco", a conselho dos médicos e murmura orações, pedindo ao menos um filho que seja. Sonha com o infante D. Francisco, seu cunhado e dorme em paz. Em paz? Os percevejos, mal cessam as mexidas no colchão real, "começam a sair das fendas, dos refegos, e se deixam cair do alto do dossel, assim tornando mais rápida a viagem."D. João também sonhará esta noite, em seu quarto. Sonhará com seus descendentes, com o filho que poderá advir da promessa da construção do convento de Mafra. Um convento, conforme disse frei Antônio de S. José, só para franciscanos...Frei Miguel da Anunciação morreu de tifo ( ou febre tifóide) e seu corpo exalou, durante três dias, nas cerimônias, um suavíssimo cheiro: "(...) se vivo fizera caridades, defunto obrava maravilhas."A notícia correu e, antes que invadissem a igreja à procura de milagres, levaram o corpo às ocultas, e às ocultas o enterraram:

O narrador enfatiza que Lisboa é terra de ladrões que pilham as igrejas e acrescenta que outros lugares também foram roubados: Guimarães, por exemplo. Um outro caso que é narrado sobre milagres é o de ladrões que foram roubar a igreja de S. Francisco e que lá foram recebidos pelo próprio santo, em pessoa. Um dos ladrões, tomado pelo pavor, sofreu um choque tão grande que ficou como morto, estatelado, no chão. Socorrido por fiéis que o colocaram sobre o altar, recuperou-se. O santo transpirou demasiado e para fazer acordar o homem que estava dado como morto, passaram nele uma toalha umedecida com o suor do santo. O ladrão se recuperou e , levantou-se e foi embora, "salvo e arrependido".

Outro caso contado pelo narrador é o do furto de três lâmpadas de prata do convento de S. Francisco de Xabregas no qual entraram gatunos pela clarabóia e, passando junto à capela de Santo Antônio, nada ali roubaram . Entrando na igreja, os frades deram com ela às escuras. Constato que não era o azeite que faltava, mas as lâmpadas que haviam sido levadas; os religiosos ainda puderam ver as correntes de onde pendiam as lâmpadas se balançando e saíram esbaforidos pelas estradas, atrás dos ladrões.

E então, desconfiados de que os ladrões pudessem estar ainda escondidos na igreja, deram volta a ela, palmilharam-na e só então viram que no altar de Santo Antônio, rico em parta, nada havia sido mexido.O frade, inflamado pelo zelo, culpou Santo Antônio por ter deixado ali passar alguém, sem que nada lhe tirasse, e ir roubar ao altar-mor:O frade deixou que o Menino "como fiador", até que o santo se dignasse a devolver as lâmpadas. Dormiram os frades, alguns temerosos que o santo se desforrasse do insulto...Na manhã seguinte, apareceu na portaria do convento um estudante que, querendo falar ao prelado, revelou estarem as lâmpadas no Mosteiro da Cotovia, dos padres da Companhia de Jesus. O narrador faz-nos desconfiar que tal estudante, apesar de querer ser padre, fora o autor do furto e que, arrependido, deixara lá as lâmpadas, posto não ter coragem de restituí-las pessoalmente.

Voltaram as lâmpadas a S. Francisco de Xabregas...Retoma o narrador o caso do frei Antônio de S. José , observe que ele ( o narrador) faz-nos de novo desconfiar de que o frei, através do confessor de D. Maria Ana, tinha sabido da gravidez da rainha bem antes de que o rei.

Os homens vão à procissão e as mulheres ficam à janela, "esse é o costume."Os penitentes passam com grilhões enrolados às pernas, os ombros suportando grossas barras de ferro; chicoteiam-se com cordões em cujas pontas prendem-se bolas de cera dura Depois de rezar, D. Maria Ana, acompanhada das damas, começa a adormecer. Sonha com o sudário e quando adormece profundamente aparece-lhe o cunhado Francisco, montado em um cavalo enfeitado, voltando da caça: Sem a mão, que ficara metade em Portugal, metade na Espanha, Baltazar não se dobrara: mandara fazer um gancho e um espigão, perambulara pelo interior de Portugal, soubera que o exército de que fizera parte andava agora roto e disperso, a tropa andava descalça e violentando mulheres.Baltazar dirigia-se agora para Lisboa, credor de uma mão que perdera na guerra.Leva os ferros no alforge porque, em dados momentos, sente que ainda tem a mão e, por isso, se sente mais livre e feliz. É como se escondesse de si mesmo esta infelicidade. Passa por Pegões e ali matará um homem, entre dois que o quiseram roubar, mesmo que os avisasse que nada portava de valor.Baltazar sonha frequentemente que ainda tem a mão que perdera; anda descalço.De barco, terminou o percurso e chegou a Lisboa, finalmente. O cais imundo, com seus cheiros, aguça os sentidos de Baltazar e torce-lhe o estômago, mas ele tem esperanças de que o indenizem pela mão perdida. De longe, vê o palácio de D. João V e vendo passar as pessoas, dá-lhe uma enorme saudade da guerra. Andou por bairros e praças e , por fim, à tarde, foi beber um caldo à portaria do convento de São Francisco.Conhece João Elvas, soldado como ele, um pouco mais velho. Ambos pobres, perdidos por Lisboa, procuram um lugar para dormir: dormiram entre homens, uns temendo os outros, contando casos de assassinatos e mortes.

D. Maria Ana está de luto pela morte do irmão José, imperador da Áustria, que morreu de varíola. Apesar de grávida, sangraram-na três vezes e deixaram-na tão debilitada a ponto de estar abatida.O palácio também está triste, o rei declarou luto oficial; mas a cidade, esclarece o narrador, está alegre:Hoje vai haver um auto-de-fé, é um domingo e os moradores gostam de assistir aos tormentos impostos aos condenados. O rei jantará na Inquisição junto com os irmãos, os infantes, a rainha, pelo motivo exposto, não participará da festa. Abunda a comida, o rei é sóbrio e não bebe vinho.O povo furioso grita impropérios aos condenados, as mulheres , debruçadas nos peitoris, guincham: "a procissão é uma serpente enorme". Entre as pessoas, está Sebastiana Maria de Jesus, a mãe de Blimunda .Procura aflitamente pela filha, que imaginava estar condenada também a degredo e de quem não ouviu o nome. Vê a filha entre as pessoas que acompanham o auto, mas sabe que ela não poderá falar-lhe, sob pena de condenação. padre e Baltazar estavam com ela em casa:

Baltazar nem sabia por que viera àquela casa; depois do auto-de-fé viera a ela com padre Bartolomeu Lourenço; Blimunda deixara a porta aberta para que Baltazar entrasse. Ele viera atrás, o padre acendera a candeia e Blimunda esquentou a sopa para os três.Havia somente uma colher. O padre comeu primeiro e passou-a a Baltazar e, depois, pegando a colher de que se servira o soldado, dirigiu-se à Blimunda:Casados...O padre deitou a bênção em tudo quanto cercava o casal e saiu.Blimunda jura que nunca olhará por dentro de Baltazar , ele retruca que ela já o fez: "Juras que não o farás, e já o fizeste."Deitaram-se. Blimunda era virgem e entrega-se a ele. Com o sangue que correu dela, persignou-se, fez uma cruz sobre o peito de Baltazar. E quando amanheceu, ele viu Blimunda deitada a seu lado, de olhos fechados, a comer pão.Quando terminou de comer, abriu os olhos e disse: "Nunca te olharei por dentro."

Corre um boato de que os franceses estão para invadir Portugal, mas chega, na verdade, uma frota francesa trazendo bacalhau, o que andava em falta. Baltazar imagina como se sentem os soldados que esperavam pela batalha,o soldado que mora em Baltazar sente saudades da guerra, mas imagina que se para lá fosse teria muitas saudades, demasiadas, de Blimunda, de quem ainda não consegue decifrar direito a certa cor dos olhos.Estavam Baltazar e João Elvas no Terreiro do Paço, conversando , quando viram sair do palácio o padre Bartolomeu de Gusmão; João Elvas o aponta como "o Voador". O padre chama Baltazar a um lado e diz que, após ter falado aos desembargadores sobre a pensão de guerra pretendida pelo soldado, por ter perdido nela a mão, responderam a ele que "iam ponderar o teu caso, se vale a pena fazeres petição, depois me darão uma reposta."

Baltazar pergunta quando poderá obter a resposta e Bartolomeu diz que não sabe, mas promete pessoalmente falar ao rei, "que me distingue com sua estima e proteção." O soldado espanta-se ao saber que o padre privava da amizade do rei e nada fez para salvar a mãe de Blimunda, que também era sua conhecida.Baltazar pergunta a ele por que o apelidaram O Voador. O padre diz porque voara:

Bartolomeu se queixa de que as pessoas não o compreendem e diz temer o Santo Ofício, por isso tem amizades que o defendam e é cheio de precauções. O soldado, então, pergunta a ele, que conhecia a mãe de Blimunda e sabia-lhe as artes, por que a moça sempre come pão antes de abrir os olhos.Bartolomeu convide Baltazar para ir a S. Sebastião da Pedreira ver a máquina que estava construindo; aluga uma mula, mas Baltazar vai a pé; o padre lhe diz que cham por ironia o seu objeto voador de "passarola" . Ao chegar ao portão da quinta do duque, onde está a máquina voadora, o padre tira a chave do bolso e abre o portão, depois conduz Baltazar até o celeiro.Bartolomeu indica-lhe leme, velas e mastro e o convida para trabalhar para ele, o que assusta o soldado, que se considera, na realidade, um homem do campo e, ainda por cima, maneta. Sete-Sóis ouvira com atenção a explicação do padre e levantando um pouco os braços, tomado de coragem, disse.

O padre arranjou emprego para Baltazar, enquanto não pode, por falta de dinheiro, continuar a construir a passarola. O Sete-Sóis trabalha num açougue do Terreiro do Paço, transportando peças de carne nas costas. Podem, então, ele e Blimunda, comer melhor, com o que ganha de resto.D. Maria Ana está no fim da gravidez, bojuda "como uma nau da Índia". Holandeses invadem Pernambuco, naus trazem carregamento da China, há lutas no Recife, mas nada disso interessa à rainha que .Batizaram a princesa, no dia de Nossa Senhora do Ó , sete bispos e "ficou a chamar-se Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara, logo ali com o título de Dona adiante, apesar de tão pequena ainda, está ao colo, baba-se e já é dona(...) Do tio e padrinho, D. Francisco, ganhou uma cruz de brilhantes, pouco, perto do que a mãe recebera do cunhado: brincos de diamantes, de alto valor.Baltazar e Blimunda foram ver a festa, ele mais cansado, de tanto carregar tanta carne para o banquete; e dói-lhe a mão esquerda, na qual usa o gancho para tais finalidades; Blimunda segura-lhe a mão direita. Frei Antônio morrera pouco antes, sem ter visto o fruto de sua premonição.

Baltazar acorda sempre cedo, antigo hábito de soldado, e o narrador nos anuncia que o ano mudou já, distante aquele dia em que ambos se conheceram e se amaram pela primeira vez. Todos os dias, antes que nascesse o sol, Blimunda acordava e, antes de abrir os olhos, comia o pão que deixava de propósito no alforje.Baltazar, hoje, escondera-lhe o pão: "Hoje se saberá.", anuncia o narrador pondo-a diante de nós a buscar e tatear o que o soldado havia escondido. Baltazar avisa a mulher que escondera o pão; ela grita, apavorada, brava.Confessa a ele que "enxerga as pessoas por dentro", caso esteja em jejum, por isso come o pão, mastigando-o vagarosamente antes de abrir os olhos.Durante todo o dia, no trabalho, duvidou Baltazar se tivera ou não tal conversa com a mulher que amava, achando que sonhara. À noite, combinaram que , dia seguinte, sairiam cedo, ela na frente, sem comer, ele atrás, sem ser visto por dentro e caminhariam pela cidade. Assim foi. Blimunda indica o lado de dentro das pessoas: uma mulher com uma criança no ventre, mas o bebê tem duas voltas do cordão enrolado no pescoço; vê um um peixe gigante, fossilizado, sob o granito, um frade com suas bichas. E indica-lhe um lugar, onde pede que ele cave com o gancho, à procura da moeda que ali se encontra.

Pede que a leve para casa, não quer mais ver.Da tença que pediu ao padre Bartolomeu, nada de notícias ainda; e sabe que o mandarão embora do açougue logo que possam se livrar dele; restará, no entanto, a portaria dos conventos onde se oferecem caldos: é difícil morrer de fome em Lisboa.O infante D. Pedro é nascido e quatro bispos o batizaram..O rei foi a Mafra escolher onde se construiria o convento prometido.

Blimunda e Sete-Sóis foram trabalhar na quinta do duque de Aveiro, a pedido do padre. Levavam um quase nada como mudança, tão pouco os haveres dos dois; e a moça deixou para sempre o lugar em que nascera, onde viveu Sebastiana Maria de Jesus.Passam a morar ali; Blimunda cata os bichos do cabelo de Baltazar, mas ele pouco pode ajudá-la: falta-lhe a mão com que mate o inseto. Mas nem sempre o trabalho pode ser completo para Sete-Sóis:

Uma vez ou outra, levanta-se Blimunda mais cedo, e sem pôr os olhos em Baltazar, vai inspecionar o trabalho da passarola, a ver se descobre bolha de ar entrançada nos escondidos do ferro utilizado. Vai desvendando onde o ferro é frágil e disso gosta o padre. De vez em quando, o padre vem por lá a experimentar para aquelas paredes os sermões que compõem, enquanto Blimunda varre o pátio e Baltazar bate os ferros que compõem a passarola. O padre observa que precisa construir ali uma forja para que possam fundir os ferros.Anuncia-lhes, ainda, que vai para a Holanda, onde pretende aprender a arte de comandar o éter, o que fará subir a nave até onde queira.Baltazar e Bliunda despedem-se de Lisboa e vão a uma tourada; na madrugada seguinte,os dois partem para Mafra.

Baltazar foi recebido pelo pai e pela mãe, que demonstraram por ele muitas saudades. Contou-lhes a guerra, a mão perdida e apresentou-lhes Blimunda. Tiveram alguma dúvida sobre ela, mas esta contou-lhes a vida, a de sua mãe, negou ser judia e acabou tocando o coração de Marta Maria, a sogra.A única irmã de Baltazar, Inês Antônia, casara-se com Álvaro Pedreiro e já tinha dois filhos.Baltazar dispõe-se a arrumar trabalho para si e Blimunda, mas Marta diz que prefere que ela fique, para que possa conhecê-la devagar. Blimunda , ao ver os filhos de Inês, sabe que o mais velho vai morrer de bexigas ( varíola) e que só o mais novo sobrará.Em Lisboa, a rainha engravida novamente. D. Pedro morrerá e o novo infante será rei .

Baltazar ajuda o pai no campo, onde, por força da mão perdida, tem que reaprender cada coisa. Ainda tenta auxiliar o cunhado na construção da quinta dos viscondes de Vilanova e pela primeira vez lhe ocorre que poderia ter perdido uma perna, em vez do braço, seria bem mais fácil, dessa forma, viver. Todos esperam que se inicie a construção do convento, aí, sim, haverá trabalho para todos.Em Lisboa, o rei anda doente e de vez em quando lhe dão confissão e extrema-unção; vai para Azeitão ver se com mezinhas se curam estas melancolias de que sofre. D. Francisco fica em Lisboa, a tramar a sua vida e a do próprio irmão; pela cabeça dele passam pensamentos esquisitos como casar-se com a cunhada. Por sua vez, D. Maria Ana tem sonhos que considera .Confessam-se ambos o amor que nutrem um pelo outro, mas D. João se salvará e nunca mais D. Maria reviverá tais sonhos ou conversas com o cunhado.

O padre Bartolomeu regressou da Holanda, não sabemos se trouxe ou não os segredos que buscava. Foi à Quinta de S. Sebastião da Pedreira: três anos inteiros haviam se passado e tudo estava abandonado, o material que trabalhara disperso pelo chão, "ninguém adivinharia o que ali se andara perpetrando." O padre vê rastros de Baltazar, mas não os vê de Blimunda e julga que ela morrera. Depois, parte para Coimbra, não sem antes passar por Mafra, onde vai ver os homens que iniciam o trabalho do Convento.Procurou por Baltazar e Blimunda, ao pároco, informa que os casara em Lisboa.Blimunda veio abrir a porta e reconheceu-o pelo vulto, quando desmontava. Beijou-lhe a mão. Marta Maria estranhou que sua nora fosse abrir a porta a quem não batesse ainda. Mais tarde, chegam Baltazar e o pai e aquele, por convivência com Blimunda, ao ver a mula adivinha tratar-se do padre.Marta Maria, que já desconfiava ter uma "nascida"( tumor) no ventre, lamenta nada ter a oferecer ao padre, nem comida -- a não ser o galo -, nem abrigo para passar a noite.O padre Bartolomeu dorme na casa do pároco e, pela madrugada, chegam Blimunda e Baltazar. Ela sem comer. Bartolomeu os ama, eles sabem:Baltazar pergunta se o éter é a alma e o padre diz que não, que é da vontade dos vivos que ele se compõe. Blimunda espantou-se e o padre pediu que ela o olhasse por dentro. Ela viu uma nuvem escura, à altura do estômago. Era a vontade, diferente da alma, o que faria voar a passarola.Bartolomeu montou na mula, disse que ia a Coimbra e que , quando retornasse à Lisboa, mandaria avisar os dois para que lá tivessem. Baltazar ofereceu o pão à Blimunda, mas ela pediu, primeiro, pra ver a vontade dos homens que trabalhavam no convento.

O filho mais velho de Inês Antônia e Álvaro Diogo morreu há três meses, de bexigas. Álvaro tem a promessa de conseguir emprego na construção do convento; Marta Maria sofre de dores terríveis no ventre. João Francisco está infeliz porque o filho partirá novamente para Lisboa, e o convento dará trabalho a muitos homens.Blimunda foi a missa em jejum e viu que dentro da hóstia também havia a tal nuvem fechada, vontade dos homens...O padre Bartolomeu de Gusmão escreve de Coimbra e diz ter chegado bem, mas agora viera uma nova carta para que seguissem para Lisboa "tão cedo pudessem". Partiram em dois meses, porque o rei vinha a Mafra inaugurar a obra do convento. Sete-Sóis e Blimunda conseguiram lugar na igreja. No dia seguinte formou-se a procissão, o rei apareceu. A pedra principal foi benzida; foi tanta a pompa que gastaram-se nisso duzentos mil cruzados.Partiram Baltazar e Blimunda para Lisboa. A mãe Marta Maria se despede do filho dizendo que não o tornará a ver. Blimunda e Sete-Sóis dormem na estrada:Por fim, chegaram à quinta onde esperariam o padre voador. Mal chegaram, choveu.

Os arames e os ferros enferrujaram-se e os panos da passarola cobrem-se de mofo; o vime, ressequido, destrança-se: "obra que em meio ficou não precisa envelhecer para ser ruína." Baltazar experimenta os ferros, tudo perdido, melhor começar outra vez.Enquanto o padre não chega, constrói-se a forja, vai-se a um ferreiro e vê como se faz o fole.Quando Bartolomeu de Gusmão chegou e viu o fole pronto, peça por peça desenhada e feita por Sete-Sóis, ficou contente e disse: "Um dia voarão os filhos do homem."Encomendou a Blimunda duas mil vontades dos homens e mulheres que morreriam a fim de que, junto com âmbar e ímãs, pudessem fazer subir a nau que agora construíam.O padre distribui tarefas, indica a Sete-Sóis onde comprar ferro, vime e peles para os foles, pede segredo absoluto de tudo o que estão a fazer. Trabalham na passarola quase um ano inteiro, procissões passam em delírio pelas ruas, povo misturado ao clero, clero misturado aos nobres.

O padre Bartolomeu Lourenço voltou a Coimbra já doutor em cânones, e agora pode ser visto na casa de uma viúva. D. João manda vir da itália o maestro barroco Domênico Scarlatti, a fim de dar lições de música a sua filha, a infanta D. Maria Bárbara. Maestro e padre tornam-se amigos, comungando as mesmas idéias e sonhos. Confiante no amigo, o padre leva-o a S. Sebastião da Pedreira:Padre Bartolomeu apresenta os amigos e a passarola a Scarlatti. Blimunda chega da horta trazendo "brincos de cereja", a fim de brincar com Baltazar. Quando os viu, o músico pensou: Vênus e Vulcano... É bom você se lembrar disso também: o mito que rege o livro é exatamente este: Vênus e Vulcano, a deusa da beleza e o feio e desengonçado, manco Vulcano, filho feito somente por Hera, a quem horrorizou o nascimento de filho tão feio...O padre diz a Scarlatti que ele e Baltazar têm, ambos, 35 anos e que não poderiam ser pai e filho, mas poderiam ser irmãos; portanto, desde o começo da história, o tempo que se passou pode ser contado: nove anos.Mostrada a passarola por dentro, retira-se o músico, mas promete voltar e trazer o cravo, que tocará enquanto Blimunda e Baltazar trabalham. O padre lá permaneceu, onde treinou seu sermão para que os dois ouvissem. Discutem sobre Deus uno, trino.Blimunda adormeceu, com a cabeça apoiada no ombro de Baltazar; um pouco mais tarde ele a levou para dormir. O padre saiu para o pátio, e toda a noite ali permaneceu, tomado por tentações.

Muitas vezes voltou o maestro à quinta e pedia que não parassem o trabalho; ali, em meio aos ruídos e grandes barulhos, confusão, tocava seu cravo.Há um surto de varíola em Lisboa, oriundo de uma nau vinda do Brasil. O padre pede à Blimunda que vá à cidade e recolha as vontades das pessoas. É assim que ela, em jejum, um dia inteiro se põe a recolher tais vontades. Um mês depois , são mais de mil vontades presas ao frasco em que Blimunda as recolhia.; e quando a epidemia terminou, ela havia aprisionado duas mil vontades.Foi então que Blimunda caiu doente. Nada a curava da extrema magreza; mas um dia, Scarlatti pôs a tocar e ela abriu os olhos e chorou. O maestro veio , então, todos os dias, havendo chuva ou sol; e a saúde de Blimunda voltou depressa.Um dia , Baltazar e Blimunda vão à Lisboa e encontram Bartolomeu doente, magro e pálido. Parecia ter medo de algo.

O duque de Aveiro está por voltar , Blimunda e Sete-Sóis querem saber que destino darão às suas vidas. Morre o Infante D. Miguel por salvar D. Francisco, dizem que o reino está mal governado.Blimunda diz ao padre saber que o Santo Ofício se aproxima dele e Bartolomeu fica com medo de que o acusem de haver se convertido ao judaísmo ( isso realmente aconteceu na história real de Bartolomeu Lourenço de Gusmão), que se entrega a feitiçarias. Presos à quinta, os dois vêem passar os meses; um dia, ouvem a mula do padre bater os cascos nas pedras.

Eram duas horas da tarde e havia muito trabalho a fazer, não poderiam mais perder sequer um minuto. retiraram as telhas, colocaram as bolas de âmbar nos cruzamentos dos arames, abriram as velas superiores. Blimunda está calma, como se em toda a sua vida nada mais tivesse feito senão voar. Às quatro horas está tudo pronto; o cravo ficará lá, a fim de despertar a curiosidade dos inquisidores.Subiu a passarola. Baltazar e Blimunda foram lançados ao chão, Bartolomeu controlou-a e chamou os dois:

Já não tinham medo de nada, ela e Baltazar. Quando Sete-Sóis viu que voavam tão belamente, pôs-se a chorar; aquele homem tão forte, que já estivera na guerra e já matara um homem com seu espigão, chorava agora de felicidade. Abraçaram-se os três.e ainda tiveram tempo de ver, do alto, os homens que os perseguiam. Nada foi achado na quinta a não ser vestígios, nem o cravo se achou porque Scarlatti, indo visitar a quinta, viu quando os três fugiam às pressas na passarola. Entrando, deu fim ao cravo, jogando-o no poço.Quando, finalmente, passam por sobre Mafra, velejam sobre as obras do convento e as pessoas, tantas, julgam ter visto ali, naquela hora, passar sobre eles o Espírito Santo. A máquina pousara, o padre, falando a pessoas invisíveis, parece ter enlouquecido. Quando ambos dormem, o padre tenta atear fogo à máquina , mas Baltazar e Blimunda, sacudidos do sonho, salvam a passarola.Ao amanhecer, dão pelo desaparecimento de Bartolomeu de Gusmão. Fingindo vir de Lisboa, chegam a Mafra. Ouvem os homens estarrecidos contarem sobre a passagem do Espírito Santo sobre o convento.

Num tempo em que sucedem tantos prodígios, Blimunda e Sete-Sóis não podem comentar que voaram porque estariam perdidos. Estavam todos na casa dos pais de Baltazar, o pai estava triste pela morte da mãe, mas Inês Antônia contou-lhes, maravilhada, os prodígios do Espírito Santo.Na manhã seguinte, Baltazar sai de casa com o cunhado e vai em busca do emprego na obra da construção do convento. A Mafra, chegam notícias de que Lisboa sofreu um terremoto, não muito danoso, apenas caíram beirais:Cuida dela , esconde-a melhor. Dois meses mais tarde, vê Blimunda que, como sempre, vem esperá-lo no caminho. Ao vê-la toda trêmula e nervosa, presume que o pai está doente, mas não. Blimunda lhe conta que Scarlatti está na casa do visconde. No outro dia, desconfiada de que ele viera delatá-los, rondou o palácio. Scarlatti tinha feito um pedido ao rei para que pudesse pôr os olhos sobre a construção do convento e o visconde o hospedara, apesar de não gostar de música.Mas encontram-se, e se falam.No dia seguinte, o música vai embora, mas no caminho esperam-no , para se despedirem, Baltazar e Blimunda. Scarlatti vai triste.

O reino português vai cada vez melhor: diamantes, especiarias, impostos, milhões de cruzados se arrecadam. D. João V pensa o que fazer com tanto dinheiro, mas conclui que deve ser a alma a primeira a ser cuidada. Em Mafra, continua a construção do convento.Cada um deles conta, em primeira pessoa, a sua história de família, destino e expectativas, e cada um deles é narrador em foco cambiante.Durante muitos meses, Baltazar havia puxado e empurrado carros de mão, até que um dia, com a promoção e ajuda de João Pequeno, começou a puxar uma junta de bois, fazendo companhia ao amigo corcunda. Se lá podia funcionar como boieiro um aleijado, podiam, então, ir dois.Quando amanhece, logo que o dia nasceu, em meio ao calor de Junho, os homens saem a cumprir três léguas até o lugar onde está a pedra. Pelo tamanho, tal pedra espanta a todos que confessam nunca ter visto coisa igual na vida. Todos se dispuseram a cavar, a achar caminho, maneira ou jeito de levá-la a Mafra sem que quebrasse. O narrador lembra Arquimedes: "Dêem-me um ponto de apoio para vocês levantarem o mundo", parodia.Puxada a braço, lá vinha a pedra, em meio a um grande alarido das pessoas; depois, como que transportado para a guerra, Baltazar viu, num átimo de segundo, um esguiço de sangue: um homem se ferira, mas os esforço continuam.

É extenuante ler o capítulo, pleno de descrições dos esforços para que tal pedra fosse removida: no primeiro dia, não avançaram mais do que quinhentos passos. Os homens dormem quando anoitece, alguns contam histórias sobre reis e rainhas.Continuam as histórias contadas pelos homens, história sem pé nem cabeça, meninas com estrelas na testa, princesa que guardava patos.Francisco Marques, distraído, foi atropelado e morto pelo carro, a roda passou sobre o ventre, que ficou uma pasta de vísceras e ossos. Depois, ao chegarem ao fundo do vale, a plataforma desandou e atingiu dois animais: foi preciso que os matassem.Baltazar tinha ido seis ou sete vezes ao Monte Junto, a fim de ver a passarola, remediar-lhe os estragos que o tempo ia causando nela; como se se enferrujassem as lâminas de ferro, levou para lá uma panela de sebo e untou cuidadosamente as juntas

Pela primeira vez em três anos, Blimunda diz que quer ir junto para aprender o caminho. No caminho, cortou os vimes, colheu lírios d'água para Blimunda que fez deles uma guirlanda para enfeitar o burro. O tempo é de Primavera e as flores cobrem o campo, e Blimunda toma nota do caminho para, se precisar, reconhecê-lo depois, quando sozinha. Chegaram ao monte; Baltazar trabalhou, ferindo-se na mão. Tudo está em estado de decomposição; enquanto ela cosia as velas, ele azeitava as engrenagens. Dormiram depois de se procurarem cheios de amor um pelo outro e, ao amanhecer, sem olhar seu homem por dentro, Blimunda foi olhar as esferas e viu dentro delas as vontades presas. Comeu pão, Baltazar acordou e fizeram amor novamente.Pelo meio da manhã, acabaram o trabalho: por serem dois, a máquina estava como que renovada e se foram para Mafra outra vez.Morreu o pai de Baltazar, João Francisco.D. João V continua a montar e desmontar a basílica de S. Pedro, "um lugar de fingimento onde nunca serão rezadas missas verdadeiras, embora Deus esteja em todo o lado." E mandou chamar o arquiteto de Mafra, um tal João Frederico Ludovice, a fim de pedir-lhe que construísse em Portugal uma basílica igual ao do Vaticano.O arquiteto concordou, mas achou-o néscio porque a obra exterior poderia ser a mesma, mas teria ele, o rei, que fazer nascer um pintor como Rafael, um Sangallo, um Peruzzi , para a fazer valer algo.

Inconsolável, melancólico, o rei resolve, então, ampliar o convento de Mafra e se reúne, no dia seguinte, com o provincial dos franciscanos que, ouvindo tão boa notícia.Assim que saíram o provincial e o arquiteto, mandou D. João V vir à sua presença o guarda-livros. E dobra o rei o salário do guarda-livros. A Mafra, manda o rei um vedor, doutor Leandro de Melo, para que encontre João Frederico Ludovice e lhe entregue uma carta. O engenheiro beija o selo real e empalidece: não bastava o que havia combinado com o rei e este já lhe envia outro aumento para o prédio, quer agora um novo corpo da construção, que abrigue trezentos frades e que se arrase logo o monte por detrás da obra e tudo o que ao redor dela está.O rei escreveu a Baltazar e João Pequeno.Então , o rei sabia de tudo...Baltazar pensa em responder, tem vergonha, mas pensa no seu rei.Sabedor de que poderia morrer sem ver o convento inaugurado, D. João V dá uma ordem ao corregedor: buscar e intimar todos os homens de Lisboa, quiça de Portugal, para que fossem todos trabalhar em Mafra.Atenção para o trecho que você vai ler e que se parece com a despedida dos parentes, na Praia do Restelo, por ocasião da saída das naus de Vasco da Gama para as Índias:

De todo Portugal chegam homens e são escolhidos um a um. A Infanta Maria Bárbara casa-se com Fernando da Espanha. Esta é a marca do tempo narrativo de Saramago: os fatos históricos.O noivo tem dois anos a menos que ela, e nunca será rei, pois é o sexto na linha sucessória.Domênico Scarlatti toca seu cravo para uma multidão de ignorantes, por ocasião do casamento da Infanta Dona Maria Bárbara, na fronteira com a Espanha.Neste capítulo, o narrador fala da procissão que levará os santos para serem colocados nos altares do convento de Mafra: S. Francisco, Santa Teresa, Santa Clara, S. Vicente, S. Sebastião e Santa Isabel.Seguem também para Mafra frei Manuel da Cruz e seus noviços, trinta, e ali , quando chegam cansados, são recebidos em triunfo.Baltazar vai para casa, o narrador nos anuncia que ele está velho:Depois da ceia, quando todos dormem, Baltazar leva Blimunda para ver as estátuas; juntos, vêem a lua nascer enorme, vermelha. Ele anuncia que vai ao Monte junto na manhã seguinte, ver como está a passarola. Ela pede cuidados, ele responde que ela fique sossegada, que seu dia ainda não chegou.Olham os santos inertes, o que seria aquilo? Morte, santidade ou condenação?Quando amanheceu, Blimunda se levantou e pegou a comida para o farnel do marido que ia ao Monte Junto, acompanhou-o até fora da vila: "Adeus, Blimunda, Adeus Baltazar."E se separam.Ao chegar ao lugar onde está a passarola, Baltazar come as sardinhas que lhe pusera a mulher no alforje: havia tanto trabalho a fazer.

Baltazar não voltou para casa, o que fez Blimunda não dormir aquela noite. Esperara que ele voltasse ao cair do dia, haveria os festejos da sagração da basílica, mas ele não voltara.Em jejum, olhando as pessoas que passavam para a festa, estava sentada numa vala e ali ficou, vendo o que os seres carregavam por dentro; recebendo xingamentos, dizendo outros. Voltou para casa, ceou com os cunhados e o sobrinho. Também não dormirá.O rei virá a Mafra e Blimunda não o verá; vai esperar Baltazar pelos caminhos, desesperadamente tentando encontrá-lo: Grita inúmeras vezes por ele:Viu os arbustos arrancados, a depressão que o peso da máquina fizera no chão e o alforje de Baltazar. Procurou por todo lado, os pés sangrando nos espinhos. Começou a subir ao cume do monte, a fim de poder ver tudo ao redor. Mas no caminho estacou, à sua frente caminhava um frade dominicano, corpulento, a quem perguntou pelo seu homem, faltava-lhe a mão esquerda, não o tinha visto? Viera cá por ouvir dizer que aqui habitava um enorme pássaro...

O frade aconselha-a a procurar abrigo, vai anoitecer, poderia dormir ali, nas ruínas do mosteiro. Sentada à beira do caminho, o cabelo desgrenhado, vazia do homem que ama, Blimunda chora e pensa em Baltazar, se morto, se vivo. Depois vai se refugiar nas ruínas onde o frade a busca tentando saciar seus instintos. Mas Blimunda o mata com o espigão de Baltazar. E depois , arrancando o espigão que se fincara entre as costelas do frei, pôs novamente a andar.Depois, imaginou ela a caminho de Pedregulho que ele poderia estar em Mafra, que tinham se desencontrado no caminho e pôs-se a correr como uma doida.À tardinha, chegaram Inês Antônio e Álvaro Diogo e a encontraram dormindo. pela manhã, esquecida de comer o pão, viu-os por dentro, vomitou e Inês achou que ao fim de todo este tempo poderia ela estar grávida.O narrador nos anuncia que D. João V fez quarenta e um anos e que era 22 de outubro de 1730.Durante nove anos, Blimunda perambulou pelos caminhos de pó e lama, de branda areia e pedra aguda, neve. Ainda não queria morrer. Sabia que Baltazar estava vivo e se dispunha a procurá-lo por onde quer que fosse.

Julgavam-na doida, mas ouvindo-lhe as demais sensatas palavras e ações, ficavam indecisos se aquilo que dizia era ou não falta de juízo completo. Passou a ser chamada de A Voadora, e sentava-se, então, às postas, ouvindo das mulheres as queixas. Por onde passava, as mulheres lamentavam, depois, que seus homens não tivessem também sumido, para que elas pudessem, ao menos, devotar-lhes um amor tão grande quanto o de Blimunda a Baltazar. E os homens, quando ela partia, ficavam tristes inexplicavelmente tristes.Pouco faltou para que a tomassem como santa. Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça, "Portugal inteiro esteve debaixo desses passos".Voltava aos lugares por onde passara, sempre indagando. Seis vezes passara por Lisboa, esta, a que vinha agora, era a sétima. Sem comer, o tempo era chegado para ela. No Rossio, finalmente encontrou Baltazar. Havia lá um auto-de-fé. Eram onze os condenados à fogueira; entre eles, estava o brasileiro Antônio José da Silva, o Judeu, comediógrafo autor das Guerras de Alecrim e Manjerona.





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O Ano da Morte de Ricardo Reis - José Saramago

Partindo de um heterônimo de Fernando Pessoa, cuja biografia escrita por Pessoa informa apenas a data de nascimento (1887) e que desde 1919 viveria no Brasil por discordar do movimento republicano instalado em Portugal (1911) e por ser monarquista.

Ricardo Reis, médico e helenista, torna-se, pois, o personagem principal desse romance de José Saramago. O autor supõe que após a morte de Fernando Pessoa, ocorrida em 30 de novembro de 1935, Ricardo Reis sentiu um desejo de prestar uma homenagem ao seu criador, retornou a Portugal para fazer as homenagens no túmulo do amigo. Convém notar que Reis ficou sabendo da morte do "amigo" Pessoa por meio de um telegrama enviado por Álvaro de Campos.

Ricardo Reis hospeda-se no Hotel Bragança, quarto 201, de frente para o rio Tejo. Depois de uma ida ao cemitério em que ficara com remorso por ter ficado tanto tempo longe do amigo, sente que poderia ter desenvolvido mais essa amizade.

Uma noite, quando o médico e helenista retorna de um passeio, nota uma luz acesa em seu quarto, ao entrar encontra a figura do "fantasma" de Pessoa. Momento fantástico da obra em que o criador transformado em fantasma encontra a personagem transformada em ser real.

Diante do insólito encontro, Ricardo Reis age com relativa naturalidade ao encontro, bem como Pessoa, que ainda explica ao amigo vivo que tem permissão para ficar penando pelo mundo nove meses (oito para ser exato, pois já havia se passado um) e que nesse tempo tem que resolver um negócio pendente para poder finalmente seguir para o além.

Assim, o romance compreende o período de dezembro de 1935 até agosto de 1936. Período de agitação política na Europa com o surgimento dos regimes totalitários na Itália e na Alemanha e fortalecimento da ditadura salazarista em Portugal e o desenrolar dos antecedentes dos conflitos da guerra civil espanhola.Ao passo que esses acontecimentos históricos são citados na obra, Ricardo Reis se envolve mais diretamente em questões amorosas, conhece no hotel duas moças com quem tem casos amorosos: Lídia, uma arrumadeira e Marcenda, uma hóspede. Aqui os aspectos intertextuais com a obra de Pessoa tornam-se mais fortes, uma vez que Lídia e Marcenda são musas dos poemas de Ricardo Reis. Várias falas de Reis estão fundamentas em recriações de versos do heterônimo pessoano. As musas são rebaixadas no plano literário, de figuras idealizadas e sublimes transformam-se em personagens humanas com virtudes, mas também com defeitos.

Lídia chega a engravidar, Reis sugere que ela faça um aborto. Porém, apesar da indiferença de Reis, ela opta por enfrentar sozinha a gravidez e a criação do filho.

Marcenda, por sua vez, a mulher bem educada, rica, que tem a mão esquerda paralisada, evoca sentimentos mais líricos por parte de Reis. O poeta chega a lhe propor casamento, mas ela já não mais se hospedando em Lisboa, manda uma carta rompendo o relacionamento.

Ao final do romance, Lídia, que também deixar a companhia de Reis, volta para informar desconsolada a morte do irmão Daniel, marinheiro, que se envolvera em questões revolucionárias.

Fernando Pessoa conhecendo os amores mundanos de Reis ironiza o fato de que os amores reais de Reis pouco ou quase nada tem a ver com as suas musas idealizadas.

Na cena final, Pessoa aparece para dizer a Reis que chegou a hora de partir. Ricardo Reis insatisfeito com seus amores e com sua vida diz que deseja acompanhar o poeta: "Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis.O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera."



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O Ano da Morte de Ricardo Reis - José Saramago

Partindo de um heterônimo de Fernando Pessoa, cuja biografia escrita por Pessoa informa apenas a data de nascimento (1887) e que desde 1919 viveria no Brasil por discordar do movimento republicano instalado em Portugal (1911) e por ser monarquista.

Ricardo Reis, médico e helenista, torna-se, pois, o personagem principal desse romance de José Saramago. O autor supõe que após a morte de Fernando Pessoa, ocorrida em 30 de novembro de 1935, Ricardo Reis sentiu um desejo de prestar uma homenagem ao seu criador, retornou a Portugal para fazer as homenagens no túmulo do amigo. Convém notar que Reis ficou sabendo da morte do "amigo" Pessoa por meio de um telegrama enviado por Álvaro de Campos.

Ricardo Reis hospeda-se no Hotel Bragança, quarto 201, de frente para o rio Tejo. Depois de uma ida ao cemitério em que ficara com remorso por ter ficado tanto tempo longe do amigo, sente que poderia ter desenvolvido mais essa amizade.

Uma noite, quando o médico e helenista retorna de um passeio, nota uma luz acesa em seu quarto, ao entrar encontra a figura do "fantasma" de Pessoa. Momento fantástico da obra em que o criador transformado em fantasma encontra a personagem transformada em ser real.

Diante do insólito encontro, Ricardo Reis age com relativa naturalidade ao encontro, bem como Pessoa, que ainda explica ao amigo vivo que tem permissão para ficar penando pelo mundo nove meses (oito para ser exato, pois já havia se passado um) e que nesse tempo tem que resolver um negócio pendente para poder finalmente seguir para o além.

Assim, o romance compreende o período de dezembro de 1935 até agosto de 1936. Período de agitação política na Europa com o surgimento dos regimes totalitários na Itália e na Alemanha e fortalecimento da ditadura salazarista em Portugal e o desenrolar dos antecedentes dos conflitos da guerra civil espanhola.Ao passo que esses acontecimentos históricos são citados na obra, Ricardo Reis se envolve mais diretamente em questões amorosas, conhece no hotel duas moças com quem tem casos amorosos: Lídia, uma arrumadeira e Marcenda, uma hóspede. Aqui os aspectos intertextuais com a obra de Pessoa tornam-se mais fortes, uma vez que Lídia e Marcenda são musas dos poemas de Ricardo Reis. Várias falas de Reis estão fundamentas em recriações de versos do heterônimo pessoano. As musas são rebaixadas no plano literário, de figuras idealizadas e sublimes transformam-se em personagens humanas com virtudes, mas também com defeitos.

Lídia chega a engravidar, Reis sugere que ela faça um aborto. Porém, apesar da indiferença de Reis, ela opta por enfrentar sozinha a gravidez e a criação do filho.

Marcenda, por sua vez, a mulher bem educada, rica, que tem a mão esquerda paralisada, evoca sentimentos mais líricos por parte de Reis. O poeta chega a lhe propor casamento, mas ela já não mais se hospedando em Lisboa, manda uma carta rompendo o relacionamento.

Ao final do romance, Lídia, que também deixar a companhia de Reis, volta para informar desconsolada a morte do irmão Daniel, marinheiro, que se envolvera em questões revolucionárias.

Fernando Pessoa conhecendo os amores mundanos de Reis ironiza o fato de que os amores reais de Reis pouco ou quase nada tem a ver com as suas musas idealizadas.

Na cena final, Pessoa aparece para dizer a Reis que chegou a hora de partir. Ricardo Reis insatisfeito com seus amores e com sua vida diz que deseja acompanhar o poeta: "Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis.O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera."

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História do Cerco de Lisboa - José Saramago

Após a independência de Portugal do Reino de Leão, toda parte sul de Portugal ainda permanecia sob o domínio mouro. Afonso Henriques empreende então uma luta lenta de reconquista dessa região. José Saramago recupera o episódio da conquista de Santarém e do cerco e tomada de Lisboa baseando-se principalmente na História de Portugal escrita por Alexandre Herculano. Porém, o texto de Saramago não é tem pretensões de ser um novo texto histórico, antes é uma paródia.

Raimundo Benvindo Silva é um revisor de textos que recebe a incumbência de fazer a revisão de um livro sobre a História de Portugal. Num diálogo inicial, o autor do livro e o revisor discutem sobre os conceitos literários, a origem da Literatura e o sentido da História.

Num determinado momento da revisão, Raimundo Silva resolve cometer propositalmente um erro na revisão, acrescenta um "Não" a uma frase. Esse não modificaria o entendimento da conquista de Lisboa: "com a mão firme acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa".

O fato histórico é que os cruzados depois que chegaram ao Porto partiram e apoio aos portugueses e isso foi decisivo para garantir que o cerco e a conseqüente queda de Lisboa se desse. Raimundo altera isso com o acréscimo do "Não".

Terminada a revisão, Raimundo Silva entrega o texto ao funcionário da editora, o Costa que manda o texto para impressão. Depois de alguns dias depois de saída a impressão, o "engano" na revisão é descoberto e editora opta por acrescentar uma errata corrigindo o erro da página.

A editora que confiava na experiência de Raimundo, revisor há muitos anos, temerosa de que outros erros pudessem ocorrer, contrata uma senhora para supervisionar o trabalho dos revisores. Maria Sara é a mulher encarregada desse trabalho. Maria Sara faz um entrevista com Raimundo Silva para buscar entender a causa daquele erro. Nessa entrevista ela entrega a Raimundo Silva um exemplar sem errata, provocando o revisor, dizendo que aquele é o único livro que traz uma nova interpretação dos fatos. No desenrolar da conversa, a supervisora se irrita com Raimundo não pelo erro, mas pelo fato de não assumi-lo e de que tal erro provocaria a necessidade de se reescrever aquele episódio da História de Portugal.

Raimundo Silva sente-se então motivado a tomar aquela frase como motivo para reescrever o episódio da tomada de Lisboa sem a participação dos cruzados. Enquanto reescreve a História, ou escreve a Sua História, acaba também iniciando um relacionamento amoroso com Maria Sara.

Na nova versão dos fatos que escreve um simples soldado acaba se destacando nas lutas, tanto pelo seu valor heróico quanto por sua habilidade de reinterpretar as ações, Mogueime, que assume a condição de narrador da história que Raimundo escreve. Mogueime tem uma linguagem oralizada, sua narração escrita é quase a sua fala, seu texto é irônico e por vezes, alegórico e esdrúxulo, por exemplo, quando o rei, Afonso Henriques faz um discurso aos cruzados tentando convencê-los a participar da luta contra os mouros: "Alçou então o rei a poderosa voz, Nós cá, embora vivamos neste cu de mundo, temos ouvido grandes louvores a vosso respeito (...) A bem dizer, a nós o que nos convinha era uma ajuda assim para o gratuito, isto é, vocês ficavam aqui algum tempo, a ajudar, quando isto acabasse contentavam-se com uma remuneração simbólica e seguiam para os Santos Lugares (...) Ninguém melhor ajuda o pobre que o pobre, enfim, falando é que a gente se entende, vocês dizem quanto levam pelo serviço, e a gente logo vê se pode chegar ao preço".

O episódio anterior a tomada de Lisboa que é a conquista de Santarém é narrada com ironia e um humor que tende para o tragicômico, pois com dez soldados e uma escada de mão os portugueses conseguem conquistar a cidade e causar grande mortandade entre a população moura.

Mogueime, o soldado-narrador, apaixona-se por Ouroana. Assim, as duas narrativas, a do personagem criado por Raimundo Silva e a de Saramago terminam com o romance dos dois casais: Raimundo Silva e Mara Sara; Mogueime e Ouroana.

Indicações para Pesquisa:

CALBUCCI, Eduardo. Saramago: Um Roteiro Para os Romances. São Paulo, Ateliê Editorial, 1999.

CARVALHO, José Francisco Rodrigues de. "Herculano, Saramago e a História do cerco de Lisboa " em: LOPONDO, Lílian (org.) Saramago segundo terceiros. São Paulo, USP/Humanitas, 1998. p. 77-110.



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O Evangelho Segundo Jesus Cristo - José Saramago (resumo)

José e Maria acabam fazendo sexo e assim a pureza da "Virgem" é abalada. Maria encontra na rua um mendigo, alto e misterioso que lhe entrega uma tigela, colocando antes terra nela, dizendo: "Que o Senhor te abençoe, mulher, e te dê todos os filhos que a teu marido te aprouver." No momento em que a recebe, Maria observa que a tigela tem um brilho incomum, embora seja feita de barro. Maria chega em casa conta o sucedido no encontro com o mendigo e revela que está grávida.

No nascimento de Jesus temos a reinterpretação do episódio dos três reis magos. O menino Jesus tem um choro sofrido e surgem três pastores, o primeiro trouxe leite, o segundo trouxe queijo e o terceiro, que Maria parece reconhecer como sendo o misterioso mendigo, trás pão e diz: "Com estas minhas mãos amassei este pão que trago, com o fogo que só dentro da terra há o cozi."

Na infância Jesus cresce rodeado de vários irmãos e irmãs. Quando Jesus atinge a adolescência seu pai, José, morre crucificado. Quando Herodes mandou matar os meninos que nascessem em Belém, mais ou menos na época em que Jesus nascera; José, sabendo do perigo que sua esposa e seu vindouro filho corriam, fugiu para que Jesus nascesse num lugar afastado do alcance dos soldados de Herodes. Na pressa com que fugira levando Maria, sequer avisara os outros camponeses, depois disso, José passou a se sentir culpado pela morte daquelas crianças, pelo pecado da omissão. Assim, quando soldados romanos o prendem por engano e o levam ao martírio não sente vontade de defender-se.

Na juventude, Jesus conhece o amor por meio de Maria de Magdala (Madalena). Os dois se amam. Surgem os milagres de Jesus: O milagre do vinho (numa "festa de arromba" o vinho acaba, os convidados reclamam e Jesus opera o milagre da transformação da água em vinho), o milagre dos pães (dividiu um único pão entre vários mendigos que não conseguiam fazê-lo). Quando Jesus vai morar numa aldeia de pescadores, observa-se que quando Jesus entra no barco os peixes se lançam para dentro, assim, a cada dia, Jesus vai com um dos pescadores, de modo que todos tenham sua boa pescaria.

Certa vez, num dia de muito nevoeiro, Jesus parte sozinho para o mar. Mais adiante o nevoeiro se dissipa e Jesus e numa "roda maior de luz, a barca pára, é o centro do mar. Sentado no banco da popa, está Deus."

Deus revela a Jesus sua descendência divina, e a seguir Deus explica o motivo que o levou a ter um filho: para que sua glória aumentasse entre os homens, pois passados quatro mil anos, Deus era deus apenas para um pequeno povo "que vive numa diminuta parte do mundo". Deus, pois, tem um plano para o seu filho, que levará o conhecimento de sua figura para todos os outros povos. E, por fim, revela que o papel que Jesus tem nesse plano é o de mártir: "E qual foi o papel que me destinaste no teu plano? O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o que melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé."

Jesus pergunta se outras pessoas terão que morrer para que a fé se propague, Deus confirma que sim e durante vários parágrafos e páginas segue-se uma lista dos martirizados durante os séculos que se seguiram até a expansão e o domínio do Cristianismo. Explica também os modos com que muitos serão martirizados (fogueira, decapitação, enforcamento, cravados com flechas, a pedradas, esquartejados, etc.). Deus ainda fala das guerras religiosas, das Cruzadas, da Inquisição.

Jesus, diante de tal revelação de mortandade, recusa o seu papel no plano, mas Deus reafirma o seu destino. Próximo a Jesus está o Diabo, que diz: "É preciso ser Deus para gostar tanto de sangue".

O Diabo, que não era ninguém menos do que aquele mendigo misterioso, ainda oferece a Deus o seu perdão e voltar a ser um de seus arcanjos diletos, mas Deus recusa afirmando que a bondade só existe em oposição à maldade e que Deus só será adorado porque existe um Diabo a ser temido.

Jesus e o Diabo voltam na mesma barca. Antes, ao entrarem, o Diabo fala que há uma coisa no alforje de Jesus que pertence ao Diabo, mas que um dia voltará ao poder de Jesus. Ao olhar no seu alforje, Jesus encontra a velha tigela de barro.

Após quarenta dias Jesus retorna para a aldeia dos pescadores, pronto para cumprir o seu destino. O milagre de Lázaro, a traição de Judas e a negação de Pedro são apresentados numa nova versão que dessacraliza esses episódios.

Jesus é crucificado, e já desfalecendo após o momento em que um soldado que lhe dá vinagre numa esponja para que beba e diminua seu sofrimento, morre sem ver que aos pés da cruz estava a tigela que servia agora para recolher o sangue que escorria da cruz.


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Ensaio sobre a Cegueira - de José Saramago

O Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago é de arrasar e, antes disso, de abalar as nossas certezas. Depois da leitura do Evangelho Segundo Jesus Cristo, nenhum outro livro de Saramago terá incomodado tanto o leitor.

Neste romance temos tudo o que caracteriza a sociedade actual (mas sempre foi assim...): o sectarismo (isolamento dos cegos num manicómio), a violência gratuita (os disparos dos soldados sobre os cegos), o cinismo dos políticos (medidas tomadas para tentar debelar a epidemia de cegueira), o egoísmo (cada cego por si), os grupos armados que não são mais do que a caricatura dos bandos criminosos, a porcaria que inundava a cidade, etc., etc.

Podem identificar-se algumas referências mais ou menos históricas, mais ou menos literárias: os campos de concentração nazis, A Peste de Albert Camus, a cidade moderna perante uma catástrofe, as estranhas figuras de Bosh e de Dürer, a visão bíblica dos cegos que conduzem outros cegos. Mas algo que me parece essencial: a cidade de Tróia sendo destruída pelos exércitos gregos. Eneias, diante de todo o desastre, carrega às costas seu pai cego. A mulher do médico não será porventura um Eneias, único guerreiro que, perante a catástrofe, não perdeu o sangue frio? E temos o velho da venda preta. Não é concerteza Anquises. Mas não haverá porventura nele algo de Homero? Quem é que conta aos cegos do manicómio aquilo que se passou lá fora depois de terem sido internados? Quem é que lhes relata, ouvidas as notícias na rádio, o que se vai passando?

Este cego da venda preta tem algo de narrador e algo de épico. Ele próprio aparece como cronista em potência das venturas e desventuras do manicómio (cfr. págs. 159-161). E depois, claro, facilmente se poderá identificar com o alterego do autor. A rapariga dos óculos é a ele que elege (cfr. págs. 170 e p. 291), «ficando por esta via demonstrado, mais uma vez, que as aparências são enganadoras, e que não é pelo aspecto da cara e pela presteza do corpo que se conhece a força do coração».

É interessante o escritor cego que aparece em casa do primeiro cego e mais interessante ainda a técnica que ele inventou para poder escrever. Disto se tira a lição: não há desculpa para ficar calado. E a propósito me vem a história de Brás Garcia Mascarenhas, soldado e poeta do tempo da Restauração que, sendo acusado de traição contra o rei, foi preso. Tiraram-lhe tudo, excepto uma bíblia. Rasgando as letras uma a uma, compôs um poema que colou com farinha e água numa das páginas rasgadas. O poema conseguiu, por linhas travessas, chegar ao rei, que, vendo a injustiça, ordenou a sua libertação.

A mulher do médico encarna muitas heroínas: a Blimunda do Memorial do Convento, como facilmente se depreende de frases como esta: «levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas» (pág. 135); a Maria Madalena do Evangelho a guiar Jesus pelo túnel criado por Deus e que era a sua vida; a Joana d'Arc, que, comandando um exército cego (porque não a reconhecia), o levou à vitória sobre os inimigos.

O livro marca de tal forma o leitor que difícil será para este livrar-se da visão e do cheiro de tanta miséria e de tanta merda que no fundo caracterizam este mundo. Mundo que, para não a ver e para não a cheirar, constrói tapumes de cartão e espalha perfumes à volta.

Não seria aquela cegueira toda afinal um momentâneo vislumbre de visão?

José Leon Machado, 07-04-1996

O não-lugar da escritura: uma leitura de - Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago

Shirley de Souza Gomes Carreira

Universidade do Grande Rio

Por ser uma das formas de expressão cultural de um povo, a literatura, na maioria das vezes, busca a sua referência no que Marc Augé denomina «lugar antropológico». Em Ensaio sobre a cegueira, José Saramago desconstrói as referências típicas desse lugar, que confere ao homem uma identidade, define sua relação com o meio, bem como o situa em um contexto histórico.

No romance em questão, surpreende-nos a ausência das marcas usuais da historicidade. Não há sequer uma referência temporal que nos permita dizer com segurança em que momento histórico o mundo ficcional deve ser inserido. No entanto, a própria ausência de marcadores temporais permite- nos fazer reflexões acerca do seu significado. A percepção do tempo se faz sentir apenas na memória das personagens e nas observações do narrador. No continuum do tempo, o passado do qual as personagens se recordam é o conjunto de atitudes e valores que incorporavam antes da cegueira e sob esse aspecto o passado e o presente são julgados um à luz do outro na diegese.

Não se pode dissociar a ausência de referentes temporais da ausência de referentes espaciais. Numa perspectiva historicista, a definição do tempo e do espaço se faz essencial, mesmo porque os métodos da historiografia assim o exigem. No entanto, o olhar que o pós-modernismo lança ao passado ultrapassa as barreiras formais da história. Especificamente, a atitude pós-moderna consiste em tecer leituras do passado, tomando por parâmetro a consciência de que o conhecimento que se tem dele nada mais é do que a textualização das impressões humanas acerca dos eventos.

Ao criar um texto em que essas marcas de identificação espácio-temporal revelam-se enfraquecidas, Saramago faz dele um espelho onde o leitor poderá mirar-se e refletir sobre o seu papel, enquanto cidadão do mundo, na construção da história da humanidade.

A supressão da identidade a partir do nome está associada à cegueira que se espalha. As personagens são identificadas por outros meios: pelas profissões que exerciam antes de ficarem cegas, pelas relações de parentesco ou por traços físicos marcantes. Ao assumirem que os nomes são desnecessários ao seu relacionamento no manicômio, as personagens deixam implícita a trajetória que terão de seguir, na descoberta dolorosa do eu e do outro.

Do ponto de vista da historiografia, dado o esbatimento dos três conceitos inerentes à compreensão histórica - o tempo, o espaço e a identidade- a história do romance é impossível de se situar. Tentaremos, no entanto, mostrar que é exatamente essa impossibilidade que faz do romance um retrato tão contundente da condição humana.

No universo ficcional, à exceção da mulher do médico, todas as personagens temem muito mais a revelação do que realmente são do que a sensação de impotência causada pela cegueira.

«A mulher do médico disse consigo mesma, Comportam-se como se temessem dar-se a conhecer um ao outro. Via-os crispados, tensos, de pescoço estendido como se farejassem algo, mas, curiosamente, as expressões eram semelhantes, um misto de ameaça e de medo, porém o medo de um não era o mesmo que o medo do outro, como também não o eram as ameaças.» (ESC, 49)

Com o passar dos dias, as máscaras sociais deixam de ser importantes e necessárias na instância de vida dos cegos na camarata. Os códigos sociais, assim como os nomes, começam a se perder em um microcosmo governado pelos sentidos:

«Tão longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembrámos sequer de dizer-nos como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir- nos os nomes, nenhum cão reconhece outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo- nos pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se não existisse, eu ainda vejo, mas até quando.» (ESC,64)

Em Não-lugares, Marc Augé analisa a relação do homem com o espaço, a questão da identidade e da coletividade. Ele designa «não-lugar» todos os dispositivos e métodos que visam à circulação de pessoas, em oposição à noção sociológica de «lugar», isto é, à idéia de uma cultura localizada no tempo e no espaço. Segundo Augé, os espaços em que vivemos carecem de uma reavaliação, pois «vivemos num mundo que ainda não aprendemos a olhar». Não há como deixar de perceber a analogia entre a posição de Marc Augé e a epígrafe escolhida por Saramago: «Se podes olhar,vê. Se podes ver, repara.»

Ao analisar as relações entre o homem e o seu grupo social, Augé nos alerta para o fato de que a organização e a constituição de lugares são um dos desafios e uma das modalidades das práticas coletivas e individuais. As coletividades têm necessidade de pensar, simultaneamente, a identidade e a relação e de simbolizar os constituintes das diferentes formas de identidade: da identidade partilhada- pelo conjunto de um grupo; da identidade particular- de um grupo ou de um indivíduo ante outros- e da identidade singular- naquilo em que um indivíduo ou grupo difere de todos os outros. Os questionamentos suscitados pela condição das personagens do Ensaio sobre a cegueira advêm da desconstrução e posterior construção desses conceitos.

A ausência de marcadores temporais e espaciais na narrativa e a própria cegueira das personagens reforçam a idéia do não-lugar. Todas as antigas raízes, que marcam o lugar antropológico- que pretende ser identitário, relacional e histórico- são desfeitas.

Assim, o lugar antropológico- cultural e espácio-temporalmente definido, é substituído pelo não-lugar, pela provisoriedade da subsistência nas camaratas, pela redução dos códigos de convivência social a um estado de barbárie, em que será preciso aprender a viver de novo, a construir novos parâmetros para a identidade e a relação. A cegueira branca é descentralizadora; não privilegia classes:

«Aqui não há só gente discreta e bem-educada, alguns são uns mal- desbastados que se aliviam matinalmente de escarros e ventosidades sem olhar a quem está, verdade seja que no mais do dia obram pela mesma conformidade, por isto a atmosfera vai se tornando cada vez mais pesada...» (ESC, 99)

A babel de indivíduos de naturezas tão distintas quanto às suas origens dá à mulher do médico a impressão de que as distâncias que separam os seres no mundo exterior se encurtaram e a diversidade de problemas que afligem os homens se resumiu no instinto de sobrevivência. Essa impressão se resume a uma frase: «O mundo está todo aqui dentro» (ESC, 102).

É precisamente esse instinto primordial do homem que revela aos cegos que nesse mundo em que agora vivem as máscaras sociais se fazem desnecessárias; o homem é o que é. Assim, ante a necessidade de estabelecer uma ordem na distribuição da comida, a fim de evitar trapaças, e mediante a afirmação de um dos cegos de que estão a lidar com gente honesta, alguém retruca: «Ó cavalheiro. O que somos de verdade aqui é pessoas com fome» (ESC, 102).

É relevante observar, no entanto, que, no não-lugar, recompõem-se alguns lugares, até porque os lugares evocados pelos ritos da memória, onde se encontram inventariados, nunca se apagam completamente, assim como o não-lugar nunca se realiza totalmente. Graças à reconstituição das relações humanas, ainda que sob novos códigos e regras, o não-lugar é impedido de existir numa forma pura.

É a existência do não-lugar, a redimensão das relações humanas que põem o indivíduo em contato com outra imagem de si próprio e do outro. A individualidade absoluta torna-se impensável, uma vez que há uma alteridade complementar que é constitutiva de toda individualidade. Já não se pode pensar o eu sem a figura do outro. O eu individual passa a ser um dos elementos da identidade partilhada; está condicionado ao grupo ao qual pertence. É através da identidade partilhada que os cegos da primeira camarata reconstroem algo do lugar antropológico.

«Também não surpreenderá que busquem todos estar juntos o mais possível, há por aqui muitas afinidades, umas que já são conhecidas, outras que agora mesmo se revelarão (...). É contudo certo que nem todas essas afinidades se tornarão explícitas e conhecidas, seja por falta de ocasião, seja porque nem se imaginou que pudessem existir, seja por uma simples questão de sensibilidades e tacto.» (ESC, 67)

O espaço do não-lugar liberta aquele que lá penetra das amarras de sua vida habitual, a tal ponto que , enquanto «passageiro» desse não-lugar, pode até mesmo ser capaz de gozar, momentaneamente, as alegrias passivas dessa desidentificação com o eu. Assim o ladrão do carro, em meio às dores do ferimento na perna, encontra prazer na autodescoberta, isto é, aprende a ver:

«Assombrava-o o espírito lógico que estava descobrindo na sua pessoa e o acerto dos raciocínios, via-se a si mesmo diferente, outro homem, e se não fosse este azar da perna estaria disposto a jurar que nunca em toda a sua vida se sentira tão bem.» (ESC, 79)

A «presença do passado» no presente expressa-se numa polifonia em que o velho e o novo se cruzam, na evocação de uma temporalidade contínua. Ao mesmo tempo que as personagens evocam os lugares da memória, substitutos para o lugar antropológico do qual já não fazem parte, as citações e provérbios que entrecortam a narrativa são a evocação de lugares antropológicos diversos, dos quais o romance, em sua aparente ausência de espácio-temporalidade, não se afasta na realidade.

Isso se dá, antes de mais nada, porque o lugar se concretiza pela palavra. Se a troca de palavras ocorre entre pessoas no nível de uma intimidade cúmplice, algo do lugar antropológico pode ser recuperado e reordenado. Claro está que as citações surgem invertidas, como a destituírem-se de um caráter absoluto, desprovendo a si mesmas de sentido. Essa inversão é metafórica. No esvaziamento do sentido, ela exibe a cegueira da palavra. Há que gerar comportamentos verbais que se coadunem com esse novo padrão de existência.

«Já lá dizia o outro que na terra dos cegos quem tem um olho é rei. Deixa lá o outro, Este não é o mesmo, Aqui nem os zarolhos se salvariam (...). O outro também dizia que quem parte e reparte e não fica com a melhor parte , ou é tolo, ou no partir não tem arte, Merda, acabe lá com o que diz o outro, os ditados põem-me nervoso.» (ESC,103)

A luta da mulher do médico para que os cegos da primeira camarata não se entreguem à barbárie não é uma apologia do passado, do «mundo civilizado» que conheciam, como pode parecer à primeira vista, mas o contraponto que há de evidenciar os sentimentos, as modulações de sentido, que nortearão as relações entre os cegos a partir da quarentena- a longa jornada do aprendizado da visão.

Segundo Augé, o que nós procuramos, na acumulação religiosa dos testemunhos, dos documentos, das imagens, de todos os signos visíveis do que foi (...) é a nossa diferença, a nítida revelação de uma identidade perdida .

Saramago faz uso de um recurso tipicamente pós-moderno ao confrontar os princípios de civilização que os cegos conheciam com aqueles que são levados a construir. Instaurando e subvertendo situações, o autor deixa entrever no texto interrogações que encenam o paradoxo pós-moderno de ser ao mesmo tempo cúmplice e crítico das normas predominantes.

Se o romance faz eclodir a revolta do leitor ante a torpeza das atitudes dos cegos das outras camaratas, cada qual envolvido com sua própria subsistência, e, mais tarde, fazendo uso da comida como instrumento de poder, também leva o leitor à reflexão de que esses instintos que parecem tão torpes na ficção são os mesmos que disfarçamos no dia-a-dia de homens civilizados.

O fio condutor do romance é a cegueira que leva não só as personagens como também o leitor a refletirem sobre as relações entre o individual e o coletivo, erguendo o véu do nosso desconhecimento. A cegueira branca, que ilumina ao invés de lançar nas trevas os que a contraem, é o símbolo do discurso da perplexidade.

Em um mundo, no qual já não se crê nas «narrativas-mestras», no discurso homogeneizante da modernidade, há que pensar a diferença. Se por um lado o pós-modernismo reconhece que os discursos são instrumento de poder, que enunciam «verdades», graças a sua capacidade de moldar práticas, por outro lado, o discurso pós-moderno é problematizante, inquiridor. Longe de apontar soluções, o pós-modernismo nos faz refletir criticamente sobre o passado e o presente.

O desfecho de Ensaio sobre a cegueira não é um discurso legitimador, pois não aponta soluções ou direções para a evolução do homem; sequer advoga para si a verossimilhança. Muito embora o romance revele-se, ao final, detentor de um discurso moralizante, que se coaduna com a proposta do romance, isto é, fazer ver a quem tem olhos, nenhum modelo nos é fornecido para que possamos atingir esse fim. Este é um percurso que o leitor há de fazer sozinho.

Assim como as personagens, o leitor é «passageiro» no não-lugar que a escritura encena. Aos cegos que encontra pelo caminho, a mulher do médico afirma: «Só estamos de passagem» (p.215). O escritor que passa a viver na casa do primeiro cego, igualmente, afirma: «Estou de passagem» (p.278). Esse alter-ego do autor que «inscreve palavras na brancura do papel», à guisa de sinais da sua passagem, diz à mulher do médico palavras que parecem ecoar do mundo extradiegético, onde autor, narrador e leitor transitam, como um apelo : «não se perca, não se deixe perder». Apelo este que se quer prolongamento da epígrafe: veja, não se deixe cegar.

A reflexão do narrador acerca da inutilidade da memória nessa trajetória pode ser depreendida no exemplo a seguir:

«(...) é que não há comparação entre viver num labirinto racional, como é , por definição, um manicómio, e aventurar-se, sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegar.» (ESC, 211)

Se não há modelos a serem seguidos e se o referencial do nome e do lugar já não são suficientes, cabe ao leitor, assim como às personagens, traçarem individualmente a sua trajetória. A nova identidade é construída a partir de um novo pensar coletivo.

Sob esse aspecto o desfecho se aproxima da proposta da pós-modernidade: questionar os sistemas e os postulados totalizantes por meio do paradoxo, buscando a identidade na diferença. A par do conteúdo moralizante, do formato convencional, o desfecho de Ensaio sobre a cegueira não contraria a proposta pós-moderna, uma vez que o pós-modernismo, dada a sua característica de atuar dentro dos sistemas que subverte, não constrói paradigmas. Não há um modelo pós-moderno a ser seguido e sim um conjunto de estratégias mais ou menos freqüentes que sugerem o que se convencionou chamar pós-modernismo .

No plano da diegese é no não-lugar, isto é, no percurso que os cegos fazem desde a quarentena até o desfecho do romance, que as contradições da natureza humana se revelam e são experimentadas. No plano da narração, por ser espaço transitório do pensamento e da reflexão sobre o romance enquanto obra de arte, onde as estratégias novas e antigas se encontram, onde passado e presente se cruzam no ato constante de recriar, a escritura revela-se o locus onde, por meio da exposição do caos, o leitor é convidado a repensar o mundo em que vive.

O texto de Marc Augé, ao qual fizemos referência em boa parte de nossa análise, esclarece-nos quanto ao olhar que lançamos ao passado, quanto ao modo pelo qual revolvemos os resquícios do passado como uma maneira de manter vivo o lugar antropológico do qual fazemos parte. Mais do que isso, esse texto nos chama atenção para o fato de que o habitante do lugar antropológico vive na história, não faz história. É no lugar da memória, contrapondo passado e presente, que construímos a nossa diferença.

O Ensaio sobre a cegueira, conforme pudemos observar, não é de modo algum desistoricizado. Ele incorpora a história da arte e a história do homem sem que, para isso, necessite de marcadores temporais ou espaciais.

O descentramento do sujeito, a multiplicidade de vozes e o discurso intertextual sugerem um deslocamento ainda maior, na direção da pluralidade e da heterogeneidade que são as marcas do pós-moderno. O tema que norteia o romance, a questão da alteridade, está em consonância com a retórica pluralizante do pós-modernismo.

E se essa escritura nos parece tão diferente, a ponto de nos causar estranheza, que nos sobrevenha à mente a lição de Foucault: «somos a diferença, nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história é a diferença das épocas, nossos eus são a diferença das máscaras» . Essa diferença não pode nunca ser vista como um obstáculo para a compreensão do mundo, pois é o retrato mais fiel do que somos e do que fazemos.

BIBLIOGRAFIA

AUGÉ, Marc. Não- lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade.

Trad. Lúcia Mucznik, Bertrand Editora, 1994.

CARREIRA, Shirley. Entre o ver e o olhar: a recorrência de temas e imagens na obra de

José Saramago. Atas do 6º Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas,1999

http://www.geocities.com/ail_br/entreovereoolhar.html

CHATMAN,Seymour. Story and discourse. Ithaca, London, Cornell University Press,

1978.

FOUCAULT, Michel.The archeology of knowledge and the discourse of language. New

York, Pantheon,1972.

HUTCHEON,Linda. Narcisistic Narrative: the metaficcional paradox. New York,

Methuen,1985a.

______ Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1991.

______ The politics of postmodernism. London, New York, Routledge, 1989

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo, Cia. das Letras, 1995.



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Todos os Nomes - de José Saramago

O mais recente romance de José Saramago tem por título Todos os Nomes e desvela-se como mais um aditamento àquilo que vem na linha de Ensaio sobre a Cegueira: a reflexão sobre a precaridade da vida humana, reflexão esta protagonizada por gente vulgar, neste caso um auxiliar de escrita de uma hipotética Conservatória Geral do Registo Civil. Como no romance anterior, as personagens não têm nome próprio, sendo identificadas por uma perífrase («a senhora do rés-do-chão», «a mãe da criança», «o marido ciumento», etc.). Exceptua-se a personagem central, o sr. José.

Perpassa ao longo do romance uma paisagem de chuva e de escuridão. A Conservatória Geral do Registo Civil é pouco iluminada e a escuridão do sótão da escola assusta o auxiliar de escrita que se mune de um foco quando do assalto à escola. A maior parte das cenas, ou sucedem de noite, ou em edifícios fechados onde escasseia a luz. Toda esta ambiência é de certo modo o retrato caricatural dos medos e preconceitos humanos.

Além da escuridão, chove constantemente. Tal perturbação atmosférica vem já de outros romances. Destacamos O Ano da Morte de Ricardo Reis, que começa numa tarde chuvosa com o médico regressado do Brasil a entrar encharcado no hotel. O sr. José percorre as ruas da cidade onde chove constantemente. A atmosfera é cinzenta, soturna, húmida. Perpassa um frio espectral em todos os ambientes descritos.

A vida do sr. José é de algum modo semelhante à do revisor de provas da História do Cerco de Lisboa, o senhor Raimundo Silva. Tem mais ou menos a mesma idade, é solteiro e vive sozinho numa casa de grande simplicidade. O impulso que leva ao desenvolvimento da acção é semelhante: por um lado temos o revisor que se lembra de acrescentar um não à História do Cerco; por outro, temos o auxiliar de escrita que decide averiguar a vida de uma mulher desconhecida cujo nome consta de um verbete da Conservatória. Motivos? Aparentemente nenhuns. Dar justificação à própria existência? Sair da rotina? Impulso injustificável de, subitamente, cometer um crime ou um acto heróico?

Vemos então o Sr. José, auxiliar de escrita, à procura de uma mulher desconhecida. É, todavia, uma procura invulgar. Ele prefere começar por baixo, desde o local de nascimento, passando pela escola, numa busca de detective. É aqui que se enquadra O Castelo de Kafka. O agrimensor K. pretende falar com as autoridades competentes do castelo. Até lá demora-se em gabinetes, atarefa-se a preencher requerimentos.

O autor privilegia a descrição pormenorizada dos grandes espaços. Surgem quatro: a Conservatória, a escola, a cidade e o cemitério. São os espaços do ciclo da vida, que se inicia na Conservatória quando os pais lá se dirigem para registar o nascimento de um filho. Nestas descrições aparece amiúde a enumeração de objectos, tão peculiar no estilo de José Saramago.

O tema do labirinto transcorre em todo o romance. A Conservatória é um labirinto de ficheiros onde, para penetrar nos seus corredores, é necessário desenrolar um fio de Ariadne. Um investigador se perdera, tendo sido encontrado uma semana depois quase morto. O maior labirinto, é, contudo, o cemitério onde o Sr. José vai procurar o túmulo da mulher desconhecida. Apresenta-se qual árvore ou polvo com ruas bifurcadas. Enquanto o cemitério é o labirinto dos mortos, a Conservatória é o labirinto dos vivos e dos mortos com ficheiros diferentes para cada estado. Quase no final, o conservador ordena aos seus funcionários a junção dos ficheiros, sem qualquer distinção de vivos e de mortos.

Em Todos os Nomes não há voos metafísicos. Tudo se desenrola cá em baixo, entre o mundo de pedra e cimento, catalogado em extensos ficheiros, criado pelo homem e que o sufoca. O próprio protagonista tem a fobia das alturas. Tudo é demasiado chão. Tanto mais que o protagonista é homem de pouca cultura, em que as suas leituras não vão além dos jornais e das revistas donde ele recorta notícias para a sua colecção de personalidades famosas. As reflexões que se elevam um pouco do solo são aquelas que o sr. José tem com o tecto da sua casa, a própria consciência.

Sendo uma romance onde se problematiza o humano, Todos os Nomes não deixa de ser até certo ponto divertido, talvez o mais divertido de todos os romances que José Saramago escreveu, onde uma ironia que toca o rifão popular vai fazendo sorrir a cada passo o leitor.

José Leon Machado, 12-11-1997

José Saramago: O Labirinto de Todos os Nomes

Como devem ser duros os caminhos
quando a gente só pensa na volta

(Guimarães Rosa)

Em Todos os Nomes (1997), José Saramago consegue mais uma proeza literária. Seu mais recente romance publicado no Brasil, retoma o tema da problemática do humano, da vida e da morte. Retoma, não no sentido de continuidade, mas de desdobramento. Inventa mais uma grande metáfora, mais um labirinto de dimensões mitológicas, mais um desafio à decodificação de símbolos.

Em seu romance anterior, Ensaio sobre a Cegueira, de 1995, uma estranha epidemia de cegueira atinge quase todos os habitantes de uma cidade, levando-os a seguir uma lógica perversa e ininteligível. Numa visão apocalíptica, Saramago lança uma longa interrogação sobre a ética e a razão, sobre a precariedade da condição humana.

Os dois romances se assemelham pela ausência de nomes próprios de suas personagens. Em Todos os Nomes, porém, há uma exceção: o protagonista, Sr. José. As demais personagens são identificadas por perífrases ("a senhora do rés-do-chão", a mãe da criança", "o marido ciumento", "o pastor de ovelhas", etc.).

Esse recurso narrativo usado pelo autor reforça a universalidade do tema: sem nome próprio a personagem se universaliza, isto é, abrange todo o universo humano, todas as pessoas, todos os nomes. Ao contrário, ao atribuir nome próprio à(s) personagem(ns), torna-a(s) única(s), individualizada(s).

É o caso, por exemplo, de A Jangada de Pedra (1986), onde "o próprio romance, através de seus personagens, esclarece o sentido de seus próprios sobrenomes" (FARINA, 1996, p. 211): Joana Carda, Joaquim Sassa, José Anaiço, Pedro Orce, Maria Guavaira.

Outro exemplo está em Memorial do Convento (1982), que encadeia a história da construção de um convento em Mafra (Portugal), no século XVIII, com a história das famílias Sete-Sóis e Sete-Luas (Baltasar Mateus e Blimunda), e mais o padre Bartolomeu de Gusmão, o "padre voador" e o compositor Scarlatti. A competência e a criatividade de Saramago ao encadear essas duas histórias (recurso narrativo utilizado também em História do Cerco de Lisboa, de 1989, conduz à citação de inúmeros nomes próprios da História, inclusive. Em um dos momentos do romance, ao descrever detalhadamente a procissão que "iria justiçar a judeus e cristãos-novos, a hereges e feiticeiros" (p. 50), levados à fogueira pela Inquisição, Saramago, ao nomeá-los, reflete: "quem sabe que outros nomes teria e todos verdadeiros, porque deveria ser um direito do homem escolher o seu próprio nome e mudá-lo cem vezes ao dia, um nome não é nada (...)" (p. 52).

Uma curiosidade em Todos os Nomes é que, além do nome do protagonista, só existem mais três nomes próprios: Conservatória Geral do Registo Civil, Cemitério Geral e Ariadne ("o físico" X "o metafísico"?, "presente X "passado"?, "viagem" X "busca"?, respectivamente). Tentaremos, mais adiante, uma breve análise e interpretação dessas interrogações.

Estilo renovado, suntuoso e "esférico", texto denso, ruptura na sintaxe, falta de pontuação nos diálogos, discurso direto ligado ao indireto, muitas metáforas - "A metáfora sempre foi a melhor forma de explicar as coisas" (p. 267) -, são algumas características desse escritor português, que nos induz à procura do sujeito do verbo num mar de complementos, conduzindo-nos a uma fascinante ginástica visual, ao mesmo tempo rítmica e melódica.

Saramago, quando "conta uma história", instrumentaliza e rege a palavra de forma mágica. É como um maestro-mágico regendo uma orquestra. Quando dá nome próprio às personagens, sabe carregá-las de significantes que, decodificados, por si só já se definem e nos desafiam a "belos momentos de pesquisa" (FARINA, 1996, p. 212).

Sobre seu estilo, o próprio Saramago define como um momento "dos mais belos de sua vida de escritor". Quando escrevia Levantado do Chão (1982), seu primeiro sucesso editorial, na forma de um texto convencional, ele conta: "Sem saber como, sem ter pensado nisso, começo a escrever como se tivesse contando aquela história, e contando aquela história, conto-a sem pontuação, da mesma maneira como falamos, com sons e pausas". E complementa: "Abolir a pontuação não foi decidido por alguém que quer escrever algo novo. Foi resultado lógico da aceitação de um tipo de narração que se confunde muito com a oralidade, tem a ver com essa mágica do conto oral. (...) O que eu quero é que o leitor ouça... ouça aquilo que está no livro" (ZERO HORA, 1998).

Todos os Nomes inicia com uma descrição pormenorizada do espaço físico e da estrutura funcional de uma hipotética Conservatória Geral do Registo Civil, onde, há vinte e seis anos, o Sr. José é um simples e exemplar auxiliar de escrita, que cumpre com extrema dedicação suas tarefas sem jamais reclamar: nunca falta, nunca fica doente, nunca desobedece às ordens de seus superiores. É nesse ambiente dos arquivos dos vivos e dos mortos que o Sr. José emprega disciplinarmente a maior parte do seu tempo.

Homem de cinqüenta anos, ele vive só numa, casa simples, conjugada ao prédio da Conservatória, graças aos desígnios da burocracia. Não se trata, porém, de nenhum privilégio. Há "muitos séculos atrás, os funcionários residiam na Conservatória Geral, (...) numas vivendas simples e rústicas, construídas no exterior, ao longo das paredes laterais (...). As casas dispunham de duas portas, a porta normal, que dava para a rua, e uma porta complementar, discreta, quase invisível, que comunicava com a grande nave dos arquivos", condição tida como beneficiária "para o bom funcionamento dos serviços" (p. 21). Mais duas vantagens incluíam-se neste caso: não haveria desculpas para atrasos devidos a deslocamentos e facilitava a inspeção dos funcionários que comunicavam estar doentes.

Com o tempo e a necessidade de uma reforma urbanística no bairro, as casas geminadas à Conservatória foram derrubadas, "com exceção de uma, que as autoridades competentes decidiram conservar como documento arquitectónico de uma época e como recordação de um sistema de trabalho" (p. 21). Foi meramente o acaso, e não algum privilégio ou castigo, que fez com que o Sr. José continuasse morando junto à Conservatória Geral. E, para eliminar qualquer dúvida, ordenaram ao auxiliar de caixa que fechasse à chave a porta que se comunicava com a Conservatória, proibindo sua passagem. Teria que, como as demais pessoas, entrar e sair pela entrada principal do prédio.

Apesar do rigor disciplinar no trabalho, o Sr. José, nas poucas horas de folga, tem uma única distração: colecionar recortes de jornais com notícias e imagens das cem maiores celebridades nacionais, independentemente da ação ou fato que as tivesse conduzido à fama. Bastava serem notícia e serem célebres. Sua coleção, na verdade, excedia a cem, mas, assim "como o autor das antologias e de elegias e sonetos", o Sr. José achava-se no direito de estabelecer "uma fronteira, um limite" (p. 29).

Para realizar essa secreta extravagância, o auxiliar de escrita ignora a proibição de abrir a porta de sua casa que se comunica com a Conservatória e, durante a noite, lança-se a uma obsessiva busca, onde no passado, um pesquisador de heráldica perdeu-se por vários dias.

O episódio fez com que o Chefe da Conservatória Geral baixasse "uma ordem de serviço que determinava, sob pena de multa e suspensão de salário, a obrigatoriedade do uso do fio de Ariadne para quem tivesse de ir ao arquivo dos mortos" (p. 15).

O desleixo relativo ao arquivo dos mortos, que ficava ao fundo, numa das cinco estantes "ciclópicas" existentes na Conservatória, a poeira, a escuridão e o medo de ser descoberto causavam pânico no Sr. José, agravado pela sua fobia por alturas quando tinha que alcançar um documento nas prateleiras mais altas.

Certa noite, durante uma de suas pesquisas, cai-lhe nas mãos, por acaso, o verbete de uma mulher de trinta e seis anos, onde "constam dois averbamentos, um de casamento, outro de divórcio" (p. 37).

Esse segundo acaso na vida do Sr. José, ao contrário do primeiro, o da casa em que vive, o faz presa de um impulso incontrolável, tira-lhe o sono e o faz perseguir no "labirinto confuso da sua cabeça sem metafísica o rasto dos motivos que o tinham levado a copiar o verbete da mulher desconhecida" (p. 39).

Ao decidir investigar a vida da mulher, abandona sua coleção de celebridades e lança-se numa aventura frenética, como um detetive às avessas e, munido de uma falsa credencial, parte rumo à investigação.

Seu roteiro de busca começa pelo endereço que consta na certidão de nascimento da mulher. Mal sucedido nessa primeira tentativa, indaga os vizinhos sobre o possível paradeiro da antiga moradora. Chega até a madrinha da desconhecida, "a senhora do rés-do-chão", que lhe sugere o óbvio: procurar na lista telefônica.

Situações insólitas, transgressões, encontros e desencontros sucedem no caminho de busca do viajante solitário, Sr. José. Percorre quatro grandes espaços: a Conservatória, a cidade, a escola e o cemitério. Ou labirintos. No último, constata que o objeto que o levou à tamanha transformação não existe. A mulher desconhecida está morta. Suicidara-se poucos dias antes.

De certo modo, a vida desse funcionário público é comparável à de Raimundo Silva (aliás, Benvindo Raimundo Silva, que, por não gostar do seu primeiro nome, omite-o), revisor de textos, personagem da História do Cerco de Lisboa (1989). Têm mais ou menos a mesma idade, são solteiros, dedicados ao trabalho e vivem franciscanamente. O impulso que os leva à ação transgressora é semelhante. O revisor decide acrescentar um "não" à História do cerco, permitindo-se tornar escritor, fazendo subir "o sapateiro acima da chinela" (p. 14); deixa de pintar o cabelo e diz sim ao amor de Maria Sara. Já o auxiliar de escrita decide averiguar o verbete de uma mulher desconhecida (a busca da "sua Maria Sara"?), rompendo com toda a rigorosa obediência às normas da Conservatória, deixa a barba por fazer, descuida-se da limpeza do seu quarto e diz sim a um possível amor imaginário e irreal na sua essência, como uma das celebridades de sua coleção.

O medo e o sentimento de culpa atingem a ambos. Raimundo Silva sente-se "mais cercado do que Lisboa esteve alguma vez" (p. 7); o Sr. José reconhece: "É absurdo, mas já era tempo de fazer algo absurdo na vida" (p. 83). Um impulso incontrolável? Necessidade de aventura? De justificar a própria existência?

Na trajetória do Sr. José, os quatro grandes espaços por ele percorridos - a Conservatória, a cidade, a escola e o cemitério - estão inseridos num cenário de chuva, nevoeiro e escuridão. No plano simbólico, a chuva, originária das nuvens pesadas e das tempestades, apresenta a dupla significação de fertilização espiritual e material; o nevoeiro é o símbolo do indeterminado, do nebuloso, do transitório; a escuridão se apresenta como símbolo de obscuridade, de ocultamento, semelhante à noite, tempo das gestações, das germinações, das conspirações e, ao mesmo tempo, imagem do inconsciente (no sono da noite, onde se misturam pesadelos e monstros, o inconsciente se liberta), preparação do dia, de onde virá a luz.

A Conservatória do Registo Civil é pouco iluminada, e o arquivo dos mortos é um grande labirinto escuro. O Sr. José tem de usar o fio de Ariadne, como todos os funcionários, e sente vertigens quando no alto de uma escada.

Em sua casa, anexa à Conservatória, o Sr. José se lança a reflexões e dialoga com o teto, o controle de sua consciência, do ponto de vista psicanalítico. De volta ao cemitério, após constatar que a mulher desconhecida estava morta, o solitário auxiliar adormeceu, teve um "sonho estranho, enigmático" (p. 245). Acordou "angustiado, alagado de suor" (p. 246) e, por "medo que o sonho regressasse", ficou "deitado de costas, olhando o tecto, à espera de que lhe perguntasse, Por que estás tu a olhar para mim" (p. 246). E, mais adiante: (o tecto) "Creio ter-te alguma vez que os tectos das casas são o olho múltiplo de Deus" (p. 248).

Chove constantemente quando ele percorre as ruas da cidade durante a noite. Numa dessas noites invade uma escola, à procura dos boletins escolares da mulher desconhecida: "olhou para dentro das salas a que a difusa luz exterior dava um ar fantasmático, onde as carteiras dos alunos pareciam túmulos alinhados, onde a mesa do professor era como um sombrio espaço de sacrifício, e o quadro negro o lugar onde se faziam as contas de todos" (p. 96).

No cemitério, o maior dos labirintos, o Sr. José caminha por longas horas em sua solitária busca. Ao anoitecer, "apesar de saber que irá ter medo muitas vezes" (p. 234), adormece embaixo de uma oliveira (símbolo de paz, fecundidade, purificação, força, vitória e recompensa - "árvore abençoada"), cujo "tronco foi-se-lhe abrindo todo de um lado, de alto a baixo, como um berço que tivesse sido posto de pé para ocupar menos espaço" (p. 236). Adormece, desta vez, tendo como "tecto" a copa da oliveira. Ao acordar, já dia claro e ensolarado, dirige-se ao túmulo da mulher desconhecida e encontra um pastor de ovelhas, que freqüenta o cemitério e troca os números das sepulturas. Profanação? Para estabelecer o caos? O pastor explica: "Se for certo, como é minha convicção, que as pessoas se suicidam porque não querem ser encontradas, estas aqui, (...) ficaram definitivamente livres de importunações" p. 241).

Voltando à Conservatória Geral e, conseqüentemente, à sua rotina, constata a cumplicidade do Conservador Geral às suas aventuras e recebe a chave que permite seu livre acesso ao grande prédio. Pega a sua lanterna, ata o fio de Ariadne ao tornozelo e dirige-se para a escuridão. Quem sabe, à procura de outros Minotauros. Em uma decisão recente, o Conservador ordenou aos funcionários a junção dos arquivos dos mortos e dos vivos, sem qualquer distinção.

A imagem do labirinto impõe-se em toda a narrativa desse novo romance de Saramago. A própria leitura do texto é comparável a um labirinto. "Por cima da moldura da porta" (p. 11) (da Conservatória Geral), são as palavras iniciais de Todos os Nomes. E, mais adiante: "Mal se cruza o limiar, sente-se o cheiro de papel velho." (p. 11). Detalhes, muitos detalhes descritivos que, lentamente, chegam às aventuras do Sr. José, de toda sua busca alucinada, de todo o desenrolar do "fio de Ariadne". De toda a sua transformação. Sem medo da escuridão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

FARINA, Sérgio. Estatuto poético: uma proposta metodológica de leitura analítica e interpretativa. Tese (DOUTORADO) - PUCRS. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1996.

MACHADO, José Leon (1997). «Todos os Nomes de José Saramago», in Letras & Letras, página da Internet no endereço http://web.ipn.pt/literatura/letras/crit017.htm.

MENDES, Armando. Uma ficção feita com acasos e sonoridade. Zero Hora, Porto Alegre, 28 dez. 1998. Segundo Caderno, Literatura, p. 7.

SARAMAGO, José. A Jangada de Pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 18ª ed. Bertrand Brasil, 1996.

SARAMAGO, José. Todos os Nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Maria José Rodrigues de Oliveira - Porto Alegre, Julho de 1998



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Resumo de O Dia dos Prodígios de Lídia Jorge

A obra de Lídia Jorge O Dia dos Prodígios relata a história de um povoado, o Vilarejo de Vilamaninhos.

Povoado este que acreditava em história mirabolantes criadas pelos próprios moradores.

Essas criações provém da falta do que fazer no distante e abandonado vilarejo, pois os moradores já tinham uma certa idade e as condições locais não davam outra alternativa de vida e costumeiramente tomavam conta uns das vidas dos outros, dandos palpites e se intrometendo no que não lhes dizia respeito.

Inventam histórias baseadas em desejos pessoais recalcados para suprir a ausência de fatos concretos. Pessoas que no fim são acusadas de loucas por acreditarem tanto na imaginação sobre a realidade.

A obra é apresentada quase toda em forma de diálogos.Havendo ainda partes em que as páginas têm o texto disposto em colunas, em que uma coluna faz um comentário paralelo ao que se desenvolve em outra..

Podemos compor uma tríade dos sinais mirabolantes conforme eles eram entendidos pelos habitantes do povoado:

o desaparecimento da cobra
Sinais dos fins dos tempos

O riso da besta aparição das formigas


O primeiro sinal: O grande mistério do desaparecimento da cobra morta, que criou asas de escama e voou, desaparecendo como por encanto.

O segundo sinal: o espanto de Pássaro ao ver a mula sorrir por mais de três vezes.

O terceiro sinal: José Jorge Júnior sentiu-se perseguido por males indignos, que seriam as formigas, bichos pequenos, figuras quase imóveis, tão presentes e incômodas que trepavam no corpo e penetravam na boca.

Segundo Álvaro Cardoso Gomes: "O Processo de desalienação subentende a superação desse estado repressivo, ou simbolicamente do prodígio. Carminha, em vez de esperar os pretendentes de fora, encontra a solução para seu caso amoroso dentro de Vilamaninhos, ao mar o lunático Macário. Branca, por sua vez, liberta-se da sujeição ao marido com sua privilegiada vidência. Em conseqüência, com a libertação de ambas as figuras femininas emblemáticas, o tempo perde o caráter escatológico. Simbolicamente, o dragão morre, ele que anunciaria o 'dia dos prodígios', o milagre que viria redimir os habitantes da vila. Em conclusão, Lídia Jorge dá a antender que os milagres não existem, ou ainda, que o prodígio está em cada um assumir a sua humanidade, para fugir da alienação." (A Voz Itinerante, p. 43-44)



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A Costa dos Murmúrios - de Lídia Jorge

Por: João de Mancelos

Sempre adivinhei a leitura como uma espécie de cinema mental. Por qualquer insondável alquimia, aquele que lê deixa de, a partir das primeiras paginas, ver os rebanhos de letras e frases impressos no papel. Passa antes a ter projectadas nas folhas do livro florestas de imagens, sons, tonalidades, acções. Abstrai-se dos caracteres negros e encontra dentro de si o que o escritor ousou apenas rabiscar. Dois universos- o do autor e o do leitor - volvem-se assim íntimos. Apesar de apertados. E tanto mais quanto for o talento do escritor para evocar, transformar uma singela palavra num fotograma de imaginação.

Reside aqui a arte de Lídia Jorge. Profeta no manejo da prosa, puxa-nos pela gravata do real e arrasta-nos ao hemisfério da Ficcionalidade. A Costa dos Murmúrios é pródiga nesta florescência de evocações. Dir-se-ia que um sótão de memórias, ao despegar cores, sons e aromas, cria atmosferas susceptíveis de desenroscar a capacidade que o leitor tem de, segundo Barthes, re-escrever o texto.

A narradora da maior parte de A Costa dos Murmúrios, Eva Lopo, nota esse fluido de sensações no comentário a Os Gafanhotos (a primeira parte do romance ) :

"Esse um relato encantador. Li-o com cuidado e concluí que tudo nele é exacto e verdadeiro, sobretudo em matéria de cheiro e som." Esquece, a meu ver, o mais relevante - a pauta de cores, tonalidades e cambiantes com que, quer em Os Gafanhotos quer no restante do romance, se colorem cenários, personagens e até ideias. Como se Lídia Jorge fosse senhora de uma paleta que a falta de aquarelas se cumprisse pelas palavras.

Qualquer estudo exaustivo a lápis e sublinhador detectaria que dentre as cores, uma preside sobre a tela de A Costa dos Murmúrios: o Verde. É apresentado em todo o seu fulgor aguando da chuva de gafanhotos:

"Estão a ficar verdes. Completamente Verdes." (p. 32).

Fala-se no 'esverdinhar da atmosfera " (p. 32). Distingue-se "o suspiro Verde como as asas dos gafanhotos " (p. 33). Projecta-se a cor, até se diluir com outras :"as fogueiras também elas verdes " (p. 34), "o escuro verde" (p. 34, 35), o "verde em torno das lâmpadas" (p. 35) e até clareiras de luz verde" (p. 37).

E como o bom e proverbial pintor, Lídia Jorge colhe com a ponta da esferográfica tonalidades intra-cromáticas - "e agora se via a luz das lâmpadas e as fogueiras passarem de verde-musgo a verde-coqueiro e a verde-esmeralda (p. 36).

Os mais cépticos contra-argumentariam acerca da minha breve recolha. Provavelmente invocariam a supra-citada cor como sendo a mais natural para uma chuva de ortópteros. Acordaria, se não se repetissem estes factos / indícios ao longo de todo o romance, como é o caso. Exemplos esparsos: "a penumbra esverdeada das arvores " (p. 64), "as saladas esverdinhavam (p. 108), "olhos castanhos, quase verdes (p. 127), "o verde dessa noite" (p. 137), "prisioneiro da luminosidade verde " (p. 142), "chuva verde " (p. 144) e outras infindas referencias cromáticas

É o general quem decide aventurar-se, nas paginas derradeiras de A costa dos Murmúrios; aventurar-se a uma interpretação algo árida e sufocante a semiótica do leitor. Para ele o verde traça-se como sinónimo de "alia-se o mar, pela cor, a nossa esperanca". O próprio cego sinistrado dizia "lindo, lindo, como é verde" (p. 214), numa alusão as festas vitoriosas no Stella. Investiguemos: esta cor tem diferentes plurissignificações, no enredo. O verde é a frescura iniciática de Eva Lopo, a premonição do amadurecimento a distender na obra.

Oposto ao vermelho, que surgira a simbolizar a atmosfera de guerra perdida e de 'aftermath', o verde é, segundo a cromologia, uma chave que abre os cofres da memória. Ora, todo a costa dos Murmúrios se constrói como uma lembrança (o fim), de uma iniciação (o principio). É um rits-de-passage de Eva Lopo. Um circulo perfeito cujos términos se fundem quando ela devolve e anula o conto os gafanhotos, obtendo a paz de quem se reconcilia com o passado.

A uma consciência de cor na obra, de facto. E o AMARELO, o parente mais descorado do verde também tinge algumas paginas.

"África é amarela, minha senhora - disse o comandante (...). Amarela clara, da cor do whisky !" (pp. 11 e 12)." "Entornava-se de facto uma atmosfera amarela - clara, da cor do whisky" (p. 14). "Evita ficou a ver como de facto tudo era laranja e amarelo, mesmo o noivo " (p. 15). "A cidade da beira, prostrada pelo calor a borda dos cais, era tão amarela como o ananás e a papaia.

Curioso é reparar que as personagens mais alusivas a própria África parecem ser retocadas a limão. O major dos "dentes amarelos, um deles sustido por uma anilha de oiro" (pp. 10, 21, 22, 27, 30, 32...) é praticamente definido por essa cor física que se mescla com ideias de decadência. Debilidade. Corrosão psicossomática: " O doente. Estava amarelo" ou "A imagem amarela do tenente gois". (p. 110)

Precipitemo-nos para a antonímia do verde e do amarelo. A cor mais fulva do espectro de tons quentes - VERMELHO.

Uma das primeiras referencias significativas liga-se ao inicio da tragédia. Um presságio que emerge no rasto" não propriamente vermelho, mas da cor da ferrugem, a cor que o sangue toma diluído na agua do sabão" (p. 19). Trata-se do afogamento dos negros, vestíbulo a indiciar o conflito. A noite que sucede é "vermelha e negra como um tapete que cai de uma janela sideral" (p. 31), apesar da relativa estultícia em que "o verde limo da luz conseguia "anular os objectos vermelhos do terraço" (p. 31). "Rosas", "Fio de sangue", "vergões", "tudo isso era vermelho", reparara o leitor.

Também as personagens, tal como no caso da cor amarelo, emergem como reflexos personificados de tons e cambiantes. "a mulher de cabelo ruivo" (p. 23), "a ruiva" (p. 28), "o cabelo encharcado de cor vermelha" (p. 121)... O próprio noivo, por contagio se afigura fulvo, ao surgir diante das aves cor de fogo" (p. 52), num intimismo com o cenário. De tal forma as cores se consorciam que Eva Lopo repara, a propósito de duas figuras relevantes no romance que "talvez o cabelo vermelho, talvez a pele leitosa (...) a união deles era um triunfo".

Interessante reparar que os interpretes mais antipáticos deste drama são definidos pelo colorido. E em tons fortes, a pedir inveja a um pintor "fauve". E não raras vezes associadas a tons de espectros diferentes. Helena é um exemplo franco - "ruivo-branco-cinzento" (p. 128). O vermelho é em suma uma cor ligada a cicatrizes, guerra, violência pelo acto e pela presença. A "cadeira vermelha" (p. 258), um símbolo que na antepenúltima pagina acaba por se ligar a imagem da capa, é a materialização certa. A variegada ilustração afirma-se até como prova de tudo que aqui se dilucidou Verde, amarelo, vermelho. Cores idênticas a bandeira nacional. Referencia a um pais fora do seu pais? Não importa. Os recônditos do detalhe são do domínio do autor. O que interessa são os tons que as palavras de humanidade, anti-militarismo e reflexão cumprem em Lídia Jorge.

Ao virar de cada página.

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O SILÊNCIO - Teolinda Gersão - estudo

A seda do lenço

A revelação de uma nova escritora num romance que aparecerá nas livrarias dentro de dias, e que o «JL» leu em primeira mão

Eduardo Prado Coelho

No fim da primeira parte de Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector escreve pela voz da protagonista Joana: «Resvale, de uma verdade a outra, sempre esquecida da primeira, sempre insatisfeita. Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de círculos inteiros, fechados, que se isolavam uns dos outros. (...) Continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida, jogando-os de lado, murchos, cheios de passado. Por que tão independentes, por que não se fundem num só bloco, servindo-me de lastro? É que eram demasiado integrais. Momentos tão intensos, vermelhos, condensados neles mesmos que não precisavam de passado nem de futuro para existir. Traziam um conhecimento que não servia como experiência - um conhecimento directo - mais como sensação do que percepção. A verdade então descoberta era tão verdade que não podia subsistir senão no seu recipiente, no próprio facto que a provocara, Tão verdadeira, tão fatal, que vive apenas em função de sua matriz. Uma vez terminado o momento de vida, a verdade correspondente também se esgota.»

Mobilizo o nome de Clarice, neste primeiro lance de aproximação de um livro, por vários motivos. Em primeiro lugar, porque Clarice Lispector é um nome que ocorre ao longo da leitura do livro de que falo. Mas também porque, na citação feita, se esboça uma teoria de narração de que a narrativa de Teolinda Gersão se torna exemplo: cada experiência, cada acontecimento, forma o seu círculo, o espaço da sua verdade evidente. Nenhum destes blocos se soma a outro, nenhum lastro se define: bloco a bloco, cada bloco justapõe-se, condensa-se na sua matriz, abre e fecha um círculo de vida, traz um conhecimento nómada que nunca se acumula num saber da experiência.

Utilizando a forma do círculo, Teolinda Gersão faz de cada um dos três blocos do seu livro um círculo de vida. Contar não é aqui sobrepor factos, mas alargar progressivamente o impacte da pedra ao cair na água. A forma circular fechada é aqui um modelo feminino de abertura: «continuo sempre me inaugurando». E é a nitidez de uma linha recta que nos surge como a forma masculina da clausura.

2

De um lado, Lívia. Do outro, Afonso.

Quando Lívia se imagina, o seu nome alarga-se também: Lavínia. O paradigma é o mesmo: «palavra esdrúxula, sobe até um ponto alto e parte-se de repente» (p. 18). Cada nome é um círculo que se abre e fecha. E por vezes se desdobra: «Lídia, íris, ígnia, um nome esdrúxulo» (p. 47). Ou, se preferirem, um olhar, um fogo, um círculo de fogo, um sol.

Do lado oposto, temos os nomes masculinos, ou o das mulheres que se incrustaram na ordem masculina: a primeira letra, o A, o paradigma dos nomes ordenados: Afonso, Alfredo, Alcina, Ana.

E ainda, intermediários, os nomes que começam por letras do meio: H. J. Mais concretamente, Herberto, Jorge.

E é tudo.

3

Se Lívia e Afonso se amam, se Lívia arranca Afonso a Alcina e vive com Afonso, mas foge, ao aperceber-se que Afonso segrega sempre a mesma relação («se não te deres conta e não lutares depressa, esta casa será, de repente, a outra, de onde procuraste, através de mim, uma saída» - pp. 83-84), o essencial da narrativa O silêncio está em que neste amor se cruzam dois mundos que se não tocam. Se quiserem, todo o livro de Teolinda Gersão modula o famoso aforismo lacaniano: «Il n'y a pas de rapport sexuel».

Mais do que contar experiências de acerto ou desacerto, exaltações ou simulacros, Teolinda Gersão mostra-nos a guerra dos mundos, «a tensão entro ambos, desde o início» pág. 33).

Assim, Lívia e Afonso são personagens reais e há deles uma história que se poderia desfiar. Mas aqui situamo-nos noutro nível, noutra instância de abordagem: entre os dois campos há relações de perigo e resistência, há agressão e invasão, há medo ou tréguas («limites tácitos a todas as palavras» - pp. 11-12). Há também momentos de vitória (p. 23), de defesa ou de aprisionamento («Porque era preciso defender-se contra ele, soube, sentindo que estava presa» - p. 61).

Todas as relações se estabelecem nestas fronteiras intensivas: «Pessoas-campos magnéticos, zonas de tensão, que se chocavam com outras, eram interrompidas por outras, lutavam com outras, originando novos campos de tensão» (p. 51). No limiar do amor, a tensão converte-se em violência: «violência apenas, dissera-lhe, ele exercia sempre violência contra ela (...) a tensão entre eles era assim entre as coisas imóveis e as coisas movediças, entre a ordem e uma desordem contra a qual, obscuramente, ele se defendia? (...) também ela exercia violência contra ele, estava de repente tão perto que ele caía no seu campo magnético, na sua zona de tensão, e se ela desse mais um passo, um único, ele ficaria subitamente vulnerável» (p. 86).

O amor («não há nada no amor, não há talvez o amor, há o desejo e a satisfação do desejo» - p. 60) desenha-se sobre este fundo de impossibilidade: a não-inscrição, no espaço simbólico da fala, do real da relação sexual. Ou, por outras palavras: «reconheceu que eles eram um homem e uma mulher que não se amavam, porque não conseguiriam falar nunca» (p. 109). De certo modo, o silêncio começa ai, onde a relação se faz não-relação, trabalho da morte sobre o corpo.

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Mas Lídia imagina - as imagens multiplicam-se, proliferam os círculos do imaginário. Arrisquemos uma fórmula: o amor é o círculo imaginário da relação prevalecendo sobre a

não-relação, o precário triunfo do círculo sobre a recta, a (in)decidida linha que hesita e se

encurva. Como dirá Barthes noutro contexto: «Um homem não é feminizado porque é invertido, está apaixonado. (Mito e utopia: a origem pertenceu, o futuro pertencerá aos sujeitos em que há feminino)» (Fragments d'un discours amourex, p. 20).

Lídia imagina, Afonso rectifica. Mas a rectificação é recondução à recta. Por isso Lídia dirá: «e agora eu contarei de novo e se quiser mudarei tudo e mentirei se quiser, porque tu não estarás aqui para dizer que minto, e nada do que eu disser poderás rectificar - colocar em linha recta - agora as coisas podem girar livremente em círculo, em espiral, em leque, desprendem-se das mãos e transformam-se e ninguém irá prendê-las nunca, estou sentada no chão e vou traçando em verde-escuro uma figura que é apenas e sempre provisória, e devagar irei pensando coisas que o mais leve movimento modifica, uma escrita sobre a água, movimentos da água» (pp. 75-76).

E há mais círculos: uma vez é o «conjunto de pequenos jardins girando no espaço, uma espécie de sistema solar» (p. 13); outra vez, «ela era de repente redonda e luminosa, um corpo» (p. 45); mais tarde, é um guarda-chuva ou um guarda-sol: «ela abria um guarda-sol na varanda e sonhava debaixo do guarda-sol, ou abria um guarda-chuva na rua, e sonhava debaixo do guarda-chuva, onde ele não pudesse ver a sua cabeça e os sonhos que corriam dentro dela» (p. 57).

Lídia, disse Afonso voltando, chamando já de longe, e agora ele vinha subindo pela duna e quando chegasse seria de repente o fim do Verão, o vento começaria a varrer as folhas e uma aragem fria subiria do mar, na tarde rápida, seria preciso correr as cortinas, fechar as portadas das janelas, acender a lâmpada do tecto e colocar junto da porta as malas já fechadas (as cadeiras vazias, as jarras sem flores, um chapéu de palha dentro de um armário entreaberto), venha muito devagar, pediu, dentro de si mesma, debruçada à janela, venha o mais devagar que puder, o cheiro quente do mar, do tojo, de vento, do alecrim bravo, de coisas misturadas que existem brevemente, neste momento existem e amanhã estarão mortas, o vento levantando-se, uma nuvem, uma sombra, uma onda fétida, a morte do mar, as praias negras, pássaros caindo em pleno voo, assomou ao portão e em dois passos estava junto dela, e tarde, disse, e pegou numa das malas, venha o mais devagar que puder, o cheiro do mar, do vento, do alecrim bravo, de coisas misturadas que existem brevemente, neste momento existem, e já ficaram de repente para trás, uma casa de areia, uma casa de vento e de espuma.

O Silêncio, p.53

Em torno de Afonso, Lídia traça o laço da captura, «e descrevendo em volta dele um círculo estreito, cada vez mais estreito, chegaria a um ponto em que ele não se defenderia mais» (p. 38).

5

Círculo aberto, Lídia existe incompleta e em movimento.

Por isso ela se define pela proliferação. Das suas mãos solta-se o inumerável. Passa um cardume negro. Afonso vê cem peixe - não os conta, claro, mas vê apenas o que imagina ser provável. Mas Lídia já não vê, imagina o que deseja - e por isso proclama: eram mil. Eram mil peixes, disse. Contei-os um por um e eram mil.» (p. 48). Milagre dos peixes: Lídia conta um por um o incontável do desejo.

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Diremos que o espaço de Lídia é o infinito do deserto: «era como caminhar por um areal infindável, uma praia deserta e lisa, contando unicamente com o impulso do seu corpo andando» (p. 24). Por isso a areia a acompanha: «aproxima-se descalça, pisando a areia que se solta do seu corpo» (p. 22). Areia ou arroz: «abriu finalmente um frasco e retirou uma mão-cheia de arroz, deixou-o cair aos poucos, entre os dedos, como areia, escutou o ruído que fazia ao cair na porcelana fria» (p. 60).

Na relação Lídia/Afonso, o infinito de areia em que Lídia se move encontra em Afonso o seu limite: ilusão do suporte, do apoio, da barreira contra a loucura do ilimitado. Lídia dirá: «porque eu era vaga e difusa e sem fronteiras, igual a tudo e a nada» (p. 35). E por isso há uma razão de ser para Afonso: «Talvez porque eu procurava um enquadramento, um limite, uma forma, porque estava perdida na multiplicidade das coisas» (p. 34).

7

Todo o livro se constrói numa duplicidade: não propriamente entre o que se «pensa» e o

que se «fala», mas entre aquilo a que Deleuze chamaria as linhas molares da conversa e as linhas moleculares da conversa. Num primeiro plano, sempre esbatido, temos os grandes, blocos de um diálogo. E depois, num segundo plano, insistente, obstinado, o plano molecular das deslocações imperceptíveis, das grandes acelerações ansiosas, dos desprendimentos clandestinos, da poeira obscura das palavras. Todo o entendimento amoroso se equivoca nas calhas deste desentendimento fundamental - espaço de tensão que neste desequilíbrio se vai acumulando até à explosão final da narrativa no fio da terceira linha submersa: o curso desse, «pequeno animal cego», Lídia, que corre silenciosamente ao longo do livro, até partir de Afonso, até partir do livro, até de si mesmo se partir: nome que sobe até ao i, e nele se quebra.

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Não é que não haja em Afonso um discurso também ele molecular. Simplesmente, as suas obsessões mestras são outras: o medo da morte ou o terror de ficar sozinho.

Algures diz Henry Miller no seu livro Sexus: «para alguém se tornar o grande amante, o magnetizador e catalisador, é preciso viver primeiro a sabedoria de ser apenas o último dos idiotas».

Clausura de Afonso: ser inteligente no amor. Por outras palavras, recusar toda a desordem, todo o risco, todo o ponto de ruptura, toda a queda no interior de si mesmo, no vazio desse interior. Ou ainda: querer chegar ao desejo sem aceitar a castração.

Lídia imagina: «entrar de repente em sua vida, levando atrás de si o rio, a noite, o vento, a água, a bruma, o obscuro milagre que no universo dele não existia - mas Afonso não punha nunca o seu próprio universo em causa, e não viria nunca ao seu encontro. Ele não aceitava risco algum» (p. 34). Para Afonso, «a vida é uma coisa sem brecha, não há nunca rotura nem milagre». E é aí, nessa exactidão, nessa segurança, que Afonso é mais desamparado do que nunca. Como diria Lacan, tanta inteligência falha, tanta arrogância claudica - «les non-dupes errent». Quando Afonso coloca a agulha do gira-discos sobre o disco, ele visa o ponto exacto da primeira nota de música, e sofreria imenso se não acertasse: e Lídia sorri, complacente - «até esse ponto ele era frágil, verificou, com um sorriso invisível», «porque ela era tão forte que aguentaria qualquer nota errada ou falsa, tão forte que aguentava repensar o mundo» (p. 37).

O feminino é o continente negro de que Afonso se esquiva: recusa a solidão última, o «despojar-se de tudo e também de si mesmo», recusa o ponto de ruptura para onde ela o arrastava, recusa o «partir do espelho e ficar defronte de um espaço negro, uma janela escura» (p. 87).

No universo angular, fechado e quadriculado, em que Afonso se move, no universo das palavras cruzadas em silêncio onde Afonso se fala, todo o desejo é sempre desejo de objecto, amparado na relação de objecto, no pequeno outro onde se agarra.

Lídia abre o espaço feminino do desejo. No homem predomina a função fálica - porque o falo é nele a garantia do um onde o sujeito se não perde ao comprometer-se na relação erótica. Por isso Afonso soma, isto é, estabelece igualdades, afirma a supremacia do Um: «a força dele sobre ela era assim uma força de identificação que a levava a perder os seus próprios contornos, somando-a, apenas, à vida que era a dele». Em Lídia, não: todo o amor é derrame do Um no Outro - queda interminável pelo sangue obscuro. «O seu desejo, que encontra na relação sexual um cume de prazer e um máximo de fruição, é, na realidade, um desejo sem objecto um desejo do desejo, mesmo se há um elemento que o desencadeia. E, por isso, por definição, não cessa. É aqui que se vê melhor o fracasso do objecto (o) na mulher. Ela oscila entre o retraimento total da libido (o não-investimento), por um lado, e um investimento total, por outro lado, mas de quê? De nada.» (Eugénie Lemoine-Luccioni, Le rève du cosmonaute, Seuil, p. 60).

Como se lê no livro de Teolinda Gersão:

«O absurdo de tudo isso, disse Afonso, a paixão da paixão, a procura da procura, o desejo em último caso sem objecto, porque o seu objecto é o desejo e nada do que você conta, ou diz, ou sonha, existe, o medo do amor, disse ela, o medo que você tem de ir até ao limite de si próprio, de destruir tudo o que fica para trás e criar em seu lugar outra coisa» (p. 97).

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E tudo isto, é claro, incide sobre a própria escrita.

Teolinda Gersão escreve O silêncio usando justaposição de blocos frásicos que nunca perfazem uma soma, que nunca atingem uma saturação. São movimentos de captura que se definem pela insistência. E daí a construção em «e... e ...». Um exemplo, entre muitos: «e inventarão o espaço e a luz e o céu e o mar e o amor e o corpo, porque uma força interior amadurece lentamente e de súbito irrompe e é uma força de mudança» (p. 107). Escrita sem essências, sem polarizações estáveis, itinerante, móvel, nómada, infindável como a areia, onde o «é» dá lugar à força deslumbrante da enumeração, à energia do «e» - escrita rente ao corpo da terra, moldada à flutuação do real, «movimento na água», alegria terrena, empirismo eufórico. E ainda escrita que traz consigo a sintaxe elementar da infância, a música gramatical do circo, o anel aberto das palavras-cerejas: «os amantes repetiam talvez a eternidade e a infância» (p. 3 1).

Porque também de eternidade se trata pelo modo como o não-tempo do inconsciente atrai para o seu campo as formas do tempo: este livro usa, não apenas a repetição intemporalizante das cenas, de modo a adquirirem uma consistência fantasmática, como ainda aquilo a que Harald Weinrich chama «as formas verbais seminfinitas» - isto é, por exemplo, o gerúndio ou o infinito colocados em primeiro plano de tal modo que a informação se torna rarefeita «desprovidas de informação sintáctica que possa ancorá-las na situação de locução, estas formas nada têm de comum com os tempos» dirá Weinrich, Le Temps, Seuil, p. 284).

Assim se ergue a dimensão de investimento fantasmático - como se pode confirmar pela força do infinito: «Um bagageiro leva-lhe agora a mala, sobe no elevador a seu lado, e aminham ao longo do corredor, param diante da porta, ela despede-o rapidamente com uma moeda que tirou da carteira, bate na porta logo aberta, Herberto abraça-a, beija-a longamente na boca, despe-a devagar. Deitar-se contra o seu corpo.» (pp. 74-75).

10

Três verbos sustentam o dispositivo fantasmático de Lídia: correr, cair, partir.

Tempo de partir, descalça, nas manhãs, o corpo inundado pelo sol, tempo de giestas, de gaivotas, de trevo, tojo, plantas bravas. Escalar as dunas, transpirar subindo, agarrada a vegetação rasteira, parar arquejante a meio, o mar de repente encoberto pelo chapéu largo de palha, zumbido de abelhas bravas em volta do seu rosto, chegar finalmente ao cimo arrastando o corpo pela areia, sentar-se na primeira pedra e ver o mar, atirar o chapéu para o lado e levantar a cabeça contra o vento, gritar ou cantar ou ficar calada, olhando o mar, deixar passar as horas sem dar conta, voltar finalmente para casa sobraçando um cesto de flores e camarinhas bravas, empurrar a porta e reencontrar Afonso - o candeeiro aceso sobre a secretaria inglesa, um halo de luz sobre o seu rosto inclinado que ela não vê logo porque ele escreve de costas voltadas para a porta por onde ela acaba de entrar, só depois se volta e ela poisa ao acaso o cesto que acabara sempre por tombar e aproxima-se descalça, pisando a areia que se solta do seu corpo e as flores que se espalharam pelo chão. E a desordem é subitamente uma forma de amor, a sua forma de amor. Interromper Afonso como o mar entrando.

O Silêncio, p. 22

Correr, sim, como um animal. Este livro é atravessado por um incessante devir-animal: chamas-me bicho, chamo-te bicho. O gato, por exemplo, sempre pronto a transformar-se em lince - no salto, no gesto definitivo da captura. Ou ainda os ursos brancos, os dispersos animais do antigo circo: «caminha ao acaso, sem sentir coisa alguma, no meio de tranquilos animais soltos, ursos brancos» (p. 115). Correr, sim, como um pequeno animal cego - construir um animal novo na corrida.

Cair, também cair - descer ao sem fundo, interminável queda dentro de si mesma. E partir partindo-se. Quando Afonso não é mais do que «um animal enjaulado batendo contra as grades sem encontrar saída» (p. 119), Lídia proclama: «deixei tudo no lugar e vou-me embora». Tanto que o livro se fecha, abandonado, sobre o ponto de vista dele, Afonso. «E então ela partia, dentro de si mesma, numa direcção alta e aguda» (p. 51). Afonso confrontando-se finalmente com «o terror de ficar sozinho» (p. 104).

11

Diremos que a mesma força que impelia Lídia para Afonso é aquela que lhe permite escapar-se à tendência para a identificação que leva Afonso a reproduzir na casa outra a casa mesma. Lídia faz do mesmo o lugar provisório do Outro - a evidência esplendorosa do círculo. Afonso reconverte o Outro na estabilidade do mesmo - a monotonia da recta. Cada círculo abre-se no interior de si próprio - por ser demasiado Integral, como explica Clarice: «continuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida.» Feminina aprendizagem da seda.

Porque - como diria Herberto Hélder - «cada lenço que se ata, / a própria seda do lenço / o desata. E o rosto que jorra do espelho / volta aos centros / arteriais» (Poesia Toda, p. 550).


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Teolinda Gersão nasceu em Coimbra,estudou Germanística e Anglística nas Universidades de Coimbra,Tuebingen e Berlim,foi Leitora de Português na Universidade Técnica de Berlim, docente na Faculdade de Letras de Lisboa e posteriormente professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa,onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada até 1995.A partir dessa data passou a dedicar-se exclusivamente à literatura.

Além da permanência de três anos na Alemanha viveu dois anos em São Paulo,Brasil, (reflexos dessa estada surgem em alguns textos de Os Guarda-Chuvas Cintilantes,1984), e conheceu Moçambique, cuja capital, então Lourenço Marques,é o lugar onde decorre o romance de 1997 A Árvore das Palavras.
Escritora residente na Universidade de Berkeley em Fevereiro e Março de 2004.

FPRIVATE "TYPE=PICT;ALT=[image]"Os seus livros retratam aspectos da sociedade contemporânea, mesmo quando a acção é transposta para uma época diferente. A problemática das relações humanas, a dificuldade de comunicar, o amor e a morte,opressão e liberdade,identidade,resistência, criatividade,são alguns dos temas focados.Outro aspecto central é a atenção dada ao tempo: quer se trate do tratamento do tempo na própria estrutura narrativa,quer seja o tempo histórico em que a acção decorre: a ditadura de Salazar em Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo, os anos vinte em O Cavalo de Sol,o século XIX em A Casa da Cabeça de Cavalo, os anos cinquenta e sessenta em Lourenço Marques em A Árvore das Palavras. Os factos históricos são todavia encarados numa perspectiva que transcende a sua época e os situa em ligação com a actualidade.


LIVROS PUBLICADOS (Publicações Dom Quixote,Lisboa)
O SILÊNCIO (Romance),1981, 4ª edição 1995
PAISAGEM COM MULHER E MAR AO FUNDO (Romance),1992,4ª edição 1996.
HISTÓRIA DO HOMEM NA GAIOLA E DO PÁSSARO ENCARNADO (literatura infantil),1982 (esgotado)
OS GUARDA-CHUVAS CINTILANTES (Diário Ficcional) 1984,2ªedição 1997
O CAVALO DE SOL (Romance),1989 ; edição Dom Quixote-Planeta 2001
A CASA DA CABEÇA DE CAVALO (Romance),1995,2ª edição 1996 ;
edição em Braille,1999
A ÁRVORE DAS PALAVRAS (Romance),1997
edição especial,com 50 ilustrações de Maia, 2000 ; 2ª edição, 2001
edição Dom Quixote- Círculo de Leitores 2001
edição Dom Quixote-Visão 2003

OS TECLADOS (Narrativa),1999 ,2ªedição 2001;edição em Braille,2003
OS ANJOS (Narrativa) , 1ª e 2ª edição 2000
HISTÓRIAS DE VER E ANDAR (contos) ,1ª e 2ª edição 2002
O MENSAGEIRO E OUTRAS HISTÓRIAS COM ANJOS (contos) 2003

Uma versão teatral de OS TECLADOS foi representada no Centro Cultural de Belém em 2001,com encenação de encenação de Jorge Listopad.
Uma versão teatral de OS ANJOS foi representada em 2003 pelo grupo de teatro O Bando,com encenação de João Brites.
Uma versão teatral em língua romena de A CASA DA CABEÇA DE CAVALO vai ser representada em Bucareste em Abril de 2004.

PAISAGEM COM MULHER E MAR AO FUNDO

As personagens estão enredadas num jogo de forças subterrâneas. O fascismo,tal como nos surge neste livro,é uma figura (obviamente detestável) desse jogo de forças.Se,por um lado,isso o abstractiza (a referência é O.S.) de O(liveira) S(alazar) ,por outro revela-o a uma luz desconhecida na nossa ficção. Um dos aspectos mais curiosos é o modo como uma recusa sem ambiguidades da opressão se combina com uma consciência muito subtil da ambivalência das forças com que nos confrontamos.O livro introduz na polarização masculino/feminino uma complexidade que a letra do texto torna literalmente apaixonante.
EDUARDO PRADO COELHO,JORNAL DE LETRAS.

"Livro sobre o fascismo, livro em que a própria escrita é sufocada, para caracterizar melhor esta época em que era impossível falar e em que as pessoas viviam num mundo sufocado." "... É uma escrita sem respiração, (...) há blocos de linguagem e depois há espaços vazios no meio, porque são blocos fragmentários.(...) Como o tema era a censura, (...) a falta de liberdade, (...) a própria escrita (...) é (...) muito compacta". (Entrevista de Daniela Reigadinha, em 27 de Outubro de 1996).

É considerado o seu livro mais político, pelo próprio tema escolhido: a queda do regime do ditador (que o livro nomeia sempre pelas suas iniciais O.(liveira) S.(alazar). Esta queda é anunciada, a nível metafórico, pelo motivo do regicídio, e pelo derrube pelo povo da estátua do Senhor do Mar, durante uma festividade religiosa.

Ao contrário do que é habitual na literatura portuguesa, (que sempre celebrou o mar como abertura, expansão, ou aventura, culminando na saga dos Descobrimentos), o mar é encarado neste livro como uma força negativa, de fechamento ou enclausuramento - geográfico e mental. A voz do mar é uma melopéia repetitiva, uma voz que convida ao entorpecimento e à desistência. (O que simboliza a ideologia dominante, e a incapacidade de revolta que ela exige). O livro encena, finalmente, a reversão desta situação para a situação contrária, de libertação e de abertura.

Trecho da obra:

Sua vida passada à beira-mar. O mar era o horizonte mais próximo, e também o mais remoto, desde o começo da infância. A casa a que todos os anos se voltava e de onde sempre de novo se partia, segundo um ritmo, uma lei escondida nas coisas, que ela levara, muito tempo a entender. De repente os dias eram límpidos, leves, cheios de pássaros, nasciam no jardim as hortenses, depois os jarros, depois as beladonas, os vestidos mudavam, o ar era mais quente, mais cheiroso, o céu era muito mais redondo e rasgado, sobretudo quando se olhava do chão, deitado sobre a relvas, e então, sem que soubesse nunca exactamente quando, era a hora de fazer as malas e de ir embora, era sempre um dia que chegava bruscamente, perguntava-se quapdo e diziam sempre «ainda falta muito», mesmo quando diziam «amanhã» o dia não chegava, e de súbito estava-se dentro do. dia sem o ter sentido aproximar-se, como se se tivesse 'saltado' sem cair entre dois muros, entrava-se no carro e partia-se, no meio de malas, cestos, trouxas de roupa e caixotes cheirando a sabão, Casimira amarrava o lenço na cabeça, passava para trás e fechava a janela, alisava com as mãos o avental antes de a sentar ao colo, e era sempre Casimira que ainda nessa tarde a levaria á praia com Elisa, ela olharia da praia e poderia distinguir as paredes brancas, a porta, as pequenas janelas -- lá estava, lá estava a casa, plantada no Verão. Todas as coisas iguais, recuperadas, porque não havia ainda nenhum intervalo no tempo. Os pés reconheciam as sandálias, como os ouvidos o vento, e o corpo o sabor do mar. Todas as coisas intactas, que de repente voltariam: o nevoeiro entrando pelas fisgas, como um assobio muito fino, o cheiro das manhãs em que chovia, os barcos, todos brancos, sobre o mar. E sobretudo a casa voltaria, idêntica, interior, envolvente, como o peso de dois braços, durante muitos anos voltaria, até que insensivelmente começaria a afastar-se como um barco partindo, e de repente havia uma distância intransponível entre ela e a casa de repente era o último dia e a casa fechava as suas portas, o Verão fechava as suas portas e o deserto crescia em toda a volta, o homem desmanchara a barraca e enrolara os panos, pegou com as mãos nos bonecos e sacudiu-os com força antes de atirálos ao chão -- mortos, de pau, os braços soltos, as saias de folhos desbotadas.



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VAGÃO J - Vergílio Ferreira

O romance começa com as personagens de uma feira livre numa cidadezinha de Portugal. A partir desses personagens populares começa a se destacar a família dos Borralhos.

Os Borralhos estão na posição mais inferior da escala social, são miseráveis e também são considerados ladrões pela maioria da população: "Manuel Borralho pertencia à família dos Borralhos, que eram ladrões, ladrõezinhos reles, se multiplicavam como cogumelos".

A família Borralho era constituída por Chico Borralho, o pai, que perde uma perna num acidente numa pedreira. Inválido, sem poder trabalhar, transforma-se num peso para a família, ainda mais que é dado às bebidas. Joaquina Borralho, a mãe, mulher vulgar e inculta, que tenta fugir da miséria pelos meios menos adequados, incentiva, por exemplo, a filha a roubar coisas nas casas em que trabalha como empregada. Quando o marido morre e os filhos ficam mais velhos parte para Lisboa com Calhau, um agregado da família e seu irmão Gorra.

Manuel Borralho, é o filho mais velho. Numa briga esfaqueia outro homem, o Bogas. É preso por um mês. É apaixonado por Maria do Termo, que não lhe corresponde o sentimento. Como o pai, embebeda-se freqüentemente e se mete em confusões. Por ciúmes de Maria do Termo assassina o Dr. Soeiro, pessoa de classe social elevada na cidade. Preso pelo crime é condenado ao degredo. Ao voltar muitos anos depois, encontra Maria do Termo transformada em prostituída decadente e acabam vivendo juntos.

João Borralho, outro filho de Joaquina, passa por vários empregos. Casa-se com Gornicho. É do tipo trabalhador, mas daqueles que estão sempre sendo explorados sem chegar a tomar consciência disso. Sua revolta com o Mundo é a de um simples.

Joaquim, quando criança desejava ter um papagaio de seda, nunca o teve. Arruma emprego de operário numa fábrica. Será sempre um operário, mas isso já é um progresso para as perspectivas sociais oferecidas aos Borralhos.

António Borralho, o caçula. É o único que consegue ir à escola. Dona Estefânia o protege, pois pretende encaminhá-lo para o seminário. Já no seminário, num acidente com fogos de artifício perde a mão e volta para casa com os seus sonhos desfeitos.

Maria Borralho, a filha mais velha, trabalha na casa de D. Estefânia. Por incentivo da mãe rouba a despensa. Engana o filho da patroa com algumas carícias para receber alguns presentes. Acaba grávida de um rapaz pobre e casa-se com ele.

Calhau, agregado dos Borralhos. Corcunda, torto, cigano. Acaba por ter um relacionamento com Joaquina, e chegam juntos a planejar a morte de Chico Borralho.

Família que luta contra a fome, a quem falta toda sorte de instrução e cultura, vivem no limite entre a humanidade e o animalesco.

Por outro lado, temos as pessoas que se contrapõem aos Borralhos pela condição social: Dr. Soeiro (homem de muitos poderes), Sr. Joãozinho (que junta dinheiro para comprar uma casa nova na Quinta), Sr. Castro (que tem muitas propriedades) e D. Estefânia.

Na escola, António Borralho ganha a simpatia do professor, este é quem dava caderno e lápis para o menino poder estudar. O professor demonstra ter uma visão crítica da sociedade em que vive.

Ti Ana, mãe de Maria do Termo, teve esta "filha de um patrão qualquer". Maria não cede aos apelos de Manuel Borralho, mas se deixa enganar pelo Dr. Soeiro. Assim a filha repete a situação da mãe.

Chico Borralho sentindo-se um peso para a família e muito amargurado pela sua condição, suicida-se atirando-se sob as rodas da camioneta que o levava ao médico.


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MANHÃ SUBMERSA - Vergílio Ferreira

Resumo (baseado na adaptação que Lauro Antônio fez para o cinema, 1980)

"Manhã Submersa" descreve o despertar para a vida de uma criança, entre a austeridade da casa senhorial de D. Estefânia, a neve e a sensualidade da sua aldeia natal e o silêncio das paredes do seminário.

Um jovem seminarista de doze anos, António Lopes, é pressionado a frequentar o seminário. O romance desenrola-se depois ao redor das vivências e sentimentos que o jovem seminarista vai experimentando. Naquele ambiente negro, triste, ríspido e severo do seminário, o jovem descobre-se e descobre o mundo que o rodeia: a repressão na educação, a pobreza da sua terra, as desigualdades sociais, o desejo do seu corpo em formação, a camaradagem, a amizade, o amor.

É uma obra poderosa oscilando entre a luz e as sombras, uma luta entre o corpo e o espírito em que o corpo acaba por ser mutilado em nome da libertação do espírito.

Manhã Submersa -cenas principais

-Viagem até à estação de comboios do jovem António Lopes numa carroça acompanhado de um senhor com alguma idade. O comboio que o levará ao seminário chega apitando e fumegando.

-Chegada ao seminário, um edifício alto e sombrio, que transmite uma sensação de frieza e austeridade. Os meninos que acabam de chegar ao seminário sobem umas escadas bastante inclinadas, de forma ordenada e silenciosa. São depois encaminhados até ao dormitório: uma camarata com diversas cama com lençóis e um pequeno cobertor para cada um. Os rapazes arrumam os seus pertences sobre o olhar atento dos Prefeitos, sempre em silêncio. António fica numa cama junto à janela.

Na primeira noite António deita-se com a perna de fora do lençol. Um Prefeito que passa por perto dá-lhe uma palmada na perna dizendo-lhe: "Menino seja decente!". O acordar no dia seguinte é feito muito cedo ao som de um bater vigoroso e de palmas do Padre Tomás. Os meninos levantam-se e, de forma ordenada, dirigem-se para o lavatório que tem apenas o indispensável. De seguida são-lhes entregue as batas (uniformes) que devem usar no seminário.

- a primeira aula: Os alunos alinham-se à entrada da sala em duas filas. Segue-se a chamada. Cada aluno recebe a indicação do lugar fixo que daí em diante deverá sempre ocupar.

- Refeitório: A refeição realiza-se num refeitório, em que todos estão a comer em silêncio. Em simultâneo com a refeição, um Prefeito passeia pelos corredores entre as mesas lendo a bíblia em voz alta.

À noite, no dormitório, António Lopes aproveita o facto do Padre ter terminado a inspecção para comer alguns géneros alimentares que trouxera de casa.

Conversa entre Gaudêncio, António Lopes e Gama que se apresentam uns aos outros. Gaudêncio desabafa que está triste e que gostaria de voltar para casa. O Padre Canelas ouve a conversa, aproxima-se e diz a Gaudêncio que passe mais tarde no seu quarto.

Na sala de aula, António pergunta a Gaudêncio como foi a conversa com o Padre Canelas. O Padre Martins entra de repente na sala de aula e ordena a todos os seminaristas que tenham consigo comestíveis de qualquer espécie, o favor de os irem buscar e entregar imediatamente. António Lopes recusa entregar os seus preciosos figos.

- Missa de recepção aos novos seminaristas: Na missa de boas vindas aos novos seminaristas, algumas frases são proferidas em Latim. O discurso apela à honestidade e à pureza do coração de cada um, pois uma vez puros no coração serão também puros no corpo e alma. É-lhes dito que foi Deus quem os escolheu para estarem ali, que é uma benção o facto de ali estarem, que devem meditar na graça infinita do Senhor que os escolheu para serem mensageiros de Deus na Terra.

- A carta: Numa aula, é concedida a autorização aos alunos para escreverem à família. António escreve dizendo que tem saudades da sua terra, que se sente sozinho naquela "casa tão escura e tão grande", que está com muitos meninos como ele mas não podem falar uns com os outros. Quer ir-se embora. António termina a redacção e fecha a carta. Ao entregar a carta ao Padre Martins este diz-lhe que toda a correspondência tem de ser entregue aberta. Perante isto, António hesita em entregar a cara que havia escrito mas é obrigado a fazê-lo pelo Padre Martins. Dias depois é chamado ao gabinete do Srº Reitor.

-O Reitor pergunta-lhe se se sente bem no seminário e se é bem tratado. António responde que o têm tratado muito bem e que se dá igualmente bem com todos os padres, mas confessa que tem saudades de casa. O Reitor responde-lhe: " Nenhum sofrimento pode apagar o benefício de Deus. Saudades e tudo o mais que se quiser são nada ao pé de uma graça divina. Deus baixou sobre o menino a graça do sacerdócio. Deus tirou-o da miséria, da desgraça e da condenação eterna". Diz-lhe também que o sacerdócio é a única forma de alcançar a salvação eterna. Depois do discurso, o reitor pergunta a António se continua a desejar ir para a sua casa. António responde que não. O reitor termina a conversa com António pedindo-lhe que reze a Deus para o livrar das más tentações. António agradece a bondade do Reitor e a conversa que teve com ele.

António escreve nova carta à sua mãe dizendo-lhe do quanto gosta de ali estar apesar de sentir saudades de casa e de todos. Sabe que têm de as vencer pois são obra do Demónio.

Na aula de latim é proposto um jogo que consiste na formação de dois exércitos. Cada exército tem um chefe máximo que escolhe quais os membros que constituem a sua equipa e qual a posição de cada um dentro do exército. O Padre Lino explica que cada um deve defender a sua posição e que podem desafiar membros superiores do seu exército ou membros do mesmo posto do exército adversário. Cada exército escolhe um santo patrono. António Lopes fica com a posição de segundo soldado.

No decorrer de uma aula, o Padre Tomás entra desenfreado, puxa o Tavares para o estrado e obriga-o a ficar de joelhos durante uma hora como penitência.

Carlos Pereira desafia Florentino, sendo escolhido para juiz o Tavares. Pereira inicia o rol de perguntas a Florentino que não tem uma prestação muito brilhante.

António Lopes rascunha num calendário, apontando e contando os dias que faltam para as férias mais próximas.

Gama desabafa com António perguntando-lhe se gosta de andar no seminário. António, cauteloso, olha para o lado verificando se ninguém está por perto, com receio que os oiçam. Responde negativamente tal como Gama. Este diz que vai tentar outra vez convencer sua mãe que não tem vocação para ser padre.

Numa aula, o Padre Martins dá directivas de como se devem comportar no seminário, lendo todas as normas do regulamento. Algumas das normas citadas são: "proibição de amizades e familiaridades", "proibição de se tocarem uns aos outros", "proibição de troca de papéis para estabelecer comunicação".

Como despedida para férias os seminaristas interpretam uma peça de teatro, simbolizando o Inferno e o Céu. Depois da peça, o Padre Martins faz recomendações aos seminaristas, alertando-os para os

perigos a que ficarão expostos fora das paredes do seminário.

Chegaram as férias. António vai de autocarro com Gaudêncio. Chega a casa de Dª Estefânia. Mariazinha, filha de Dª Estefânia, pergunta-lhe quando é que ele canta na missa. António cumprimenta o Srº Doutor, filho de Dª Estefânia. Recebe ordens para comer na cozinha.

Só no ano seguinte poderá comer na sala com os senhores.

Dª Estefânia veste-se e pede a António que se despache pois vão à missa. Depois da missa, Dª Estefânia fala com o Padre da aldeia dizendo-lhe que António pode ir à missa todos os dias e a todas as cerimónias, "garanto-lhe que enquanto ele estiver em minha casa, não há-de faltar". Dª Estefânia não permite que António visite a mãe e a família pois alega que esta só dá maus exemplos. António vê a mãe à porta de casa, por escasso segundos.

Durante o percurso para a casa de sua mãe, António é apupado por alguns rapazes da aldeia. Quando chega à casa da mãe, António dá rebuçados aos irmãos e fica sujeito às perguntas do tio Gorra, sobre o latim, sobre quanto ganha um padre, etc. A mãe conforta-o e diz-lhe para não ligar à conversa do Tio. António volta para casa de Dª Estefânia.

António está na cozinha a comer e repara nos seios da Carolina. Mais tarde espreita Carolina no pomar. Em conversa com Dª Estefânia, esta repara que António anda triste e pede-lhe que vá ter com ela à sala. Diz-lhe que é natural a sua tristeza pois vai separar-se da família. Lembra-lhe que muitos são os chamados e poucos os escolhidos e que ele será escolhido se Deus quiser. Dª Estefânia confessa que andou a pensar se, realmente, ele teria vocação para padre e que, inclusivamente, tinha falado disso com o Padre da aldeia. Dª Estefânia acaba por perguntar a António se tem ou não vocação para padre. António aproveita a ocasião e confessa que não tem vocação. Dª Estefânia fica supreendida e chocada, reprende-o severamente, humilha-o e acaba por ameaçar expulsá-lo de casa. Ao fim de algum tempo Dª Estefânia volta à sala e pergunta-lhe se já reflectiu melhor. António diz que sim e que afinal tem vocação. Dª Estefânia fica aliviada

dizendo-lhe que rezará ao Senhor para que Ele o livre das más tentações. Por fim Dª Estefânia avisa-o que de hoje em diante ele comerá na sala com os senhores.

António e Gaudêncio voltam para o seminário.No refeitório, comem completamente em silêncio. Estão constantemente a ser vigiados pelos seus superiores.

O Padre pede-lhes que escrevam uma redacção sobre uma manhã de primavera. Posteriormente, pede a António Lopes que leia a sua redacção. De imediato o interrompe dizendo-lhe que ele ainda não sabe explorar as potencialidades poéticas da escrita. Pede a Amílcar que leia a sua redacção como exemplo.

Todos os alunos são chamados à igreja. O Reitor profere um discurso dizendo que o seminário não é nenhuma prisão e que se preferirem os prazeres do mundo e sujar as mãos com os crimes mundanos são livres para tal. O discurso teve por base a expulsão de dois seminaristas que haviam tentado fugir durante a noite. António conversa depois com Gama que lhe explica o que sucedeu e lhe diz que um dia também ele irá fugir mas sem se deixar apanhar.

O Padre Martins passa todo apressado com um bilhete na mão. Gaudêncio e António ficam curiosos.

Tratava-se de uma ameaça anónima de atear fogo ao seminário. Diz-se que a ameaça tinha sido feita pelo "Mão de Negra".

Descobrem que Gama é o autor dos bilhetes ameaçadores e que foi ele quem lançou fogo ao seminário. Gama é expulso do seminário. Fazem um inquérito aos amigos de Gama que tenham más notas em comportamento. Gama afirma que fez tudo sozinho. O Padre Alves chama António à sua presença. Tem reparado que o rapaz anda triste e pergunta-lhe a causa da sua tristeza. Pergunta a idade, diz-lhe que é quase um homem e avisa-o dos "perigos" que aí vêm. Manda-o falar com o seu conselheiro espiritual pois aproxima-se a idade do "desejo do sonho", das "obras do demónio".

O Padre Fialho conversa com António e pergunta se tem sentido tentações do demónio. António responde-lhe que apenas tem saudades da mãe e dos irmãos e do seu amigo Gama que foi expulso. O Padre Fialho pergunta a António se tinha desejo pelo Gama como se sente desejo por uma mulher. António diz-lhe que não, mas que já sonhou com Carolina e com a Mariazinha. O padre diz-lhe que tem que combater as tentações do demónio: encontrar posições incómodas, por as mãos fora da cama, usar roupas largas, encher a mente e o espírito com pensamentos religiosos.

O Padre interroga Tavares sobre os territórios coloniais de Portugal.

Gaudêncio mostra uma revista com imagens femininas a António. Este tenta resistir à tentação de

olhar e joga a revista para o chão. O Padre que ia a passar apanha a revista. António tenta desculpar-se mas é em vão. Todos os seminaristas são chamados formando uma fila. O Padre Martins arranca a fita de bom comportamento do pescoço de António. António confessa a Gaudêncio que quer sair do seminário.

António é severamente castigado com uma régua de madeira.

António vai de férias. O Tio Gorra é o único que se encontra à sua espera. Depois surge Carolina com Dª Estefânia. À hora do jantar, todos esperam pelo Drº Alberto para começar a comer. Este chega e faz muitas perguntas a António sem no entanto manifestar qualquer espécie de interesse pelas suas respostas.

António tem a infelicidade de lhe saltar um bocado de carne do prato para a mesa. Dª Estefânia pergunta se no seminário não o ensinam como se comportar à mesa. Drº Alberto faz-lhe uma pergunta sobre um verbo em latim e António não é capaz de responder. Este humilha-o impiedosamente.

António vê o Drº Alberto ter relações sexuais com Carolina. Assustado corre para o jardim.

António vai ai a casa da mãe dizendo-lhe que não quer voltar para o seminário. A mãe responde-lhe

agrestamente: "que sabes tu da vida?". Diz-lhe que tem sido toda a vida uma "cadela" , cheia de fome e de trabalho, e que se ele fosse padre poderia ter uma boa velhice e os irmãos uma boa vida. Que sempre tinha sonhado ter um filho padre para poder conviver com "as beatas ricas". António torna a dizer que não quer ser padre, que quer ser homem e arranjar mulher.

De regresso ao seminário, António conversa com Gaudêncio. Ambos confessam que as suas mães não os deixaram sair do seminário. Gaudêncio pergunta a António se ele nunca pensou se Deus poderia não existir.António fica escandalizado: como pode ele pensar tal coisa?

Alguns seminaristas queixam-se de frio, têm arrepios e são enviados para a enfermaria. António aproveita para dizer que também que se sente doente. Isso permite-lhe acompanhar Gaudêncio que está realmente doente. A enfermaria está cheia. Os dois amigos têm que ir para as camaratas. Entretanto, os seminaristas que não estão doentes são enviados para casa. António arrepende-se de

ter dito que estava doente. Gaudêncio piora de dia para dia.

Gaudêncio morre. António vai à enfermaria e o Padre Alves diz-lhe que Gaudêncio já está perante Deus. António chora silenciosamente e reza pelo seu falecido amigo. Segue-se o funeral.

No dia de anos do Drº Alberto, António lança foguetes e Mariazinha brinca com ele. Dª Estefânia pede a Mariazinha que não brinque com os foguetes pois são perigosos. Enquanto António lança os foguetes mutila-se de propósito ficando sem uma mão. Deste modo não volta para o seminário.

A mãe lamenta-se e chora à beira da cama do filho. Só agora compreende a sua determinação em não querer ser padre e lamenta que tenha sido necessário tamanho sacrifício.

O Seminário:

O seminário é apresentado como um edifício austero, de linhas direitas, situado no cimo de uma colina. Lá dentro vivem homens de mentalidades muito rígidas que tentam, a todo o custo, formar os pequenos homens ali depositados pelos seus pais.

Os jovens têm de enfrentar uma disciplina rígida e desumana. É proibido pelo regulamento interno, qualquer tipo de diálogo, amizade pessoal ou conversa entre seminaristas.

Há todo um regime de castigos humilhantes em vigor tais como: estar de joelhos, repreensão pública, violação da correspondência.

(...) Tirei do bolso a minha fita verde com uma

medalha verde e deitei-a ao pescoço. Lento, mas a passo firme,

o Padre Tomás avançou então para mim. (...)Vi erguer-se-me

desde baixo, devagar, a mão do Padre Tomás, até à altura da

medalha. Depois vi-a segurar os dois braços da fita e parar um

instante, no extremo limite de execução, como para me

conceder que eu me sentisse ainda vivo pela última vez. E

finalmente, com um puxão brusco, o Padre Tomás arrancou-me

a fita do pescoço." (in FERREIRA, Vergílio, Manhã Submersa,

Lisboa:Bertrand,2000)

A Camarata:

As camaratas, com as camas todas iguais e dispostas geometricamente, estão também sob constante vigilância. Os jovens despem-se e vestem-se debaixo da roupa da cama, para que não verem o seu próprio corpo. Não podem falar uns com os outros. O Regulamento interno está sempre a ser relembrado e qualquer desrespeito pelo mesmo pode ser sinónimo de humilhação ou expulsão.

O Refeitório:

No refeitório apenas se ouvem as passagens da bíblia lidas por um dos padres e o ruído dos talheres e do relógio de parede. Até enquanto comem, as crianças estão a ser "educadas".

A sala de aula:

Apesar de serem amplas e cheias de luz, o ambiente é extremamente fechado e escuro, pairando sempre no ar a figura repressiva do professor, em cima do estrado.

A sala está disposta em filas ortogonais, com carteiras individuais. O "diálogo" é apenas unilateral, do professor para o aluno. As estratégias de ensino passam sobretudo pela memorização e são padronizadas.

O episódio de Padre Tomás e do Valério bem como a formação dos exércitos na aula de latim, demonstram o ambiente que se vivia no seminário. O primeiro ilustra o clima de rigidez, de vigilância constante e latente, e é testemunho da agressão moral e física dos adultos sobre osalunos. O segundo sublinha o ambiente de competitividade, conflito e hostilidade que Padre Lino acaba por instaurar entre os rapazes.

"Tratava-se de constituir dois exércitos ou dois partidos

que vão combater entre si (...). Os dois cabeças de partido, os

dois «generais», eram eleitos por escrutínio secreto.(...)

Cada aluno que deseje subir de posto pode desafiar

qualquer outro de um posto superior do mesmo exército. O de

um posto superior não pode desafiar o de posto inferior. Mas

pode desafiar o que tem posto igual no exército adversário."

Na próxima aula de Latim já haverá desafios. Quem

quiser desafiar alguém, escolhe o seu adversário por

escrito.(...)"

(in FERREIRA, Vergílio, Manhã Submersa, Lisboa:Bertrand,2000)

Manhã Submersa

Nesta atividade, altamente competitiva, são registrados apenas os erros que os alunos cometem e nunca as suas respostas acertadas. O objetivo é a humilhação dos mais fracos pelos mais fortes.

O despertar da sexualidade de António Através da personagem de António, Vergílio Ferreira não

deixa de recordar o despertar da vida sexual na puberdade, as perturbações físicas que assaltam o jovem, o sentimento de desconforto moral e a convicção de viver permanentemente em pecado que o seminário incute através de veladas e maliciosas conversas dos perfeitos.

A Vocação de António:

António não tem vocação sacerdotal. Vai tomando consciência deste fato à medida que começa a pressentir a solidão da vida de um padre e a sentir a recusa total do seu ser perante essas sombrias perspectivas de futuro. Todavia, sempre que manifesta a sua convicção provoca reacções violentas e

mordazes, quer em Dª Estefânia, que não lhe reconhece o direito a uma opinião e que, quando contrariada, o ameaça violentamente, quer na própria mãe que o pressiona, através de chantagem emocional.

Impotente perante as pressões, consciente da certeza da sua falta de vocação, só lhe resta refugiar-se na solidão e instalar-se na angústia, que o atormenta durante o dia e lhe tira o sono durante a noite.

Na monotonia e na estagnação diária da vida de António, dois fatos se destacam. Gaudêncio arrisca uma dúvida sobre a existência de Deus. António tem uma reação violenta que ele próprio não sabe explicar. Por fim, o funeral do amigo.

"Atrás de mim, como um arrastar de correntes, o canto

pesado não cessava. (...) Por cima, na radiação fixa do céu,

petrificava-se a face de todos os terrores da minha infância."

(in FERREIRA, Vergílio, Manhã Submersa, Lisboa:Bertrand,2000)

Após a hipocrisia da homenagem a Gaudêncio, desperta em António uma vontade inflexível de abandonar o seminário. O lançamento de bombas e foguetes na festa do Dr. Alberto

oferecem-lhe a ocasião. A mutilação voluntária liberta-o para sempre de um destino a que parecia definitivamente condenado.




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Mudança - Vergílio Ferreira

O romance começa com uma forte chuva sobre uma aldeia de Portugal. A partir daí começam a serem apresentados os personagens principais. Carlos Bruno, advogado e herdeiro de uma fábrica de tecidos. Berta, noiva de Carlos Bruno.

Berta e Carlos vivem uma situação conflituosa em razão de suas personalidades e de sua formação.

Carlos é filho de José Bruno e tem um irmão, Pedro. Carlos vai à Universidade ao passo que Pedro fica trabalhando com o pai.

De início temos o conflito entre os irmãos, decorrentes de suas perspectivas diferentes. Além do que Carlos é filho legítimo e Pedro é bastardo. O pai suicida-se após uma crise financeira que o leva à ruína. Na nova condição que se estabelece, Carlos sente-se agora igualado e mesmo até inferiorizado a Pedro. Pedro, após a morte do pai, transforma-se num marxista, defensor das causas sociais. Carlos tenta a carreira política, mas motivado por desejo de poder e prestígio.

Cardoso, pai de Berta, e que trabalhava como guarda-livros do pai de Carlos, acaba enriquecendo com a guerra (II Guerra Mundial), compara a fábrica arruinada e o casarão de Villarim, onde morava a família Bruno.

Durante o namoro e o noivado com Berta, Carlos tem um comportamento mais romântico com Berta. Após o casamento, a inversão dos papéis sociais, agora é Berta quem é rica e Carlos um pequeno advogado de província, resulta numa transformação da relação entre ambos. Carlos passa a querer dominar Berta como forma de recuperar seu poder, esta sentindo-se sufocada e reprimida acaba dando ao marido a suspeita de que tem um amante, Raul.

Num crescente de deterioração das relações entre Carlos e Berta chegam à separação. Berta vai para Villarim e Carlos fica só na casa da Castanheira. Seu único amigo é o cão Dick, que, no entanto, morre atropelado. O enterro do cão é para Carlos simbolicamente sua própria morte.

Berta ao visitar o escritório de Carlos acabam conversando sobre um processo judicial em que a mulher matara o marido porque ele não era o mesmo. Carlos pergunta: "Que fazias tu no lugar dela?" E Berta responde prontamente: "Matava-o também."

Noutra ocasião Berta trava um diálogo com um vendeiro, Sr, Roberto, quando comprava veneno para ratos: "Não me diga que se quer suicidar. Ou que é para matar alguém?" E Berta responde: "Senhor Roberto. Que graça de mau gosto!"

O romance termina com Berta diante de uns cubos de queijo e a porção de veneno e relembrando as várias frases que insinuam a morte de Carlos: "Matava-o também". "Não se diga que é para matar alguém?", "Ouça Berta", "Faz parte da vida que te condena e anula"...



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Aparição - Vergílio Ferreira

Alberto Soares é o narrador/personagem. Alberto já velho, no casarão da aldeia, fica a relembrar o passado. Um mais distante, da infância e o outro, mais recente, de professor recém formado que vai trabalhar em Évora. Professor de língua e literatura, Alberto volta à cidade dos pais,Évora. Relembra como se dera a morte do pai, ocorrida por síncope cardíaca em pleno ceia de Natal. Relembra vários fatos: dos irmãos, Tomás, o filho mais próximo ao pai e Evaristo, mais próximo à mãe. Tomás, irmão mais velho, destaca-se pelo sentido de sua ligação com a terra, no trabalho rural, de conceitos mais simples e mais direto nessa mesma simplicidade.

Relembra da infância ainda a perda do cão Mondego, cão vira-lata que adotara, mas cuja morte é causada devido às pedradas que recebera de Evaristo, e o pai, vendo o sofrimento que os ferimentos causara no animal, decide pedir a um empregado que o sacrifique para diminuir sua pena. Relembra a morte da mãe, ocorrida mais tarde que a do pai. A mãe morrera serenamente, mais de velhice do que por uma causa específica.

Instalado numa pensão fica a relembrar estes e outros fatos traumáticos. Em Évora, Alberto assumirá o cargo de professor do Liceu local. Ao Reitor do Liceu expõe seus planos de ensino. Conhece na cidade o Dr. Moura, amigo do pai, médico. A família do Dr. Moura é constituída pela esposa e pelas filhas. Ana, a filha mais velha é casada com Alfredo, irônico e seguro de suas opiniões. Sofia, jovem, começa a ter aulas particulares com Alberto Soares para resolver suas dificuldades no Colégio. Cristina, a caçula, apenas 7 anos, está aprendendo a tocar piano e durante as noites antes do jantar, toca para todos, principalmente para o pai, que muito se contenta de vê-la tocar.

Como Alfredo e Ana não têm filhos, resolvem entrar com um processo para adoção dos filhos de Bailote, um lavrador que se enforca por não ter mais a mão direita apta para semear.

Conhece também Chico, engenheiro e amigo do Dr. Moura, que leva Alberto Soares a dar uma série de conferências no centro cultural Harmonia. Porém, Chico é um homem mais materialista e objetivo e pouco está afeito ao discurso metafísico e existencialista de Alberto Soares.

Logo as opiniões do Reitor, de Alfredo e de Chico vão se chocar com a de Alberto. O Reitor lhe repreende por propor redações de temas existencialistas aos alunos e que isso tem diminuído a criatividade e aumentado suas angústias. Alfredo e Chico discordam de suas opiniões acerca da morte, do sentido da vida. Alfredo demonstra uma desconfiança aliada à curiosidade e Chico oferece a inimizade.

No desenrolar das aulas particulares que dava a Sofia acaba surgimento um relacionamento amoroso que é mantido escondido do Dr. Moura.

Um sobrinho de Chico, Carolino tem papel importante no desenvolvimento da história. Carolino era o aluno mais atento às aulas de literatura e o mais afeito ao discurso do professor. Seu apelido era o Bexiguinha devido as suas bexigas, sentia-se inferiorizado pela sua aparência e na sua mente acaba invertendo alguns conceitos, passa a considerar o homem igual a Deus quando o homem domina o poder de matar. Na infância, ocasionara a morte involuntária de uma galinha e isso abre essa perspectiva na sua consciência.

Durante as férias natalinas, Tomás deixa Évora e vai para a aldeia onde fica o casarão paterno para poder tratar da partilha dos bens paternos entre os três irmãos. Acaba tendo conversas e algumas discussões com Tomás acerca do assunto que tanto o inquieta: o sentido da existência da vida e da morte. Tomás, na sua simplicidade, se enfada da complexidade com que Alberto trata o tema e rebate com frases mais objetivas, afirmando, entre outras coisas, que para Tomás basta saber que a vida continua depois de sua morte. Isto para Alberto soa como uma espécie de epifania, de iluminação simplória mas forte.

Quando volta à Évora, algumas coisas haviam mudado. Sofia, agora, namora com Carolino. Alberto aluga uma casa no alto de São Bento, onde passa tempo em suas meditações. Sofia passa a visitá-lo mesmo continuando o namoro com Carolino, o Bexiguinha. Este movido por desconfiança e ciúmes escreve uma carta ao Reitor denunciado o mal comportamento moral do professor.

Num acidente de automóvel, em que Alberto, Alfredo, Ana, Cristina e outros tinham ido passear no dia de Carnaval, na volta, Alfredo, que dirigia, perde a direção do automóvel, bate numa árvore, e no choque a pequena Cristina morre. A morte da pequena foi traumática principalmente para a irmã mais velha, Ana, que não podendo ter filhos, via na pequena irmã uma espécie de filha. É nessa ocasião que Alfredo se decide pela adoção dos filhos de Bailote para minimizar a dor de Ana.

Carolino, enciumado pela indiferença de Sofia, decide tentar resolver pela violência esse triângulo amoroso. Planeja matar o professor Alberto com uma faca, fica à espreita à noite para apanhá-lo quando chegasse em sua casa. Porém, na luta que se desenvolve, o professor Alberto mais forte e mais hábil, desarma ao Bexiguinha e põe-no a correr. Humilhado, Carolino não desiste de seu desejo de vingança e opta por matar um vértice mais fraco desse triângulo, Sofia. De fato, Carolino assassina sua namorada e foge. Preso é considerado demente. Tomás, no seu vigor de homem do campo, chega a ter dez filhos. A mãe de Alberto morre de velhice.

Toda essa situação força Alberto a deixar Évora por uns tempos, vai para o Faro, bem ao sul de Portugal, onde se casa, tem filhos, adoece e deixa o ensino. Quando volta, anos depois é quando se inicia sua narração, solitário no casarão paterno.






João de Mancelos

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