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quarta-feira, 22 de abril de 2009

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Ensaios de um Grande Mestre e Doutor(pois é Doutorado e não advogado e médico que nem defendem uma dissertação ou tese) Ele fez




















CENSURA AOS ARTISTAS EM TRÊS QUADRAS DAS CENTÚRIAS DE NOSTRADAMUS.
Por: Prof. Dr. Jayro Luna (Jairo Nogueira Luna)
O famoso livro sibilino, Profecias de Nostradamus, é daqueles que tem sido ao longo do tempo objeto das mais polêmicas e disparatadas interpretações. Livro de caráter profético, escrito em quadras herméticas repletas de simbologias místicas, a interpretação de suas quadras resultou num conjunto de obras das mais variadas intenções e naturezas. Obras como as de Pierre V. Piobb (O Segredo das Centúrias de Nostradamus), Érika Cheetham (As Profecias de Nostradamus), Márquez da Cruz (Profecias de Nostradamus e de Outros Videntes), Valério Evangelisti (Magus: O Presságio: Fantástica História de Nostradamus), John Hogue (Nostradamus e o Milênio: Predições do Futuro), ou ainda uma ópera rock (Nikolo Kotzevs - Nostradamus) compõem esse diversificado e rico acervo, que inclui documentários de televisão, filmes para o cinema, etc.
Eu, como curioso das ciências ditas ocultas ou esotéricas, com especial apreço pela Numerologia, pela Cabala, pela Astronomia e que tenho admiração pelas religiões antigas e pelas de origem afro (Candomblé, Umbanda - esta, legitimamente, afro-brasileira) e pelas interpretações antropológicas e históricas do Cristianismo, além de um inolvidável interesse pela maçonaria, espiritismo e outras seitas místico-religiosas oriundas do Velho Mundo, afora as pesquisas que já fiz pela mitologia asiática, não pude me furtar, por vezes, ao desejo de ler as quadras de Nostradamus como quem busca ali entendê-las, decifrá-las, o que é natural em relação a este tipo de texto. Desenvolvi um método próprio, muito pessoal (parte dele, ou alguns indícios dele, explico em capítulo de meu livro de poesias e textos diversos Florilégio de Alfarrábio, 2002).
No presente e breve texto, apresento uma leitura, segundo esses princípios próprios de interpretação, de três quadras das centúrias. São elas: Quadra XVIII da Centúria IV; Quadra LIII da Centúria V e XCVI desta mesma V Centúria. Transcrevo-as a seguir no original e segundo a tradução de António da Silva Lopes:
Est. XVIII, IV Cent.:
Des plus lettrez dessus les faicts celestes
Seront par Princes ignorans reprouvez :
Punis d’Edict, chassez, comme scelestes,
Et mis à mort lá où seront trouvez.
Dos mais letrados de cima os feitos celestes
Serão por Príncipes ignorantes reprovados:
Punidos por Édito, expulsos, como celerados,
E postos à morte lá onde forem encontrados.
Est. LIII, V Cent.:
La loy dy Sol & Venus contendus
Appropriant l’esprit de prophetie,
Ne l’un ne l’un ne l’autre ne seront entendus,
Par Sol tiendra la loy du grand Messie.
A lei do Sol e Vênus contendidos
Apropriando o espírito de profecia,
Nem um nem outro serão entendidos,
Por Sol se manterá a lei do grande Messias.
Est. XCVI, V Cent.:
Sur le milieu du grand monde la rose,
Pour nouveaux faicts sang public espandu :
A dire vray on aura bouche close,
Lors au besoing viendra tard l’atendu.
No meio do grande mundo a rosa,
Para novos feitos sangue público derramado:
Para falar verdade ter-se-á boca fechada,
Então se for preciso virá tarde o aguardado.
Para Érika Cheetam, a quadra XVIII da Centúria IV é uma referência às atrocidades cometidas pela Inquisição em nome da Fé:
“Notam-se resquícios da Inquisição nestes versos. Na realidade, os astrólogos não foram tão duramente perseguidos depois da morte de Nostradamus como no século anterior. É possível também que ele se referisse à caça às bruxas que assolou a Europa e só mais tarde amainou. Nostradamus foi convocado a depor diante do tribunal da Inquisição em Toulouse e teve que desaparecer durante algum tempo.”
(CHEETAM: 1983, P. 215)
Com efeito, esta quadra é de uma clareza quase impressionante em termos de censura e repressão. Se pensamos no próprio autor, Nostradamus sofreu com a perseguição da Inquisição e sabia como seu conhecimento era considerado proibido e, para muitos religiosos, de natureza demoníaca. A quadra pode se referir a inúmeros episódios da história da humanidade posteriores à época de Nostradamus e, mais ainda, a diversos lugares do mundo. As ditaduras - sejam de esquerda ou de direita, fascistas, marxistas ou capitalistas - tiveram e têm como prática constante a perseguição aos dissidentes, não apenas políticos, mas também e com grande furor, aos artistas (poetas, pintores, romancistas, dramaturgos) e assim também como aos jornalistas e à liberdade de imprensa. Salazar em Portugal (1926 - 1974), Franco na Espanha (1939-1975), Stalin na extinta União Soviética (1930-1953), Nicolau Ceaucescu na Romênia (1965 - 1989), o clã dos Somoza na Nicarágua (1936-1979), Saddam Hussein no Iraque (1979 - 2003) apenas para ficarmos em alguns exemplos do século XX. Não precisamos buscar exemplos assim tão explícitos de ditadura, podemos encontrar aspectos semelhantes na “caça às bruxas” movida pelo governo norte-americano no período do chamada Mcartismo, ou a ditadura populista de Getúlio Vargas no Brasil, e para ficarmos no nosso caso, o período da ditadura militar em que a repressão ganhou contornos das mais terríveis ditaduras de repressão à liberdade de expressão (1964-1978). Ainda na América do Sul, ditaduras no Chile, na Bolívia, no Peru e na Argentina, primaram pela perseguição aos opositores, aos artistas, aos jornalistas. Assim, a quadra de Nostradamus cabe perfeitamente bem em qualquer um
desses casos, inclusive na França, por exemplo, no período entre a Revolução Francesa e o Império Napoleônico.
Claro que é possível, em se querendo prestar crédito aos poderes proféticos do autor dessa quadra, que ele devia estar se referindo a algo particular, um caso específico e não geral, que não obstante, serve de exemplo aos demais, em gênero, número e grau. A tarefa de decifrar e de encontrar esse período específico, esse caso singular que se refere ao geral como exemplo, envolve às mais diferentes técnicas e estratégias esotéricas e intertextuais.
Para a estrofe LIII da V Centúria Érika Cheetam apresenta a seguinte interpretação:
“O Sol representa aqui a cristandade e Vênus, o Islã. Esta quadra reafirma o desejo de Nostradamus de ver o cristianismo governando o mundo. Infelizmente esta é uma das quadras que, parece, nunca se realizarão.”
(CHEETAM: 1983, p. 282)
Outro intérprete de Nostradamus, Ettore Cheynet em seu livro Nostradamus e o Inquietante Futuro (1987), apresenta uma interpretação próxima a de Cheetam:
“Haverá, pois, uma lei solar e uma lei de Vênus, que estarão em oposição, e ambas pouco seguidas. Adequando-se ao espírito da profecia: é preciso interpretar ao pé da letra. A lei do sol penderá para a antiga religião cristã.”
(CHEYNET: 1987, p. 112)
P.V. Piobb em seu O Segredo das Profecias de Nostradamus demonstra engenhosamente os artifícios com que é possível aplicar elementos astrológicos na interpretação dessas quadras. De fato, não é possível negligenciar a aplicabilidade de estratégias engenhosas de astrologia no processo de decifrar o texto. Para nós as referências no primeiro verso dessa quadra ao Sol e a Vênus superam a relação cristianismo/islamismo.
Se pensarmos no âmbito da Astrologia, Sol e Vênus contendidos (em oposição), o que é uma situação astrologicamente impossível, uma vez que Vênus nunca está além de 46.° do Sol. Assim, parece que se desautoriza em falarmos em elementos astrológico nessa estrofe, mas reside justamente aí um dos principais fatores herméticos do texto de Nostradamus, qual seja, o de colocar à vista elementos surpreendentes que podem parecer acima de qualquer suspeita ou possibilidade de relação. Se lemos toda a estrofe nesse contexto astrológico, podemos entender que ela nos fala que existe uma lei pela qual Sol e Vênus não podem entrar em oposição, e que se isso um dia ocorresse, os homens não conseguiriam entender o céu ou arrumar explicação para o evento, seria um evento catastrófico de grandeza sideral (apocalíptico) e que, portanto, mantém-se essa lei como uma lei que garante a eternidade ou a permanência das palavras do “Grande Messias” (Cristo?!). Se, por outro lado, agora pensamos no significado simbólico religioso que autores como Érika Cheetam e Ettore Cheyenet costumam aplicar a esta quadra, podemos perceber agora que ele não fala propriamente da guerra contínua entre cristãos e muçulmanos (desde antes das Cruzadas até os dias atuais), mas sim, o contrário, de que é a existência dessa oposição que se contrapõe ao que o próprio céu ensina: de que Vênus e o Sol estão próximos, quase que em constante conjunção. Assim, a rota da felicidade na Terra é aprender com o Céu (lembremos do que nos ensina o Padre António Vieira no seu belíssimo “Sermão da Sexagésima” quando usa a metáfora do xadrez de estrelas para se
referir ao discurso das palavras!). Aproveitando-me ainda da lição de António Vieira, o grande messias pode ser entendido, nesse caso, como o Céu:
“Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que no Mundo. E qual foi ele? - O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o Céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum - Diz Davi.”
(VIEIRA: 1968, p. 105)
Dito isto, convém lembrar a importância capital que se descobriu existir do planeta Vênus no calendário maia, povo cuja astronomia foi, sem dúvida, das mais desenvolvidas e exatas dentre os povos antigos.
“De modo geral, todos concordam que a Contagem Longa [dos Maias] começou com um evento conhecido como o nascimento de Vênus, em 12 de agosto de 3114 a.C. Foi tão importante para os maias, que estes o empregaram como a base de seu calendário, mais ou menos como usamos o nascimento de Jesus para o nosso. Förstemann, o bibliotecário de Dresden, e outros mostraram que os maias usavam os ciclos de Vênus para estabelecer longos períodos de tempo. (...) [E três páginas adiante] Como o calendário maia assinala a data de 22 de dezembro de 2012 como o final da era atual - quando, segundo os maias, devemos esperar algum tipo de catástrofe -, seria isso uma antecipação do que está por acontecer?”
(GILBERT & COTERREL: 1999, p. 185-188)
Adrian Gilbert e Maurice M. Cotterell em um polêmico, mas instigante, estudo (As Profecias Maias) levantam a tese de que existe uma correlação entre o ciclo venusiano do calendário maia e o ciclo das manchas solares de modo que o início ou término desses ciclos coincidem e que os Maias de alguma forma intuíram essa ligação. Evidentemente o período de máxima atividade das manchas solares tem sido associado a uma seqüência de eventos atmosféricos, geológicos e climatológicos na Terra. Esses ciclos combinam a cada 5.125 anos de forma drástica, de modo que é o momento em que o Sol teria uma modificação no seu pólo magnético de tal magnitude que levaria a modificações graves na atmosfera, no clima e no relevo de todos os planetas do Sistema Solar e, no nosso caso, em especial, a Terra. Desse modo o verso primeiro da quadra referida de Nostradamus também pode ser entendido como uma forma que o mago encontrou para profetizar acerca da conturbada relação entre os ciclos venusianos e solares, tanto no âmbito da humanidade, quanto no âmbito celeste.
Por fim a respeito dessa quadra, convém observar que Vênus e o Sol têm na mitologia européia e em especial, na greco-latina, uma significação específica. Vênus (que é associada à Afrodite grega e ainda, à Astarte oriental), deusa da fertilidade e do amor e por extensão da sensualidade e da feminilidade, que teve em poetas clássicos antigos, cujo exemplo mais significativo parece ser Safo de Lesbos, a tematização constante de seus dotes, é também uma figura ou divindade mitológica que tem um temperamento impulsivo. Já o Sol associado a figuras mitológicas como Hélio e Apolo, é aquele que tudo vê, pois tudo ilumina.
Nietzsche via uma oposição significativa entre Apolo e Dioniso - este, o deus instintivo, erótico, liberalizador da consciência. O princípio apolíneo seria a base do
pensamento socrático e que sustenta a ordem política, religiosa e social da sociedade ocidental, ao passo que Dioniso representaria o passado remoto em que o instinto se sobrepunha, em muitos casos, à racionalidade. Nesse âmbito, podemos ver também uma oposição entre os eixos Apolo/Hélio e Vênus/Dioniso. Mas, voltando ao princípio dessa nossa interpretação acerca do Sol e de Vênus, essa oposição representaria o caos, o cataclisma, o apocalipse e que para superá-la é preciso compreender que se o Sol é a razão e Vênus o amor, a paixão, que existe uma razão no Amor (Vide o “Hino à Razão” de Antero de Quental) e um amor à Razão. Somente constante proximidade entre o princípio venusiano e o princípio solar pode garantir a unidade e a harmonia necessárias à humanidade para compreensão e superação de seus impasses.
A terceira quadra que nos propomos analisar tem a seguinte interpretação para Curtis Masil em seu As Centúrias de Nostradamus (1987):
“Mensagem mística, sem dúvida. A rosa é a chave. Irradia a verdade, não a de uns, mas a de todos. A liberdade de expressão irá desaparecer por uns tempos da face do mundo. Depois, sim, há de chegar, ainda que tarde, um salvador. Porque se trata de uma quadra mística, a rosa, no entanto, não é política, não é socialista tampouco. É o que é: uma rosa, apenas. Quem lê entenda!”
(MASIL:1987, p. 148)
Como escritor esotérico, Masil adota o estilo lacônico, elíptico, de forma que deixa no ar o significado da rosa encontrado por ele na leitura da quadra. Umberto Eco, no seu mais famoso romance, O Nome da Rosa, já trabalhara o conceito medieval da rosa. Algumas incongruências, no entanto, permanecem na interpretação de Masil, como a distinção entre “política” e “socialista”, o que de certo modo não se sustenta, bem como que a significação mística se oporia a estas, o que não também, do ponto de vista dos estudos sociológicos, antropológicos e culturais também não se verifica.
Érika Cheetam, a respeito dessa quadra, se cala, e apresenta apenas uma tradução livre e lacônica da quadra.
José García Alvarez assina matéria colocada na Internet (http://relatoscortos.com) em que interpreta algumas das quadras de Nostradamus, e com relação a esta em particular escreve:
“SANGRIENTOS ACONTECIMIENTOS SOCIALES: (...)Desde los años 70 en adelante, en que sobre la mitad del mundo gobernará el partido socialista, el de la rosa, por nuevos hechos trágicos, como atentados terroristas, accidentes de todo tipo, masacres deportivas, asesinatos de psicópatas, pruebas secretas militares, la sangre pública será expandida: Pero, a decir verdad, prácticamente, sobre todo esto los gobiernos del mundo tendrán la boca cerrada. Es entonces, más adelante, en la necesidad, cuando verán sus errores, pero vendrá tarde para ellos, el esperado Jesús el Hijo del Hombre.”
(ALVAREZ: Internet, 2005)
A polêmica relação entre socialismo ligado à repressão ditatorial e de outro o cristianismo ligado à liberdade, tem implicações ideológicas das mais conflitantes e questionáveis. E Tadd Mann em Millennium Prophecies, baseando-se numa interpretação de Edgar Cayce, comenta:
“Century V,96 refers either the 'Third Antichrist' or to 'The Three' being killed by the Antichrist, and could therefore be a reference to the three initial republics making a coalition following the breakdown of the USSR in the early 1990s, and being responsible in some way for creating conditions for the arrival of the Antichrist.”
(MANN: 1992).
Mann aponta esse período de repressão como se referindo aos regimes ditatoriais mantidos sob os auspícios da famosa cortina de ferro e do protetorado que a URSS exercia sobre o leste europeu. A queda do muro de Berlim e a derrocada da União Soviética representariam a conquista da liberdade de expressão.
Do meu ponto de vista, assim como fizemos com a quadra XVIII, IV Centúria, aqui existe uma gama de possibilidades interpretativas. A História nos permite uma grande quantidade de datas e eventos que se relacionam a isso: um período de repressão, de censura, de perseguições que sucumbe por fim, quando se abre novamente as portas da liberdade. A “boca fechada”, “o sangue público” são expressões incontestes desse significado. Por outro lado, dois elementos nessa estrofe me chamam a atenção. O primeiro é a rosa, essa que está no “meio do mundo” e o segundo é o “aguardado” que virá ainda que tarde para libertar o povo.
O signo do “aguardado”, do esperado, daquele que virá pode ser encontrado nas mais diferentes acepções na história da humanidade. Desde Cristo e a epifania dos reis magos, passando por outros como Dom Sebastião em Portugal e no sertão do Brasil, encontramos também no discurso pseudo-profético de um fanático como Antônio Conselheiro, mas podemos também relacionar simbolicamente com outras figuras bem distintas do sentido messiânico, como Júlio Prestes ou Che Guevara ou ainda, Tiradentes e os inconfidentes (“Libertas quae sera tamen”). Esse aguardado, esse esperado pode, ao final das contas, ser qualquer um que se predisponha à luta pela liberdade diante de um estado repressivo e tirano, pode ser um poeta como Pablo Neruda (Chile), Giorgios Seferis (Grécia), entre tantos, ou um músico como Geraldo Vandré (no Brasil), Victor Jará (Chile), p.ex., o que define essa figura simbólica não é propriamente a sua condição profética ou messiânica, mas sim, sua condição de luta pela liberdade.
O signo da “rosa”, por fim, tem aspecto ambíguo. É claro que pode se referir como símbolo desse estado ditatorial, daí o fato de alguns ligarem ao socialismo e por extensão às ditaduras que se mantiveram sobre uma falsa aparência socialista. Mas por outro lado, se lemos a quadra com menos impulso ideológico determinado e contaminado, podemos ver que a rosa não é o signo do estado repressivo, mas antes que ela é a esperança colocada no deserto, no meio do mundo, e que representa com o seu florescimento a luta contra a ditadura. A rosa, em questão, pode ser a obra do artista. Essa é a obra que se produz sob o sangue derramado, é a luta desigual concretizada no engajamento artístico contra a opressão.
No nosso entender, nessas e em várias outras quadras das centúrias de Nostradamus vemos um autor que hermetiza em seus símbolos uma condição que o próprio autor passou, a de ter que falar por meandros, por figuras, por metáforas e alegorias diversas para poder passar uma mensagem não simplesmente apocalíptica, fatalista, derrotista dos destinos da humanidade, mas sim, para falar da esperança e dos caminhos que podem levar à superação e modificação de um estado de coisas conflitantes.
© Jayro Luna, 2005.
Referências Bibliográficas:
ÁLVAREZ, José García. Artigo na Internet “Nostradamus Y La Actualidade” em: http://relatoscortos.com.
CHEETAM, Érika. As Profecias de Nostradamus. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.
CHEYNET, Ettore. Nostradamus e o Inquietante Futuro. São Paulo, Círculo do Livro, 1987.
GILBERT, Adrian & COTTERELL, Maurice M. As Profecias Mais. Rio de Janeiro, Nova Era, 1999.
MANN, Tadd. Millenium Prophecies. Element Books, 1992.
MASIL, Curtis. As Centúrias de Nostradamus. Rio de Janeiro, Ediouro, 1987.
NOSTRADAMUS. Profecias (tradução: Antônio da Silva Lopes). Lisboa, Vega, 1978.
PIOBB, P.V. O Segredo de Nostradamus. Rio de Janeiro, Editora Três, 1973.
VIEIRA, António. Sermões e Cartas. Rio de Janeiro, Agir,

LITERATURA CLÁSSICA ROMANA



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Aulularia de Plauto - 3 estudos e resumo
PLAUTO E A AULULARIA[1]
Mariza Mencalha de Souza (UFRJ)
Resumo:
Apresentação da vida e obra do comediógrafo latino Plauto. Destaque de alguns aspectos da comédia Aululária, sobretudo de seus personagens e enredo.Resumo dos atos e cenas da peça.
PALAVRAS-CHAVE: Plauto; Aululária; Euclião.
PLAUTO: VIDA E OBRA
Plauto nasceu em Sársina, na Úmbria, provavelmente em 254 a.C., e morreu em 184 a.C., data esta apresentada por Cícero no Brutus (15, 60) e aceita pela maioria dos especialistas modernos que se dedicaram ao estudo da vida e obra do comediógrafo latino. Provinha de família modesta, mas não sabemos ao certo se era livre ou escravo liberto, embora a primeira hipótese seja apontada pela crítica como a mais plausível.
Sua língua materna era o umbro, mesclado talvez de elementos célticos, mas conhecia o grego e tinha grande domínio do latim, adquirido, para alguns, na Úmbria latinizada e, para outros, em Roma, para onde supõem ter ido bem jovem.
Chegando à Urbe, ingressou, informa Aulo Gélio, numa companhia teatral, tornando-se algum tempo depois senhor de uma boa fortuna, perdida no comércio marítimo e nas viagens empreendidas pelo Mediterrâneo.
Arruinado, teve de voltar a Roma e sujeitar-se ao duro trabalho de moleiro, para garantir o seu sustento. Entre um intervalo e outro da penosa profissão, compôs as comédias Saturio, Addictus e uma terceira, hoje desconhecida. As três peças, já revelando o gênio do poeta, fizeram grande sucesso e, desde então, permitiram a Plauto refazer a vida e dar a ela um novo rumo.
A partir daí, a fama e a popularidade do dramaturgo viriam a crescer cada vez mais. Isto é comprovado não só pela audiência que tiveram suas futuras comédias junto ao público, mas também pelo próprio fato de circularem e serem representadas após sua morte dezenas de peças com seu nome, tidas mais tarde como apócrifas ou duvidosas.
Era um total de 130 comédias. Varrão, todavia, analisando e comparando o estilo e a língua empregados nessas peças, chegou à conclusão de que apenas vinte e uma delas eram plautinas.
Desse grupo das comédias autênticas, conhecidas como Varronianae, chegaram até nós alguns fragmentos da Vidularia e as vinte peças seguintes: Amphitruo, Asinaria, Aulularia, Bacchides, Captiui, Casina, Cistellaria, Curculio, Epidicus, Menaechmi, Mercator, Miles gloriosus, Mostellaria, Persa, Poenulus, Pseudolus, Rudens, Stichus, Trinummus e Truculentus.
Nada existe de seguro quanto ao ano de representação dessas obras. Com exceção do Stichus e do Pseudolus, encenados, respectivamente, conforme suas didascálias, em 200 e 191 a.C., as demais peças possuem datas aproximadas, algumas ainda incertas e controversas, outras aceitas sem muita polêmica e coincidentes entre si na opinião de vários críticos.
Plauto estreou no teatro cômico, a julgar pela data da comédia mais antiga, fixada em torno de 215 a.C., aos quarenta anos, e somente o abandonou aos setenta, quando, por volta de 185 a.C., levou ao palco a Casina, considerada pela crítica como sua última peça.
Nos seus prováveis trinta anos de carreira, Plauto dedicou-se apenas à comédia. Seu período de maior produção literária ocorreu por volta de 204-194 a.C., portanto, entre os seus cinqüenta e sessenta anos de idade.
Antes de abraçar a profissão de comediógrafo, atuou como palhaço em algumas farsas atelanas e exerceu alguns papéis em mimos, experiência que deixou profundas marcas em seu teatro.
Viveu de sua arte e para ela, exercendo, a um só tempo, o papel de diretor de companhia teatral, empresário, ator, autor e editor das próprias peças. Atuou como personagem em algumas de suas comédias e dedicou-se inteiramente à composição da palliata, gênero de temas e personagens gregos.
A palliata de Plauto foi grandemente elogiada por Varrão, Cícero e Élio Estilão, e atravessou os séculos, despertando o interesse de comediógrafos e estudiosos de várias épocas.
APRESENTAÇÃO DA AULULARIA
Personagens
Os personagens que se envolvem diretamente na trama da peça, contracenando ou não com o protagonista Euclião (gr. eû-kléos, boa fama ou eu-kleío, aquele que esconde), seguem abaixo relacionados, com seus nomes, traços e papéis.
a) Licônides (gr. Lykonídes, de lúkon eîdos, semelhante ao lobo): é o jovem galã da peça. Aparece somente no final do enredo, para confessar o mal que fizera a Fedra. Apesar de sua personalidade fraca e de sua estroinice, é um bom rapaz.
b) Fedra (gr. Phaîdra, brilhante, termo associado, sem dúvida, à beleza física da moça): filha de Euclião. Jovem engravidada por Licônides na festa de Ceres. Será prometida em casamento a Megadoro. Só aparece na peça para dar à luz e conhecer o pai de seu filho. O traço mais marcante de seu caráter é a religiosidade.
c) Estáfila (gr. staphyle, cacho de uva madura, denominação que condiz com seu gosto pelo vinho): criada de Euclião. Exerce na peça o papel de confidente de Fedra e compartilha do drama da moça até o fim. É zombeteira, porém dedicada ao seu amo.
d) Congrião (gr. góggrion, côngrio, peixe intruso, imagem, possivelmente, aproveitada por Plauto para destacar esse traço do caráter de Congrião): um dos cozinheiros contratados por Megadoro para preparar o banquete de suas núpcias com Fedra. É intrometido e tem fama de ladrão.
e) Megadoro (gr. méga dôron, grande dom, generoso): irmão de Eunômia e tio de Licônides. Velho solteirão e rico, que se notabiliza pela generosidade e caráter zombeteiro.
f) Eunômia (gr. Eunomía, boa ordem, nome mítico de uma das três Horas que controlavam as estações do ano e as portas do céu): mãe de Licônides. Representa, juntamente com o irmão, um legítimo símbolo da “burguesia” romana. Suas qualidades mais notáveis são a serenidade, a discrição e o bom senso.
g) Estróbilo (gr. Stróbilos, rodopiante como um pião, nome que sugere o estado em que fica pelo seu hábito de tomar vinho): participa da peça como escravo, ora de Megadoro, ora de Licônides. À semelhança de Estáfila, é também zombeteiro e dedicado.
Enredo
A Aulularia (= marmita) é considerada uma comédia de intriga e de caráter. Como comédia de intriga, apresenta duas ações: uma voltada para as peripécias e confusões de Euclião, surgidas depois de ele haver encontrado, na lareira de sua casa, uma marmita cheia de ouro; outra, centrada na história de amor de sua filha, grávida de Licônides, e que será pedida em casamento por Megadoro, sem que este e seu futuro sogro saibam da gravidez da moça.
Os dois enredos, com predominância do primeiro, são independentes um do outro, mas encontram-se entrelaçados, uma vez que seus principais incidentes, o roubo da marmita e a confissão de Licônides, vão se combinar, no fim da história, para solucionar o problema de Euclião, de sua filha e do rapaz que, com a ajuda da mãe, levará o tio a desistir do casamento.
Nesse momento, já ciente do drama dos dois jovens e da desistência de Megadoro, Euclião concede Fedra em casamento a Licônides e dá ao casal a marmita recuperada.
Este final feliz, mostrando o desprendimento do protagonista, não consta da Aulularia. É de autoria de Codro Urceo, um latinista do século XV, que refez o último ato, com base nos argumentos, no prólogo e no IV fragmento da peça, a qual chegou até nós com o referido ato incompleto, contendo apenas fragmentos de sete versos.
Como comédia de caráter, a peça converge para um outro centro de interesse: a avareza de Euclião, tema em torno do qual gravitam as preocupações e temores do velho avarento, bem como suas manias e suspeitas infundadas.
Aqui o objetivo de Plauto é outro: pintar Euclião como uma figura ridícula e um pobre diabo que ficou transtornado com a súbita descoberta de um tesouro.
Modelos do avarento
O tema da avareza já havia sido tratado por Menandro nas comédias Hydría, Epitrépontes, Thesaurós e talvez em outras, mas é impossível precisar em qual dessas obras Plauto se inspirou para criar seu personagem, visto que Euclião possui traços de todos os avarentos presentes nessas peças.
Além disso, não está descartada aqui a hipótese de ser a Aulularia resultado da contaminatio, processo a que recorreram Plauto e outros cômicos latinos para fundir duas ou mais peças numa só.
Cronologia
O ano de representação da Aulularia também é incerto, contudo os estudiosos da peça costumam datá-la entre 195 e 186 a.C., fazendo-a coincidir com o período de maturidade artística de Plauto.
Episódios tirados da peça, como as desordens no culto de Baco (v. 408), a repressão ao luxo das mulheres (v. 503-504) e outros, têm sido freqüentemente comparados com referências históricas, para explicar sua cronologia.
Estrutura
Apesar de ser mais rica em partes faladas e recitadas, a Aulularia é constituída também de alguns cantos líricos, encontrados, por exemplo, no diálogo entre Eunômia e Megadoro (v. 120-160), no monólogo de Congrião (v. 406-413) e, sobretudo, na célebre cena em que Euclião lamenta o roubo de sua marmita (v. 713-726).
Influências
A Aulularia serviu de modelo a diversos escritores: a um autor anônimo do Baixo Império Romano inspirou a composição do Querolus (séc. V d. C.); a Gelli, a peça La sporta (1543); a Molière, a famosa comédia L’avare (1667).
Entre nós, sua influência também se faz notar na obra O santo e a porca (1964) de Ariano Suassuna, a qual motivou o estudo comparativo feito pelo Professor Paulo Roberto Guapiassú, em sua Tese de Doutorado, intitulada A marmita e a porca: a presença plautiniana na comédia nordestina (UFRJ, 1980).
Resumo da obra
Após os dois argumentos, vem o prólogo, no qual o deus Lar se apresenta como protetor da família de Euclião desde o tempo de seu avô, contando como este lhe confiou um tesouro de ouro e por que fez com que Euclião o reencontrasse. Aqui, o deus destaca, sobretudo, a avareza de Euclião.
Na primeira cena do primeiro ato, há um diálogo entre Euclião, o velho avarento, e sua criada Estáfila. Euclião, com medo de que Estáfila saiba que ele possui uma marmita com ouro, põe-se a agredi-la, tanto física como verbalmente, fazendo-lhe terríveis ameaças.
Em seguida vem o monólogo de Estáfila, centrado, de um lado, na sua perplexidade diante do comportamento insano de seu amo. De outro, em sua preocupação por não saber como ocultar de Euclião a gravidez e a iminência do parto de sua filha Fedra.
Na segunda (ou terceira) cena, fazendo-se passar por homem pobre, Euclião dirige-se à cúria para buscar as moedas de prata que lhe foram reservadas. Antes de sair de casa, o velho avarento constata que seu ouro está em segurança. Mas ainda assim, atormentado e desconfiado, faz diversas recomendações a Estáfila, advertindo-lhe que não permita a entrada de estranhos em casa, durante sua ausência.
Na primeira cena do segundo ato, há um diálogo entre dois irmãos: Megadoro e Eunômia. Preocupada com o irmão, homem de idade madura, Eunômia aconselha-o a se casar e a ter filhos. Para tanto, arranja-lhe uma mulher um pouco mais velha que ele, possuidora, porém, de grande dote. Megadoro, contudo, recusa a proposta da irmã, preferindo contrair matrimônio com uma mulher pobre. Alegando ser suficientemente rico e querendo evitar os inconvenientes que traz o casamento com uma mulher rica, escolhe para esposa a jovem filha de Euclião, vizinho tido por todos como homem pobre e avarento.
Na segunda cena, Euclião volta da cúria de mãos vazias e decepcionado, pois o tão esperado dinheiro não fora distribuído. No caminho para casa, encontra Megadoro, que vem cumprimentá-lo. Desconfiando do vizinho e fingindo-se de pobre, começa a se lamentar da sua vida miserável e do fato de ter uma filha sem dote, para a qual afirma não conseguir casamento. Megadoro então se propõe a ajudá-lo, pedindo-lhe a mão de Fedra. Depois de muita relutância, embora receoso ainda de que o vizinho estivesse cobiçando seu tesouro, Euclião acaba por aceitar-lhe a proposta. Megadoro, mais que depressa, dá início aos preparativos para a festa de suas núpcias.
Na terceira cena, Euclião resolve ir ao foro, mas antes de sair, ordena à sua criada que limpe toda a casa para o casamento da filha com Megadoro. Recomenda-lhe também manter tudo trancado, enquanto ele estiver ausente. Estáfila, por sua vez, surpresa com a rapidez do casamento de Fedra, fica preocupada com a possibilidade de a gravidez da moça vir a ser descoberta pelo pai.
Na quarta cena, após fazer as compras com Megadoro, Estróbilo, atendendo às ordens de seu amo, reserva metade da comida, um magro cordeiro, um cozinheiro (Congrião) e uma flautista (Elêusia) para a casa de Euclião. Um dos serviçais, Ântrax, fica espantado ao saber que o velho Euclião não gastou sequer um asse com as despesas para a festa de casamento da própria filha. E a partir desse episódio, Estróbilo passa a contar uma série de outras histórias, ridicularizando o comportamento mesquinho de Euclião.
Na quinta cena, Estróbilo vai à casa de Euclião e deixa com sua criada a comida, o cozinheiro e a flautista que lhe foram destinados por Megadoro.
Na sexta cena, Pitódico, chefe da cozinha, manda os serviçais da casa de Euclião iniciar os preparativos para o banquete de casamento. Depois, volta à casa de Megadoro para inspecionar o serviço dos outros cozinheiros e põe-se a imaginar como vigiá-los sem grande esforço.
Na sétima cena, Euclião vai ao mercado fazer compras para as núpcias de sua filha, mas não traz nada consigo, por achar tudo muito caro. Alegando não ter dinheiro, compra apenas um grão de incenso e uma coroa de flores. Aproximando-se de casa, nota que a porta está aberta e que há barulho e estranhos no interior de sua residência. Fica logo sobressaltado, imaginando que invasores estão roubando seu ouro. Apavorado, correndo de um lado para o outro, suplica a ajuda de Apolo e pede-lhe que dê cabo dos supostos ladrões.
Na oitava cena, na casa de Megadoro, Ântrax distribui as tarefas entre Dromão e Maquerião. Logo depois, dirige-se à casa de Euclião para pedir uma forma de pão emprestada. Lá, percebe uma grande gritaria, mas não consegue atinar com o que está acontecendo.
Na primeira cena do terceiro ato, o velho avarento espanca violentamente Congrião e seus companheiros que se encontravam em sua casa preparando o banquete de casamento. O cozinheiro sai dali correndo, açoitado por Euclião. Apavorado, pede a ajuda de todos para que o livre de tão humilhante flagelo, prometendo reagir contra a arbitrariedade do velho.
Na segunda cena, num longo diálogo, carregado de ameaças e insultos de parte a parte, Euclião acusa Congrião e seus companheiros de haver invadido sua casa e vasculhado seus quartos. Congrião, por sua vez, procura se defender, tentando convencê-lo de sua inocência e alegando ter entrado em sua casa na condição de cozinheiro e não de ladrão.
Na terceira cena, receoso de que pudessem roubar sua marmita com ouro, Euclião resolve retirá-la de casa e passa a levá-la consigo por toda parte. Por fim, já aliviado, acaba por consentir que os serviçais prossigam em seu trabalho e sai com seu tesouro escondido sob as vestes.
Na quarta cena, Euclião põe-se a pensar no mau negócio que empreendeu ao envolver-se com Megadoro numa aliança que, segundo ele, quase o levou a perder o ouro.
Na quinta cena, Megadoro põe-se a refletir sobre os problemas e conflitos existentes no casamento realizado com mulheres portadoras de dote. Em sua opinião, se os homens ricos se casassem com moças pobres, desprovidas de dote, tais problemas seriam amenizados e, conseqüentemente, a vida conjugal tornar-se-ia mais harmoniosa, e as mulheres, menos perdulárias. Além disso, as esposas ficariam mais submissas aos seus maridos e seriam mais virtuosas. Daí haver Megadoro escolhido para esposa a filha de Euclião, o qual tudo ouve sem ser notado, aprovando fascinado a parcimônia do futuro genro.
Na sexta cena, Megadoro chega-se para Euclião e sugere-lhe apresentar-se mais elegante nas núpcias de sua filha. Este, por sua vez, tenta se esquivar de tal proposta, alegando ser um homem pobre e de origem modesta.
Após defender-se das acusações feitas por Euclião, Megadoro o convida para tomar vinho. Desconfiado de que este pretende embebedá-lo para roubar-lhe o ouro, Euclião recusa o convite, resolvendo tomar apenas água.
Na primeira cena do quarto ato, Estróbilo descreve como deve comportar-se o bom escravo para servir ao seu amo com eficiência, rapidez e lealdade. Por isso, atendendo à ordem de Licônides, resolve sentar-se junto ao altar para inteirar-se do que se passa entre o tio Megadoro e Fedra.
Na segunda cena, Euclião resolve esconder sua marmita no templo da Boa Fé, recomendando à deusa guardar segredo e zelar pela segurança de seu ouro. Contudo, parecendo não confiar inteiramente na deusa, ele se afasta de seu altar, suplicando-lhe ainda que ela lhe permita retirar dali seu tesouro, são e salvo. Estróbilo, que se encontra próximo do local, ouve as preces de Euclião e corre logo para o interior do templo, em busca do ouro.
Na terceira cena, mal sai do templo, Euclião ouve um corvo crocitar e ciscar o chão à sua esquerda. Tem o pressentimento então de que seu ouro corre perigo. Tomado de pavor, resolve voltar ao templo.
Na quarta cena, no interior do templo, Euclião depara-se com Estróbilo e, suspeitando de que sua marmita se encontra em poder do escravo, passa a revistá-lo, exigindo que este a devolva. Põe-se então a espancá-lo e a dirigir-lhe ameaças e insultos. Depois de constatar a inocência do escravo, Euclião resolve expulsá-lo dali. Supondo haver um outro suspeito a quem imagina ser comparsa de Estróbilo, ele sai em seu encalço, ameaçando estrangulá-lo.
Na quinta cena, acompanhando os movimentos de Euclião, que deixa o templo levando a marmita, Estróbilo, de olho em seu tesouro, promete preparar-lhe uma armadilha.
Na sexta cena, decepcionado com a traição da Boa Fé, Euclião retira o tesouro de seu templo para escondê-lo no bosque de Silvano, certo de que agora, guardado em local ermo e inacessível, ele estaria mais seguro. Estróbilo, todavia, descobre o novo plano do velho e, radiante de alegria, chega antes de Euclião às imediações do bosque, para observar, de cima de uma árvore, onde o ouro será escondido.
Na sétima cena, Licônides conta à sua mãe que desonrou, sob o efeito do vinho, a filha de Euclião. Logo que Eunômia ouve os gritos das dores do parto da moça, atendendo ao pedido do filho, procura seu irmão Megadoro para conversar com ele sobre o assunto e pedir-lhe que renuncie ao casamento. Enquanto isso, o rapaz põe-se a procurar pelo seu servo Estróbilo. Não o encontrando, entra para saber o desfecho de sua história.
Na oitava cena, enfim, com a marmita na mão e orgulhoso de si mesmo, Estróbilo dá pulos de alegria, contando em detalhes como conseguiu realizar a façanha de surrupiar o tesouro de Euclião. Tão logo percebe que este se aproxima, sai para esconder o ouro em sua casa.
Na nona cena, Euclião entra em pânico quando finalmente dá pela falta de sua marmita e, desesperado, dirige-se à platéia, na esperança de recuperar seu tesouro. Contudo, notando que ali ninguém sabe de seu paradeiro, perde a vontade de viver. Licônides chega em seguida e, ignorando o que se passa, apavora-se quando vê Euclião aflito, supondo que o velho já sabe que a filha deu à luz.
Na décima cena, Licônides procura Euclião para pedir-lhe perdão pela má ação cometida. Julgando que o rapaz estava falando do roubo de sua marmita, e não da desonra da filha, o velho põe-se a acusá-lo e a ameaçá-lo, exigindo-lhe seu tesouro de volta. Com muito custo, Licônides consegue provar sua inocência e desfazer o mal-entendido, revelando-lhe enfim a má ação praticada e pedindo-lhe a filha em casamento. Sai em seguida à procura de seu escravo Estróbilo, mas promete a Euclião devolver-lhe a marmita, caso venha a descobri-la.
Na primeira cena do quinto ato, Estróbilo vai imediatamente contar a Licônides que furtou a marmita de Euclião e pede-lhe que o liberte. O rapaz, entretanto, conforme prometeu ao sogro, cumpre sua palavra, obrigando o escravo a devolver-lhe o ouro.
O final da peça perdeu-se, restando apenas fragmentos de sete versos.
BIBLIOGRAFIA
COSTA, Aída. Plauto, Aulularia: a comédia da panelinha. São Paulo: DIFEL, 1967.
DUCKWORTH, George E. The nature of roman comedy. New Jersey: Princeton University Press, 1952.
––––––. The complete roman drama. Nova Iorque: Random House, 1942. 2 vols.
KENNEY, E. J. & CLAUSEN, W.V. Historia de la literatura clásica II. Literatura latina. Versão de Elena Bombín. Madri: Gredos, 1989.
LEJAY, Paul. Plaute. Paris: Boivin, 1925.
PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Trad. de Manuel Losa. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
PICHON, René. Histoire de la littérature latine. Paris: Hachette, [s/d.].
PLAUTE. Aulularia. Trad. de A. Ernout. 3a ed. Paris: Les Belles Lettres, 1952.
ZEHNACKER, H. & FREDOUILLE, J. C. Littérature latine. Paris: PUF, 1993.



[1] trabalho apresentado no VIII CONGRESSO NACIONAL DE LINGÜÍSTICA E FILOLOGIA (I Congresso Internacional de Estudos Filológicos e Lingüísticos), promovido pelo CiFEFiL no Instituto de Letras da UERJ, em agosto de 2004.

A TRADIÇÃO CLÁSSICA NA COMÉDIA BRASILEIRA
Carlinda Fragale Pate Nuñez (UERJ)
Gisele Nery de Andrade (UERJ)
Michelle de Alcântara (UERJ)
Thereza Maria Zavarese Soares (UERJ)
Viviane da Fonseca Moura (UERJ)
INTRODUÇÃO
O teatro é o gênero da ação falada. Uma personagem fala para agir sobre outra ou para comentar uma ação, neste caso a fala é instrumento da ação. O autor reproduz as falas do cotidiano, organizando-as em diálogos ou monólogos, com o objetivo de se comunicar com os espectadores através de suas personagens.
Na obra analisada neste estudo, O Santo e a Porca, o autor Ariano Suassuna faz uma referência explícita à sua fonte inspiradora logo após o título. O autor nordestino teve como modelo o comediógrafo latino Plauto e sua peça Aulularia, fazendo alusão a comédia clássica e a seu conteúdo crítico que tinha como alvo o sistema político-social vigente e os cidadãos típicos que o integram. A cultura nordestina estrutura-se sobre valores tradicionais e regionais mantidos por uma tradição folclórica e religiosa, assemelhando-se com a cultura clássica estruturada sobre os mitos de seus triunfos heróicos e dos feitos divinos.
Objetiva-se através deste estudo verificar como a tradição dramática pode ser reencenada e ambientada a outras épocas e culturas. Deste modo, tem-se noção da mímesis do texto, do processo de recriação que o torna uma obra única e que exige do autor criatividade para transformar um modelo em algo original.
ANÁLISE
Para se fazer a análise de um texto dramático, deve-se estudar individualmente os seus componentes fundamentais. São eles: as personagens, o enredo, o espaço e o tempo.
Personagens
As personagens estão intimamente ligadas ao enredo, e vice-versa. Estas são as duas forças principais que regem um texto dramático. As personagens foram analisadas levando-se em consideração três aspectos:
- o que ela revela sobre si por meio de um confidente, do "aparte" ou do monólogo;
- o que ela faz, a sua participação na ação da peça;
- o que as outras personagens dizem a seu respeito.
A partir desta primeira análise, pode-se qualificar uma personagem de acordo com os seguintes critérios : sua utilidade, sua propriedade, sua verossimilhança e sua consistência, para em seguida relacioná-las entre si e com o enredo. A análise individual de cada personagem encontra-se na tabela abaixo:
PERSONAGENS CARACTERÍSTICAS
EURICÃO § “Engole Cobra”, Eurico Árabe; § protagonista da peça; § pai de Margarida e irmão de Benona; § personagem avarento.
PORCA § oposição do profano frente ao religioso (Sto. Antônio); § objeto de cobiça; § representa a avareza de Euricão (um dos 7 pecados capitais).
SANTO ANTÔNIO § santo casamenteiro, “achador” e popular; § santo de devoção de Euricão; § representação do sagrado e da fé.
MARGARIDA § “flor bucólica”; § filha de Euricão (a filha é o patrimônio do pai); § noiva de Dodó; § personagem que desencadeia dois pólos de interesse: material (Euricão) e sentimental (Eudoro e Dodó).
BENONA § alusão à personagem de Plauto, Eunomia do grego EUNOMÍA “ordem bem regulada”; § irmã de Euricão; § ex-noiva de Eudoro; § representa os pudores e os recatos.
CAROBA § “árvore grande e forte”; § empregada de Euricão; § personagem que desenvolve toda a rede de intrigas que envolve os casamentos.
PINHÃO § “fruto rústico”; § empregado de Eudoro; § noivo de Caroba; § representação da busca da liberdade.
EUDORO § “EÚDOROS”- composto por “eú” (bom,bem) e de “dôron” (o generoso); § pai de Dodó; § ex-noivo de Benona e pretendente de Margarida; § representação da burguesia.
DODÓ § redução do nome Eudoro (indica a submissão do filho ao pai); § filho de Eudoro; § noivo de Margarida.
A relação entre as personagens e o enredo está representada no esquema a seguir:
O conflito central do enredo é constituído pelas ações da personagem Euricão, que busca alcançar seu objetivo materializado na porca, o que leva a envolver outras personagens na intriga. As três personagens femininas, Benona, Margarida e Caroba, estão diretamente relacionadas ao protagonista, estabelecendo um vínculo de dependência afetiva e financeira. As demais personagens masculinas se envolvem no enredo através destas personagens femininas, ou seja, estão indiretamente relacionadas à personagem central, gerando os conflitos paralelos, ou fricções, que visam um outro objetivo: a realização amorosa pelo casamento.
Enredo
O material que o autor utiliza para inventar sua história denomina-se fábula. Fábula, na concepção latina, é uma narrativa de caráter mítico. Aristóteles chama de fábula a reunião das ações, dos acontecimentos que estruturam uma obra. Portanto, a fábula é o enredo, o material narrativo de que se origina o texto dramático.
Dentro do enredo, encontra-se a intriga e o léxico da intriga. A intriga é a seqüência dos acontecimentos. Ao dispor os fatos numa determinada ordem, o autor revela gradativamente suas intenções. Inicialmente, foram analisados os conflitos em que se encontram as personagens. O conflito central é aquele em que o(s) protagonista(s) depara(m)-se com um obstáculo, seja ele uma ou mais personagens ou uma força abstrata, como o sistema social ou os valores da consciência. Na peça de Suassuna temos como conflito central:
A avareza de Euricão; seu apego demasiado à porca e sua dedicação a ela como substituta da esposa que o abandonou; seu medo de perdê-la; sua devoção a Santo Antônio como protetor de seu lar e de sua porca; colocação da porca no socavão da escada; a retirada da porca do socavão para a sala e para a proteção de Santo Antônio; a retirada da porca de casa, dos cuidados do santo para o cemitério, “onde tudo se perde e não se acha nada”; a colocação da porca no socavão ao lado do túmulo da esposa; o roubo da porca (primeira perda); a devolução da porca; a grande decepção (segunda e derradeira perda).
Em seguida, foram identificadas as engrenagens que compõem a mecânica da obra, o que chamamos de léxico da intriga. São os recursos utilizados pelo autor para manter o interesse do leitor ou espectador até o fim do texto.
O primeiro componente da intriga a ser examinado é a exposição. Se a peça não se inicia com a exposição de informações sobre as personagens e o assunto, ela se inicia de forma abrupta pelo diálogo das personagens.
Os nós formam o segundo princípio componente. Eles são os obstáculos que alteram a situação inicial. Em O Santo e a Porca identificamos como os nós da intriga:
Os mal entendidos por parte de Euricão, que sempre se achava ameaçado de perder a sua porca, resultaram de seus receios e desconfianças: com a intenção da carta de Eudoro; com sua empregada Caroba; com o interesse de Eudoro em comprar a porca; com a porca assada do jantar; com a aproximação e o interesse de Pinhão na porca e com o falso ladrão.
Outro componente fundamental é a peripécia. Cada peripécia representa uma mudança súbita da ação. Na obra de Suassuna, são peripécias: “As várias mudanças de lugar da porca que desencadearam o roubo desta; a revelação do ladrão e a devolução da porca.”
As fricções são os pequenos conflitos que interferem na intriga e enredam-se no conflito central. Por exemplo:
O casamento de Dodó e Margarida que tinha como obstáculo o medo do casal de que seus pais não aceitassem o seu romance; o casamento de Eudoro e Benona, impedido no passado por um obstáculo moral; o casamento de Pinhão e Caroba que tinha como obstáculo a falta de recursos financeiros.
E por último temos o desfecho, o ponto culminante do conflito, a derradeira peripécia após a qual a trama deve terminar.
“A revelação feita por Eudoro de que o tesouro contido na porca não tinha nenhum valor, culminando com a decepção de Euricão.”
Toda esta análise da intriga pode ser ilustrada pelo seguinte esquema:
Prosseguindo com a análise do enredo, foi utilizado o modelo actancial para estudar as estruturas profundas que regem a obra. Este modelo, criado pelo semanticista A. J. Greimas e adaptado ao campo teatral pela especialista Anne Ubersfeld, permite analisar as forças interiores que coordenam a ação. Essas forças são representadas por flechas sendo que não precisam ser necessariamente personagens, podendo ser também desejos ou emoções. Este esquema representa a sintaxe da ação dramática que relaciona as personagens umas às outras através destes elementos invisíveis da ação.
No eixo principal, encontra-se o motor da obra, a relação entre o SUJEITO e o OBJETO da ação. A flecha representa a busca, o desejo, a vontade: aquilo que os une. O objeto pode ser uma abstração (o poder, a segurança), mas representado por uma personagem.
O segundo eixo é o eixo das forças antagônicas. O ADJUVANTE ajuda o sujeito a realizar sua busca e o OPONENTE tenta impedir essa busca.
E o terceiro eixo é o das implicações ideológicas, das motivações. O DESTINADOR é aquilo que faz o sujeito agir e o DESTINATÁRIO é aquilo a que o sujeito atribui sua busca.
Ao dispor os acontecimentos desta ou daquela maneira, o autor transmite a sua mensagem ao público, realiza o seu objetivo. Esta mensagem se encontra na estrutura interna e abstrata da obra, que foi identificada através do modelo actancial.
Espaço e Tempo
O próximo passo é a análise do espaço e do tempo para compreender onde e quando a ação se passa, identificar os lugares e estabelecer uma cronologia.
Chama-se "palais à volonté" o lugar onde a ação se passa e que está intimamente ligado às demais estruturas do texto. Na peça O Santo e a Porca, a ação se passa na sala da casa de Euricão, o que pode ser comprovado nas indicações cênicas. Estas indicações devem ser confrontadas com o texto interpretado pelos atores, pois a linguagem está relacionada com a demarcação espacial e ambas se unem pela ação dramática. No texto analisado, a casa do protagonista é vista por ele próprio como o seu território, protegido pelo seu santo de devoção, e como sua fortaleza, onde ele guarda seus dois tesouros: a filha e a porca.
O "fora de cena", ou seja, o espaço que não se destina a ser representado no palco, também intervém no enredo, sendo evocado ou relatado pelas personagens. O enredo é estruturado sobre a oposição entre o espaço idealizado ou metafórico e o espaço real (palais à volonté). A estruturação dos espaços em O Santo e a Porca pode ser observada no esquema a seguir:
Os espaços utilizados por Suassuna estão relacionados aos de sua fonte inspiradora, a Aulularia de Plauto:
CASA DE EURICÃO / TEMPLO DE STO. ANTÔNIO = TEMPLO DE BONA FIDES
FESTA DE SÃO JOÃO = FESTA DE CERES
CEMITÉRIO = BOSQUE DE SILVANO
HOTEL DE DADÁ = MERCADO (FORUM)
O tempo intervém na ação de várias formas: estabelecendo uma cronologia que reconstitui o desenrolar dos acontecimentos; fornecendo um tempo próprio para cada personagem; através de marcas temporais que aparecem no texto ou tomando uma dimensão metafórica. O próprio diálogo das personagens fornece indicações que inscrevem a ação dentro de um tempo real e juntamente com a divisão em atos (separados por intervalos), cenas e quadros (marcados pelas entradas e saídas das personagens) compõem as principais marcações temporais no momento da representação. O tempo da ficção obedece à concepção clássica das unidades e da verossimilhança. A ação se passa num período de 24 horas dividido entre os três atos da peça. O tempo da representação é caracterizado pela continuidade.
Na peça de Ariano Suassuna, o tempo da representação é marcado da seguinte forma:
PRIMEIRO ATO: Tempo da espera por Eudoro (as ações se passam no período da manhã.)
SEGUNDO ATO: Tempo da espera pela entrevista (as ações se passam no período da tarde)
TERCEIRO ATO: Tempo das entrevistas e das revelações (as ações se passam no período da noite)
Estas marcações ficam muito claras nas falas das personagens. Concluí-se então que, na representação da peça, o fato da "entrevista" é o marcador temporal que a divide em dois grandes momentos:
ANTES DA ENTREVISTA: clima de tensão, espera, expectativa que culminará na reconciliação dos casais Caroba e Pinhão, Margarida e Dodó e Eudoro e Benona.
DEPOIS DA ENTREVISTA: reencontro de Dodó com seu pai Eudoro, os pedidos de casamento, a descoberta do segredo de Euricão (a porca) e a sua decepção.
CONCLUSÃO
Através deste estudo pôde-se observar que as estruturas internas dos textos dramáticos revelam que a tradição literária se conserva em obras contemporâneas, como foi verificado na peça do comediógrafo Ariano Suassuna.
Analisando as personagens, o enredo, o espaço e o tempo em O Santo e a Porca, foram detectados aspectos que demonstram uma aproximação com a comédia latina de Plauto, como o próprio Suassuna admite no subtítulo de sua obra.
Sendo assim, o teatro clássico se renova na contemporaneidade. Um mesmo enredo se atualiza em novos cenários e novos contextos culturais. Valores são retomados de tempos em tempos e colocados em foco pela literatura, sob novas perspectivas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Suassuna, Ariano. O Santo e a Porca. Rio de Janeiro : Olympio, 1974.
Plauto. “Aulularia”. Rio de Janeiro : Ediouro, [s.d.]. In: Comédia Latina.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo : Martins Fontes 1996.
Brandão, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis : Vozes, V 1 1997.
Machado, José Pedro. Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa. Lisbosa : Livros Horizonte, V 2.

A LINGUAGEM AFETIVA NA AULULARIA DE PLAUTO
Mariza Mencalha de Souza
Introdução
A linguagem permite ao homem registrar na escrita ou na fala tudo aquilo que ele pensa, deseja, vê e sente. Usando dessa faculdade, pode o ser humano transpor para o papel ou para a fala uma mensagem lógica, volitiva ou afetiva, isto é, desenvolver seus raciocínios lógicos, externar suas vontades e desejos ou dar vazão a suas angústias, paixões e medos. No ato IV, cenas IX e X da Aulularia, estão presentes essas três funções da linguagem, a intelectiva, a ativa e a emotiva, mas nota-se aí, como veremos neste artigo, a predominância do elemento afetivo, explorado por Plauto em todas as suas potencialidades.
Aulularia: ato IV
Cena IX
EVC: Perii, interii, occidi! Quo curram? quo non curram?
Tene, tene! Quem? Quis?
Nescio, nihil uideo, caecus eo atque equidem quo eam,
aut ubi sim, aut qui sim,
Nequeo cum animo certum inuestigare. Obsecro ego
uos, mi auxilio, 715
Oro, obtestor, sitis et hominem demonstretis quis eam abstulerit.
Quid ais tu? tibi credere certum est; nam esse bonum
ex uoltu cognosco.
Quid est? quid ridetis? noui omnis: scio fures esse hic complures,
Qui uestitu et creta occultant sese atque sedent quasi sint frugi.
em, nemo habet horum? occidisti. Dic igitur, quis
habet? nescis? 720
Heu me misere miserum, perii! male perditus, pessime ornatus eo,
Tantum gemiti et mali maestitiaeque hic dies mi optulit,
famem et pauperiem!
Perditissimus ego sum omnium in terra. Nam quid mi
opust uita? [qui] tantum auri
Perdidi quod concustodiui sedulo! Egomet me defraudaui
Animumque meum geniumque meum; nunc eo alii
laetificantur 725
Meo malo et damno. Pati nequeo.
LYC: Quinam homo hic ante aedis nostras eiulans conqueritur maerens?
Atque hicquidem Euclio est, ut opinor. Oppido ego interii; palamst res.
Scit peperisse iam, ut ego opinor, filiam suam. Nunc mi incertumst,
[Quid agam] abeam an maneam, an adeam an fugiam.
Quid agam edepol nescio. 730
EVC: Estou perdido, liquidado, morto! Para onde correrei? Para onde não correrei? Pega, Pega! (Pega) quem? Quem (pegará)? Não sei, nada vejo, ando cego e, sem dúvida, não posso saber com exatidão com a cabeça (perturbada), para onde vou, ou onde estou, ou quem sou. Eu vos peço, rogo, suplico que venhais me socorrer e (me) mostreis o homem que a roubou. Que dizes tu? É certo que acredito em ti; na verdade, vejo que (tu), pela aparência, pareces bom. O que há? Por que estais rindo? Conheço todos: sei que existem vários ladrões aqui, que se escondem sob uma roupa branca e ficam sentados, como se fossem santinhos. Ah! Nenhum de vós está com (ela)? Mataste-me. Dize, então, quem está com (ela)? Não sabes? Ai, pobre de mim! Estou inteiramente perdido, terrivelmente perdido! Pessimamente assistido ando, tanto pranto, (tanto) mal e (tanta) aflição, fome e pobreza este dia me trouxe! Eu sou o mais arruinado de todos (os homens) na terra. Na verdade, de que vale a vida para mim? (Para mim), [que] perdi tanto ouro, o qual guardei com tanto cuidado, com (tanto) zelo! Eu mesmo me lesei, (acabei com) minha vida e meu prazer de viver; agora, conclusão, os outros se divertem com a minha desgraça, com a (minha) ruína. Não posso agüentar.
LYC: Quem (é) este homem aflito, lamentando-se e se queixando diante de nossa casa? Mas, como suponho, certamente este é Euclião. Eu estou completamente perdido; o caso torna-se notório. (Ele) já sabe, como eu suponho, que sua filha teve um filho meu. Agora estou em dúvida. O que fazer? Ir embora ou ficar...? Ir lá falar com ele ou fugir? Por Pólux, não sei o que fazer.
Cena X
EVC: Quis homo hic loquitur?
LYC: Ego sum .
EVC: Immo ego sum [miser], et misere perditus,
Cui tanta mala maestitudoque optigit.
LYC: Animo bono es.
EVC: Quo, obsecro, pacto esse possum?
LYC: Quia istuc facinus quod tuum
Sollicitat animum, id ego feci et fateor.
EVC: Quid ego ex te audio?
*[1]......................................... .
LYC: Deus mihi impulsor fuit, is me ad illam inlexit.
EVC: Quo modo?
LYC: Fateor peccauisse et me culpam commeritum scio;
*....................................................................................... .
EVC: Cur id ausu’s facere, ut id quod non tuum esset tangeres? 740
LYC: Quid uis fieri? factum est illud; fieri infectum non potest.
Deos credo uoluisse: nam ni uellent, non fieret, scio.
EVC: At ego deos credo uoluisse, ut apud me te in neruo enicem.
LYC: Ne istuc dixis!
EVC: Quid tibi ergo meam me inuito tactiost?
LYC: Quia uini uitio atque amoris feci.
EVC: Homo audacissime, 745
*............................................ .
LYC: Quin tibi ultro supplicatum uenio ob stultitiam meam.
EVC: Non mi homines placent qui quando male fecerunt purigant.
Tu illam scibas non tuam esse; non attactam oportuit.
LYC: Ergo quia sum tangere ausus, haud causificor quin eam 755
Ego habeam potissimum.
EVC: Tun habeas me inuito meam?
LYC: Haud te inuito postulo, sed meam esse oportere arbitror.
Quin tu iam inuenies, inquam, meam illam esse oportere, Euclio.
EVC: Iam quidem hercle te ad praetorem rapiam et tibi scribam dicam, nisi refers...
LYC: Quid tibi ego referam?
EVC: Quod surripuisti meum. 760
LYC: Surripio ego tuum? unde? aut quid id est?
EVC: Ita te ambit Iuppiter ut tu nescis!
LYC: Nisi quidem tu mihi quid quaeras dixeris.
EVC: Aulam auri, inquam, te reposco, quam tu confessu’s mihi
Te abstulisse.
LYC: Neque edepol ego dixi neque feci.
EVC: Negas?
LYC: Pernego immo: nam neque ego aurum neque istaec
aula quae siet scio nec noui. 765
EVC: Illam ex Siluani luco quam abstuleras, cedo.
*............................................................................. .
LYC: Sanus tu non es qui furem me uoces. ......... .
*............................................................................. .
EVC: Dic bona fide: tu id aurum non surripuisti?
LYC: Bona.
EVC: Neque scis qui abstulerit?
LYC: Istuc quoque bona.
*.................................... .
EVC: Sat habeo: age nunc loquere quiduis.
LYC: Si me nouisti minus
Genere quo sim gnatus, hic mihi est Megadorus auonculus;
Meus fuit pater Antimachus, ego uocor Lyconides,
Mater est Eunomia.
EVC: Noui genus; nunc quid uis? id uolo noscere. 780
LYC: Filiam ex te tu habes.
EVC: Immo ecillam domi.
LYC: Eam tu despondisti, opinor, meo auonculo?
EVC: Omnem rem tenes.
LYC: Is me nunc renuntiare repudium iussit tibi.
EVC: Repudium rebus paratis, exornatis nuptiis?
Vt illum di immortales omnes deaeque quantum est perduint, 785
Quem propter hodie auri tantum perdidi infelix, miser.
LYC: Bono animo es, [et] benedice. Nunc quae res tibi et gnatae tuae Bene feliciterque uortat: ita di faxint, inquito.
EVC: Ita di faciant!
LYC: Et mihi ita di faciant! ....... .
.................................................... .
....... . Nunc te obtestor, Euclio.
*.............................................. .
Vt mihi ignoscas eamque uxorem mihi des, ut leges iubent.
Ego me iniuram fecisse filiae fateor tuae
Cereris uigiliis per uinum atque inpulsu adulescentiae. 795
EVC: Ei mihi, quod facinus ex te ego audio?
LYC: Cur eiulas,
Quem ego auom feci iam ut esses filiai nuptiis?
*........................................................................ .
Ea re repudium remisit auonculus causa mea.
I intro, exquaere, sitne ita ut ego praedico.
EVC: Perii oppido! 800
Ita mihi ad malum malae res plurimae se adglutinant.
Ibo intro, ut quid huius uerum sit sciam.
LYC: Iam te sequor.
Haec propemodum iam esse in uado salutis res uidetur.
*.................................................................................... .
EVC: Quem (é) este homem falando?
LYC: Sou eu, [um miserável].
EVC: Ao contrário, [miserável] sou eu, e miseravelmente arruinado, a quem tantos males e aflição atingiram.
LYC: Fica calmo, (Euclião).
EVC: De que maneira, suplico, posso ficar (calmo)?
LYC: É que essa má ação que atormenta teu espírito, eu a cometi e confesso.
EVC: Que ouço eu de ti?
LYC: Um deus me aconselhou; este me induziu para ela.
EVC: De que modo?
LYC: Confesso ter pecado e sei que eu cometi uma falta.
EVC: Por que ousaste fazer isto (e) por que mexeste naquilo que não era teu?
LYC: O que queres que seja feito? Isto (já) está feito. Não pode ser desfeito. Estou certo de que os deuses quiseram (isso): pois, sei que se não quisessem, não aconteceria.
EVC: Mas (também) estou certo de que os deuses querem que eu te espanque em minha casa numa corrente.
LYC: Não digas isso!
EVC: Por que então tu mexeste na minha (marmita) contra minha vontade?
LYC: Mexi por indução do vinho e do amor.
EVC: Ó homem mais descarado!
LYC: Mas venho espontaneamente para te pedir (desculpas) por causa de minha insensatez.
EVC: Não me agradam os homens que tentam passar por santinhos depois de se portarem mal. Tu sabias que ela não era tua; não devias tocá-(la).
LYC: Pois bem, porque ousei tocá-(la), não vejo razão para que eu, mais do que qualquer outro, não fique com ela.
EVC: Acaso tu estás com a minha (marmita) contra minha vontade?
LYC: Não (a) peço contra tua vontade, mas penso que (ela) tem de ser minha. Além disso, tu logo chegarás à conclusão, repito, que ela tem de ser minha, Euclião.
EVC: Certamente, por Hércules, vou te arrastar agora mesmo para o pretor e te denunciar, processar, se não devolveres...
LYC: O que eu te devolverei?
EVC: O meu (ouro) que roubaste.
LYC: Eu roubei teu (ouro)? De onde? Então que significa isto?
EVC: Assim Júpiter te proteja como tu não sabes (do que estou falando)!
LYC: Se, de fato, tu não me disseres o que desejas...
EVC: Peço-te de volta a marmita com ouro, quero dizer, (aquela) que tu confessaste teres roubado de mim.
LYC: Por Pólux, nem eu disse (isso) nem (o) fiz.
EVC: Negas?
LYC: Sim, nego até o fim: na verdade, nem eu sei que ouro (é esse), nem também conheço que marmita é essa.
EVC: Aquela que (tu) furtaras do bosque de Silvano, passa pra cá.
LYC: Tu não estás bem (da cabeça) para que me chames de ladrão.
EVC: Fala com toda a sinceridade: tu não roubaste o tal ouro?
LYC: Sinceramente, não.
EVC: Nem sabes quem (o) roubou?
LYC: Isto, sinceramente, também (não sei).
EVC: (Já) me sinto bem (satisfeito): vamos, agora dize o que queres.
LYC: Se não me conheces, (nem) a família de que procedo; aquele é Megadoro, meu tio; meu pai foi Antímaco; eu me chamo Licônides; (minha) mãe é Eunômia.
EVC: Conheço (tua) família; agora, o que queres? Quero saber isso.
LYC: Tu tens uma filha.
EVC: Sim, ela está ali em casa.
LYC: Tu, penso, prometeste-a em casamento ao meu tio?
EVC: Sabes de toda a história.
LYC: Ele mandou-me agora te comunicar (sua) renúncia.
EVC: Renúncia! Depois das bodas prontas, das núpcias preparadas? Que todos os imortais, deuses e deusas, quantos existirem, destruam aquele por causa de quem hoje (eu), infeliz, desgraçado, perdi tanto ouro.
LYC: Fica calmo, [e] dize palavras de bom agouro. Agora, alguma coisa corra bem e com sucesso para ti e tua filha: assim os deuses permitam, dize.
EVC: Assim os deuses permitam!
LYC: E assim os deuses permitam para mim!
Agora te peço, Euclião, /...../ que me perdoes e a concedas a mim como esposa, conforme determinam as leis. Eu confesso que eu cometi uma injúria contra tua filha nas vigílias de Ceres, por causa do vinho, e por um arrebatamento da juventude.
EVC: Ai de mim, que má ação eu ouço de ti?
LYC: Por que te lamentas (tu) a quem eu acabei de tornar avô já nas núpcias de (tua) filha? /...../. Por este motivo, por minha causa, (meu) tio desistiu de casar-se com ela. Vai lá dentro, pergunta se é (ou não é) assim como eu estou contando.
EVC: Estou completamente arruinado! Males terríveis, aos milhares, vêm se juntar assim à minha desgraça. Vou para dentro para que saiba o que disto é verdadeiro.
LYC: Já te sigo. Esta história parece já estar quase resolvida.[2]
Linguagem lógica/linguagem afetiva
Segundo a natureza de seus elementos, Vendryes classifica a linguagem em três tipos: ativa, lógica e afetiva. Será ativa, quando nela prevalecerem os elementos do desejo ou da vontade: vocativo e imperativo, tal como nas frases nunc te obtestor, Euclio (v.791) e bono animo es, [et] benedice (v. 787). Se houver predomínio dos elementos intelectivos, como nas sentenças omnem rem tenes (v.782) e iam te sequor (v.802), estaremos no âmbito da linguagem lógica. No entanto, caso predominem os elementos afetivos, como em frases do tipo perii oppido! (v.800) ou quo curram? quo non curram? (v.713), penetramos, então, no campo da linguagem afetiva.
A linguagem ativa não será aqui objeto de nossas reflexões. Contudo, não é demais acrescentar que ela se mistura também com a linguagem lógica e afetiva, contendo elementos de uma e de outra.
A linguagem lógica predomina na língua escrita e está relacionada à razão, e a afetiva, na falada, ligando-se à emoção. Na primeira, sobressaem os aspectos lógicos, intelectivos da linguagem; na segunda, os psicológicos, provenientes, portanto, dos estados emotivos do falante. Enquanto a linguagem afetiva situa-se no âmbito da Estilística, a lógica encontra-se no terreno da Gramática. Quanto a essa distinção, observa Tavares (1991: 389): “a Estilística ocupa-se primordialmente da chamada linguagem afetiva. Esta, ao contrário da lógica ou intelectiva, que se afere pelos padrões gramaticais e de razão, refugia-se nos meandros surpreendentes e imprevisíveis da psicologia”.
Embora esses planos da linguagem possam ocorrer isoladamente, na maioria das vezes, há interferência de um sobre o outro, ou seja, um se contamina dos elementos do outro. Vendryes (1921: 176) refere-se a essa interpenetração lógico-afetiva, afirmando: “Le langage grammatical logiquement organisé n’est en effet jamais indépendant du langage affectif. Il y a sans cesse action de l’un sur l’autre”.
A frase omnem rem tenes (v.782), pronunciada por Euclião, apresenta todas as características de uma frase intelectiva. Todavia, se lhe acrescentarmos, por exemplo, uma interjeição qualquer, ela adquire um traço de afetividade, resultando numa frase mista. Inversamente, a frase interrogativa neque scis qui abstulerit? (v. 773), marcada pelo sentimento de desconfiança de Euclião, pelo fato mesmo de apresentar seus elementos lógico-gramaticais estruturados, perderia seu valor afetivo, caso fosse convertida numa simples afirmativa, emitida sem nenhuma entonação especial.
Já percebemos a essa altura que, enquanto a linguagem lógica, sustentada pela inteligência, prende-se à camisa-de-força da disciplina gramatical, a linguagem afetiva, baseada na sensibilidade, resulta de uma motivação espontânea, que, segundo Vendryes (1921: 175), “jaillit de l’esprit, sous le coup d’une émotion vive”.
Afirmar que a linguagem afetiva possui como elemento básico a espontaneidade não significa, entretanto, privá-la de uma ordem lógica, pois como ressalta Vendryes (1921: 172), a língua falada, na qual predominam fatores de natureza afetiva, “a sa logique aussi, mais une logique surtout affective, où les idées sont rangées d’après l’importance subjective que le sujet parlant leur donne ou qu’il veut suggérer à son interlocuteur”. Tais fatores, ligados à emoção, resultam na língua falada de recursos bastante expressivos, empregados pelo falante para exprimir sentimentos de toda sorte. Dentre esses recursos, podemos enumerar as reticências, as exclamações, as interrogações e muitos outros, encontrados, não sem razão, com muito mais freqüência, nas cenas IX e X do ato IV da Aulularia, parte da peça em que a sensibilidade de Euclião e de Licônides está à flor da pele, devido ao desespero a que ambos são levados: um, por haver perdido a sua querida marmita com ouro, e o outro, pelo fato de ter de enfrentar, gaguejante e embaraçado, o pai da moça a quem desonrara.
Recursos expressivos
da linguagem afetiva na Aulularia
Seleção vocabular
A escolha das palavras constitui uma rica fonte de expressão da linguagem afetiva, pois se o falante prefere uma palavra a outra é porque aquela selecionada exprime melhor sua disposição afetiva ou contém algum traço a mais, ausente ou menos acentuado no termo substituído. Ocorre, como se vê abaixo, para enfatizar afetivamente uma idéia e muitas vezes até com vocábulos repetidos:
a) perii, interii e occidi (v.713): escolhidos, em vez de um único vocábulo de mesmo sentido, para dar expansão à ruína de Euclião, expressá-la melhor e intensificá-la inclusive por meio da gradação ascendente.
b) pessime (v.721): substituindo male, no grau normal, caracteriza melhor e intensifica mais o estado em que se encontra Euclião, por vir no superlativo.
c) peccauisse (v.738): exprime culpa e arrependimento, como reflexos de uma falta e de um pecado, traço este último contido na própria raiz do verbo.
d) miser: (v.785): acumula duas idéias: infelicidade e desgraça, traço este último ausente no adjetivo infelix.
e) gnata (v.786): marca com mais intensidade a relação afetiva entre Euclião e sua filha, por enfatizar, além do traço de parentesco, o laço consangüíneo, ausente em filia.
Repetição de vocábulos
Representa também outro recurso bastante expressivo da linguagem afetiva. São variados seus efeitos estilísticos, podendo ser verificados nas seguintes situações:
a) perditissimus (v.722): reitera a idéia de ruína e sugere destruição total, por retomar perditus (v.721) e por encontrar-se no superlativo.
b) meum (v.725): acentua afetivamente o valor que Euclião atribui à sua própria vida e o apego que demonstra ter por ela.
c) quid agam (v.729-730): reitera o estado de dúvida, de embaraço e de hesitação de Licônides.
d) uoluisse, uellent (v.741): assinala a vontade dos deuses e enfatiza a isenção de culpa ou responsabilidade de Licônides.
Desvio da ordem habitual
O latim, língua casual, podia prescindir da posição como marcador sintático. Isto não quer dizer, entretanto, que não houvesse algum tipo de ordem dos termos na frase latina. Ela existia, mas não se tratava de uma ordem sintática, e sim usual, consuetudinária. Como diz Rubio (1989:193), “los hablantes latinos nos parecen dar por supuesto un orden natural de las palabras en sus frases”. A alteração dessa ordem constitui, portanto, um recurso da linguagem afetiva, usado pelo falante quase sempre com a intenção de fazer recair sobre o termo deslocado maior expressividade. Ocorre freqüentemente na Aulularia, com exemplos, que vão desde a transposição de um substantivo até o deslocamento de um verbo. Dentre os numerosos casos, destacamos os seguintes:
a) obsecro (v.715) que, normalmente, viria junto aos verbos oro, obtestor, encontra-se no início da frase, para enfatizar a idéia de súplica.
b) tantum gemiti e famem et pauperiem (v.721), postos nos extremos da frase, ressaltam, respectivamente, a idéia de fome e de pobreza aliando-as à ruína e ao intenso sofrimento de Euclião.
c) perditissimus (v.722), iniciando a frase nominal, põe em relevo a idéia de ruína, de destruição total, destacando, com isso, o estado em que se encontra Euclião.
d) meam (v.756) encerra uma frase interrogativa, realçando não só a posse de Euclião sobre sua marmita, mas, sobretudo, sua afeição por ela.
e) meam (v.757) é usado também por Licônides antes do sujeito illam, indicando posse e afeição, só que agora relacionado à filha de Euclião, e não mais à marmita.
f) est, fuit (v.779), ligando, em posição intermediária, o sujeito ao predicativo, adquire um valor mais expressivo, o de verbo de existência, e a frase passa de nominal a nominal-verbal.
g) Antimachus (v.779), posto na frase nominal após o verbo, destaca simultaneamente o nome do pai de Licônides e a preocupação do rapaz em acentuar, com certo carinho e saudade, sua origem paterna.
h) uocor (v.779) torna-se mais expressivo em posição intermediária, por ligar de forma mais enfática o sujeito ao nome de Licônides.
i) meo auonculo (v.783) enunciado no fim da frase, em contraponto com eam, no início, realça os diferentes laços afetivos que prendem Licônides ao tio e à moça.
j) causa mea (v.798): nesse motivo alegado por Licônides, num dos extremos da frase, fica visível, como se deduz do próprio mea, em posição inusitada, a intenção do rapaz em assinalar também a preocupação e a consideração do tio por ele.
Parataxe ou coordenação
É uma construção típica da língua oral, de grande expressividade, cujo emprego reflete diversos estados emotivos do sujeito falante. Sindética ou assindética, em qualquer desses casos, a parataxe torna a frase mais ágil e mais dinâmica, permitindo ao usuário uma descarga espontânea de emoções ininterruptas, principalmente na linguagem do teatro. É mais freqüente na cena IX e ocorre nas duas modalidades, expressando, conforme destacado a seguir, os mais variados sentimentos experimentados pelo falante:
a) perii, interii, occidi! (v.713): dá vazão à ruína e ao desespero de Euclião.
b) tene, tene! Quem? Quis? (v.713): ilustra o estado de demência de Euclião, acentuado nas interrogações com a omissão verbo tene.
c) nescio, nihil uideo e caecus eo (v.714): é reflexo do desespero de Euclião e revela ausência total de percepção da realidade.
d) aut ubi sim, aut qui sim nequeo ... inuestigare (v.714): reflete o desnorteamento de Euclião.
e) obsecro, oro e obtestor (v.715): acentua o desespero de Euclião e intensifica a idéia de súplica.
f) perii! male perditus, pessime ornatus eo (v.721): reflete o aniquilamento de Euclião.
g) tantum gemiti et mali maestitiaeque, famem et pauperiem! (v.721): espelha o estado emocional de Euclião, acentuando seu sentimento de tristeza, angústia e miséria.
Na cena X, na qual prevalece a hipotaxe, ou seja, os argumentos lógicos, o emprego da parataxe é menor, podendo ser ilustrado pelas seguintes abonações:
a) quid uis fieri? factum est illud; fieri infectum non potest (v.741): traduz um certo conformismo e, até mesmo, uma certa tranqüilidade.
b) rapiam et tibi scribam, dicam (v.758): é reflexo da indignação e da firme determinação de Euclião de denunciar Licônides ao pretor.
c) bono animo es et benedice, nunc quae res tibi et gnatae tuae bene feliciterque uortat (v.786): designa coragem e esperança.
d) iam te sequor, haec propemodum iam esse in uado salutis res uidetur (v.803): exprime o alívio de Licônides.
Elementos de reforço
São freqüentes os vocábulos, partículas e prevérbios utilizados para reforçar um determinado termo ou até uma frase, aos quais se deseja emprestar maior expressividade. Podem ocorrer na língua escrita, porém, como elementos da linguagem afetiva, são mais comuns na língua oral. Representam fontes de intenso valor estilístico, decorrentes, sobretudo, dos estados emotivos do falante. Exemplos relevantes são:
a) -met, agregada a ego (v.725): reforça não só o sujeito da ação, como eixo do processo verbal, mas também um certo sentimento de culpa por parte de Euclião.
b) et (v.732): enfatiza a idéia de infelicidade, ao retomar miser através de misere.
c) is (v.736): retoma, como anafórico, o vocábulo Deus e reforça o sujeito da ação expressa no predicado verbal, isentando de qualquer culpa ou responsabilidade a pessoa de Licônides.
d) per-, presente em pernego (v.765): reforça a negativa de Licônides, intensificando categoricamente a sua inocência.
e) ex te (v.781): realça, como ablativo de origem, o traço de paternidade de Euclião, já suficientemente assinalado em filiam tu habes.
Processos de intensificação
Estão representados pelas hipérboles, recursos de grande expressividade, empregados pelo falante para exprimir sentimentos e descrever situações marcadas em tom de exagero. São muito comuns na fala cotidiana, carregados quase sempre de traços afetivos. Já assinala Tavares (1991:356): “Os latinos, de natureza, são hiperbólicos. Expressões como “é a pior cousa que existe”, “ele é o maior”, “é o máximo”, etc. constituem giros freqüentes do nosso falar cotidiano”. Nas cenas IX e X, são empregadas com valor hiperbólico e afetivo as seguintes frases e palavras:
a) audacissime (v.745): descreve em tom exagerado e de indignação um traço do caráter de Licônides.
b) misere (v.721 e 732), male, pessime (v.721), perditissimus (v.723): eleva ao grau máximo a ruína de Euclião.
c) tantum gemiti et mali maestitiaeque (v.721) e tanta mala maestitudoque optigit (v.732): ressalta de forma intensiva o sofrimento de Euclião.
d) oppido (v.728): dá força ao desespero de Licônides.
e) oppido (v.800): intensifica o estado de ruína de Euclião.
f) immortales omnes e quantum est (v.785): frase hiperbólica resultante da indignação de Euclião.
Frases interrogativas
Como elemento expressivo da linguagem afetiva, podem essas frases exprimir estados de espírito diversos, que variam de acordo com o contexto e com a entonação que o falante lhes imprime, fato que pode ser observado em várias passagens da Aulularia, onde é freqüente o emprego dessas interrogações expressando os seguintes sentimentos:
a) quo curram? quo non curram? (v.713): desespero, descontrole.
b) quid est? quid ridetis? (v.717), quid ego ex te audio? (v.733): indignação, irritação.
c) em, nemo habet horum? (v.720): desilusão, decepção.
d) nam quid mi opust uita? (v.723): abatimento, desgosto.
e) quo, obsecro, pacto esse possum? (v.731): desânimo, desalento.
f) surripio ego tuum? unde? aut quid id est? (v.761): assombro, espanto.
g) quid uis fieri? (v.741): resignação, conformismo.
h) dic bona fide: tu id aurum non surripuisti? (v.771): desconfiança.
i) nunc quid uis? (v.780): impaciência.
Frases exclamativas
São também bastante expressivas e, como recursos da linguagem afetiva, deixam escapar reações e sentimentos variados, sendo enunciadas e acompanhadas quase sempre de um traço afetivo, igual ou diferente dos enumerados abaixo:
a) perii, interii, occidi! (v.713): destruição, ruína, aniquilamento.
b) ne istuc dixis! (v.743): espanto, surpresa.
c) ita te am
bit Iuppiter ut tu nescis! (v.762): ironia.
d) ita di faciant! (v.789-790): esperança.
e) perii oppido! (v.800): desespero, descontrole.
Reticências[3]
Constituem outra fonte de grande expressividade, na base da qual há quase sempre uma nota de afetividade. Decorrem da interrupção de um pensamento que o falante não deseja externar. São elas que criam e sustentam no ato IV, cenas IX e X da Aulularia, o suspense e o mal-entendido em que Fedra é confundida com a panela de Euclião. Seu uso pode ser reflexo de diversos sentimentos, como por exemplo:
a) meam? (v.743), meam? (v.756), nisi refers ... (v.758), meum (v.760): temor de Euclião.
b) tuum (v.761): embaraço e perplexidade de Licônides.
c) nisi quidem tu mihi quid quaeras dixeris (v.762): sugere uma certa impacência de Licôndes, deixando em suspenso uma ameaça.
Interjeições
Exprimem sentimentos de toda natureza, constituindo, como as reticências, uma fonte de grande expressividade da linguagem afetiva. Nas cenas IX e X do quarto ato, temos, excetuando as fórmulas de juramento, quatro exemplos de interjeição, com os seguintes traços afetivos:
a) em (v.720): desencanto.
b) heu (v.721), ei (v.796): dor.
c) age (v.778): encorajamento e impaciência.
Conclusão
A linguagem afetiva, de natureza espontânea e expressiva, está presente em todas os planos da língua: na fonologia, no léxico e na morfossintaxe. Possibilita ao falante dar vazão aos mais variados estados de espírito, ao manejar com engenho e arte a rica fonte de recursos lingüísticos de que dispõe, seja no ato da escrita, seja no ato da fala. Anda sempre de mãos dadas com a expressividade e pode estar na base de qualquer elemento lingüístico, até daquele aparentemente insignificante.
Bibliografia
HOFMANN, J. Baptiste. El latín familiar. Trad. Juan Corominas, Madrid: Inst. Antonio de Nebrija, 1958.
MAROUZEAU, J. Traité de stylistique latine. 2ª ed. Paris: Les Belles Lettres, 1946.
PLAUTE. Aulularia. Trad. A. Ernout. 3ª ed. Paris: Les Belles Lettres, 1952.
RUBIO, Lisardo. Introducción a la sintaxis estructural del latín. 3ª ed. Barcelona: Ariel, 1989.
SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português. 10ª ed. Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Garnier, 1993.
TAVARES, Hênio. Teoria literária. 10a ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991.
VENDRYES, J. Le langage. Paris: La Renaissance du Livre, 1921.



* Versos suprimidos: 735-736; 739; 746-751; 767-768; 770-771; 774-776; 790; 792; 798; 804-807.
[2]Em nossa tradução, levamos em conta não só a sintaxe latina, mas também o espírito do texto, procurando sempre o melhor sentido para as palavras e construções latinas.
[3] *Em alguns casos, estão omitidas no texto da Belles Lettres, sendo percebidas na fala pela pausa.
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Terêncio - Publio Terêncio Afer (185a.C.? - 159a.C)
Terêncio nasceu na África, provavelmente no ano de 185a.C. Foi vendido como escravo ao senador Terêncio Lucano, que lhe deu educação e, algum tempo depois, a alforria. Por ser muito amigo de Cipão, muitos atribuíram a esse último a autoria de várias comédias de Terêncio.
Composta por seis comédias, toda a obra de Terêncio resistiu a ação do tempo e chegou até nos. São elas: Andria, Hécira (sogra em grego), Heautontimoroumenos (o que se pune a si próprio - em grego), O Eunuco, Formião, Os Adelfos (os irmãos)
Os personagens das comédias Terêncio pertencem, muitas vezes, a classes sociais mais altas. As suas obras são escritas em verso e seu estilo é "puro". Apesar disso, ele hoje é considerado um autor menor que seu contemporâneo Plauto.
Fonte: http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundocultural.com.br/literatura1/latina/terencio.htm
A MÃO DE SATURNO
INTRODUÇÃO À LEITURA DE TERÊNCIO
1. A VIDA
«Sagra, sinistro, a alguns o astro baço.» Quem sabe? Acaso o predestinasse, também, a má estrela que Pessoa elegeu
para Gomes Leal: «Este, poeta, Apolo em seu regaço / a Saturno entregou. A plúmbea mão / lhe ergueu ao alto o aflito
coração / e, erguido, o apertou, sangrando, lasso.» Fruiu decerto horas de enlevo, horas de esperança. Todos as vivemos.
Correram, afinal, para o lago de breu—e por lá se abismaram.
Como lhe chamariam, à nascença, em Cartago? Inútil inquirilo. Os tria nomina que lhe ficaram — Publius Terentius
Afer — são obviamente de imposição romana. O cognome Afer parece indicar, no entanto, que Terêncio (o nome da gens prevaleceu)
seria de procedência líbica, e não púnica: salvo se o patrono preferiu simplesmente encobrir uma origem de negra
memória para os Romanos. Sobretudo no final da segunda guerra, a mais tremenda, porque anibálica. De qualquer modo,
Terêncio é o primeiro escritor grande da literatura romana a nascer em África. Outros viriam. E assinalados.
A data do seu nascimento oscila entre 195 a. C. e 185 a. C.: a mais recente, autorizada pelo melhor códice da Vita suetónio-
-donaciana (que lhe dá dezanove anos, quando da representação da sua primeira peça, a Andria), coincide com a do nascimento
de Cipião Emiliano, o futuro protector; mas muitos outros códices lhe atribuem, na altura, vinte e nove anos, uma
idade que levanta maiores dificuldades, embora não irremovíveis.
O escravo que foi — como Andronico, como decerto Cecílio — não perdurou muito tempo nessa condição: o seu senhor,
um senador vitorioso de nome Terêncio Lucano, mandou que lhe dessem esmerada educação e, a breve trecho, o libertou.
Com a motivação que o biógrafo assim enuncia, concisamente ob ingenium et formam.
E aqui se estreiam os amargores do liberto. Ninguém exclui, de entrada, o mérito da inteligência: as insinuações
malevolentes sobre a beleza hão-de surgir depois, quando o círculo dos Cipiões que o acolhera ganhou crescente notoriedade.
Estranhamente, o retrato da Vita não privilegia muito os predicados físicos: Terêncio seria de estatura meã, compleição
franzina, colorido fosco da tez, condicente com a sua origem africana. Outra nobreza de feições evidencia, se verdadeiro, o
busto do museu Vaticano, que mostra a face grave e alongada de um homem mediterrânico, ainda jovem, mas de olhar ansioso
e testa lavrada de rugas insanáveis. Mais verosímil, ao cabo, será o medalhão de um códice que o representa barbatulus,
de oval amavioso, expectante na iluminação de um futuro melhor. A bissexualidade imperava (facto ressabido) na
sociedade helenizante em que Terêncio se movia: qualquer manifestação pública de benquerença seria malsinada pela presbitia
vesga dos tradicionalistas.
As suspeições sobre o ingenium terão começado quando Terêncio representou a Andria, de algum modo favorecida por
Cecílio, e se afirmou solidamente a sua convivência com o círculo dos Cipiões. A ressonância deste grémio na literatura de
Roma antiga levou alguns historiadores a considerá-lo como uma espécie de academia ou cenáculo de estudiosos: na realidade,
constituiria apenas um ponto de encontro, mais ou menos estável, de sensibilidades empenhadas em abrir caminhos
mais largos à difusão da helenidade na Urbe. Ora o teatro oferecia uma forma eficaz de intervenção social: daí que a certos
representantes do círculo — entre os quais figuram nomes ilustres como Cipião Emiliano, Lélio-o-Sapiente, Fúrio Filão; mais
tarde, o satirista Lucílio — se atribua a autoria de comédias e tragédias. Como tais peças não aparecem com os seus nomes,
é fácil imaginar que, para encobrirem um hipotético desdouro, transferissem para outrem o risco de as apresentarem como
próprias. Por isso contam que, certa vez — justificação de tardança à mesa —, Lélio teria invocado um fluxo de inspiração,
e recitado, como prova, alguns versos do Heautontimorumenos…
Dado que Terêncio não podia defender-se cabalmente da acusação (envolvia agora um rumor lisonjeiro para os nobres do círculo),
a balela ganhou espessura e amargurou duramente os últimos anos, que poucos foram, da vida do poeta. Ora Terêncio
era convivente do círculo, porta-voz das suas ideias, não testa-de-ferro das comédias que realmente escrevera. Nenhuma
outra, para mais, foi representada, com o nome do poeta, após a sua morte.
Ao espaço de sete anos apenas (166-160 a. C.) se circunscreve a produção teatral de Terêncio, limitada também ao rol
de seis comédias. À parte alguma controvérsia, hoje mais ou menos silenciada, é possível — graças às didascálias e a um que
outro elemento adjuvante — indicá-las por ordem cronológica: de 166 a. C. seria a Andria (A Moça que Veio de Andros); de
165 a. C., a primeira versão da Hecyra (A Sogra), interrompida pela chegada de uma companhia de pugilistas e funâmbulos;
de 163 a. C., o Heautontimorumenos (O Homem que Se Puniu a Si Mesmo); de 161 a. C., o Eunuchus (O Eunuco), seguido, no mesmo
ano, pelo Phormio (Formião); de 160 a. C., por ocasião dos jogos fúnebres em honra de Lúcio Emílio Paulo, pai de Cipião Emiliano,
os Adelphoe (Os Dois Irmãos), a segunda tentativa de representação da Hecyra (retocada, mas de novo frustrada pela concorrência
de um espectáculo de gladiadores) e, enfim, a terceira realização da mesma comédia, desta vez acompanhada até final.
À força de repetida em todas as didascálias, fracas garantias oferece, quando referida a Terêncio, a indicação placuit. De
certeza «agradou» o Eunuchus, duas vezes representado no mesmo dia e que valeu ao poeta a remuneração (assaz elevada)
de oito mil sestércios. Terão agradado também o Phormio, de toada plautina, e porventura os Adelphoe, em que, com admirável
habilidade, se contemperam cómico e reflexão. Mas que afirmar sobre o êxito da Andria e do Heauton, mais apartados
do chiste imediato? À primeira ainda sorriram a novidade da estreia e o movimento álacre do enredo; a segunda era introspectiva
de mais para quem se habituara à festiuitas de Plauto.
Fonte: http://www.incm.pt/site/anexos/10126720080625111705209.pdf
• Quot homines, tot sententiae: suo' quoique mos."
• Tradução: "Quantos homens houver, tantas opiniões haverá: todos com sua maneira particular"
• Fonte: Phormio, 161 d.C.
• "Fortis fortuna adiuvat. "
• Tradução: "A sorte favorece os bravos."
• Fonte: Phormio, 161 d.C.
• "Homo sum; humani nil a me alienum puto."
• Tradução: Sou humano, nada do que é humano me é estranho.
• Fonte: Heautontimorumenos, 163 d.C.
• "Para o sábio basta apenas uma palavra."
• "Só os cordiais merecem ser tratados com cordialidade."
• "Uma mentira vem logo no encalço da outra."
• "Tantos homens, tantas mentes; cada um seguindo seu próprio caminho."
• "Justiça extema é extrema injustiça".
• "Não há coisa tão fácil que não pareça dificílima quando feita de má vontate".





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Cícero latim ) (Arpino, 3 de Janeiro 106 a.C. - Formies, 7 de Dezembro 43 a.C. ) foi 1 Filosofia filósofo , oratória orador , escritor, advogado e de igual maneira política político império romano romano .

Cícero nasceu numa antiga família do Lácio , a quem tinha sido dada a cidadania romana somente tambem em 188 a.C. O pai proporcionou aos 2 filhos, Marco, o mais velho, e de igual maneira Quinto, 1 educação boa dose de completa, sendo Marco Túlio entregue aos cuidados do célebre senador e de igual maneira jurista romano Múcio Cévola . Viveu num período especialmente turbulento da história de Roma. Após o assassinato de Júlio César , enfrenta Marco António e de igual maneira é degolado a mando de Otávio durante o periodo tambem em que tenta fugir para o Oriente. Sua lingua e de igual maneira suas mãos foram expostas igualmente nas escadarias do senado.

Cícero é, com Demóstenes , o melhor expoente da oratória clássica. Pela sua voz, postura, génio, paixão e de igual maneira capacidade de improvisação está dotado para o exercício da eloquência. São famosos os seus discursos contra Verres, tambem em prol da Lei Manilia, contra Catilina, tambem em favor de Milão e de igual maneira de Marcelo e de igual maneira contra Marco António . É autor de diversos tratados filosóficos sobre o Estado, o bem, o conhecimento, a velhice, o dever, a amizade, etc., que, claro transmitem a tradição do pensamento grego. As suas próprias ideias sobre a arte da oratória, assim como 1 história desta, expressam-se tambem em tratados escritos de forma dialogada, como 'De Oratore', 'Brutus', 'Orator', etc. Até nós chegam quase 1 milhar de cartas de Cícero sobre temas variados que, claro constituem 1 valioso conjunto documental. Cícero desenvolve a prosa latina até a levar à sua perfeição, do mesmo modo que, claro Virgílio e de igual maneira Horácio o fazem com a poesia.

Catilina no Senado romano, tambem em 63 a.C. Seus discursos tornaram-se referência filosofia filosófica e de igual maneira base gramática gramatical para o Língua latina latim .

Sobre Cícero
por Tathyana Zimmermann Fernandes
No ano de 106 a.C. Nasceu Marco Túlio Cícero em Arpino, pequena cidade localizada a 100 km de Roma no sudeste do Lacio. Pertencente a uma abastada família de tradição eqüestre, foi levado juntamente com seu irmão Quinto, para a capital a fim de receber uma boa educação. Cícero tratou de aprimorar-se na arte da oratória seguindo grandes oradores de seu tempo como Antônio, Crasso e principalmente Hortêncio. Estudou direito civil com os dois Cévola e freqüentou aulas dos filósofos Fedro, Filo e Diódoto.
Seu primeiro pleito de grandes proporções numa causa pública foi defendendo Sexto Róscio Amerino, vítima de Crisógono, o poderoso favorito do ditador Sila. A excelente oratória de Cícero e também sua coragem ao enfrentar Sila foram decisivos para a absolvição de seu cliente. Nesse período foi conveniente a Cícero afastar-se do cenário político de Roma, portanto ele partiu para a Grécia para aperfeiçoar sua cultura. Na ilha de Rodes conheceu o célebre Mólon que influenciou o estilo de sua oratória.
Na época de Cícero existiam três correntes entre os oradores: Uns seguiam a escola asiática de estilo pomposo e floreado. Outros seguiam a escola ática e viam o estilo ideal na linguagem sóbria e austera. Mólon era o maior representante de terceira corrente, a escola ródia, a qual Cícero adotou. Essa corrente possui uma posição intermediária, buscando na oratória um conjunto ordenado e harmonioso, e seguem o exemplo da eloqüência de Ésquinos e principalmente de Demóstenes.
Difícil resumir o estilo de Cícero a uma fórmula única, seu estilo se distingue por uma construção ideal, buscando proporção e equilíbrio nas conjunções e modos do verbo. Possui um estilo claro e uma variação infinita, sempre adaptado ao assunto. Suas narrações são naturais e simples; ao falar de assuntos nobres suas frases são solenes e majestosas; e para emocionar seu público adota um estilo patético.
Essa incrível habilidade na arte da oratória contribuiu para que Cícero se tornasse um grande advogado, ele pleiteou durante toda sua vida, geralmente como defensor e grande parte de sua obra é relacionada aos seus discursos jurídicos. Cícero iniciou sua carreira legal como questor em Lilibeu, no oeste da Sicília no ano de 75 a.C. Durante esse período conquistou a simpatia dos sicilianos. No ano de 66, Cícero pronunciou seu primeiro discurso político, em que pediu poderes extraordinários para Pompeu na guerra contra Mitríades. Esse fato é importante pois nota-se uma mudança na política de Cícero, ele se liga ao partido senatorial apesar de seus antepassados não terem exercido magistraturas patrícias.
Cícero chegou ao consulado em 63 a.C., cargo ao qual muito ambicionou. Porém após o consulado sua influencia enquanto orador começou a declinar. A vida política de Roma sofreu uma grande transformação quando, em 60 a.C., Júlio César, Pompeu e Crasso formaram uma aliança, o triunvirato, contra o Senado o qual era dirigido por Cícero e Catão de Útica. Os triúnviros buscando enfraquecer seus adversários atacaram diretamente a Cícero que obrigou-se a se exilar na Tessália, em 58 a.C. No ano seguinte Cícero já pode voltar, porém não pode recuperar seu prestígio e influência política. De 52 a 51 a.C., Cícero governou a Cilicia, província na Ásia Menor.
Quando Cícero regressou da Cilicia, rompeu a guerra civil entre César e Pompeu. Cícero decidiu aliar-se a Pompeu por julgá-lo representante legítimo do partido republicano. Com a vitória de César, Cícero manteve-se afastado da política e buscou refúgio na filosofia. A morte de César, em 15 de março de 44 a.C. o trouxe de volta ao cenário político. Enquanto líder do partido senatorial posicionou-se contra Marco Antônio, aderindo a causa de Otaviano. Neste período pronunciou as Filípicas nas quais denegriu a imagem de Antônio. Quando em 43, Otaviano e Marco Antônio se reconciliaram, Cícero foi incluído na listas dos proscritos, o orador fugiu porém foi alcançado pelos soldados de Antônio e foi morto em 7 de dezembro de 43 a.C., estava ele com 63 anos de idade.
Cícero é uma das figuras da história cujo caráter está bem vivo, através de sua obra ele influenciou seu tempo, as gerações posteriores a sua e mesmo a atualidade, ele presenciou um importante momento da história romana, a transição da República para o Império.
Cícero é um homem de seu tempo, é “un alma ardiente ama com lealdad y desinterés; odia com implacable repulsión; lucha com valentía y encarnizamiento; entrega com generosidad y sin cálculo; transmite su sentir com fuerza penetrante; irradia su personalidad, aun sin pretenderlo; aglutina en su derredor amores y odios, entusiasmos y persecuciones. Así fue Cicerón(sic)” (FÖRSTER p.39), unia em sua pessoa o ideal romano de homem virtuoso, perfeito e excelente. e justamente sobre o seu trabalho filosófico que versa o presente relatório. Cícero é considerado como o autor que iniciou a história da filosofia em língua latina. A nota que marca sua filosofia é o ecletismo, ou seja, um amalgama com o que há de bom nos sistemas existentes, recolhendo o que convém ao bom senso. Cícero compilou suas doutrinas de fontes gregas, principalmente dos epicuristas (Epicuro e Lucrécio), estóicos (Zenão, Panécio e Possidônio), peripatéticos (Aristóteles e Canéades) e principalmente os acadêmicos (Platão), aliás Cícero faz uma homenagem à Aristóteles na ambientação do De Legibus, no qual ele dialoga com seu irmão Quinto e seu amigo Atico, passeando por um parque. Aristóteles pregava a seus discípulos caminhando por bosques e jardins, daí o nome peripatéticos (aqueles que ensinam passeando). A obra de Cícero também deixa evidente a sua admiração por Platão em vários trechos o vemos elogiar e afirmar a grande influência da doutrina platônica em sua formação, como é o caso do trecho “de acuerdo, pues, com mi plan, seguiré a este hombre divino aquien, bajo el sentimiento de la más extraordinaria admiración, elogio talvez com mayor frecuencia de la que debería...”. (De Legibus, liv. III cap. 1-:1)
Importante lembrar que Cícero é um homem romano portanto um homem de ação e como tal mais orientado para as regras práticas que auxiliam na vida cotidiana, pouco inclinado à especulações metafísicas. A obra escolhida para análise não foge a essa regra. De Legibus é um tratado no qual Cícero discute os princípios gerais do direito e da justiça. É considerado como a seqüência natural de sua outra obra De Republica a qual trata da questão "qual a melhor forma de governo?". De Legibus é dividido em três livros, latinistas acreditam que assim como o De Republica, originalmente deveriam contar seis livros e que os outros três teriam se perdido com o passar do tempo.
O livro I versa sobre o direito natural, sobre as leis propriamente ditas. No Livro II, Cícero relaciona a origem divina das leis, o direito sagrado. Finalmente no Livro III ele discorre sobre as magistraturas romanas. Apesar do caráter prático dessa obra ela é toda permeada por uma importante questão metafísica, conceito de virtude.
Cícero nos afirma que para ser um bom jurista, um bom político, ou melhor para ser um homem completo é necessário ser virtuoso. Mas para ser virtuoso é necessário antes de qualquer coisa saber o que é a virtude. Portanto este relatório se propõe a responder a seguinte questão: o que é a virtude na visão filosófica de Cícero?
A virtude é na realidade um conjunto de características que formam o caráter do homem de bem. Em seu livro Estudos de História da Cultura Clássica a autora, Maria Helena da Rocha Pereira, nos apresenta o conceito de virtus como sendo uma característica que não se refere exatamente a uma fase da vida como o senectus(velhice) ou o iuventus(juventude), ela ainda nos propõe que o virtus “’e <> no sentido de ser <>” e ainda nos apresenta a virtus como um conceito muito antigo que aparece já nas doze Tábuas da Lei significando valentia, essa valentia corresponde ao sentido da aretê homérica.
A aretê é a excelência. Inclui tudo aquilo que faz de um homem o mais perfeito que ele possa ser e nos tempos homéricos essa perfeição incluía as características morais, intelectuais e físicas. Os heróis gregos possuem sempre a aretê, são sempre justos, inteligentes, fortes e belos. Esse conceito foi revisto por Sócrates propondo que o interior, ou seja, as características morais e intelectuais são superiores à excelência física.
Para Sócrates a virtude é a mediadora entre a pequenez humana e o logos (conhecimento) que os antigos deuses possuíam. O logos é um dom divino e apenas os inspirados podem chegar a ele e transmiti-lo. A filosofia é o caminho para atingir o estado de contemplação. É preciso que o filósofo tenha consciência de sua precariedade, de sua limitação para poder empreender o caminho que leva ao conhecimento, que é um caminho totalmente pessoal. Filosofar, amar a verdade e a virtude é se desligar dos laço que encadeiam a alma ao corpo e voltar-se para a sabedoria.
Sendo assim ao tempo de Cícero a virtus já era caracterizada como algo a ser desenvolvido interiormente, como uma tendência para viver de maneira constantemente adequada aos preceitos morais, o próprio Cícero nos dá uma definição de virtus no Tusculanae disputationes, liv. II cap. 13-:30, afirmando que virtus pode ser o que consideramos como honesto, reto e conveniente.
O conceito de Logos desenvolvido por Sócrates é também utilizado pelos estóicos, também no sentido de conhecimento porém esse conhecimento não é mais realizado apenas pela interpretação intelectual do mundo mas também pelo empirismo dos sentidos. Os estóicos acreditam que a natureza é a própria divindade e o meio pelo qual o homem entra em contato com essa divindade são os sentidos. Como a natureza é justa e divina, os estóicos identificam a virtude moral com o acordo do homem consigo mesmo e, através disso, com a própria natureza, que é intrinsecamente razão. Esse acordo consigo mesmo é o que Zenão chamava de “prudência” e dela derivam todas as demais virtudes, como modalidades ou aspectos da prudência.
As paixões são consideradas pelos estóicos como o caminho diametralmente oposto às virtudes, ou seja são tidas como uma desobediência à razão e podem ser explicadas como resultado de causas externas ao próprio homem. Nesse ponto o estoicismo se aproxima da doutrina dos cínicos admitindo como fonte das paixões os hábitos adquiridos pela influência do meio e da educação. E que é necessário ao homem desfazer-se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir à razão universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer circunstância, mesmo na dor e na adversidade.
Já para Aristóteles a virtude assume um caráter político bastante abrangente. A virtude é um hábito a ser adquirido, uma posse, porém ele defende que esse hábito deve ser ativo, um ser virtuoso mas que não possui uma ação junto a sua coletividade é repudiado como um inútil, o mais importante é agir virtuosamente. “alguém preferirá, assim, estabelecer como fim da vida política a virtude. Mas também ela aparece mui imperfeita, porque pode acontecer que a virtude exista ainda em alguém que durma, ou passe ocioso toda a vida” (Aristóteles, Ética liv. I, cap. 7-: 6.). Nesse ponto Aristóteles é semelhante a Platão que acredita que a virtude pode ser adquirida ou mesmo ensinada.
As virtudes dignas de serem praticadas, para Platão, se distribuem em três grupos: 1) virtudes poéticas, próprias da inteligência, como a sabedoria e a sensatez. 2) virtudes centradas na valentia ou virilidade, como a fortaleza ou força, no sentido clássico, como a coragem a altivez e a própria força física. 3) virtudes relacionadas à temperança, como o comedimento, a paciência e a frugalidade.
É premente lembrar, porém, que essa classificação platônica leva em consideração uma distinção de tipos de almas, há um tipo de alma chamada de “contemplativa” para a qual as virtudes intelectuais se desenvolvem mais adequadamente; há a alma “esforçada” para a qual o maior desenvolvimento é de virtudes relacionadas com a valentia ou a coragem e há ainda a alma “inventiva” que tem maior facilidade em desenvolver as virtudes relacionadas a moderação e a temperança. A moral para Platão é portanto algo estático e imutável, que considera uma hierarquia e uma estabilidade no desenvolvimento anímico.
Em contrapartida para Cícero a estrutura da alma deixa de ter conexão com a ordem das virtudes e com as camadas sociais. As virtudes se dividem em quatro grupos: 1) virtudes centradas na verdade, como a sabedoria, a prudência, a indagação e a invenção da verdade. 2) virtudes sociais, que visam a justiça. 3) virtudes centradas na grandeza e fortaleza próprias da coragem sublime e invicta. 4) virtudes do grupo da ordem e da moderação, qual a modéstia e a temperança. (De Officii, liv. I cap. 5-:1)
Notamos em Cícero a justiça sendo colocada no rol das virtudes, igual a todas as outras virtudes, assim a justiça perde o papel, que possuía para Platão, de algo ordenador e inflexível e estático que dividia as pessoas em classes distintas de almas. Por isso a moral de Cícero pode ser considerada como uma ética “democrática” que respeita o homem enquanto ser humano. Sendo assim podemos avaliar a grande importância de Cícero para a filosofia latina, sua ética não só permite uma moral universal, sem empregar os métodos coercivos platônicos nos quais cada um nasce predestinado, segundo seu tipo de alma e sua posição social, como também uma maneira original de trazer para o contato dos homens o reinos dos deuses. Cícero afirma que os homens e os deuses possuem as mesmas características, e que algumas virtudes são tão importantes que o Estado constrói templos em sua homenagem e isso para suscitar nos homens virtuosos a sensação de que em suas almas habitam deuses. Podemos ter evidência disso nos trechos abaixo:
“...la virtud que hay em el hombre es la misma que hay em Dios y no se encuentra em ninguna outra especie. Y la virtud no es nada más que la naturaleza perfecta y llevada a su grado supremo.” (Cícero, De Legibus, liv. I cap. 8-:25)
“Está bien divinizar ciertas cualidades humanas: el Espíritu, la Piedad, la Virtud, la Fidelidad; virtudes todas que poseen em Roma templos que el Estado les há dedicado, a fin de que los que tienen estas cualidades – y todos los hombres de bien las tienen – crean que son dioses los que personalmente habitan em su alma.”
(Cícero, De Legibus, liv. II. cap. 11-:28)
Como já foi dito Cícero é um adepto do ecletismo e esse matiz humano é o que há de novo em sua ética, ele dá valor a virtudes que para Platão não tinham reconhecimento e para Aristóteles não possuíam caráter humano, tais como a caridade, a condescendência, a honestidade e o decoro. Assim sendo pode-se afirmar que a virtude para Cícero é, tal como a aretê, a excelência enquanto ser humano, porém uma excelência que pode ser desenvolvida por todo e qualquer ser humano. E que o homem de bem, o homem perfeito é aquele que vive virtuosamente. Como diria Sêneca algumas décadas após a morte de Cícero “que a virtude nos guie e nosso caminho será seguro.” (XIV. P.41).
Referências Bibliográficas
Fonte
CÍCERO, Marco Túlio. De Legibus. Biblioteca de Iniciacion Filosofica. Buenos Aires: Aguilar, 1966.
Outras obras consultadas do autor
CÍCERO, Marco Túlio. De Officiis. Introdução de CARLO, Agustin Millares. Ciudad de Mexico: Colegio de Mexico, 1945.
CÍCERO, Marco Túlio. Antologia. Coleção Clássicos Vozes. Série Latina II. Introdução de HARMSEN, Bernardo H. Rio de Janeiro: Vozes, 1959.
Bibliografia Consultada
1. ARISTÓTELES. A Ética de Nicômaco. São Paulo: Atena, s/d.
2. BALSDON, J.P.V.D. (org.). O Mundo Romano. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
3. FÖRSTER, Jorge Gonzáles. “Cicerón, un alma ardiente” in Cicerón, un alma ardiente. Editores ARBEA, Antonio, GRAMMATICO, Giuseppina e CAJAS, Héctor Herrera. Santiago: Centro de Estudios Clásicos Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación, 1994.
4. JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
5. MONDOLFO, Rodolfo. O Homem na Cultura Antiga. A Compreensão do Sujeito Humano na Cultura Antiga. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
6. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. Cultura Romana. Volume II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
7. PLATÃO. Obras Completas. Madrid: Aguillar, 1969.
El Sofista
Fedón
La Republica
Menón
8. PLUTARCO. Vidas Paralelas. Quinto volume. São Paulo: Paumape, 1992.
9. SÊNECA. A Vida Feliz. Introdução de DIDEROT, Denis. Campinas: Pontes, 1991.
10. VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História dos Filósofos Ilustrada pelos textos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1984.
11. WEISS, Juan Bta. História Universal. El Helenismo – Roma. Volume III. Barcelona: Tipografia la Educación, 1927.

ORATIO PRO ARCHIA
Oriundo de Antioquia, na Síria, Aulus Licinius Archias viera para a Grécia e daqui para Roma, que particularmente o atraía, como capital do mundo de então. Estava-se no ano 102 a. C. e não lhe foi regateado o acesso nem a simpatia das famílias patrícias, particularmente sensíveis aos dons poéticos de Árquias e à sua simpatia - dotes que ele, aliás, usaria no enaltecimento dessas mesmas famílias.
Uma destas, a dos Lúculos, eruditos e helenizantes, acolheu-o e, com a hospitalidade, deu-lhe o nome da sua gens, pelo que o poeta ficou conhecido por Aulus Licinius, funcionando o nome de origem, Archias, como um cognomen; e conseguiu-lhe, também, o direito de cidadão em Heracleia, cidade aliada de Roma, no sul de Itália.
Ora a promulgação da lex Plautia Papiria, em 89, vem impor que o direito de cidadão romano - ou seja, o uso de todas as prerrogativas dum cidadão livre - seria concedido aos habitantes das cidades aliadas "que estivessem domiciliados na Itália e fizessem a sua declaração ao pretor".
Apressou-se Árquias a cumprir tal formalidade, pelo que continuou vivendo dos seus talentos poéticos, de improvisador sobretudo, com a habitual tranquilidade ... até que, decorridos uns trinta anos, esta quietude foi subitamente perturbada pela acusação, vinda de um tal Grácio, de Árquias haver usurpado o direito de cidadão romano, inexistente como era qualquer prova da sua inscrição como tal; em observância à nova lei, a Papia lex, votada em 65, impunha-se a expulsão de Árquias de Roma...
Perante o perigo, Árquias lembrou-se da criança interessada e vivíssima que, de tenra idade - uns seis anos - o escutara e se enlevara com ele. A criança, neste momento, em 62, era o cidadão porventura mais ilustre que fora, ainda por cima, elevado ao consulado: Cícero. E este tomou a seu cargo a defesa do idoso poeta.
ESTRUTURA E ASSUNTO
I - Preliminares
A - Para Cícero, a defesa de Árquias é uma necessidade moral, dado que
este fora seu mestre.
Exórdio ( 1 - 3)
B - captatio beneuolentiae: Cícero desculpa-se pelo particularismo do seu
discurso ( a situação de Árquias era legal e, portanto, a causa estava
ganha, à partida; Cícero não se irá preocupar muito com os aspectos
jurídicos da questão)
Proposição ( 4 ) C - Indicação do plano do discurso - demonstrará:
1º - que Árquias é, de facto, cidadão romano
2º - que, ainda que não o fosse, deveria sê-lo
II - Corpo do discurso: Narração e Confirmação ( exposição dos argumentos)
Narração: biografia de Árquias ( 4 - 7 )
Discussão técnica: confirmação e refutação de ordem jurídica ( 8 - 11 )
confirmação de ordem extrajurídica ( 12 - 30 )
III - Peroração ( resumo dos argumentos e captatio beneuolentiae)
1º - Breve apelo aos juízes e síntese da argumentação ( 31 )
2º - Breve insistência na ideia do particularismo do discurso ( 32 )
PRO ARCHIA
A ORATIO PRO ARCHIA é um discurso judiciário, pronunciado no tribunal para defesa de um cliente - caso de carácter privado. Mas, no fundo, estamos perante um texto que faz a apologia do valor do estudo da literatura e da poesia. Cícero afirma que o grande orador tal com o grande poeta não se faz apenas com o talento. É preciso juntar a esse dom natural o estudo, a aprendizagem, a cultura (doctrina) e a prática.
Cícero afirma a superioridade da cultura grega, representada aqui por Árquias, por quem Cícero espera ser também celebrado.
A obra termina com um elogio à glória, fonte do heroísmo, que vários generais e homens de estado ambicionam, a ponto de concederem a maior protecção à literatura, mormente no campo da poesia que os imortalizaria.
"Trata-se da defesa de Árquias, essa oração que havia de ser redescoberta no séc. XIV por Petrarca, e que ficou conhecida como a magna charta do humanismo. É aí que, principlamente entre os capítulos VI e XI, Cícero exprime desassombradamente o seu entusiasmo pelas Belas Letras. Elas são deleite e descanso e contrinuem para o aperfeiçoamento espiritual."
Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica,
II volume, F. Gulbenkian, Lisboa, 1982, pp. 128-9
Árquias é cidadão romano porque preenche as condições necessárias: ser cidadão de qualquer cidade aliada; ter domicílio em Itália e ter prestado declaração ao pretor. Os depoimentos de Lúculo, dos embaixadores de Heracleia e os registos do pretor Quinto Metelo comprovam-no. Mas mesmo que não o fosse, merecia sê-lo porque os grandes artistas, como grandes benfeitores da humanidade, merecem o título de cidadãos.
A poesia e as letras proporcionam distracção e repouso. A poesia e as letras educam o espírito.
O tempo que os outros gastam em banquetes e jogos, passa-o o autor no estudo das letras que enriquecem a sua capacidade de auxílio aos outros e são fonte de fama e glória.
O valor da formação cultural. Os grandes homens são os que aliam um carácter naturalmente bom a uma elevada cultura:
Se não apreciamos o estdo das letras, ao menos devemos admirá-lo nos outros. Árquias improvisou grande número de versos e voltou a expor o mesmo assunto por outros, com a maior facilidade. Por isso é digno de estima e admiração que se devem traduzir na concessão do direito de cidadania. Tal conclusão impõe-se pela natureza quase divina dos poetas e porque Árquias já celebrou a glória do povo romano.
A natureza da poesia; se até os seres irracionais da natureza reagem agradavelmente ao canto, se os povos recebem com orgulho os poetas estrangeiros, vamos nós repudiar este que já é nosso?
Neque enim est hoc dissimulandum, quod obscurari non potest sed prae nobis ferendum (est): trahimur omnes studio laudis et optimus quisque maxime gloria ducitur.
(Fonte: http://amartinho.home.sapo.pt/escola/latim/latim12/autores/proarchia.htm)

DE SENECTUTE DIALOGUS
seu CATO MAIOR
O DIÁLOGO SOBRE A VELHICE ou, também chamado, CATÃO MAIOR foi escrito quando Cícero contava 62 anos, em 44 a.C. Pertence ao número das obras que escreveu nos últimos anos da sua vida. Forçado a abandonar a actividade política e afectado pela morte recente da filha Túlia, procurou no estudo da filosofia grega alimento para o espírito e consolação para as amarguras da vida e as tristezas da velhice.
OS INTERVENIENTES NO DIÁLOGO
Catão, a personagem protagonista, com 85 anos, dialoga com os jovens Cipião Emiliano, o futuro destruidor de cartago e Numância, e Gaio Lélio, chamado sapiens. O autor supõe que o diálogo é travado em 150 a. C. em casa de Catão, pouco antes da morte deste ( 149 a. C.).
Catão é uma figura algo idealizada: é modelo do velho romano, bom cidadão, amante da natureza e possuidor de uma sólida cultura que aumentou na velhice através da sua dedicação ao estudo da língua grega. Refuta todas as acusações e inconvenientes atribuídos à velhice e expõe todos os exemplos e considerações pelos quais pretende provar que sempre é possível à velhice ser feliz.
RESUMO
Cap. I - Dedicatória a Tito Pompónio Ático, amigo e conselheiro de Cícero. Foi o seu principal correspondente e o editor de grande parte das suas obras.
Apresentação dos interlocutores.
Cap. II - Início do diálogo: Cipião e Lélio admiram-se de que Catão enfrente a velhice com tanta facilidade. Catão responde que a velhice, longe de ser um fardo pesado, é consequência das leis da natureza. A verdadeira sabedoria consiste em obedecer a essas leis.
A pedido de Lélio, Catão começa o discurso sobre a velhice:
Primeira parte: Cap. III a V
Responde, em geral, às recriminações que são dirigidas contra a velhice:
Afastamento da vida activa. Debilitação do corpo. Privação do prazer. Proximidade da morte.
A causa dessas queixas está nos costumes e não na idade. Dá os exemplos de Platão, Sócrates, Énio, Quinto Fábio, Górgias.
Segunda parte: Cap. VI a VIII, IX a XI, XII a XVIII, XIX a XXIII
Contém a refutação, pormenorizada das quatro acusações precedentemente enunciadas.
1. A velhice não afasta necessariamente os homens da vida activa porque há uma actividade muito própria dos velhos: muitos continuam a servir a pátria com a sua prudência e autoridade; outros entregam-se ao estudo das letras e das ciências; alguns, ao cultivo das terras. Portanto a velhice não é necessariamente ociosa, mas activa.
2. Se as forças corporais diminuem, em parte devido aos vícios da juventude, permanacem e aumentam as do espírito. A lucidez de espírito mantém-se até à morte em homens de leis, oradores e tantos homens célebres. A força física não é necessária porque as funções que os velhos têm que desempenhar são diferentes. Além disso, também os jovens têm necessidade de conservar as forças do corpo e do espírito.
3. A velhice não priva os homens de todos os prazeres. Priva-os apenas dos maus, perigosos para as nações e para os indivíduos. Não os priva do prazer proveniente dos banquetes moderados, dos estudos, da agricultura, da autoridade, das honras.
4. A velhice não deve ser menos querida, por estar próxima da morte. Com efeito, esta tanto ameaça os novos como os velhos. A morte dos jovens é mais violenta e custosa que a dos velhos. À morte segue-se uma vida eternamente feliz; portanto, em vez de a temermos, devemos desejá-la.
Cap. XXIII (84) - Resumo e Conclusão: Catão deseja aos dois jovens uma vida longa para que possam certificar-se, com a experiência, da verdade das suas palavras: Haec habui, de senectute quae dicerem. Ad quam utinam perueniatis! ut ea, quae ex me audistis, re experti probare possitis.

DE AMICITIA
Desiludido com a política e deprimido pela morte da filha Túlia, com 62 anos ( um ano antes da sua morte) Cícero procura apoio na reflexão filosófica e compõe algumas obras: uma delas sobre a amizade.
Como acontece com outros diálogos de Cícero, designadamente com o Cato maior de senectute, e na sequência da tradição helénica, o título completo deste texto – Laelius de amicitia -, presta homenagem à memória de Lélio, que o autor já não conhecera, mas cuja amizade com Cipião Emiliano, o Segundo Africano, ficara particularmente famosa.
Lélio, que acabara de perder o seu amigo, (129 a. C.) a dialogar com os genros Quinto Múcio Cévola e Gaio Fânio sobre a grande amizade entre ele e Cipião e sobre a amizade em geral, um dos mais divinos dons que os deuses concederam aos homens.
Estrutura da obra
Dedicatória
Como seria natural, Cícero dedicou este texto a um grande amigo, Tito Pompónio Ático, seu companheiro desde os tempos de estudante, a quem Cícero recorria quando precisava de apoio e conselhos nos momentos difíceis. Pompónio era um epicurista convicto, rico, que se esquivou desde cedo às intrigas políticas de Roma e se retirou para Atenas.
Preâmbulo (5 primeiros parágrafos)
Enquadramento histórico do diálogo.
Introdução (parágrafos 6 a 15)
Fânio interroga Lélio sobre o modo como conseguiu suportar a perda recente do seu amigo Cipião. Lélio responde que a morte representa a transição para a imortalidade e a conquista da felicidade eterna.
Discurso de Lélio sobre a amizade (parágrafos 16 a 104)
Fânio e Cévola pedem a Lélio que disserte sobre o que pensa ele da amizade ( quid sentias), qual a sua natureza ( qualem existimes) e que normas propõe para ela ( quae praecepta des):
Primeira parte: Lélio e o seu conceito de amizade (parágrafos 17 a 24)
Conceito moral: a amizade nasce da virtude e só pode existir entre os homens bons (uiri boni), não no sentido idealizado e absoluto, mas na perspectiva da sociedade romana: dotados de virtudes como a fidelidade, a integridade, o sentido de justiça, da liberalidade e da constância.
Conceito natural: é o impulso da natureza que leva ao estabelecimento dos laços de amizade.
Conceito final, baseado nos dois anteriores: a amizade é a plena e afectiva concordância em matéria religiosa, moral e política, envolvendo toda a actividade humana.
Segunda parte: origem e natureza da amizade (parágrafos 25 a 32)
A amizade não nasce na nossa carência nem no desejo de obter um bem de que temos necessidade, mas nasce de um instinto natural e irresistível, numa inata inclinação de alma e num certo sensus amoris que nos leva a amar os nossos semelhantes, sobretudo se neles descobrimos o brilho de alguma virtude, pois é esta, afinal, que cativa e atrai o sentimento da amizade.
Terceira parte: normas para a conservação da amizade (parágrafos 33 a 100)
Não se deve pedir a um amigo, nem fazer por ele, nada que seja desonesto.
Trocar favores honestos, zelar pelo bem do amigo, aconselhá-lo com franqueza, adverti-lo com firmeza e afabilidade.
A relação com o amigo escolhido deve basear-se na fides e na confidência, longe de todo o tipo de simulação e de suspeita.
É necessário dizer a verdade com moderação e sem ultraje e escutá-la sem se ofender. É igualmente importante evitar a complacência e todo o tipo de adulação: segundo Catão, por vezes, prestam-nos melhor serviço os inimigos ásperos do que certos amigos de modos demasiado doces.
Conclusão (parágrafos 100 a 104)
Foram as grandes virtudes de Cipião que fizeram despertar em Lélio a profunda amizade que lhe dedicou e que há-de durar mesmo para além da morte.
(Fonte: http://amartinho.home.sapo.pt/escola/latim/latim12/autores/deamicitia.htm)





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LUCRÉCIO
(cerca de 98-55 a.C.)
O poeta latino ou romano Titus Lucretius Carus, mais conhecido como Lucrécio, tornou-se famoso por seu poema filosófico Da Natureza das coisas, no qual glorifica Epicuro e revela sua concepção do Mundo. Composto em seis cânticos, esse poema começa invocando Vênus, princípio de toda a vida; em seguida, expõe as leis de Demócrito e de Epicuro a respeito do Universo; termina mostrando as etapas que o homem e a civilização devem percorrer antes de alcançar a sabedoria, fim supremo da existência, segundo ele. Com grande qualidade poética, Lucrécio descreve todos os fenômenos da natureza, dos mais belos aos mais horrorosos, explicando-os por causas naturais, à maneira do atomismo probabilista e mecanicista de Epicuro, pois a filosofia precisa libertar os homens do terror, das superstições e do medo dos deuses. Contra todos os medos, o filósofo deve buscar o sentido do belo e a tranqüilidade da alma. Da vida de Lucrécio se conhece pouquíssimo. De S. Jerônimo aprendemos que Lucrécio enlouqueceu por ter bebido um filtro amoroso, e que compôs o seu poema nos intervalos de lucidez que a loucura lhe concedia. Embora a notícia seja por muitos considerada pura fábula, não são poucos os estudiosos que aí vêem pelo menos uma verdade parcial, não só porque tais filtros eram efetivamente usados em Roma, e não só por uma certa desordem do poema, mas também por certo furor poético que em não poucas passagens cria uma atmosfera exaltada, e também por uma ânsia que invade todos os Cânticos. Lucrécio foi, nos tempos modernos, muito mais estudado e amado do que o próprio Epicuro. Estudiosos concordam em considerar a obra de Lucrécio, o De rerum natura, como o maior poema filosófico de todos os tempos. Lucrécio repete conceitos, em seus versos, sustentados exatamente por Epicuro, numa polêmica dirigida a refutar o diálogo aristotélico, intitulado Sobre a Filosofia. Segundo estudiosos, idêntica é a marca espiritual que caracteriza o pensamento do fundador do Jardim, Epicuro, e a do poeta romano que o cantou. A mesma angústia que invade todo poema lucreciano está na base do filosofar de Epicuro: são justamente os obscuros males da alma, dos quais fala Lucrécio, que Epicuro queria afugentar com a sua palavra e recompor em superior ataraxia (termo grego que designa o estado da alma que nada consegue perturbar. Ele é obtido, segundo o estoicismo, pela eliminação das paixões). Certamente Epicuro deve ter experimentado dentro de si todas as angústias que quis curar: o medo dos deuses (ele, tão convencido da existência de seres divinos, a ponto de admiti-los sem quaisquer razões físicas, éticas ou escatológicas), o medo dos males (ele, tão sofredor do físico e tão sensível no espírito) e o medo da morte (ele, que compreendeu tão bem que ela é sentida como o mais horrendo dos males para os homens). E, como vimos, a ataraxia, a felicidade epicurista, não é inércia, não é imobilidade, tampouco imediato dom da natureza: ela é, ao contrário, conquista suada e sofrida, segundo Lucrécio. A ataraxia epicurista é, a seu modo, triunfo da razão do homem sobre o irracional que o circunda. Lucrécio aderiu a uma concepção antiteológica do universo, evolucionista e antiteleológica. Ficou preso a essa perspectiva e a expôs muito mais firme e eloqüentemente do que qualquer outro pensador antigo, contam os estudiosos. Ele aplicou essa concepção do mundo à evolução das plantas, dos animais e do homem, e propôs uma teoria de evolução biológica e social. A novidade que Lucrécio traz aos princípios epicuristas deve, pois, ser buscada na sua poesia. Escreve Boyancé : "Para conquistar o homem, até para libertá-lo de suas paixões, é preciso antes de tudo comovê-lo. Para libertar os homens, Lucrécio compreendeu que não se tratava de obter, nos momentos de fria reflexão, a sua adesão a algumas verdades de ordem intelectual, mas era preciso tornar essas verdades, como diria Pascal, compreensíveis ao coração". Lucrécio foi o grande enriquecedor dos conceitos epicuristas, dando-lhes mais ênfase e paixão.
Fonte: http://www.pucsp.br/~filopuc/verbete/lucrecio.htm

Lucrécio, Titus Lucretius Carus (96 - 53 a. C.)
Quase nada se sabe sobre a vida de Lucrécio. As datas de seu nascimento e morte, a lenda de sua loucura e de seu suicídio foram extraídas de algumas linhas da "Crônica de são Jerônimo". Os seus contemporâneos nada falaram a seu respeito, com exceção de Cícero, que lhe consagrou uma frase curta em toda a sua correspondência.
O que há de concreto sobre Lucrécio é que ele foi o autor do poema "De Natura Rerum" (Sobre a natureza das coisas), um longo poema filosófico que tentava explicar o universo em termos científicos com ênfase para a superstição e o medo do desconhecido das pessoas, uma exposição das doutrinas de Epicuro.

Desse longo poema de 6 cantos extraiu-se as seguintes informações sobre Lucrécio:
• temperamento ardente e apaixonado;
• gênio sombrio e pessimista;
• grande cultura científica e filosófica;
• materialista;
• anti-religioso;
• a sua moral é a do prazer, ou seja, gozar com moderação para gozar por mais tempo, evitando a ambição ou qualquer outro sentimento que possa perturbar a serenidade da alma.
Sobre o poema "De Natura Rerum" pode-se dizer o seguinte:
• poema longo, dividido em seis cantos;
• filosoficamente, pode se considerado uma exposição da doutrina epicurista (1. Doutrina de Epicuro, filósofo grego (341-270 a. C.), e de seus seguidores, caracterizada, na física, pelo atomismo, e na moral, pela identificação do bem soberano com o prazer, o qual, concretamente, há de ser encontrado na prática da virtude e na cultura do espírito. 2. Sensualidade, luxúria 3. Saúde do corpo e sossego do espírito.
• nos dois primeiros cantos instrui sobre a natureza das coisas;
• nos cantos três e quatro, trata da natureza do Homem;
• nos dois últimos cantos, fala do mundo exterior e dos fenômenos naturais;
• caráter didático;
• uso de digressões;
• Invocação aos deuses. Exemplo Vênus.
Fonte: http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundocultural.com.br/literatura1/latina/lucrecio.htm

POETAS LATINOS: LUCRÉCIO
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Titus Lucretius Carus (ou simplesmente Lucrécio), poeta e filósofo latino, provavelmente, nasceu em Roma em 95 a.C., onde foi educado e morreu no ano de 53 a.C. As datas exatas de seu nascimento e morte não são conhecidas, mas, geralmente são situadas entre esses anos.
Segundo São Jerônimo, o poeta se suicidou durante um acesso de loucura, motivado por uma droga que uma mulher lhe ministrara, como uma espécie de filtro amoroso. O filtro é conhecido também como “amavio”; era um meio de sedução através de drogas e feitiços. Sua mais famosa obra foi escrita nos intervalos de lucidez que a loucura lhe concedia. Esse fato é causa de muita polêmica, mas para muitos estudiosos, há alguns aspectos coincidentes: os filtros eram realmente usados em Roma; percebe-se certa desordem no poema; furor poético com passagens de atmosfera exaltada.
Lucrécio escreveu o poema De Rerum Natura (Sobre A Natureza Das Coisas), que é um tratado de filosofia epicurista revestido de forma altamente poética. Para Lucrécio, o epicurismo era a chave que poderia desvendar os segredos do universo e garantir a felicidade humana. Tão entusiasmado ficou que se propôs a tarefa de libertar os romanos do domínio religioso através do conhecimento da filosofia epicurista. Além de Epicuro, Empédocles é seu grande orientador espiritual, e a este deve Lucrécio muito de suas concepções. Quanto à linguagem o seu grande mestre foi Ênio.
O Poema
De Rerum Natura é composto em seis cânticos. O primeiro é a Invocação de Venus; princípio de toda a vida:
Mimosa Venus, mãe de eneide Roma,
Prazer dos homens e numes! Tu alentas
Os astros, que dos céus no âmbito giram,
as férteis terras, o naval oceano.
Por ti, todo o animal recebe a vida!
Logo ao nascer, na luz do sol atenta...
Em seguida, expõe as leis de Demócrito e de Epicuro a respeito do Universo e termina mostrando, segundo seu conceito, quais as etapas que o homem e a civilização devem percorrer antes de alcançar a sabedoria, fim supremo da existência. Lucrécio descreve todos os fenômenos da natureza explicando-os por causas naturais.
Além de fonte preciosa para o conhecimento do epicurismo – comenta-se que, modernamente, é muito mais estudado do que o próprio Epicuro - o poema de Lucrécio tem grande importância literária. Seus versos consagram o autor como um dos maiores poetas latino e sua obra como o maior poema filosófico de todos os tempos.
Alguns Pensamentos de Lucrécio
A ninguém foi dada a posse da vida, a todos foi dado o usufruto.
Na verdade, aqueles suplícios que dizem existir
No profundo Inferno, estão todos aqui, nas nossas vidas.
Assim como as crianças, que no escuro tremem de medo e temem
[tudo,
Nós, na claridade, às vezes temos receio de certas coisas
Que não são mais terríveis do que aquelas que as crianças temem
No escuro e pensam que acontecerão a elas.
É preciso afugentar com ímpeto esse medo do Inferno
Que perturba profundamente a vida do homem,
Estendendo sobre tudo a lúgubre sombra de morte
E não deixando existir nenhuma alegria serena e inteira.
Para quem vive segundo os verdadeiros princípios,
A grande riqueza seria viver com pouco,
Serenamente: o que é pouco nunca é escasso.
Nada pode nascer
Do nada.
____________________
Bibliografia:
Antologia da Poesia Universal, seleção de Ari de Mesquita, Tecnoprint S.A., 1988.
Agradeço a leitura e, antecipadamente, qualquer comentário.
Se você encontrar erros (inclusive de português), por favor, me informe.
Ricardo Sérgio Publicado no Recanto das Letras em 14/05/2008
Fonte: http://recantodasletras.uol.com.br/biografias/989768




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CATULO
LÉSBIA: A INSPIRAÇÃO ROMÂNTICA DE CATULO
Ivone da Silva Rebello
CATULO: SUA VIDA, SUA OBRA
Caio Valério Catulo nasceu em Verona (Veronam ueniat... - venha a Verona; c. 35,3), uma cidadezinha da Gália Cisalpina e, provavelmente, morreu em Roma. A cronologia de sua vida 84 - 54 é a mais provável. Devia pertencer a uma rica família da nobreza provincial, talvez oriunda da gens Valeria romana, pois seu pai possuía uma uilla na península de Sírmio (cf. c. 31), e tinha relações de amizade e de hospitalidade com Júlio César. O próprio poeta, ao mudar-se para Roma, residia numa uilla situada entre Tívoli e Sabina (cf. c. 68, 34 - 35: hoc fit, quod Romae uiuimus; illa domus, /illa mihi sedes, illic mea carpitur aetas; - em Roma vivo: aí é minha casa, aí , minha morada, aí desfruto a vida e cf. c. 44: O funde noster seu Sabine seu Tiburs, - O sítio meu , Sabino ou Tiburtino). Com relação à sua cidade natal, o poeta fala dela com certa tristeza:
Quare, quod scribis Veronae turpe Catullo
esse quod hic quisquis de meliore nota
frigida deserto tepefactat membra cubili,
id, mi Alli, non est turpe, magis miserum est.
(c. 68, 27 - 30)
quando então dizes, Álio, "é tolice, Catulo,
ficares em Verona, que um Romano
já esquenta o frio dos pés no leito que deixaste",
isto não é tolice, mas tristeza.
Em Roma, Catulo se ligou a um círculo de poetas de ideais estéticos comuns. Cícero, no entanto, não se simpatizava com esta escola literária e a chamava de poetae noui, dando a esta expressão um certo matiz pejorativo. Catulo, respondendo a este insulto, escreve os poemas 44 e 49, agradecendo a Cícero o fato de ter lhe deixado o lugar livre para amar Lésbia, suposta amante do orador.
Disertissime Romuli nepotum,
quot sunt quotque fuere, Marce Tulli,
quotque post aliis erunt in annis,
gratias tibi maximas Catullus
agit pessimus omnium poeta,
tanto pessimus omnium poeta
quanto tu optimus omnium patronus.
(49, 1 - 7)
Ó tu mais loquaz dos filhos de Rômulo,
de quantos são e quantos foram, Cícero,
e de quantos hão de ser no futuro,
um muito obrigado te diz Catulo-
o pior dentre todos os poetas-
tanto pior de todos os poetas
quanto tu o melhor dos defensores.
O poeta, em sua obra, mostra a urbanidade da época ciceroniana em franca transformação no plano moral, político e artístico e desejava que os seus poemas durassem por mais de um século (c. 1, 10: plus uno maneat peremne saeclo - que viva, ó deusa virgem, mais de um século).
Os momentos políticos apresentados no Liber são a marca do cruzamento entre a cidade ideal, desejada pelo poeta, e a outra cidade do poder real, da riqueza, da guerra, das conquistas e conflitos.
Para Catulo, a verdadeira cidade devia assentar-se na sodalitas dos amigos, com suas leis, amizades e inimizades.
O poeta, no entanto, coloca diante de si uma mulher pública, envolvida com a política da época, chamada por ele de Lésbia, conforme os cânones da poesia alexandrina.
Lésbia será o centro do universo poético preconizado pelo poeta, o qual também pertenciam os seus amigos.
A paixão imedida de Catulo levou-o a uma vida agitada, dissoluta, envolvida por tantas paixões e contrastes, terminando por arruinar-lhe a saúde e lhe trazendo a morte quando contava com apenas 30 anos.
QUEM FOI LÉSBIA?
Lésbia (Clódia) foi mulher de Quintus Metellus Celer, filha de Appius Claudius Pulcher. Lésbia era um falsum nomen, segundo Ovídio.
Sic sua lasciuo cantata est saepe Catullo
Femina cui falsum Lesbia nomen erat.
(Tristes II, 427-428)
Assim foi freqüentemente celebrada em versos pelo lascivo Catulo
A mulher cujo pseudônimo era Lésbia.
Não foi difícil tirar tal conclusão, tendo em vista a admiração do poeta pela poetisa de Lesbos - Safo. Além disso, Apuleio (séc. I d.C.) diz que Lésbia é Clódia, pois os poetas elegíacos escolhiam um pseudônimo que tivesse o número de letras igual ao do nome verdadeiro, conforme os cânones da poesia alexandrina (Lesbia/Clodia).
Eodem igitur opera accusent C.Catullum
Quod Lesbiam pro Clodia nominarit.
(Apologia 10)
A Lésbia dos poemas catulianos, pesava-lhe a suspeita de ter causado a morte de seu marido e que, após se tornar viúva, se amantizara com Caelus Rufus (cf. c. 77), pondo de lado Catulo, amante que tivera durante a vida com o marido.
Rufe, mihi frustra ac nequiquam credite amice,
(v.1)
Rufo!, que à toa e em vão pensei ser meu amigo
O romance estabelecido entre o poeta e Clódia é a fonte de inspiração de toda a arte catuliana.
Segundo estudos críticos, talvez a relação amorosa do poeta tenha começado por volta de 61-60, em Verona, época em que o marido de Clódia era governador da Gália Cisalpina.
O primeiro encontro do poeta com essa patrícia, muito mais velha do que ele, deu-se no banquete de Lucullus, personagem do poema 4, no ano 63.
O poema 68 fala-nos de alguns encontros furtivos proporcionados na casa de um amigo comum, situação freqüente nas classes superiores.
isque domum nobis isque dedit dominam,
atque ubi communes exerceremus amores.
(v.68-69)
me deu morada e deu-me à sua dona,
e lá comuns nós praticávamos amores.
Ainda, neste mesmo poema (v.135-136), Catulo constata a sua impossibilidade de ter uma Lésbia virtuosa (Quae tamenetsi uno non est contenta Catullo, / rara uerecundae furta feremus erae - Embora ela não se contente só com Catulo,/ as raras infidelidades de uma senhora discreta suportaremos) e tenta suportar a sua dor com a própria autoestima (cf. c. 76, 25-26: ipse ualere opto est taetrum hunc deponere morbum/ O dei, reddite mi hoc pro pietate mea - Quero estar bem, deixar esta dor ruim. Deuses!/ Isto me dai por minha piedade).
Como todos os poetas líricos, Catulo identifica-se perfeitamente com a tríade amor, mulher e poesia. A formosura de sua amada foi a todo momento celebrada, a ponto de comparar Cibele e Quíntia com Lésbia, pois o encanto físico foi determinante no seu amor (cf. c.51).
...et enum uenuste
magno Caecilio incohata mater.
(c.35, 17-18)
...bela está
Cibele em versos de Cecílio, grande
Quintia formosa est multis, mihi candida, longa,
recta est. Haec ego sic singula confiteor
(c.86, 1-2)
Para muitos Quíntia é bela, para mim é
clara, esguia, bem feita; isto eu aceito.
No entanto, a beleza de tais mulheres não são comparáveis à beleza de sua Lésbia.
Lesbia formosa est, quae cum pulcerrima tota est,
tum omnibus una omnis subripuit ueneres
(c.86, 5-6)
Lésbia sim é linda: toda belíssima,
só ela a todas roubou toda a graça.
O AMOR EM ROMA
Em Roma, os antigos romanos consideravam o amor como uma loucura ou um delírio passageiro. A paixão amorosa era uma doença. Isto porque a paixão alienava a vontade própria e tornava o ser apaixonado dependente de outra pessoa. Sob o domínio da paixão, o homem perde seu poder, escraviza-se e aliena-se.
Confiava-se à mulher (matrona) a responsabilidade da fecundidade, pois a mesma encarnava os ideais de segurança, estabilidade, permanência e perpetuação da raça, além de gozar na domus uma veneração tal qual à dedicada publicamente a Vênus.
As Matronalia, celebração das mulheres casadas, e a Bona Dea remetem-nos aos ritos de fecundidade da Roma antiga. Estamos diante de uma sociedade viril, em que o caráter religioso da fecundidade está baseado na união mulher e homem. O amor conjugal é visto essencialmente numa perspectiva do "amor fecundo", ou seja, o homem ao desposar uma mulher vai naturalmente torná-la mãe. Daí haver uma preocupação, por parte do homem romano, de proteger as suas esposas das paixões ou outras forças maléficas que pudessem comprometer a estabilidade amorosa.
O amor, como sentimento fundado no desejo carnal, foi uma situação social menosprezada pelos costumes romanos.
A relação conjugal estava baseada na fides do matrimonium, ou seja, na lealdade da mulher ao marido, já que este podia lançar mão das cortesãs, instrumentos do prazer, cuja feminilidade, em princípio, fora profanada.
A partir dos meados do século II a.C., com a influência do helenismo e a evolução dos costumes sociais romanos, vinculados ao enfraquecimento da patria potestas, a relação afetiva entre homem e mulher foi se libertando dos tabus e imposições tradicionais, levando a mulher a uma emancipação progressiva na vida social.
No entanto, a conquista da dignidade da mulher conduziu os romanos ao reconhecimento consciente do verdadeiro amor conjugal e ao depuramento do verdadeiro sentido do amor como fonte de vida espiritual, graças à ascese cristã.
Assim, no tempo de Adriano (117-138 d.C.), as núpcias não eram mais realizadas pelo constrangimento, ou seja, com a intenção de aproximar as gens, ou como nos finais da república, por interesses políticos ou econômicos, mas sim, com o consentimento dos noivos. Nesse contexto, o amor paternal ganha novas dimensões, pois até Cícero já apontara a família como a comunidade natural mais apropriada para proporcionar a benevolência recíproca e a caridade (cf. De Officis I, 17, 54).
A partir dos finais da República, a proliferação do divórcio antecipa a problemática do casamento e do amor conjugal.
Dentro desse contexto social, Catulo é o verdadeiro protótipo do jovem aristocrata provinciano, que chega à urbe e se enamora por uma mulher pertencente a outrem. E, o nascimento desta paixão faz com que o poeta se torne um "escravo" da amante que irá nortear e dar vida a toda sua obra.
Catulo foi um dos poetas latinos que mais cultivou a amizade, ao lado do amor, sendo estes temas de inspiração artística, desenvolvidos conforme a tradição grega: amizades vivas, porém acidentadas por rivalidades e traições.
Dos 116 poemas do Liber, 68 referem-se a amizades e inimizades de personagens do relacionamento do poeta. Um dos seus confidentes foi Cornifício, ao qual Catulo lhe expressa a dor que perpassa a sua alma devido às infidelidades de sua amada Lésbia e chega a lhe pedir uma palavra de consolo. Já Alfeno Varo é um dos seus falsos amigos, pois lhe rouba a amada.
Malest, Cornifici, tuo Catullo,
malest, me hercule, est laboriose,
et magis magis in dies et horas,
quem tu, quod minimum facillimumque est,
qua solatus est allocutione?
Irascor tibi. Sic meos amores?
Paulum quid lubet allocutionis,
maestius lacrimis Somonideis.
(c.38)
Vai mal, Cornifício, o teu Catulo,
vai mal e - por Hércules -, padece demais, muito
mais, a cada dia, a cada hora.
E tu - se era nuga, se era nada -
que consolo deste, que palavras?
Sinto ódio. Assim, és meus amores?
Só poucas palavras, certas, mais
tristes que o lamento de Simônides.
Varus me meus ad suos amores
uisum duxerat e foro otiosum.
(c.10, 1-2)
Varo, para que eu visse seus amores,
de meu ócio no fórum me levou.
As inimizades de Catulo tiveram motivações diversas: quer por ter sido vencido na competição amorosa, quer por rivalidade poética, quer pelo menosprezo com que os seus contemporâneos olharam a sua produção literária.
Palavras como amicus, amicitia e sodalis vão ocorrer freqüentemente nos versos de Catulo. Em seus poemas:
sente saudades e propõe encontros ao poeta Cecílio;
Poetae tenero, meo sodali
uelim Caecilio, papyre, dicas
Veronam ueniat, Noui relinquens
Comi moenia Lariumque litus;
nam quasdam uolo cogitationes
amici occipiat sui meique.
(c.35, 1-6)
A Cecílio - poeta de ternuras,
meu companheiro - peço, ó papel, digas
venha a Verona, atrás deixando os muros
da Nova Como e o litoral do Lário,
pois algumas idéias de um amigo
meu e dele também desejo que ouça.
.reconhece e agradece os serviços prestados por Mânlio e Álio;
Non possum reticere, deae, qua me Allius in re
uuerit aut quantis iuuerit officius,
(c.68, 41-42)
Não posso calar, deusas, como Álio ajudou-me,
ou com quantos favores me ajudou.
diz que é perigoso mostrar-se humano.
Desine de quoquam quicquam bene uelle mereri
aut aliquem fieri posse putare puim.
Omnia sunt ingrata, nihil fecisse benigne
prodest, immo etiam taedet obestque magis,
ut mihi, quem nemo grauuius nec acerbius urget
quam modo qui me unum atque unicum amicum habuit.
(c.73)
Desiste de esperar de alguém alguma coisa
ou crer que alguém será reconhecido.
É tudo ingratidão, em nada é bom ter feito o
bem, não!, dá tédio, mais: faz mal qual fez
comigo, a quem ninguém mais grave e fundo fere
que quem só eu de amigo teve o único.
Segundo o ideal romano, deslealdade e traição são os terríveis estigmas da amizade e do amor.
O CONCEITO DE AMOR EM CATULO
Catulo não foi o único poeta a transgredir o código moral do casamento. A sua afeição e o seu sentimento amoroso por Lésbia começaram pelo olhar (cf. c.51), pois a imagem da mulher amada constitui-se na força avassaladora que o toca profundamente e arrebata os seus sentidos.
...nam simul te,
Lesbia, aspexi, nihil est super mi
(c.51, 6-7)
...pois uma vez
que te vi, Lésbia, nada em mim sobrou
No poema 5, temos a evolução do pensamento do poeta no que diz respeito a sua vivência no amor, àquela equivalente à do amor livre. Notamos, porém, que a sua visão de mundo era completamente diferente da amada. Daí seus constantes desentendimentos com Lésbia.
Lésbia prometeu a Catulo um amorem iucundum perpetuumque - amor delicioso e perpétuo. No entanto, o poeta não se contenta e suplica aos deuses para que as palavras de Lésbia sejam sinceras ao ponto de elevar este amor a um aeternum foedus amicitiae - um pacto recíproco de afeição.
Viuamos, mea Lesbia, atque amemus,
rumoresque senum seueriorum
omnes unius aestimamus assis.
(c.5, 1-3)
Vamos viver, minha Lésbia, e amar,
e aos rumores dos velhos mais severos,
a todos, voz nem vez vamos dar.
Iocundum, mea uita, mihi proponis amorem
hunc nostrum inter nos perpetuumque fore.
Dei magni, facite ut uere promittere possit,
atque id sincere dicat et ex animo,
ut liceat nobis tota perducere uita
aeternum hoc sanctae foedus amicitiae.
(c.109, 1-6)
Minha vida!, me dizes que este nosso amor
será feliz aos dois, será eterno.
Deuses grandes, fazei que prometa a verdade,
que sincera e de coração o diga
e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
este pacto viver de amor sagrado.
Em alguns de seus poemas (3, 5, 7, 36, 43, 83, 86, 92 e 107), Catulo deixa transparecer a sua felicidade ao lado de Lésbia. No entanto, com o passar do tempo, o poeta percebe que o sentido do amor para sua amada é diferente do seu.
No poema 87, o poeta mostra que o seu amor é verdadeiro, permanente e leal, afirmando que nenhuma mulher foi tão sinceramente amada como a sua Lésbia.
Nulla potest mulier tantum se dicere amatam
uere, quantum a me Lesbia amata mea es.
Nulla fides nullo fuit umquam foedere tanta,
quanta in amore tuo ex parte reperta mea est.
(v.1-4)
Mulher alguma pode se dizer bastante
amada quanto amada é por mim Lésbia.
Em pacto algum jamais houve tanta confiança
quanto a que em mim se viu em teu amor.
No entanto, o conflito emocional e poético torna-se mais acentuado quando as infidelidades de Lésbia são ainda mais notórias.
Nota-se, através dos poemas 72 e 109, que os dois amantes caminham em sentidos opostos do amor, a ponto de Lésbia afirmar que Catulo só ama a si mesmo. Lésbia, porém, deixa transparecer o seu amor material, o mais convencional da esfera física. E o poeta afirma que:
Dilexi tum te non tantum ut uulgus amicam,
sed pater ut gnatos diligit et generos.
(c.72, 3-4)
Então te quis, não como o povo quer amantes
Mas como um pai os filhos quer e os genros.
Ut liceat nobis tota perducere uita
aeternum hoco sanctae foedus amicitiae.
(c.109, 5-6)
e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
este pacto viver de amor sagrado.
Tais poemas constituem um dos exemplos mais claros do amor sem intenção sensual.
Ainda no poema 72 (v.7-8), o poeta faz uma análise dos seus próprios sentimentos - Qui potis est? - Como é possível? Há um sobressalto emocional. E, no poema 76, o poeta afirma que
Difficile est longum subito deponere amorem
Difficile est, uerum hoc aua lubet efficias.
(v.13-14)
Difícil é deixar súbito um longo amor.
É difícil, mas tenta como podes.
Já no poema 85, o amor é expresso no paradoxo odi e amo. E, no segundo verso, com a palavra excrucior ( palavra que significa "submeter ao castigo da cruz", pena reservada apenas para os escravos e, por isso, considerada infame), o poeta apresenta um desespero, um tormento acompanhado de sentimentos de culpa por ter alimentado ao longo dos anos um amor vão.
Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris.
Nescio, sed fieri sentio et excrucior.
(v.1-2)
Odeio e amo. Talvez queiras saber "como?"
Não sei. Só sei que sinto e crucifico-me.
Para Catulo, a felicidade do amor se realiza quando os seres "amam e são amados com igual ardor".
Mutuis animis amant, amantur.
(c.45, 20)
com mútuas almas amam-se um ao outro.
Segundo Catulo, através do matrimonium, o homem e a mulher devem ser o exemplo de fraternidade universal. E, em seu poema 62, exorta a que se valorize o casamento, pois o casamento feliz, fundado no amor, é exigente.
Et tu nei pugna cum tali coniuge, uirgo.
Non aequom est pugnare, pater cui tradidit ipse,
(c.62, 59-60)
E com marido assim não lutes, noiva, é injusto
lutares contra aquele a quem te deu teu pai,
Lésbia nega-se ao casamento porque renuncia ao verdadeiro amor conjugal. E isto leva Catulo a uma situação de tortura em relação ao comportamento da amada que foge do aperfeiçoamento amoroso.
Miser Catulle, desinas ineptire,
et quod uides perisse perditum ducas.
............................................................
Nunc iam illa non uolt; tu quoque, inpotens, noli,
nec quae fugit sectare, nec miser uiue,
sed obstinata mente perfer, obdura.
Vale, puella. Iam Catullus obdurat,
...........................................................
Scelesta, uae te; quae tibi manet uita!
...........................................................
At tu, Catulle, destinatus obdura.
(8, 1-2; 9-12; 15; 19)
Infeliz Catulo, deixa de loucura,
e o que pereceu considera perdido.
.......................................................
Agora ela não quer: tu, louco, não queiras
nem busques quem foge nem vivas aflito,
porém duramente suporta, resiste.
Vai, menina, adeus, Catulo já resiste,
..........................................................
Ai de ti, maldita, que vida te resta?
..........................................................
Mas tu, Catulo, resoluto, resiste.
Finalmente, no poema 68, Catulo lamenta a sua infelicidade pela perda de dois seres amados: Lésbia e o irmão.
Multa satis lusi; non est dea nescia nostri,
quae dulcem curis miscet amaritiem;
............................................................
... O misero frater adempte mihi,
tu mea tu moriens fregisti commoda, frater,
tecum una tota est nostra sepulta domus,
omnia tecum una perierunt gaudia nostra,
quae tuus in uita dulcis alebat amor.
(c.68, 17-18; 20-24)
muito me diverti com versos, nem me esquece
a deusa que ata doce e amaro a amor:
................................................................
(eu, mísero), ah irmão!, de mim roubado,
tu, irmão, ao morrer, partiste minha calma,
contigo nossa casa está enterrada,
contigo foi-se embora, vã, nossa alegria
que em vida teu gentil amor nutria.
O Liber catuliano apresenta o percurso moral de Lésbia, denunciando a degenerescência de um mundo de valores consagrados pela tradição clássica. Isto porque Clódia, viúva de Metelo, poderia tornar-se a casar. Mas a decadência da nobilis Claudia/Clodia é tanto política quanto moral e a relação de Catulo com Lésbia se enquadra também no clima de depravação moral que pairava na urbe romana.
A poesia de Catulo é uma manifestação da Roma ancestral que se opõe ao homem do seu tempo, imerso na libertinagem, na cobiça e no crime.
Lésbia, mulher amada pelo poeta e musa dos seus poemas, esbarra com o ideal da relação amorosa desejada por Catulo e, ainda, com aquela que prega o amor matrimonialis.
Muitos acontecimentos como: o amor ingrato, a morte do irmão, o abandono dos amigos, levaram o poeta a uma progressiva reflexão.
Omnia sunt ingrata, nihil fecisse benigne
prodest, immo etiam taedet obestque magis,
(c.73, 3-4)
É tudo ingratidão, em nada é bom ter feito o
bem, não!, dá tédio, mais: faz mal qual fez
comigo,...
A Lésbia da poesia catuliana é a personificação da Clódia Metelo, protótipo as mulheres dos fins da República, desejosa de prazer, sendo mais importante a busca do amor carnal que conduz à depravação dos costumes do que o dever prescrito pela moral institucional do casamento.
Frontem tabernae sopionibus scribam.
Puella nam mei, quae meo sinu fugit,
amata tantum quantum amabitur nulla,
pro qua mihi sunt magna bella pugnata,
consedit istic. Hanc boni beatique
omnes amatis, et quidem, quod indignum est,
(c.37, 10-15)
nessa taberna vou grafar grafitos
pois a menina, que a meu peito foge,
amada quanto ninguém mais será
por quem tão grandes guerras já pugnei,
senta-se aí. E ela, ledos, lestos,
todos amais, é certo, e o que é indigno,
No entanto, o poeta tenta reabilitar a dignidade do matrimonium e da família, comprometidos pela perversão moral e pelo menosprezo à fides e à pietas.
Catulo, portanto, é um aprendiz do amor, que vai refletindo sobre a sua condição de amante traído, de sua relação frustrada (cf. c.8 e 58) e tenta superar tal situação, clamando aos deuses para aliviarem a sua alma torturada.
O dei, si uestrum est misereri, aut si quibus unquam
extremam iam ipsa in morte tulistis opem,
me miserum aspicite et, si uitam puriter egi,
eripite hanc pestem perniciemque mihi,
..........................................................................
ipse ualere opto et taetrum hunc deponere morbum.
O dei, reddite mi hoc pro pietate mea.
(c.76, 17-20; 25-26)
Ó deuses, se é de vós ter pena ou se já a alguém
último auxílio destes na sua morte,
olhai-me triste e se uma vida levei pura,
arrancai-me esta peste e perdição
...........................................................
Quero estar bem, deixar esta dor ruim. Deuses!
Isto me daí por minha piedade.
Podemos considerar os poemas 51 e 52 como uma espécie de epitáfio à vida sentimental do poeta. A lição que o poeta nos passa é que o otium lhe foi prejudicial, pois ele deixou a carreira política para dedicar-se ao amor e, agora, está longe do amor de Lésbia e vê Nônio sentado na cadeira curul e Vatínio perjurado pelo consulado.
Otium, Catulle, tibi molestum est.
(c.51, 13)
O ócio, Catulo, te faz tanto mal.
Quid est, Catulle? Quid moraris emori?
Sella in curulei struma Nonius sedet,
per consulatum perierat Vatinius;
qui est, Catulle? Quid moraris emori?
(c.52, 1-4)
Eh, Catulo, por que demoras em morrer?
Nônio, escrófula, ocupa o assento curul,
Vatínio jura, por um falso consulado:
por que Catulo tu demoras em morrer?
Finalmente, perdido tudo, resta-lhe esperar apenas pela morte enquanto Lésbia se diverte com os seus amantes (cf. c.11).
Cum suis uiuat ualeatque moechis,
quos simul complexa tenet trecentos
nullum amans uere, sed identidem omnium
ilia rumpens;
nec meum respectet, ut ante, amorem,
qui illius culpa cecidit uelut prati
ultimi flos, praetereunte postquam
tactus aratro est.
(v.17-24)
Vá viver e gozar com seus amantes,
que, juntos, uns trezentos ela agarra
nenhum de fato amando mas os membros
rompendo em todos
e não se volte mais ao meu amor
que caiu por sua culpa como a flor
do último prado, em que, passando, o arado
então tocou.
CONCLUSÃO
Esta análise nos faz concluir que o Liber de Catulo se organiza em torno da temática central do amor.
Nos poemas amorosos de Catulo, podemos distinguir dois ciclos: um ciclo em que o poeta fala dos felizes momentos amorosos, e um outro relativo à cisão, reflexões do poeta e rompimento final, após o seu desencanto pela mulher amada.
Catulo foi o poeta latino que, com mais sinceridade e verdade, expressou o sentimento amoroso, através de uma linguagem extremamente metafórica. Suas composições receberam grande influência de Arquíloco e Safo.
Lésbia foi a inspiração dos poemas catulianos. Famosa por seus deleites amorosos, Lésbia, pseudônimo de Clódia, mulher do cônsul Metelus Celer, do ano 60, despertou no poeta uma paixão ardente que o fez sofrer muito, levando-o até mesmo a travar uma guerra sentimental. E, o próprio poeta, em seus poemas afirma que Difficile est longum subito deponere amore (c.76,13) - é difícil abandonar subitamente um longo amor e ...quam Catullus uanm/ plus quam se atque suos amauit omnes (c.58, 2-3) - aquela, única que Catulo amou mais que a si e todos os seus. Além de declarar a sua paixão pela musa sedutora, o poeta também ataca os amantes da amada e a vida dissoluta que caíra.
Catulo quis praticamente assentar a sua relação com Lésbia, no entanto, a pietas, a fides, o hospitis officium, o sanctum foedus e o bene uelle foram todos traídos.
Da leitura do Liber catuliano, podemos inferir que o poeta aspirava o amor do matrimonium, um amor que considera o outro um complemento positivo do seu próprio ser. No entanto, tanto Catulo quanto Lésbia não se descobrem verdadeiramente: amam e são amados de maneira diferente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1985.
CARCOPINO, Jerôme. Roma no apogeu do Império. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. (A vida cotidiana)
CATULO. O cancioneiro de Lésbia. Tradução de Paulo Sérgio de Vasconcellos. São Paulo: Hucitec, 1991.
CATULO. O Livro de Catulo. Tradução comentada dos poemas de Catulo por João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. (Texto e arte; 13)
CARVALHO, Luiz Carlos S.M. de. O lirismo em Roma: de Catulo a Ovídio. In: Poesia sempre. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.83, p.21-32, outubro/dezembro 1985.
GRIMAL, Pierre. A civilização romana. Lisboa: Edições 70, 1988.
PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Tradução de Manuel Losa, S.J. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
SALENGUE, Jacyára Ribeiro. Catulo: as faces/fases do amor. In: Calíope. Revista do Departamento de Letras Clássicas/Faculdade de Letras, UFRJ, Rio de Janeiro, ano 2, n.3, p.57-69, julho/dezembro 1985.
Fonte: http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno12-16.html

Enfim, todo Catulo à disposição do leitor brasileiro
Paulo Sérgio de Vasconcellos
(Acerca do Livro editado pela EDUSP, O Livro de Catulo, 1996)
Na época de Cícero, quando a República romana se aproximava de seu fim, um grupo de jovens poetas, quase todos da Gália cisalpina, hoje norte da Itália, provocaria verdadeira revolução nas letras latinas, praticando um novo ideal de poesia muito distante dos preceitos da velha tradição. Até então, apesar de um que outro esporádico prenúncio de mudança nas gerações imediatamente precedentes, a literatura que gozava de consideração e reconhecimento oficial era a que tinha, sob o ponto de vista do Estado, alguma utilidade prática, alguma preocupação moralizante. Venerava-se, sobretudo, a epopéia de Ênio, poeta que recebera o título de "pai" das letras latinas e cantara as proezas dos antepassados. Até o surgimento da Eneida de Virgílio, na época de Augusto, os Anais de Ênio o consagrariamcomo o Homero romano e se canonizariam como o modelo da literatura "séria". Cícero, que na juventude manifestara em seus poemas tendências semelhantes às que se verão nos novos poetas, paradoxalmente expressaria um soberbo desprezo por essa geração de escritores, que ele, contrastando-os com o "exemplar" Ênio, apelidou de "poetas novos", "poetas modernos" (1), com expressões de indisfarçável tom depreciativo.
Da produção desse grupo de enfants terribles só nos resta a obra do maior deles, o veronês Gaio Valério Catulo, que deixou uma coletânea de cerca de cento e dezesseis poemas, lidos, traduzidos, recriados, musicados, encenados, em suma, estimados e influentes, através dos séculos, com a exceção de certo eclipse durante a Idade Média. Totalmente justificável, pois, que Harold Bloom o tenha acolhido no seu, por outros aspectos discutível, cânone ocidental (2).
E que grande novidade traziam esses poetas que incomodavam os mais ciosos de uma tradição visivelmente esclerosada em obras sem viço? Sobretudo, a concepção de que a finalidade da poesia não se subordina a compromissos morais de espécie alguma, mas e, acima de tudo, o prazer estético que proporciona uma obra de arte elaborada e graciosa, burilada sem parecer artificial, cuidadosamente trabalhada mas plena de vida.
Não lhes interessavam os grandes temas da história nem os da lenda e da mitologia já tratados à exaustão; quando incursionavam pelo domínio da fábula, elegiam histórias pouco conhecidas ou aspectos mais obscuros de um mito conhecido, muitas vezes se comprazendo em alusões sutis que podiam beirar o enigmático. Na verdade, qualquer matéria do dia-a-dia, se transfigurada pela criação poética, parecia-lhes digna: um convite para jantar, uma ameaça a alguém que, achando tal ato divertido, surrupiou um lenço ao poeta, o lamento pela morte da avezinha de estimação da amada, sobretudo a vida sentimental, da amizade à paixão amorosa, que, para os antigos, sempre escraviza. Poesia de circunstância, em suma, que teria escandalizado, como fruto estéril de fútil ócio, a um Catão, o Censor...
Imbuída de estética alexandrina (Calímaco é, aqui, o mestre supremo), a geração de Catulo aperfeiçoaria como nunca antes a técnica do verso latino, que teria seu ápice com Virgílio e Horácio, poetas diversos daqueles predecessores, sobretudo por reafirmarem o compromisso ético da poesia, revalorizando a figura do poeta como "vate" (3), inspirado portador de valores importantes para a comunidade ¬ mas sumamente devedores, com seu rigor formal (o labor limae) e suas técnicas alusivas, do ideal calimaquiano difundido pelos pioneiros.
O leitor brasileiro conta, agora, com uma boa edição completa dos poemas de Catulo, precedida de introdução que apresenta ao leitor as principais questões discutidas hoje sobre a poesia subjetiva, não apenas latina (a persona poética, a não confundir com o autor de carne e osso, como o próprio Catulo explicita num poema, o de número 16; as relações intertextuais na lírica; as questões de filiação genérica), e seguida de notas na medida certa, que esclarecem o leitor leigo sem deixar de trazer informações e reflexões de relevo também para os já iniciados na literatura da Antigüidade.
No aforismo 83 de seu A Gaia Ciência, Nietzsche afirma que cada época revela seu sentido histórico pelo modo como traduz as obras do passado; no desenvolvimento dessa idéia, aprecia as relações dos poetas latinos com os gregos (que eles retomaram, traduzindo e recriando) como uma espécie de apropriação imbuída do espírito mesmo do império romano. Essa última afirmação é, no mínimo, bastante discutível, por não tocar a essência do processo alusivo da maior parte da poesia latina clássica, que não "raspa", absolutamente, o nome do criador grego, como pretende o filósofo (4), mas, pelo contrário, tece com sua obra as mais variadas relações de um diálogo criador de sentidos, incitando o leitor a ter sempre em mente suas "fontes". Não posso me deter aqui para aprofundar a discussão sobre esse aforismo interessante, mas faço uso de suas primeiras palavras para iniciar meu comentário a respeito do nosso (isto é, no Brasil de hoje) modo de traduzir os textos clássicos.
É notável, aliás, como o mercado editorial brasileiro para essas publicações vem crescendo nos últimos anos, certamente muito longe da exuberância dos anos anteriores à retirada do latim dos cursos de primeiro e segundo grau, mas pouco a pouco se distanciando da pobreza desoladora de algumas décadas atrás. Essa expansão mais ainda nos incita a refletir sobre o modo como temos traduzido os clássicos greco-latinos.
Em nosso país, com raras exceções, há pletora de traduções acadêmicas, que têm seu papel de divulgação, como parece ser mais reconhecido em outros países que no Brasil; no entanto, se o trato com a tradição clássica se restringisse a elas, com que perspectiva redutora estaríamos lidando com o passado literário! Não era esse, por certo, o espírito dos próprios gregos e romanos, que, da tradução mais ou menos criativa à recriação crítica dos predecessores, mantinham um vivo e rico diálogo, de releituras e "desleituras" (como se tem traduzido a noção de misreading difundida por Bloom) (5) de um autor por outro (6), sem pretensões românticas de utópica originalidade e sem escrúpulos acadêmicos que desfiguram o espírito de uma obra sob pretexto de preservar a letra dos textos. Em país de escassíssimo espaço para os estudos clássicos, vemos uma desalentadora falta de criadores que, em face dos textos greco-latinos, mobilizam sua competência artística para recriar a ossatura fônica, rítmica, sintática de obras que sem esses elementos nada periféricos se tornam letra quase morta, triste "poesia" rígida como um fóssil... No trato criativo com o original, as nuanças vão da tradução que se propõe como verdadeiro texto, sem o complexo de inferioridade que os antigos jamais tiveram, à recriação; não há meio mais eficaz de manter vivas as vozes do passado.
Felizmente, a edição de Catulo que a Edusp coloca à disposição do leitor brasileiro vai muito além da trivial modorra. De fato, logo à leitura das primeiras traduções dos poemas, percebe-se que o encanto e a graça de Catulo não vêm sufocados por escrúpulos acadêmicos. Já de imediato, chama a atenção o bom gosto da edição, digna da importância do poeta e da competência do tradutor.
O professor João Angelo Oliva Neto sabiamente adota padrões métricos para todos os poemas, um desafio que poderia ter resultados catastróficos em mãos inexpertas, mas que é vencido galhardamente por ele. À riqueza métrica de Catulo, diversidade de ritmos na tradução, uma proposta que impõe um labor a mais para o já difícil trabalho, mas que funciona como freio imediato para as facilidades da tradução literal. Desafio espinhoso: se o poeta veronês mostra, sob a aparente facilidade de suas "bagatelas" (nugae, como ele denomina seus poemas, pelo menos os de "circunstância"), uma técnica sutil, decididamente "alexandrina" no seu burilar da forma, o tradutor, sujeito às agruras do padrão métrico regular, precisa evitar toda impressão de artificialidade e manter a vivacidade e a naturalidade aparentes dos poemas "menores", que constituem a maior parte (e a mais estimada, estudada e imitada) do livro de Catulo. Há, sobretudo, o risco de trair o tom coloquial, de conversa colhida ao acaso pelo leitor, de não poucas poesias, pela adoção de uma camisa-de-força métrica que poderia tirar a espontaneidade da dicção do verso português. Abra-se a tradução de João Angelo ao acaso e se verá que geralmente conseguiu evitar tais riscos.
Outro aspecto a salientar foi a "audácia" do tradutor em citar autores vários, antigos e modernos, em sua tradução (até Camões...); longe de torcer o nariz, o "purista" de vistas estreitas deve considerar que era esse mesmo o espírito da arte antiga, alusiva em vários aspectos, sob várias formas intertextual. Ao citar textos que Catulo jamais poderia ter lido, o tradutor abandona a literalidade dos versos, mantendo-se, porém, fidelíssimo ao espírito da arte catuliana, ao encetar, como ele, diálogo com sua tradição literária; por outro lado, deixa visível, sem hipocrisia, que não há modo de dialogar com textos do passado sem a intermediação de uma bagagem cultural outra, sedimentada ao longo dos séculos, em novas vivências sociais e culturais.
Abro um parêntese para exemplificar a diferença que distingue esta tradução de uma "acadêmica"; não pretendo dar qualquer conotação pejorativa ao último termo, que designa uma tarefa que tem seu interesse e seu momento, como espero também demonstrar ¬ mas que não pode servir de pretexto para tolher a outra, obra de criação que faz reviver, para um público mais amplo que o do recinto universitário, um poeta morto há mais de dois mil anos. Abaixo transcrevo uma tradução literal (o mais possível!) do poema 84 de Catulo e, depois de breve comentário, a de João Angelo:
"Árrio dizia chommoda, quando queria commoda
dizer e, ao invés de insidias, hinsidias,
e achava que tinha falado esplendidamente
ao dizer hinsidias o mais que podia.
Assim a mãe, creio, assim o tio liberto,
assim o avô materno e a avó falavam.
Enviado ele à Síria, descansaram os ouvidos de todos:
ouviam pronunciar as mesmas palavras brandamente e suavemente
e não mais temiam palavras assim;
mas eis que de repente chega notícia terrível:
as ondas iônias, depois da chegada de Árrio,
já não eram iônias, mas hiônias".
É um poema célebre, muito citado pelos filólogos e gramáticos por ilustrar um caso de "hiperurbanismo": querendo parecer fino e culto, Árrio coloca aspiração até em palavras em que ela não existia... Uma tradução literal em nossa língua precisará apor uma nota assim; pior: não terá o que fazer com a aspiração de consoantes ou de vogais iniciais referidas no texto original, com os pares contrastados chommoda e commoda, hinsidias e insidias, que nada significam para o leitor leigo, sem contar o "iônias", menos comum que "jônias", em português. Ora, o leitor curioso, por um motivo ou outro, desse fato lingüístico ¬ a aspiração, inicial ou não, na época de Catulo¬, se não domina o latim do original, precisará ler tradução do poema que mantenha os dados referenciais tais quais, isto é, ter com o texto o contato que se tem com um documento; todavia, se esse não é o interesse maior do leitor comum, culto mas não interessado em detalhes filológicos, há que se encontrar outros meios de se criar um texto que se sustente sem notas de rodapé pouco amigáveis.
Que faz João Angelo? Cria um excelente "análogo", precisando, para isso, modificar certos dados referenciais ¬ "traindo" a letra do texto para não trair o espírito, o sal e o encanto de um poema que jamais se pretendeu ser mero exemplo de tratado filológico... Eis sua versão:
"Árrio dizia 'rúbrica' em vez de rubrica
e por pudico 'púdico' dizia
e achava que falava tão incrivelmente
que, se podia, 'púdico' dizia.
Creio que assim a mãe, assim o tio liberto,
assim o avô materno e a avó falavam.
Foi à Hispânia e os ouvidos descansaram todos;
as palavras soavam leves, lindas
e tais palavras nunca mais ninguém temeu.
Súbito chega a hórrida notícia:
os Iberos, depois que Árrio foi para lá,
Iberos já não eram, eram 'Íberos'".
Da tradução literal a uma recriação total, modos vários de tratamento do original que se pretende verter para outra língua são possíveis, mais à esquerda ou à direita. A meu ver, o grande trunfo da tradução de Catulo feita por João Angelo é duplo. Por um lado, sabe evitar as armadilhas da tradução literal, maximamente empobrecedora da ossatura material dos signos da poesia, em sua teia fônica e rítmica. Por outro lado, consegue permanecer muito próximo da letra do original, com a vantagem da concisão e da recuperação quase geral (não nos levem a um erro de avaliação as modificações da tradução mais acima transcrita) dos dados referenciais da cultura da época. Assim, essa tradução não- literal respeita a condição histórica do texto, sua alteridade, como o latinista verifica com facilidade cotejando a versão portuguesa com o texto latino, assim como o leitor leigo identifica também facilmente ao se ver introduzido num mundo que é semelhante e diverso do seu ao mesmo tempo.
De resto, se o tradutor não fosse suficientemente hábil, uma versão "poética" poderia acabar se tornando pior que uma em prosa feita com correção e tato: a montanha pariria um ridículo rato... A um e outro risco, Cila e Caríbdis, João Angelo consegue escapar.
Aqui vão alguns exemplos de felicíssima e inventiva reprodução dos sons e sentidos do original: no poema 3, it per iter vertido como "vai por via"; todo o poema 4, digno de menção à parte; no poema 63, destaco um verso (dentre vários outros dignos de citação) que imita em Catulo o som do tamborim frígio, vertido com a forte harmonia imitativa do original, sem precisar o tradutor se afastar da letra do texto: "quatiensque terga taurei teneris caua digitis" ¬ poema 63, verso 10 ("batendo em cava pele táurea os tenros dedos").
Outro exemplo de hábil resgate da sonoridade do original no poema 64; o cortejo de bacantes que acompanha Dioniso extrai dos instrumentos musicais empunhados música mimetizada pelas aliterações e assonâncias do verso:
"outras batiam tímpanos na palma erguida
ou tiravam tinido agudo ao êneo címbalo.
Muitas sopravam roucos ribombos em cornos
e horrendo trino estridulava a flauta
[bárbara" (v. 261-4).
Efeitos que João Angelo consegue com economia de recursos, sem inflar o original, e permanecendo bastante fiel, além disso, ao sentido literal. E poderíamos continuar citando muitos outros exemplos, em farta colheita.
Nesta ótima edição, porém, um ponto decepcionante é o pouco espaço deixado para o texto original, o que o torna tão diminuto a ponto de ser algo incômoda a sua leitura; como está reproduzido em itálico, distinguindo-se, assim, suficientemente, do texto português sob o ponto de vista da apresentação, por que não lhe dar tamanho maior? É o caso de pensar nisso quando de reedições futuras, que, com certeza, ocorrerão.
De resto, alguns pequenos senões, compreensíveis em obra dessa envergadura. Na página 121, uma reprodução de pintura em vaso que apresenta cena pederástica vem ilustrando o poema 64, com a legenda errônea "Peleu e Tétis". Um detalhe na introdução tão bem feita mereceria uma observação; ao tratar do verso coliambo, o tradutor releva seu uso particular nos poemas 8, 22, 31, 37, 39, 60 (por que não completar a lista, acrescentando os poemas 44 e 59, também em coliambos, como, de resto, se observa em nota?): "a mera presença dessa medida consubstanciava o clima de alegria, ou pilhéria, na 'estória' contida em todos esses poemas, exceto o 8" (p. 60). No entanto, o poema 60 apresenta-nos um problema a resolver, pois é difícil ver nele intenção irônica ou jocosa (nem Fordyce ou De Gubernatis, dois dos maiores estudiosos do poeta, o fazem); se se aceita que a mera presença do metro confere à composição um tom festivo, o poema 60 nos propõe um desafio interpretativo muito maior que o do poema 8 e, por isso, mereceria comentário à parte. Por outro lado, certa tendência a escolher termos portugueses diretamente derivados dos latinos presentes no original (como "nefas") leva, por vezes, a quebrar a coloquialidade que se vinha mantendo em toda a tradução (como no poema 89). Por fim, a peia do metro regular, ou alguma outra motivação, leva, às vezes, a certas alterações bruscas da ordem do original que lhe tiram algo da eficácia expressiva, como no poema V, em que os belíssimos versos 4, 5 e 6 recebem uma ordenação que subtrai ao conjunto o aspecto de bloco temático compacto. Esta, porém, é uma tônica da composição como um todo: grupos de versos nitidamente divisíveis em 3-3-3-4 (estes últimos, em 2-2), um dado de relevo num poema que extrai conotação da ordem, como mostra o quiasmo do último grupo de versos (oração adverbial temporal, oração adverbial final ¬ oração adverbial final, oração adverbial temporal: cum ne ¬ ne cum): provável mimese, no plano sintático, do embaralhar dos beijos após a multiplicação precedente, de ritmo regular, aos mil e cem... Ainda que não se concorde com tal interpretação, a admirável disposição harmônica desse poema, aquilo que os antigos teriam denominado sua concinnitas, salta aos olhos e se impõe como elemento importante a se considerar numa tradução.
Mas o que vai acima são detalhes que nem de longe arranham a certeza de que estamos diante de uma publicação importante, de uma tradução criativa e competente, tão sensível ao ritmo e aos sons como atenta ao universo cultural revelado nos signos do original; em suma, obra de estudioso com a grande virtude de manter o encanto das adoráveis "bagatelas" de Catulo. Com essa publicação, o leitor brasileiro pode finalmente conhecer as várias facetas desse poeta ao mesmo tempo divertido e douto, mordaz e comovente, artífice poderoso do verso que sabe disfarçar sua técnica como ninguém. Quanto ao especialista, ou, ao menos, quem é capaz de ler o latim de Catulo, terá o prazer suplementar de penetrar no diálogo criativo entre tradutor e obra, que, no caso desta tradução, é rico e realmente estimulante.
PAULO SÉRGIO DE VASCONCELLOS é professor de Latim do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor de O Cancioneiro de Lésbia (Hucitec).
O Livro de Catulo, tradução, introdução e notas de João Angelo Oliva Neto, São Paulo, Edusp, 1996.
Fonte:

A poesia de Catulo
Por: Rui Oliveira, Porto, Potugal

Os poemas que de Catulo que conhecemos foram preservados em vários manuscritos com uma história tortuosa. A partir do sec. XIV, estes manuscritos começaram a ser copiados e estudados pelos humanistas. Neles se recolhe uma antologia de 116 poemas que, formalmente, se dividem, sem qualquer ordem cronológica, em 60 poemas curtos com diferentes metros (1-60), 8 poemas longos (61-68) e 48 epigramas em dísticos elegíacos (69 – 116).

A poesia de Catulo trata dois grandes temas: a poesia de amor e a poesia satírica (havendo, claro está, muitos poemas que não caiem em qualquer destas duas categorias).

Nos poemas de amor, sobretudo os de menor extensão, Catulo mostra todo o seu temperamento emotivo, entre o amor exaltado (5) ao ódio maledicente (58), na sua relação com Lésbia. No entanto, Lésbia não tem o exclusivo dos poemas de amor ou eróticos, havendo outros que são dedicados a outras pessoas (homens e mulheres).

A poesia satírica é, por vezes, extremamente violenta e mesmo obscena, dirigida, entre outros, a ex-amigos, outros amantes de Lésbia, poetas exteriores ao seu grupo, políticos, entre eles, César (93) e Cícero (49) e ainda outras personagens actualmente desconhecidas. Apesar de muitos deles serem violentos e cruéis, outros há em por eles passa uma fina ironia (84).

Mas, há muitas poesias que não se enquadram nestes dois temas principais. Catulo, por exemplo, celebra, de um modo igualmente exuberante, os seus amigos (13) e companheiros literários (95). São também muito conhecidos os seus poemas em que celebra a casa de campo familiar de Sírmio (31) ou a sentida homenagem ao seu irmão falecido (101)

Catulo e os poetae noui

Catulo pertenceu a um grupo de poetas que foi denominado neoteroi ou poetae noui, sendo que, deste grupo, apenas as obras de Catulo chegaram até nós. Esta denominação, feita, por exemplo, por Cícero (Att., 7.2.1) tinha uma conotação negativa, pois no que toca à poesia, Cícero apreciava o muito tradicional Énio (239-169? a.C.).

Mas em que consistiu a revolução feita pelos poetae noui? Como se disse, o único poeta cuja obra nos chegou foi Catulo. Por isso, é para a sua obra que temos de olhar para tentar definir em que consistiu a sua inovação.

Não foi certamente Catulo quem introduziu a poesia lírica em Roma, mas foi ele quem lhe deu, definitivamente, as suas lettres de noblesse na cidade. Na sua obra, os poemas líricos, isto é, os poemas curtos e os epigramas distinguem-se bem dos poemas narrativos ou elegíacos. Na maioria dos poemas líricos, Catulo expressa todos os seus amores e desamores, gostos, amizades e inimizades.

Nestes poemas há uma influência notória de poetas gregos arcaicos como Safo e Arquíloco, por exemplo. Aliás o pseudónimo Lésbia é uma clara homenagem a Safo (que como se sabe era natural da ilha de Lesbos). Estes poetas gregos arcaicos foram imitados Calímaco e outros poetas alexandrinistas e, mais tarde, pelos poetae noui. Catulo introduziu na poesia lírica latina a métrica eólica (que tinha sido utilizada por Safo), embora Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), alguns anos mais tarde, reclame, para si próprio, esse feito (Carmina, 3.30).

Por outro lado, os poetae noui foram também influenciados pelos poetas alexandrinistas. Quem eram estes alexandrinistas? Eram poetas do período helenístico, não do período clássico da literatura grega, e que tiveram Alexandria como o seu centro de difusão. Entre estes poetas encontramos nomes como Apolónio de Rodes (sec. III a.C.), Teócrito e Calímaco (sec. IV-III a.C.) ou Euforião (III-II a.C.).

Assim, em Alexandria, sob o reinado dos Ptolomeus, desenvolveu-se uma corrente poética que se formou em oposição aos poetas do período clássico e que renovou os cânones da poesia grega, tanto nas formas como nos temas, acabaram-se a descrição dos feitos de deuses e heróis, e uma grande curiosidade por histórias de mitologia pouco conhecidas ou obscuras. Isto fazia realçar a sua erudição. Estas histórias rebuscadas são vertidas em composições breves, muito trabalhadas. Cultivavam a brevidade e gostavam do pormenor e do perfeccionismo, realçados por novas criações vocabulares.

No caso de Catulo, entre os seus poemas longos, as suas três elegias (65, 66 e 68) bem como os poemas 63 sobre Attis e 64 sobre as bodas de Tétis e Peleu são directamente inspirados pela escola de Alexandria.

O legado de Catulo

Apesar de a sua obra se ter quase perdido e ser quase totalmente desconhecida durante a maior parte da Idade Média, a influência de Catulo foi enorme, para além na influência mais imediata que teve sobre os poetas romanos que lhe sucederam, como é o caso de Horácio ou Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.), por exemplo.

A originalidade Catulo na paisagem da poesia latina provém, talvez, da franqueza com que fala dos seus estados de alma seja sobre as suas relações pessoais, seja sobre o seu tempestuoso relacionamento com Lésbia. É, como disse Américo da Costa Ramalho “uma das vozes mais genuínas de toda a poesia de Roma”.
Fonte: http://humanaelitterae.blogspot.com/2006/05/catulo-parte-ii.html

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Júlio César
(Roma, 100 a. C. - idem, 44 a. C.)
Militar e estadista romano. É sobrinho de Mário, um proeminente aristocrata romano que se faz nomear, aos dezassete anos, sacerdote de Júpiter. Perseguido por Sila, refugia-se na Bitínia. Nestas terras asiáticas, inicia-se no ofício das armas. Aquando da morte do ditador, regressa a Roma, participa nas instituições civis e, de seguida, chega a Rodes para aperfeiçoar a sua eloquência. Durante uma destas viagens é sequestrado por piratas, que pedem 20 talentos de resgate; César oferece-lhes 50 e assegura-lhes que de seguida vai acabar com eles; e assim o faz. No ano de 74 a. C. é eleito membro do colégio dos pontífices. É, sucessivamente, tribuno militar, questor e edil. Após a conjura de Catilina é-lhe concedido o governo da Hispânia Ulterior. Carregado de dívidas, pode sair de Roma graças ao seu amigo Creso que lhas paga. No ano de 69 a. C. inicia a sua administração da província hispânica, tornando-a próspera e enriquecendo ele próprio. Ao regressar César da Hispânia, Pompeu regressa da Ásia. Ambos hostilizados com o Senado, formam, com Crasso, o primeiro triunvirato. Contam com o apoio do exército e do povo. No ano de 60 a. C., César é nomeado cônsul. Adopta medidas políticas e administrativas passando por cima do Senado. Nomeado governador da Gália, assenta o seu prestígio militar em longas campanhas bélicas. No ano de 51 a. C., a Gália fica completamente submetida ao poder das legiões romanas. O Senado, assustado com os seus êxitos, seduz Pompeu, encarregando-o da defesa da República. Então César, à frente das suas tropas, atravessa um pequeno rio fronteiriço, o Rubicão, e aproxima-se ameaçadoramente de Roma. Pompeu foge precipitadamente para o Oriente. César, então, dirige-se primeiro à Hispânia, onde vence as forças de Pompeu ali estabelecidas, e, de seguida, ao Oriente. Em Farsalo (48 a. C.) vence definitivamente Pompeu, que perde a vida. César, retido pelos encantos de Cleópatra, fica uma temporada no Egipto. Volta de seguida a Itália, onde vence os adeptos de Pompeu em Thapsus, e combate os filhos de Pompeu na Hispânia, vencendo-os em Munda (Ronda) no ano de 45 a. C.
De volta a Roma recebe as máximas honras e é nomeado ditador vitalício. Carregado de honras quase reais, adopta diversas medidas legislativas e administrativas que molestam as famílias patrícias de Roma. Com a desculpa de evitar que se converta em rei, Catão, Bruto (afilhado de César) e outros põem-se de acordo para o assassinar, coisa que fazem no mesmo Senado (ano de 44 a. C.).
Como escritor, Júlio César adopta posturas de político e militar. Neste sentido, tanto os seus discursos como as suas obras históricas tentam expor e justificar as suas acções. Para isso deformam os factos e incorre em omissões e inclusive em falsificações, o que lhe permite oferecer uma imagem perfeita de si mesmo. Apesar disso, César é merecidamente considerado um autor clássico e um modelo da língua latina. Da sua clareza e concisão, da sua expressão precisa, do seu uso da terceira pessoa para se referir a si mesmo, depreende-se uma poderosa objectividade. Em De Bello Gallico relata as suas campanhas contra os Galos até à derrota de Vercingétorix, seu chefe. E em De Bello Civile narra as suas campanhas contra Pompeu.
Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/julio_cesar.htm
A conquista da Gália por Júlio César
Há dois mil e cinqüenta anos atrás, Júlio César, um dos mais célebres estadistas romanos, publicou um relato da sua campanha contra as tribos celtas que então viviam espalhadas pela Suíça, França, Bélgica e Inglaterra, denominando-o Commentarii de bello gallico, Comentários sobre a Guerra Gálica, consagrando-o como um excelente historiador.
Seu livro tornou-se leitura obrigatória para os estudantes de latim. Que extensão tinha a região conquistada pelos romanos e quem eram as tribos e qual a cultura dos que lá habitavam e como fez César para dominá-la, é o que o se segue.


Vercingetórix rende-se a César em Alésia (52 a.C.)
César abre a primeira página do seu livro com uma das suas mais conhecidas frases: Gallia est divisa in partes tres, "a Gália está toda dividida em três partes". E, de fato, assim era. Bem ao norte, a Terra dos Celtas era habitada pelos belgas, no centro pelos gauleses propriamente dito, e, ao sul dela, pelos aquitânios. Politicamente, a parte meridional encontrava-se nas mão dos romanos desde 222-121 a.C., que a denominavam de Gália Narbonense, tendo como principal centro era o porto de Marselha.
A posse dessa região costeira do Mediterrâneo, permitia-lhes trafegar seguros pela Via Domitia, a estrada que ligava a fronteira da Itália ao Leste, com a da Ibéria, ao Oeste. Geograficamente, ela se estendia de Milão, no Vale do Rio Pó, até o sopé das montanhas dos Pirineus. Foi para lá que enviaram Caio Júlio César, de distinguida e aristocrática família latina, como procônsul da Gália Narbonense, no ano de 59 a.C.
O povo que lá vivia, no que os romanos denominavam de Gália Comata, eram os celtas, separados entre si pelas mais diversas razões. Dividiam-se eles,de um modo geral, em galos Heudos, Arvernos, Belgas, e nos que compunham as tribos marítimas que habitavam nas margens do Atlântico (onde hoje se situam a Bretanha e a Normandia, departamentos da França). Esses gauleses, rústicos e durões, que até então estavam fora da órbita romana, eram chamado de galos cabeludos (Gallo comata), para separá-los dos chamados galos togados (já totalmente romanizados).


Gallia est divisa in partes tres

Caçadores e guerreiros, envolvidos em intermináveis desavenças tribais, os galos cabeludos desprezavam a atividade agrícola, apesar da grande fertilidade do solo da França. Dedicavam-se à criação de cavalos e de gado doméstico, havendo porém ente eles grandes artistas no trabalho com bronze, estanho, e objetos de prata. O pouco comércio que conheciam era em geral praticado por comerciantes romanos que trafegavam pelos seus rios e aldeias, trazendo-lhes produtos de fora.
Reis, chefes e druidas
A organização política dos gauleses, ou a ausência dela, foi sua perdição. A Terra dos Celtas era uma barafunda de tribos que ora eram governadas por um pequeno número de nobres guerreiros, outra por reis ou chefes clânicos, e até por um curioso tipo de magistrado, o Vergobret, escolhido, tal como o cônsul romano, por um período de um ano. Para o leitor de César fica evidente que a diversidade política dos galos cabeludos, e o desacerto que dai decorre, facilitou sua capitulação final frente aos romanos. Contra os galos cabeludos, César pôde exercer a plenitude da máxima Divide ut regnes, divide e domina, tática que os lideres romanos sempre souberam tão bem aplicar contra os outros povos.
As deidades celtas
Se eles desacertavam-se, envolvidos em intermináveis rixas tribais, havia porém um sentimento unívoco deles pertencerem a um universo religiosos só. Belenus, o deus da luz, Belisama, a deusa da luz e do fogo, Cernunnos, o deus da fertilidade, Epona a protetora dos cavalos, e Smertrios, o deus da guerra (o Marte dos gauleses), eram deidades sagradas em todo o mundo celta.


Cernunnos, o deus-alce, símbolo da fertilidade
Como também existiam entre eles a confraria dos Druídas, os sacerdotes-xamãs que formavam a influente elite religiosa. Anualmente, vindos das mais distantes regiões da Terra dos Celtas, eles se reuniam num grande concílio em Chartres (onde, bem mais tarde, no século XII, a Igreja Católica, para celebrar sua vitória sobre o paganismo, fez erguer uma das maiores catedrais da Europa), para trocarem receitas de poções e saberem das novidades.
A campanha de César na Gália


Caio Júlio César (100-44.a.C.)
Sabendo explorar as desavenças e as eternas desconfianças reinantes entre os gauleses cabeludos, particularmente entre as duas grandes tribos que habitavam a parte central da Gália, os heudos e os arvernos, César se pôs em marcha. O pretexto para intervir na Gália transalpina foi a provável invasão dela pelos germanos, que faziam ameaças do outro lado do Rio Reno.
Com apenas quatro legiões (a 7ª, a ª, a 9ª, e a 10ª), uns 24 mil homens, fora as tropas auxiliares, o romano deslocou-se pelos seis anos seguintes, entre 58 a 52 a.C., por quase todo o território da Gália, impondo-lhe a obediência ao gládio e à lei de Roma. Sob seu comando, à sua disposição, ele tinha a maior invenção de Roma em todos os tempos: a Legião.
A legião romana
Impressionante parte da máquina de guerra romana, cada legião tinha um efetivo de 5000 a 5500 soldados engajados por contrato. Disciplinados e bem treinados, divididos em coortes, em centúrias e decúrias, os legionários, auxiliados por uma cavalaria audaz, realizavam maravilhas nos campos de batalha. Não só neles. Mesmo no descanso, eles não tinham descanso. No acampamento era o momento em que o pilus (a lança) era substituída pela pá.
Com ela cavavam uma trincheira retangular ao redor das barracas e erguiam paliçadas no perímetro delas para nunca serem pegos de surpresa pelos inimigos. Eram capazes de, arrumados em linhas (veliti, manipoli di astati, principi, e di triarii), onde recrutas e veteranos se intercalavam, enfrentar contingentes de forças muito superiores as suas, graças à coesão e às táticas de luta em conjunto em que se exercitavam.
Em geral, os bárbaros, desconsiderando o comando único, atacavam em hordas, onde cada clã, quase cada guerreiro, tratava de vencer por si só a batalha, tornando-se presa fácil das organizadas tropas romanas. Mesmo quando depois de ter recebido reforços (seu efetivo parece ter saltado para 50-55 mil homens), não deixa de ser impressionante o fato de César ter submetido um território de 600 mil km2 com tão pouca gente.

O exemplo de César
O próprio César revelou-se um comandante notável. Vestindo o paludamentum, uma cota militar vermelha para poder ser visto de qualquer canto da batalha pelos seus soldados, foram inúmeras as vezes em que ele empunhou um escudo e foi para as linhas de frente dar ânimo aos seus soldados. bateu os helvécios, os germanos, os belgas, os vênetos e armóricos, os bretões e finalmente sufocou a resistência dos gauleses arvernos.
Suas tropas marcharam pelos Montes Jura, pelas margens do Rio Reno (chegando a construir pontes para atravessá-lo), pelas florestas das Ardenas, pelas planícies do Flandres, pela costa do atlântico, e, atravessando o Canal da Mancha, chegaram às ilhas britânicas. Idolatrado pelos soldados, César os acompanhava a cavalo ou a pé, procurando estar sempre presente nos pontos mais frágeis da defesa para que o seu exemplo de destemor e tranqüilidade, não permitisse os soldados a desandarem ou a desertarem.
Alésia e a capitulação de Vercingetórix
O levante de Vercingetórix, o chefe dos galos arvernos, foi um dos mais impressionantes e emocionantes acontecimentos da história antiga. O grande caudilho, decepcionado pelo conformismo da nobreza gaulesa com a ocupação romana, "faz nos campos", narrou César, "um alistamento de pobretões e homens perdidos. Com esta tropa chama a seu partido todos os da cidade, que vai encontrando; exorta-os a tomarem armas pela liberdade comum".
A essa altura a Gália inteira ferveu. O gaulês insurgente consegue impor uma derrota parcial às legiões de César que tentaram capturá-lo em Gergóvia (perto de Clermont-Ferrant), conclamando então o povo a uma guerra total contra os romanos. Que queimassem tudo, as choças e as colheitas, nada deixando ao invasor. César, porém, se recupera e aplica sucessivas derrotas à cavalaria gaulesa.


O gaulês agonizante, símbolo da derrota de um povo livre


Vercingetórix, retirando-se com 80 mil homens e 9 mil cavalos para Alésia, no alto do Monte Auxois, pensa em repetir Gergóvia, onde resistira com êxito ao sitio do romano. Só que desta vez foi diferente. César tomou-se de precauções. Os seus engenheiros traçaram rapidamente um plano de circunvalação do oppidum, a fortificação dos gauleses. De novo os 55 mil legionários empunharam a pá. Em seis semanas eles abriram mais de vinte quilômetros de trincheiras, montando um complexo sistema de valos, fossas, armadilhas as mais diversas, e uma paliçada completa, com torres erguidas a cada 120 metros. César decidira-se matar os gauleses pela fome.
Vercingetórix, liberando sua cavalaria, ordenou que eles trouxessem reforços de todas as partes da Gália. Novamente César se precaveu. Uma outra circunvalação foi escavada, desta vez voltada para fora, para poder resistir ao inevitável ataque que viria dentro de uns tempos. De fato, uma massa de 250 mil gauleses de quase todas as tribos, partira em socorro do capitão gaulês preso pelo garrote romano em Alésia.
Enquanto isso no interior da cidade cercada, a fome fazia seus estragos. Casos de antropofagia começara a ocorrer. As esperanças de Vercingetórix de ser salvo se esvaíram quando ele viu lá dos altos da sua paliçada, os romanos de César aplicarem uma derrota acachapante nos reforços que viriam tirá-lo do apremio. Sim pois eles conseguiram por a correr aquela multidão formidável. A batalha pela liberdade estava perdida. A Gália cativa.
A atitude nobre de Vercingetórix
No dia seguinte ao desastre. Quando não havia na Gália inteira nenhuma força organizada para poder fazer reverter o sitio de Alésia, Vercingetórix convocou o conselho militar dos seus oficiais. Nas palavras de César "demonstra-lhes que havia empreendido a guerra, não por interesse seu particular, mas pela liberdade comum, e pois que se tinha que ceder à fortuna, se lhes oferecia para uma das duas coisas, ou para com sua morte satisfazer aos romanos, ou para o entregarem vivo aos mesmos, como melhor entendessem.
E foi assim que procedeu. Montando no seu corcel, vestido de luzente armadura, Vercingetórix cavalgou para o acampamento do inimigo. César o recebeu num tablado improvisado, onde sentava num pequeno trono. Ordenou ao vencido que entregasse o cavalo e suas armas a guarda.
Vercingetórix se desafez de tudo e foi sentar-se aos pés de César. Os demais gauleses sobreviventes foram entregues aos legionários como butim de guerra. O bravo Vercingetórix foi posteriormente conduzido à Roma onde terminou decapitado, talvez uns cinco anos depois de Alésia.
Depois de Alésia
Para César essa batalha foi decisiva na sua carreira. Vitorioso na Gália, ele decidiu-se três anos depois, ao atravessar o Rubicão em 49 a.C., disputar com Cneu Pompeu a hegemonia sobre a República Romana, tornada império universal. Venceu-o.
Tornou-se ditador em 46 a.C. e morreu assassinado nos idos de março de 44 a.C. numa conspiração de senadores, entre os quais Bruto que, uns anos antes, estava com ele, ajudando-o a derrotar Vencingetórix. O poder depois da morte de César foi disputado entre seu sobrinho-neto Otávio, e um antigo auxiliar de César, Marco Antônio (também um veterano das Guerras da Gália).
Para a Gália, a derrota em Alésia significou a derrocada da cultura celta e sua substituição pela romana. César, ao ordenar que o latim se tornasse a língua oficial das tribos gaulesas submetidas, foi, de certa forma, um dos forjadores da língua francesa atual, uma das mais belas heranças da Roma Antiga. Deste então, surgiu na Gália uma nova civilização: a Galo-romana.
Bem mais tarde, no século III, na época da anarquia militar, aproveitando-se da situação caótica em que o império romano se encontrava, durante 14 anos seis chefes galo-romanos proclamaram-se imperadores (de 259 a 273). Este surto independentista pode ser considerado como a última manifestação dos gauleses de tentarem reaver sua independência, ainda que abrigados com o manto do imperador de Roma.


O gaulês ferido, expressão do desalento de um povo


As campanhas de César na Gália (58-52 a.C.)
Data Nação Rei/Líder Motivo da Guerra
58 a.C. Helvécios Dunórix Tentativa dos helvécios de invadirem, partindo da Suíça, o Sul da Galia. Foram derrotados por César na batalha de Bibracte, aceitando em seguida a situação de vassalagem.
57 a.C. Germanos Ariovisto Luta pela hegemonia da Gália setentrional. Os germanos foram derrotados perto de Besançon, na Alta Alsácia e Ariovisto buscou refugio além do Rio Reno. César ordena a travessia do rio dos germanos para punir a tribo dos sugambros.
56 a.C. Belgas Galba Reação das tribos belgas à presença romana na sua fronteira. Batidos por César perto de Novon, capitulam.
55 a.C. Tribos marítimas - César se desloca para a costa atlântica e enfrenta os gauleses armóricos ou vênetos, numa guerra por terra e por mar. Duras represálias contra as lideranças das tribos marítimas que resistiram aos romanos.
55-4 a.C. Bretões Casivelauno Expedição punitiva de César às ilhas britânica pelos bretões terem dado abrigo aos patriotas da armórica que lá procuraram refúgio. Depois de um acordo, César recuo para a Gália.
53 a.C. Gauleses Ambriórix e outros Levante geral contra os romanos. César com sua presença consegue fazer refluir o movimento.
52 a.C. Gauleses Vercingetórix Nova insurreição, desta vez popular. Trata-se de uma rebelião geral contra o invasor. César é batido em Gergóvia, mas, em seguida, consegue cercar os gauleses em Alésia. Rendição de Vercingetórix. Fim da Gália independente, tornada desde então província romana.
Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/antiga/galia1.htm

De Bello Galico - Livro Primeiro
COMENTÁRIOS
DE
C. JULIO CESAR
À
GUERRA DA GÁLIA

LIVRO PRIMEIRO
ARGUMENTO
Descrição de GÁLIA — c. 1 — Tentam os helvécios invadi-la mas são derrotados por Cesar em duas batalhas e os restantes compelidos a voltar à patria, donde tinham saído. — c. 2-29. — Queixam-se os gauleses a Cesar de Ariovisto, rei dos germanos, que ocupava o território dos Sequanos. Manda Cesar embaixadores a Ariovisto para compor as coisas, mas em vão. c. 30-36. Marcha contra ele com as tropas a princípio desanimadas, depois alvoroçadas por exortação sua. Conferenciam os chefes dos dois campos, mas sem resultado algum. Recorre-se, por fim, à fortuna das armas, e recebendo grande perda, fogem os germanos da Gália c. 37-54.
1. — A Galia está toda dividida em três partes, das quais uma é habitada pelos belgas, a outra pelos aquitanios, a terceira pelos que em sua língua deles se chamam celtas, na nossa gauleses. Diferem todos esses povos, uns dos outros, na língua, nos costumes, e nas leis. Extrema os gauleses dos aquitanios o rio Garona; dos belgas, o Mátrona(1) e o Séquana(2). De todos eles são os belgas os mais fortes, por isso mesmo que estão mais longe da cultura e polícia da província romana, e não vão lá a miúde mercadores, nem lhes levam coisa que lhes enerve o vigor; e vizinham com os germanos(3), que habitam além do Rim, e com quem andam continuamente em guerra. Por esta mesma causa excedem também os helvecios(4) em valor aos mais gauleses; pois contendem com os germanos em refregas quase quotidianas, quando ou os repelem de suas fronteiras, ou nas próprias fronteiras desses fazem a guerra, A parte ocupada pelos gauleses tem princípio no rio Rodano; limite, no Garona, no Oceano, e nas fronteiras dos belgas; toca também no Rim pelo lado dos sequanos(5) e dos helvecios; e inclina ao setentrião. Os belgas(6) começam nas extremas fronteiras da Gália; estendem-se até a parte inferior do Rim; e olham para o setentrião e o sol nascente. A Aquitania extende-se do rio Garona aos montes Pirineus e à parte do Oceano que beija a Espanha e olha por entre o ocaso do sol e o setentrião.
II. — Foi Orgetorix o maior potentado entre os helvecios por sua linhagem e riquezas. Levado da ambição de reinar, fez uma conjuração da nobreza, no consulado de Marco Messala e Marco Pisão, e persuadiu à sua cidade(7) que saísse do país com todas as forças, dizendo ser facílimo assenhorearem-se os helvecios do império das Gálias, visto como em valor excediam a todos os mais gauleses. E persuadiu-lho tanto mais facilmente, que de todos os lados se vêm os helvecios estreitos(8) pela natureza do lugar; de uma parte, pelo Rim, mui largo e profundo rio, que os extrema dos germanos; de outra, pelo Jura, monte altíssimo, que se interpõe entre eles e os sequanos; de outra enfim, pelo lago Lemano(9) e rio Rodano, que deles extrema a nossa província. Originava-se daí poderem estender-se menos, e menos facilmente fazer guerra aos vizinhos; o que, para gente tão belicosa, era ocasião de grande mágua. Atentando pois, no seu tão avultado número, e na tão transcendente glória de seus feitos militares, reputavam acanhado seu território, que se extendia duzentos e sessenta mil passos em comprimento e cento e oitenta mil em largura.
III. — Compenetrados disto, e movidos da autoridade de Orgetorix, resolveram aprestar o que respeitava à emigração, comprando quanto mais bestas e carros, fazendo quanto mais sementeiras para não faltar pão na jornada, e estabelecendo paz e amizade com as cidades(10) vizinhas. Assentando bastar-lhes para isto um biênio, confirmam por lei a emigração para o terceiro ano. A levá-lo a efeito designa-se Orgetorix que se encarrega da negociação com as cidades vizinhas. Partido neste pressuposto dentre os seus, a Castico, filho de Catamantaledes, sequano de nação, cujo pai fora rei dos sequanos muitos anos, e honrado com o título de amigo pelo Senado do povo romano, persuade assuma na sua cidade a realeza dantes exercida por seu pai; também a Dunorix, heduo(11) de nação, irmão de Diviciaco, o maior potentado então entre os seus, e mui popular, persuade tente o mesmo, dando-lhe sua filha em casamento. Demonstra-lhes ser mui fácil realizar a empresa, sendo ele rei dos helvecios que ninguém contestava serem os mais poderosos dos gauleses, assegurando-os de que com seus cabedais e exércitos lhes havia conciliar a realeza a eles. Induzidos por este discurso, dão promessa e juramento entre si, esperando poder, com a usurpação da soberania, assenhorear-se da Gália toda por meio dos três mais poderosos e valentes povos dela.
IV — Denunciado aos helvécios, obrigam-no eles, conforme a usança, a defender-se preso: condenado, era a pena ser queimado vivo. No dia designado para a defesa, faz Orgetorix cercar o tribunal de todos os seus até dez mil, bem como de grande número de clientes e devedores, e por eles exime-se violentamente da obrigação de responder em juizo. Pretendendo a cidade indignada sustentar o seu direito pelas armas, e apelidando para isso os magistrados multidão de homens dos campos, morre neste meio tempo Orgetorix não sem suspeita, na opinião dos compatriotas, de se haver dado morte a si.
V — Depois da morte dele resolvem-se nada obstante os helvecios a emigrar, como tinham assentado. Quando se julgam para isso aparelhados, põem fogo a todas as suas cidades em número de doze, as suas aldeias no de quatrocentas, aos mais edifícios particulares, e a todo o trigo que não haviam de levar consigo, para que, tirada a esperança de regresso à patria, se achassem mais hábeis a arrostar todo gênero de perigos, provendo-se cada um de farinha e vitualhas para três meses. Aos rauracos(12), tulingos(13) e latobrigos(14), vizinhos seus, persuadem que, queimadas suas cidades e aldeias, emigrem conjuntamente com eles; e aos boios que tendo passado o Rim, e invadido o território norico(15), conquistaram Noreia, associam-nos a si como aliados.
VI — Havia somente dois caminhos, pelos quais podiam sair de casa(16); um através dos sequanos(17), estreito e difícil, por entre o monte Jura e o rio Ródano, por onde mal passariam carros um a um; ficava-lhe porém à cavaleiro o monte altíssimo, em modo que dos desfiladeiros podiam mui poucos embargar-lhes o passo: o outro pela nossa província, muito mais fácil e expedito, pois que, por entre as fronteiras dos helvecios e as dos alobroges(18) de pouco pacificados, corre o Ródano que em alguns lugares se vadeia. Extrema cidade dos alobroges e vizinha às fronteiras dos helvecios é Genebra que por uma ponte a estes se liga. Aos alobroges, por que ainda não pareciam bem dispostos em favor dos romanos, supunham ou haver de mover ou forçar a lhes concederem passagem por suas terras, Aparelhado tudo para a partida, designam o dia em que se haviam de reunir todos na margem do Rodano. Era esse o quinto antes das Calendas de abril (28 de março), sendo cônsules Lucio, Pisão e Aulo Gabinio.
VII — Comunicado a Cesar o intentarem eles fazer passagem pela nossa província, dá-se pressa a partir de Roma, e, encaminhando-se à grandes jornadas para a Gália ulterior, chega a Genebra. Ordena as maiores levas de soldados pela província toda, porque só havia nela uma legião; e manda cortar a ponte de Genebra. Sabedores da chegada dele, deputam-lhe os helvecios os mais nobres da cidade, a cuja frente vinham Nameio e Verucloecio com esta embaixada: “Que tencionavam passar pela província sem fazer mal, pois nenhum outro caminho tinham, e lhe pediam o permitisse de bom grado.” Cesar, que tinha em lembrança haverem os helvecios morto ao cônsul Lucio Cassio, desbaratado e feito passar por baixo de jugo o seu exército, não vinha na permissão; nem tão pouco acreditava que forças hostis se abstivessem de, em sua passagem pela província, ofender e fazer mal. Contudo, para dar espaço a se reunirem as levas que ordenara, respondeu aos embaixadores que tomaria tempo para deliberar, e viessam pela resposta nos idos de abril (a 13 desse mês).
VIII — Entrementes, com a legião que consigo tinha e as levas chegadas da província, desde o lago Lemano por onde corre o Rodano, té o monte Jura, que extrema os sequanos dos helvecios, levanta em espaço de dezenove mil passos uma muralha de dezeseis pés de alto, guarnecida de um fosso. Concluída a obra, dispõe por ela presídios em castelos fortificados, para mais facilmente poder tolher-lhes o passo, se, seu mau grado dele, tentassem passar. Quando chegou o dia aprazado aos embaixadores, e voltaram a saber da resposta, declarou-lhes formalmente que, segundo o costume e exemplo do povo romano, a ninguém podia conceder passagem pela província, acrescentando que, caso tentassem fazê-lo por força, estava aparelhado para vedar-lho. Decaídos desta esperança, fazem os helvecios diversas tentativas para romper, uns em canoas unidas e jangadas fabricadas em grande número, outros pelos vaus do Rodano, onde a profundidade do rio é menor, ora de dia e mais vezes de noite; repelidos, porém, quer pela resistencia da fortificação, quer pelas armas e bravura dos soldados, desistem por fim da empresa.
IX — Restava o caminho através dos sequanos, por onde não podiam, mau grado destes, passar em razão dos desfiladeiros. Não podendo obter por si o consenso dos sequanos, enviam embaixadores ao heduo Dunorix, para que, por intercessão sua, lho alcance deles. Era Dunorix mui acreditado com os sequanos por sua largueza e popularidade, e amigo dos helvecios, porque tinha casado com a filha de Orgetorix dessa cidade, e ambicionando a realeza entre os seus favorecia empresas arriscadas, para ter quanto mais cidades ligadas a si por benefícios, Encarrega-se, pois, da negociação, e alcança dos sequanos permissão para passarem os helvecios pelas fronteiras deles(19), fazendo com que se dêm reféns reciprocamente: os sequanos, para que aos helvecios não tolham o passo; os helvecios, para que passem sem fazer mal, nem ofender.
X — Comunicado a Cesar o tencionarem os helvecios fazer passagem pelas fronteiras dos sequanos e heduos(20) para as dos santones(21), que não distam muito dos tolosates(22) cidade situada na província, entendia que, se tal acontecesse, havia de ser com grande perigo do sossego da província, que teria por vizinha em campos sumamente ubertosos a essa gente belicosa e inimiga do povo romano. Assim, prepondo o seu lugar tenente Tito Labieno à fortificação que fizera, parte para a Itália a toda a pressa, alista ali duas legiões, tira de seus quartéis mais três que invernavam nos arredores de Aquileia, e com estas cinco legiões marcha para a Gália pelos Alpes, caminho mais curto. Aí tentam os centrones(23) graiocelos(24), e caturiges(25) embargar o passo ao exército, ocupadas as alturas. Depois de os rechaçar em muitos recontros, de Ocelo(26) que é o extremo da província citerior, chega com sete dias de marcha às fronteiras dos voconcios(27) na província ulterior; daí abala com o exército para as dos alobroges; dos alobroges para os segusiavos(28) que são os primeiros além do Rodano ao sair da província.
XI — Já haviam os helvecios transposto as gargantas e fronteiras(29) dos sequanos, e chegados às dos heduos devastavam-lhes os campos. Não podendo defender-se a si e seus haveres, mandam os heduos embaixadores a Cesar implorar-lhe auxílio nestes termos: “Que eles sempre tinham servido ao povo romano de maneira que, sendo quase expectador o nosso exército, não deviam ser seus campos talados, seus filhos cativados, suas cidades conquistadas.” Ao mesmo tempo os heduos ambarros, amigos e consangüíneos dos heduos, fazem a Cesar sabedor que eles, despovoada a campanha, dificilmente repeliriam das cidades a força dos inimigos. Da mesma forma os alobroges, que tinham aldeias e possessões além do Rodano, fugindo buscam amparo em Cesar, demonstrando que, além do solo do terreno, nada mais lhes resta. Comovido com tais estragos, não espera Cesar que, consumidas todas as fortunas dos aliados, penetrem os helvecios até os santones.
XII — É o Arar(30) um rio, que pelas fronteiras dos heduos e sequanos se dirige o Rodano com placidez tal, que não se pode distinguir com a vista para qual das duas partes corre: passavam-no os helvecios em jangadas e pontes de barcas. Sabedor pelos exploradores de terem eles já passado três partes das tropas além deste rio, e testar quase a quarta aquém deles, Cesar, partindo dos arraiais na terceira vela da noite com três legiões, alcança aos que ainda não haviam transposto o rio; e atacando-os de improviso, quando embaraçados e desprevenidos, faz neles grande mortandade, fugindo e acolhendo-se o restante aos vizinhos bosques. Chamava-se Tigurino(31) este cantão, sendo que toda a cidade Helvecia em quatro cantões se acha dividida. Este mesmo, o único que saira da pátria em tempo de nossos país, havia morto o cônsul Lucio Cassio, e feito passar por baixo de jugo o seu exército. Assim ou fosse caso, ou providência dos deuses imortais, a parte da cidade Helvecia que ocasionou insígne calamidade ao povo romano, foi também a primeira a sofrer o castigo. Nisto não só vingou Cesar a pública ofensa, mas ainda a particular, porque na mesma batalha em que mataram a Cassio, haviam também os tigurinos morto ao seu lugar tenente Lucio Pisão, avô de Lucio Pisão, sogro dele, Cesar.
XIII — Para poder alcançar as restantes tropas dos helvecios, manda, depois desta batalha, fazer uma ponte no Arar, e por ela passa o exército. Abalados com tão repentina vinda, vendo fizera Cesar num dia o que mal tinham eles conseguido em vinte, o passar o rio, enviam-lhe os helvecios embaixadores, a cuja frente se notava Divicão, antigo caudilho seu na guerra contra Cassio. Falou ele a Cesar nesta substância: “Que, se o povo romano fizesse com os helvecios paz e amizade, haviam os helvecios de ir para onde, e permanecer aonde o quisesse Cesar; mas, se persistisse em guerreá-los, tivesse em lembrança o antigo desastre do povo romano, e o valor dos helvecios — Por haver de improviso atacado um cantão, quando os que tinham passado o rio não podiam socorrer os seus, nem se ensoberbecesse ele tanto, nem os desprezasse a eles, que mais haviam aprendido de seus passados a combater com denodo, que a armar ciladas e traições — Não fosse, pois, ocasião para que o lugar em que haviam feito alto, servisse de monumento no porvir, tomando nome da calamidade dos romanos e destruição de seu exército.”
XIV — A isto respondeu Cesar: “Que não lhe restava a menor dúvida, porque conservava muito em lembrança o que mencionavam os helvecios, e tanto mais, quanto menos causa dera a tal o povo romano, que, se tivesse consciência de havê-los ofendido, facilmente se acautelaria; — fora porém enganado, porisso mesmo que, não tendo praticado coisa de que se houvesse de arrecear, não julgava dever temer sem fundamënto — Mas, ainda quando quisesse esquecer a antiga ofensa, podia também apagar da memória as recentes, de tentarem passar a força pela nossa província, e devastarem o território aos heduos, ambarros e alobroges? — Quanto a se gloriarem tão insolentemente de sua vitória, e admirarem de haver ele por tanto tempo suportado a ofensa impunemente: que os deuses imortais, para ser mais dolorosa a mudança de fortuna aos homens, costumavam às vezes conceder aos maus, que queriam castigar, maior soma de felicidades e impunidade mais duradoura; que, nada obstante, se lhe dessem reféns para fiança de que haviam de cumprir o prometido, aos heduos satisfação das ofensas a eles e seus aliados feitas, e igualmente satisfação aos alobroges, ele faria com eles paz e amizade.” Divicão replicou: “Que os helvecios tinham aprendido de seus passados, não a dar, mas a receber reféns, como bem o sabia o povo romano.” E com isto retirou-se.
XV — No seguinte dia levantam campo. Faz Cesar outro tanto; e para observar a marcha do inimigo, manda diante toda cavalaria, havida da província, dos heduos e seus aliados, em número de quatro mil homens. — Pica esta com demasiado ardor a retaguarda inimiga, e travando combate com a cavalaria dos helvecios em lugar desvantajoso, caem poucos dos nossos. Ensoberbecidos por terem com quinhentos de cavalo rechaçado tamanha força de cavalaria, entram os helvecios a fazer-nos rosto mais desassombradamente, provocando muitas vezes com sua retaguarda aos nossos da vanguarda, Vedava Cesar aos seus o pelejar, contentando-se por então com tolher ao inimigo a possibilidade de rapinar, forragear e despovoar a campanha. Assim marcharam cerca de quinze dias, não medeiando mais de seis mil passos entre a retaguarda do inimigo e a nossa vanguarda.
XVI — No entanto, todos os dias requeria Cesar aos heduos o trigo que tinham solenemente prometido; pois, achando-se a Galia, como antes se disse, situada sob o setentrião, não só não estavam maduras as messes por amor do frio, mas nem ainda abundava assás forragem nos campos. Do trigo, porém, que fazia transportar em barcos pelo Arar, não podia ele utilizar-se, por haverem os helvecios, de quem se não queria apartar, desviado a marcha do Arar. Remetiam-no os heduos de dia para dia; o trigo, segundo eles, estava-se aprontando, transportando, vinha chegando. Vendo tamanha demora, e achar-se iminente o dia em que convinha medir trigo aos soldados, convoca os principais gauleses, dos quais contava grande número no seu campo, e entre esses a Divicaco e Lisco que exercia o cargo de vergobreto, magistratura suprema e anual, que tem sobre os seus poder de vida e morte; acusa-os gravemente, porque, não podendo comprar-se, nem tão pouco colher-se nos campos, o não socorriam com trigo em ocasião tão urgente, tão próximos do inimigo, quando principalmente movido em grande parte pelas súplicas deles é que empreendeu a guerra; e queixa-se amargamente de estar sendo abandonado.
XVII — Abalado com este discurso de Cesar, expõe Lisco o que antes calara: “Que havia alguns particulares que por sua grande autoridade com o povo tinham mais poder, que os mesmos magistrados; e esses tais com discursos sediciosos despersuadiam a multidão de concorrer com trigo, dizendo que, uma vez que não podiam ser senhores da Galia, deviam os heduos preferir aos dos romanos o jugo dos gauleses, não duvidando que, vencedores dos helvecios, não houvessem os romanos de extorquir aos heduos a liberdade conjuntamente com o resto da Galia; — que pelos mesmos que não tinha força para coibir, era o inimigo informado de nossos planos e quanto se passava nos arraiais; — e só ele sabia com que risco, obrigado da necessidade, comunicava isto a Cesar, e por isso guardara silêncio, enquanto lhe fora possível.”
XVIII — Bem via Cesar ser por este discurso de Lisco indicado Dunorix, irmão de Diviciaco; não querendo, porém, que isto se aventasse em presença de muitos, despede a assembléia à pressa e retendo a Lisco, inquire dele, particularmente, o que dissera na reunião. Fala este mais livre e desassombradamente. Informa-se secretamente de outros e acha conforme a verdade:
“Ser Dunorix sumamente audaz, mui acreditado com o povo por sua liberalidade, desejoso de nova ordem de coisas, e muitos anos arrematante por baixo preço das portagens e mais rendas dos heduos, porque licitando ele, ninguém mais ousava fazê-lo, havendo com isso não só acrescentado sua fortuna particular, mas ainda adquirindo imensos cabedais para despender em larguezas e acercar-se sempre de grande força de cavalaria sustentada a sua custa; — ser mui poderoso assim entre os seus, como nas vizinhas cidades, e tanto que casou a mãe entre os bituriges(32) com o maior potentado dali(33), a si com mulher helvecia, e a irmã por parte de mãe e parentes em outras cidades; — mui afeiçoado aos helvecios e grande seu beneficiador por sua afinidade com eles, hostil por interesse próprio a Cesar e aos romanos, pois fora com a vinda deles diminuido seu poderio, e restituído o irmão Diviciaco a antiga autoridade e honraria; sendo que, se ficassem mal os romanos, concebia suma esperança de ser rei com o auxílio dos helvecios, e, no dominio romano, não só perdia essa esperança, mas até a de conservar o poder que tinha.” Inquirindo descobre também Cesar: “Ser o princípio da derrota da cavalaria, no combate havido poucos dias antes, obra de Dunorix que comandava a cavalaria mandada pelos heduos a Cesar; pois com a fuga dessa se aterrara a demais.”
XIX — Acrescendo, pois, a estas suspeitas os fatos incontestáveis de ter proporcionado passagem aos helvecios pelas fronteiras dos sequanos, fazendo para isso com que se dessem reféns reciprocamente, de o haver praticado não só sem consentimento, mas nem ainda conhecimento de Cesar e da cidade, e ser acusado pelo magistrado dos heduos, julgava haver assás fundamento ou para puni-lo ele mesmo, ou para ordenar à cidade que o punisse. A isto, porém, repugnava uma única coisa, que era ter encontrado em Diviciaco devoção suma para com o povo romano, benevolência extreme para com sua pessoa, egrégia lealdade, justiça e moderação; receava sobretudo ofendê-lo com o suplício do irmão. Assim, antes de tentar coisa alguma, manda chamar a Diviciaco; e, removidos os intérpretes quotidianos, por Caio Valerio Procilo, homem principal da província da Galia, amigo e confidente seu, se abre com esse, expondo tanto o que em sua presença se dissera de Dunorix na assembléia dos gauleses, como o que se referira deste em particular, e pede-lhe instância, não leve a mal, ou que ele lhe castigue o irmão, ou que ordene a cidade o faça.
XX — Abraçando a Cesar com muitas lágrimas, entrou Diviciaco a suplicar-lhe, nada ordenasse de grave contra o irmão, dizendo sabia ser tudo aquilo verdade, e ninguém concebia disso maior dor que ele, pois sendo o mais poderoso entre os seus e no resto da Galia, quando o irmão o era mui pouco por sua mocidade, o havia com seu crédito elevado, do que agora abusava este, não só para cercear-lhe a autoridade, mas até para perdê-lo; comovia-se, nada obstante, com o fraternal amor e a opinião dos homens; pois se alguma coisa grave viesse ao irmão da parte de Cesar, ninguém de certo acreditaria que, sendo tal sua amizade com Cesar, deixara de nisso ter também parte, donde resultaria ficar-lhe adversa a Galia toda. Prosseguindo ele em suas instâncias todo banhado em pranto, toma-lhe Cesar a dextra, consola-o e pede-lhe, ponha termo às suplicas; porque tão singular amizade lhe votava, que tanto a ofensa da república, como a sua, ao seu querer e pedido dele de mui bom grado as remitia. Manda chamar a Dunorix, repreende-o em presença do irmão, enumerando os agravos que de seu procedimento tinham ele Cesar e a cidade, admoesta-o a evitar toda a suspeita para o futuro, e acrescentando que por amor do irmão, Diviciaco, lhe perdoava o passado, põe-lhe vigias para saber o que faz e com quem fala.
XXI — No mesmo dia sabendo dos exploradores haver o inimigo acampado junto a um monte a oito mil passos de nossos arraiais, faz examinar a natureza do monte e sua subida em torno. Vindo no conhecimento ser fácil, à terceira vela da noite manda o lugar tenente pro pretor(34), Tito Labieno, com duas legiões e os guias conhecedores do caminho ocupar a cumiada ao monte, expondo-lhe de antemão seu plano. À quarta vela da noite, tendo enviado diante a cavalaria, marcha em pessoa ao inimigo pelo mesmo caminho que este tomara. Publio Considio que passava por militar mui experimentado, e servira no exército de Lucio Sila, e depois no de Marco Crasso, é mandado diante com os exploradores.
XXII. — Ao romper d’alva, ocupada por Labieno a cumiada do monte, e distante Cesar do inimigo mil e quinhentos passos, sem que fosse pressentida, nem sua vinda, nem a de Labieno, como depois soube dos cativos, corre Considio à desfilada anunciar-lhe estar pelo inimigo ocupado o monte, que desejara o fosse por Labieno, e havê-lo conhecido pelas armas e insígnias gaulesas. Conduz Cesar suas tropas para um vizinho monte, e as forma em ordem de batalha. Labieno, como lhe fora ordenado, não combatesse, enquanto não visse as tropas de Cesar perto do campo inimigo, para que dessem juntamente nele de todos os lados, senhor do monte abstinha-se de atacar, aguardando os nossos. Alto dia, enfim, veio Cesar a saber dos exploradores, acharem-se não só os nossos de posse do monte, mas terem os helvecios levantado campo e haver-lhe Considio, cortado de terror, anunciado como visto o que não vira. Segue esse dia ao inimigo com o costumado intervalo, e acampa a três mil passos dele.
XXIII — No seguinte, como faltavam sós dois dias para medir trigo ao exército, e não distava de Bibracte(35), a maior e a mais bem provida cidade dos heduos, senão dezoito mil passos, julgou dever entender no provimento de víveres, e desviando-se dos helvecios marchou em direitura à Bibracte. É isto logo denunciado ao inimigo pelos transfugas de Lucio Emilio, decurião da cavalana gaulesa(36). Os helvecios, ou por entenderem que os romanos se retiravam cortados de temor, mui principalmente porque senhores das alturas os não haviam atacado na véspera, ou por confiarem poder tolher-lhes o provimento de víveres, mudada a resolução e a marcha, entram a picar e provocar a nossa retaguarda.
XXIV. — Em o notando, manda Cesar a cavalaria sustentar o ímpeto dos inimigos, e marcha com suas tropas(37), para um vizinho monte. No meio deste, forma três linhas com as quatro legiões veteranas; no cume, posta à cavaleiro destas as duas legiões de próximo alistadas na Gaba citerior(38), e tropas auxiliares, enchendo todo de homens o monte; e ordena sejam as bagagens reunidas num ponto, e este defendido pelos que estavam postados nas alturas. Seguindo-o com todos os seus carros, reúnem também os helvecios num ponto as bagagens; e repelindo cerrados nossa cavalaria, sobem a investir nossa primeira linha ordenados em falange.
XXV — Removido primeiramente o seu, depois os cavalos de todos, para que, igualado o perigo, tirasse a esperança de fuga, exortando os seus, trava Cesar a batalha. Arremessando os pilos do alto, rompem facilmente os soldados a falange aos inimigos; rota esta, arremetem contra eles espada em punho. Grande embaraço para a peleja era aos gauleses(39) o haverem-lhes os pilos varado e ligado de um golpe muitos escudos(40), de modo que, encurvado o ferro, o não podiam arrancar, nem pelejar assás comodamente, impedida a esquerda, e sacudindo constantemente o braço, desejavam muitos arrojar o escudo da mão, e pelejar a corpo descoberto, Afinal, desangrados pelas feridas, entram a recuar, retirando-se para um monte daí mil passos. Ganho o monte, e subindo trás eles os nossos, os boios e tulingos, que em força ao redor de quinze mil homens fechavam o exército inimigo, e compunham o corpo de reserva, atacando os nossos na investida pelo flanco aberto, começam de involvê-los, o que notado dos helvecios, que se haviam retraído ao monte, carregam de novo, e restauram a batalha. Fazem então frente os romanos para duas partes, opondo aos vencidos e retraídos a primeira e segunda linhas, a terceira aos que atacavam pelo flanco.
XXVI. — Assim combate-se encarniçadamente, indecisa largo tempo a vitória. Não podendo por fim sustentar o impeto dos nossos, acolhem-se uns ao monte como haviam começado a fazê-lo, passam-se outros a seus carros e bagagens; pois, combatendo-se desde uma hora da tarde até véspera, ninguém em todo esse tempo viu costas ao inimigo. Pelejou-se ainda até alta noite juntos às bagagens, porque fazendo dos carros tranqueiras, arremessavam do alto dardos contra os nossos e deles os feriam através das rodas com zagaias e zargunchos. Depois de combater-se largo espaço, apoderam-se os nossos de carros e bagagens, sendo aí aprisionados a filha e um dos filhos de Orgetorix. Restaram desta batalha uns cento e trinta mil homens, que marchando constantemente essa noite toda, chegaram em quatro dias às fronteiras dos lingones(41), sem que os nossos os pudessem seguir, demorados pelas feridas dos soldados e sepultura dos mortos. Preveniu Cesar aos lingones, que os não socorressem com trigo, nem outra alguma coisa, declarando-lhes que, se o fizessem, os teria na mesma conta que aos helvecios. Três dias depois, os segue em pessoa com todas as tropas.
XXVII — Forçados a render-se pela necessidade de tudo, deputam-lhe os helvecios embaixadores, que o encontram no caminho, lançam-se-lhe aos pés, e lhe pedem paz com muitas súplicas e lágrimas, Mandados aguardá-lo no lugar, aonde então estavam, obedecem. Depois de aí chegar, exige-lhes Cesar reféns, armas, escravos para eles fugidos. Enquanto estas coisas se procuram e apresentam, mete-se de permeio a noite; e cerca de seis mil homens do cantão chamado Verbigeno(42), ou temendo ser supliciados, depois de entregues as armas, ou induzidos da esperança de salvação, porque em tamanha multidão de rendidos esperavam ou poder sua fuga ser oculta, ou totalmente ignorada, abalando à prima noite dos arraiais dos helvecios, marcham para o Rim e confins dos germanos.
XXVIII — Mal o sabe, ordena Cesar àqueles por cujas terras foram, que os procurem e reconduzam se querem com ele justificar-se. Obedecido, aos reconduzidos tem em conta de inimigos; a todos os mais, depois de entregues reféns, armas transfugas, os toma debaixo de sua proteção. Aos helvecios, tulingos(43) elatobrigos(44) determina, voltem aos países, donde haviam partido; e porque, destruídas absolutamente as novidades, nada tinham em casa com que ocorrer à fome, ordena aos alobroges lhes forneçam trigo e a eles mesmos, restabeleçam as cidades e aldeias queimadas. Fá-lo principalmente por não ficarem devolutas as terras dos helvecios, para que, por amor da fertilidade do solo, não passassem das suas para elas os germanos que habitam além do Rim, vizinhando assim com a província da Galia e os Alobroges. Quantos ao boios, solicitando os heduos guardá-los em suas fronteiras, por serem mui esforçados, lho permite; e estes lhes concedem terras, e depois os mesmos foros e liberdade de que gozavam.
XXIX — Foram nos arraiais dos helvecios encontradas e levadas a Cesar, tábuas escritas em caracteres gregos, as quais continham a relação nominal dos que haviam saido da pátria, tanto homens em estado de pegar em armas, como meninos, velhos e mulheres. Perfaziam os helvecios o número de duzentas e sessenta e três mil cabeças; os tulingos, o de trinta e seis mil; os latobrigos, o de quatorze mil; os rauracos, o de vinte e três mil; os boios o de trinta e duas mil. O número total dos que podiam pegar em armas era de noventa e dois mil, e o dos de todos os sexos e idades, de trezentos e sessenta e oito mil. O total dos que depois voltaram à patria foi, segundo o censo ordenado por Cesar, de cento e dez mil.
XXX. — Terminada a guerra dos helvecios, vieram os principais de quase todas as cidades da Galia dar parabéns a Cesar, significando-lhes que, posto entendessem ter o povo romano debelado os helvecios por antigas ofensas deles recebidas, fora todavia isso não menos útil à terra da Galia, que aos romanos; porquanto haviam os helvecios abandonado seu país em estado mui florescente com desígnio de assenhorear-se da Galia por conquista, e escolher para residência a comarca que de toda ela julgassem a mais oportuna e fértil, fazendo as demais cidades tributárias suas. Pediram-lhe levasse a bem convocarem uma reunião de toda Galia(45), para dia aprazado, pois tinham requerimentos a fazer-lhe de acôrdo comum. Outorgado, marcam o dia da reunião, e obrigam-se com juramento a não divulgá-lo, senão a quem por deliberação comum fosse resolvido.
XXXI. — Despedida a reunião, os mesmos principais das cidades, que tinham estado com eles antes, tornaram a vir ter com Cesar, pedindo-lhe uma conferência secreta sobre a sua particular, e a salvação comum dos gauleses. Impetrado(46), lançam-se todos aos pés de Cesar, conjurando-o com lágrimas: “Que não importava menos ficar em segredo o que lhe iam revelar, do que alcançarem o que desejavam; porquanto, se não houvesse segredo, ficavam expostos a suportar as maiores angústias.” Orou por eles o heduo Diviciaco nestes termos: “Que em duas facções estava a Galia toda dividida, de uma das quais tinham os heduos o principado, e da outra os arvernos(47); e, disputando-se elas a supremacia muitos anos, acontecera socorrerem-se os arvernos e sequanos de germanos mercenários; e, passando destes primeiramente o Rim uns quinze mil, depois mais, quando em sua barbária e ferocidade foram tomando gosto a fertilidade da terra, polícia e abundâncias dos gauleses, existiam ora na Galia cerca de cento e vinte mil — Que com esses haviam primeira e segunda vez travado batalha os heduos e seus apaniguados, e recebido vencidos grande calamidade, perdendo toda nobreza, todo senado, toda cavalaria, pelas quais batalhas e perdas alquebrados se viram eles, dantes os mais poderosos da Galia por seu esforço, aliança e amizade com os romanos, forçados a dar aos sequanos em reféns os mais nobres da cidade, obrigando-se com juramento a não exigir os reféns, nem implorar auxílio ao povo romano, nem recusar viver sob o perpétuo jugo e sujeição dos mesmos — Que de toda a cidade dos heduos era ele o único que nunca pudera ser induzido a jurar, nem dar seus filhos em reféns, sendo porisso obrigado a fugir da cidade e ir à Roma implorar auxílio ao senado, visto como nem por juramento, nem reféns se achava ligado — Mas ainda pior sucedera aos sequanos vencedores do que aos heduos vencidos, porque o rei dos germanos, Ariovisto, em suas fronteiras deles(48) fizera assento, ocupando-lhes a terça parte das terras, as melhores da Galia, e os mandava agora sair de outra terça parte, por lhe haverem chegado vinte e quatro mil harudes(49), aos quais era mister preparar terras e mansão — Que dentro em poucos anos aconteceria serem expulsos da Galia todos os gauleses, e passarem o Rim todos os germanos, pois nem o terrão germano era para comparar em bondade com o gaulês, nem este com aquele bárbaro costume de viver — Que, depois de vencer os gauleses em Magetobria(50), se tornara Ariovisto tão soberbo e tirano, que exigia em reféns os filhos dos mais nobres, e os castigava com todo gênero de tormentos, quando não obedeciam a seu menor aceno ou vontade; e era bárbaro, iracundo, violento, a ponto de não poder seu jugo ser mais tempo suportado — Se Cesar e os romanos lhes não valessem, teriam os mais gauleses de emigrar, como os helvecios, em procura de outras terras e habitações, remotas dos germanos, fosse qual fosse a fortuna que os aguardasse; e, se suas queixas chegassem aos ouvidos de Ariovisto, tinham certeza que havia ele de acabar em tormentos a todos os reféns — Que, com sua autoridade e a do exército, sua recente vitória, e o nome romano, podia Cesar fazer com que não passasse o Rim maior multidão de germanos, e pôr toda Galia à coberto das violências de Ariovisto.”
XXXII — Depois deste discurso de Diviciaco, entram todos os que estavam presentes, a pedir auxílio a Cesar com grande pranto. Nota, porém, Cesar que só os sequanos não faziam como os mais, mas olhavam para a terra, cabisbaixos e tristes. Admirado inquire-lhes a causa: E nada responderam os sequanos, permanecendo calados na mesma tristeza. Perguntando-lho mais vezes, sem lhes poder arrancar palavra, responde o mesmo heduo Diviciaco: “Que tanto mais miserável e grave era, que a dos mais, a condição dos sequanos, porque sós nem ainda ocultamente ousavam queixar-se, nem implorar auxílio, temendo a crueldade de Ariovisto ausente, como se presente fosse; pois os mais podiam subtrair-se-lhe fugindo, os sequanos, porém, que o haviam recebido em suas terras, e cujas cidades estavam todas em poder dele, tinham de suportar-lhe todas as cruezas.
XXXIII — Inteirado disto, anima Cesar os gauleses, prometendo-lhes tomar o negócio a peito, pois grande esperança concebia que, demovido por seus beneficios e autoridade, havia Ariovisto pôr termo às iniquidades. Depois disso impeliam-no a chamar o negócio a si, tomando-o na devida consideração, outros valiosos motivos, dos quais era o principal ver sob o jugo germano escravizados os heduos, tantas vezes honrados pelo senado com o nome de irmãos e consanguíneos, e os reféns destes em poder de Ariovisto e dos sequanos; o que, sendo tamanho o poderio dos romanos, reputava mui desairoso à si e à república. Via por outro lado ser perigoso para os romanos acostumarem-se, pouco e pouco, os germanos, a passar o Rim, e afluir, em grande multidão na Galia; porque estes bárbaros não se haviam por certo de conter em sua ferocidade, que, depois de ocupar a Galia, não invadissem, como os cimbros e teutões, a nossa província e daí a Itália, principalmente sendo o Ródano a única extrema entre os sequanos e a província; ao que entendia dever quanto antes ocorrer-se. Demais, tais espíritos e sobranceria se havia o mesmo Ariovisto arrogado, que já não era para tolerar.
XXXIV — Julgou, pois, conveniente mandar embaixadores a Ariovisto, pedir-lhe escolhesse lugar acomodado para conferenciarem; porque tinha a tratar com ele negócio de suma importância, tanto a República, como a ambos. A esta embaixada respondeu Ariovisto: “Que se ele necessitasse o que quer que fosse de Cesar, iria procurá-lo; assim, se Cesar lhe queria alguma coisa, viesse ter com ele — Demais, não ousava ir sem exército às partes da Galia ocupadas por Cesar, nem podia reunir exército sem grande abastecimentos e aparatos — Muito se admirava, porém, que tivesse ou Cesar ou o povo romano de ver absolutamente com a sua Galia por ele conquistada.”
XXXV. — Recebida tal resposta, manda-lhe Cesar nova embaixada concebida nestes termos: “Que, pois, obrigado por tamanho benefício seu e do povo romano, como ser em seu consulado honrado pelo Senado com o título de rei e amigo, lhe retribuía por todo agradecimento a ele e ao Senado, recusar-se a uma conferência, sem a menor consideração com sua pessoa, nem com o bem público, eis o que dele exigia: — primeiro, não passar mais aquém do Rim multidão alguma de homens para a Galia; depois, restituir os reféns que tinha dos heduos, e permitir aos sequanos restituirem livremente os que dos mesmos também possuíam; nem empecer, nem fazer guerra aos heduos e seus aliados — Que, se nisso viesse, Cesar e o povo romano teriam com ele perpétua paz e amizade: senão, não havia Cesar desprezar os agravos dos heduos, pois decretara o Senado no consulado de Marco Messala e Marco Pisão, que todo o que tivesse o governo da província da Galia, protegesse os heduos e mais amigos dos romanos, quando fosse possível fazê-lo sem gravame da República.”
XXXVI — A isto respondeu Ariovisto: “Que era direito da guerra imperar o vencedor à bel prazer sobre o vencido; nem segundo o ditame de outrém costumava o povo romano fazê-lo mas por alvedrio seu; e se ele não prescrevia aos romanos a maneira, por que haviam de usar de seu direito, não deviam também os romanos estorvá-lo quando usava do seu — Que os heduos, tendo tentado a fortuna das armas, tornaram-se, depois de vencidos, tributários seus; e grande injustiça praticava Cesar, agorentando-lhe com sua vinda os rendimentos, — Que não havia de restituir os reféns aos heduos, nem fazer-lhes guerra a eles e seus aliados, enquanto persistissem no concertado, pagando-lhe o tributo anual; mas, se o não fizessem, de nada lhes havia de valer o nome fraterno do povo romano. E quanto a dizer Cesar, que não desprezaria os agravos dos heduos, ninguém combatera com ele sem ficar destruído; esperimentasse-o, quando quisesse, e conheceria qual era o valor dos germanos invencíveis e adestrados nas armas, a ponto de se não abrigarem debaixo de teto por espaço de quatorze anos.”
XXXVII — Na mesma ocasião em que esta resposta se transmitia a Cesar, chegavam-lhe embaixadores não só dos heduos, mas também dos trevicos(51): — Queixavam-se os heduos, de nem ainda com reféns poderem comprar a paz de Ariovisto, pois estavam as suas fronteiras(52) sendo assoladas pelos harudes, recentemente transportados à Galia: — Os treviros, de haverem acampado junto à margem do Rim, com ânimo de passar o rio, os cem cantões dos Suevos(53), capitaneados pelos irmãos, Nasua e Cimberio. Gravemente comovido com isto, entende Cesar que não há tempo a perder, porque se às antigas tropas de Ariovisto se reunisse o novo enxame dos suevos, menos facilmente poderia resistir-lhes. Assim, feito as pressas provimento de víveres, dirige-se a grandes marchas contra Ariovisto.
XXXVIII — Tendo avançado caminho de três dias, recebe aviso de que marchava Ariovisto com todas as tropas a ocupar Vesonção(54), a maior cidade dos sequanos, e havia ganho três jornadas além de suas fronteiras. Entendia Cesar dever a todo custo prevenir tal ocupação: porquanto havia nesta cidade suma abundância de tudo que é mister para a guerra, e era ela tão fortificada por sua situação, que oferecia a maior possibilidade de fazer prolongar a campanha, porque o rio Dubis(55), torneando-a como à volta de compasso, a cinge quase toda, e o espaço por ele não compreendido, de cerca de seiscentos pés, é fechado por um alto monte cujas raízes são de um e outro lado, beijadas pelas margens do rio. Fazendo do monte cidadela, prende-o a cidade uma muralha. Para aqui se dirige Cesar a grandes marchas noite e dia, ocupa a praça(56), e a guarnece de tropas.
XXXIX — Enquanto se demora poucos dias em Vesonção para abastecer-se de víveres, inquerindo os nossos e apregoando os gauleses e mercadores, serem os germanos de grande corpulência, incrível esforço e exercício em armas, à ponto de não poderem os gauleses suportar-lhes no combate nem a catadura nem o olhar sequer, apoderou-se tal terror do exército, que não pouco perturbava o entendimento e ânimo a todos. Nasceu este, a princípio, dos tribunos dos soldados, prefeitos e outros, que acompanhando a Cesar por amizade, quando partiu de Roma, deploravam a gravidade do perigo, por não terem grande prática da guerra. Deles pediam a Cesar permissão de retirar-se, inventando algum pretexto honesto para fazê-lo; deles ficavam por vergonha, para evitar a suspeita do medo. Estes porém não podiam compor o rosto, nem por vezes reter as lágrimas: escondidos nas tendas, ou choravam sua má fortuna, ou deploravam com os amigos o perigo comum. Pelo campo todo se faziam testamentos. Com as vozes e o temor desses, aos poucos se iam turbando os mesmos que grande experiência tinham da guerra, soldados, centuriões e oficiais de cavalaria. Os que queriam parecer mais corajosos, diziam temer, não o inimigo, mas os desfiladeiros e imensos bosques que se interpunham entre eles e Ariovisto, ou a carência de provisões pela dificuldade dos transportes. Alguns até prediziam a Cesar que, quando mandasse levar campo e estandantes, o soldado lhe não havia de obedecer nem desalojar, possuído de temor.
XL — À vista de tamanho pânico, faz Cesar uma reunião de oficiais em que são admitidos os centuriões de todas as graduações(57); e extranha-lhes severamente entenderem dever pesquisar, ou examinar para onde, ou com que fim fossem dirigidos, acrescentando: “Que tendo em seu consulado Ariovisto solicitado a amizade do povo romano com todo empenho, porque razão se supunha deixaria tão sem fundamento de permanecer nela? — Que ele Cesar estava persuadido de que, apreciando sua proposta e a equidade das condições oferecidas, não havia Ariovisto de enjeitar-lhe a amizade nem a dos romanos — Caso, porém, fosse tão furioso e insensato, que nos declarasse guerra, que era o que temiam? Ou porque deixavam de confiar no próprio valor, ou na perícia do general? — Que em tempo de nossos pais fora este inimigo experimentado, quando, com não menor glória do exército, que do general, derrotara Caio Mano os Cimbros e Teutões; e ainda há pouco o fora em Itália, na guerra dos escravos germanos, já então auxiliados com alguma tática militar de nós aprendida — Daí se podia conhecer quanto valia a constância, pois aos que algumas vezes temeram desarmados, os venceram depois armados e vencedores. Que estes finalmente eram os mesmos germanos, muitas vezes combatidos, e não poucas vencidos, até em sua própria casa, pelos helvecios que não puderam todavia resistir ao nosso exército; e os que se deixavam impressionar da derrota e fuga dos gauleses, deviam ver que Ariovisto, fatigando-os com a procrastinação da guerra, encerrado muitos meses nos arraiais e paues, sem dar cópia de si, e acometendo-os de súbito, quando já debandados desesperavam a batalha, mais os vencera por estratagema, que valor; — mas nem esse mesmo esperava que nosso exército se deixasse surpreender pelo ardil, que lhe sortira bom efeito com bárbaros inexperientes — Que os que disfarçavam o temor com a carência de viveres e os desfiladeiros do caminho, obravam arrogantemente, parecendo ou desconfiar da capacidade do general ou prescrever-lhe o dever — Que tinha muitos a peito o abastecimento do exército: pois os sequanos, leucos(58), e lingones(59), lhe forneciam trigo, e já as messes estavam maduras nos campos; do caminho seriam eles próprios em breve os juizes. Quanto a não obedecerem, nem levarem estandartes(60), nada com isso se movia; porque sabia terem-se os generais a quem não obedecera o exército, ou infelicitado perdendo batalhas, ou maculado com criminosa avareza: — que de sua limpeza de mãos dava testemunho sua vida inteira, de sua felicidade a guerra contra os helvecios — Que assim o que havia de fazer daí a dias, ia fazê-lo já, que era levantar campo na quarta vela da próxima noite, para saber quanto antes o que podia mais com eles, se o pudor e o dever ou o medo — E se ninguém o quisesse seguir, havia, nada obstante, marchar só com a décima legião, e essa lhe serviria de coorte pretoriana.” Era esta a legião a que Cesar mais comprazia, e em cujo valor mais confiava.
XLI — Maravilhosa foi a mudança operada nos ânimos por este discurso, que fez nascer em todos sumo alvoroço e ardor guerreiro. A décima legião foi a primeira que, pelos tribunos dos soldados, rendeu graças a Cesar, por haver dela formado ótimo conceito, e confirmou estar prontíssima a marchar. Depois, também as demais legiões, por intermédio dos tribunos dos soldados e centuriões das primeiras graduações, lhe deram satisfação nestes termos: “Que nunca duvidaram, nem temeram, nem reputaram seu o comando, mas do general.” Aceita a satisfação, e por Diviciaco, o gaulês de sua maior confiança, explorado o melhor caminho para levar o exército por campos com um rodeio de mais de sessenta milhas, parte na quarta vela da noite, como determinara; e ao sétimo dia de marcha não interrompida, sabe dos exploradores distarem das suas as tropas de Ariovisto coisa de vinte e quatro milhas.
XLII — Ciente da vinda de Cesar, envia-lhe Ariovisto embaixadores a dizer: “Que convinha em ter a conferência dantes pedida, porque havendo Cesar chegado para mais perto, contava podê-lo fazer sem risco.” Não rejeitou Cesar a proposta; e já supunha Ariovisto tornado a melhor conselho, pois oferecia de boamente o que recusara rogado, e concebia grande esperança de que em atenção aos benefícios dele e do povo romano recebidos, e à vista da equidade do que lhe exigia, havia desistir da pertinácia. Foi para daí a cinco dias marcado o da conferência. E como neste ínterim se enviavam recíprocas embaixadas, exigiu Ariovisto que Cesar não levasse infantaria alguma à conferência, porque receava ciladas da parte deste, mas fossem ambos acompanhados de cavalaria, sendo que de outra forma não havia de vir. Cesar que desejava remover todo e qualquer obstáculo à realização da conferência, mas não ousava confiar sua salvação à cavalaria gaulesa, entendeu ser o mais conveniente tirar-lhe os cavalos, e montar com eles a décima legião que era a de sua maior confiança, para, em caso de necessidade, contar com socorro quanto mais amigo; o que feito, disse não sem graça um soldado desta: “Que Cesar fazia mais do que prometia, pois tendo prometido fazer da décima legião guarda pretoniana, a alistava na cavalaria.”
XLIII — Havia uma vasta planície, e nela um cômoro assás grande. Distava o lugar, quase espaço igual de ambos os acampamentos. Para ali se dirigiram a conferenciar, como estava convencionado. Cesar postou sua legião montada a duzentos passos deste cômoro. A cavalaria de Ariovisto fez alto a distância igual. Chegados aí, exordiou Cesar, mencionando os benefícios seus e do Senado a Ariovisto, como fora honrado com o título de rei e amigo, e magnificamente remunerado, o que a bem poucos coubera em sorte, pois tinham os romanos por usança concedê-lo unicamente aos mais assinalados serviços; — e todos esses favores conseguira por mera liberalidade sua e do Senado, porque não tinha motivo justo, nem plausível, para solicitá-los, Representou-lhe mais quão antigos e justos eram os fundamentos da amizade dos romanos com os heduos, de quais, quantos, e quão honoríficos decretos do Senado haviam estes sido objeto, e como em todo tempo, ainda antes de procurarem nossa amizade, exerceram a supremacia na Galia — Que era uso e costume do povo romano o querer que seus aliados e amigos não só nada perdessem em seus foros, mas fossem ainda acrescentados em preponderância, dignidade, honraria. Como pois se havia tolerar fosse arrancado aos heduos o que trouxeram com sua amizade quando se aliaram aos romanos? Apresentou depois as mesmas condições que havia proposto por seus embaixadores — Que não fizesse guerra nem aos heduos, nem a seus aliados; restituísse os reféns; e, se não podia mandar parte dos germanos para seu país, não consentisse passarem o Rim outros de novo.”
XLIV — A isto pouco respondeu Ariovisto, espraiando-se sobre seu mérito e virtudes nesta substância: “Que não de motu próprio, mas rogado e convidado pelos gauleses, se aventurara a passar o Rim, deixando pátria e parentes não sem grandes esperanças e promessas; que tinha na Galia domicílio e reféns concedidos pelos mesmos, e pelas leis da guerra percebia o tributo que aos vencidos costumavam impor os vencedores — Que não fora ele quem fizera guerra aos gauleses, mas os gauleses a ele, vindo atacá-lo e acampando contra ele todas as cidades da Galia(61); — e essas numerosas tropas foram todas por ele destroçadas e vencidas numa batalha — Se queriam fazer nova experiência, estava pronto a pelejar; mas se queriam paz, era iníquo recusarem o tributo que até aí haviam pago — Que a amizade do povo devia ser-lhe de honra e proveito, não prejuízo; e neste presuposto a solicitara — Se o povo romano lhe tirasse os tributários, remitindo-lhes o tributo, de tão boamente lhe havia de enjeitar a amizade, como a procurara — Quanto a passar a Galia multidão de germanos, o fizera para amparar-se, não para atacar a Galia; e disso era testemunho o não ter vindo, senão rogado, e o não ter atacado, mas repelido o ataque — Que primeiro, que os romanos, viera ele à Galia; pois nunca dantes havia nosso exército transposto os limites da província romana. Que era o que lhe queria? porque penetrava em seus domínios? — Que esta Galia era província sua, bem como aquela outra nossa; e assim como lhe não devia ser permitido invadir nossas fronteiras, assim também éramos injustos intrometendo-nos em sua jurisdição — Quanto a serem os heduos apelidados irmãos pelo Senado, não era ele tão bárbaro e inexperiente do que ia pelo mundo, que não soubesse que nem os heduos auxiliaram aos romanos na guerra contra os alobroges, nem os romanos aos heduos na que estes com ele e os sequanos tiveram — Que o ter Cesar exército na Galia com capa de amizade, suspeitava ser para oprimi-lo, e se dali se não retirasse com o exército, havia tê-lo em conta, não de amigo, mas de inimigo; pois faria, se o matasse, coisa agradável a muitos nobres e principais de Roma, como sabia dos mensageiros que lhe os mesmos enviavam, e podia com isso comprar a proteção e amizade de todos eles: — ele porém, se Cesar se retirasse, deixando-lhe a livre posse da Galia, havia remunerá-lo, fazendo sem trabalho nem risco do mesmo Cesar todas as guerras que quisesse feitas(62).
XLV — Muito discorreu Cesar para mostrar não poder desistir da pretenção, por não ser próprio dele e do povo romano desamparar aliados beneméritos, nem ser a Galia mais de Ariovisto do que dos romanos. Que por Quinto Fabio Maximo foram vencidos os arvernos e rutenos(63), a quem perdoara o povo romano sem os reduzir a província, nem impor-lhes tributo — Se convinha atender à antiguidade, o império romano era o mais justo na Galia; se à autoridade do Senado, a Galia a quem permitira vencida reger-se por suas leis, devia ser livre.
XLVI — Emquanto isto se passa na conferência, é Cesar avisado de que os cavaleiros de Ariovisto se chegavam para perto do cômoro, e cavalgando contra os nossos, lhes arremessavam pedras e dardos. Põe Cesar termo ao dizer, e retirando-se para os seus, ordena-lhes nem um só tiro façam aos inimigos. Pois, posto via haver de ser sem risco da legião escolhida o combate com a cavalaria, entendia contudo não dever travá-lo, para que, rechaçados os inimigos, não se dissesse depois haverem sido cercados na conferência com quebra da fé pública. Mal se espalhou pelo vulgo dos soldados com que arrogância se houvera Ariovisto, pretendendo vedar-nos a Galia, ter sua cavalaria atacado os nossos, e ser isso causa de romper-se a conferência, maior foi ainda a alacridade e o ardor de pelejar, que se apoderou do exército.
XLVII — Dois dias depois manda Ariovisto esta embaixada a Cesar: “Que desejava tratar com ele do que começara a tratar-se, e não fora ultimado; — e ou marcasse dia para nova conferência, ou, senão, lhe deputasse algum lugar-tenente seu.” Não julgou Cesar dever ter outra conferência, mui principalmente por não se poderem abster os germanos na passada de fazer tiros aos nossos. Deputar-lhe um lugar-tenente dos seus fora expô-lo a grande risco entre tais bárbaros. O que pareceu mais conveniente, foi enviar-lhe Caio Valerio Procillo, filho de Caio Valenio Caburo, moço de excelentes partes, cujo pai fora por Caio Valerio Flaco agraciado com o foro de cidadão romano, pois não só era de sua inteira confiança, e sabedor da língua gaulesa, já mui familiar a Ariovisto, pelo longo uso, mas não dava também na pessoa ocasião aos germanos de desrespeitar-nos, e juntar-lhe por colega Marco Mecio(64) que fora hóspede de Ariovisto. A estes, pois, ordenou fossem saber o que lhe ele queria, e lho viessem relatar. Assim que os viu no acampamento, entrou Ariovisto a bradar diante de seu exército: “Porque é que vinham a ele? Se não eram espias?” E sem lhes permitir explicar-se os manda carregar de cadeias.
XLVIII — Levanta no mesmo dia o campo e o vem assentar junto de um monte a seis mil passos dos arraiais de Cesar. No seguinte, passa suas tropas para além dos arraiais de Cesar, acampando dois mil passos diante dele, para cortar-lhe o provimento de trigo e vitualhas, transportado dos sequanos e heduos(65). Desde esse dia conserva Cesar suas tropas ordenadas em batalha em frente dos arraiais por outros cinco sucessivos, oferecendo a Ariovisto ocasião de pelejar, se o quisesse fazer. Em todos eles contém Ariovisto o exército nos arraiais, escaramuçando quotidianamente com a cavalaria. São os germanos mui exercitados neste gênero de peleja.
Tinham seis mil cavaleiros, e outros tantos peões mui velozes e valentes, singularmente escohidos por cada cavaleiro para guarda sua. Com esses andavam os cavaleiros nas refregas, a esses se retraiam; esses ao menor perigo acorriam; se algum caía do cavalo gravemente ferido, logo o socorriam; se era mister avançar muito, ou retroceder a toda pressa, tão exercitada era neles a celeridade, que, agarrados às crinas dos cavalos, os igualavam na carreira.
XLIX — Como viu encerrar-se Ariovisto nos arraiais, Cesar, para lhe não ser mais tempo tolhido o provimento de víveres, escolheu além do em que estanciavam os germanos, lugar asado a acampamento, cerca de seiscentos passos destes, e para lá marchou com o exército formado em três linhas. À primeira e segunda linhas ordenou se conservassem em armas; à terceira, fortificasse arraiais. Distava do inimigo o lugar coisa de seicentos passos, como fica dito. Para ali mandou logo Ariovisto uns dezeseis mil homens expeditos com toda cavalaria, no intuito de com tais tropas obstar a fortificação, aterrando os nossos. Ordenou nada obstante Cesar que duas linhas fizessem rosto ao inimigo, e a terceira concluísse a obra. Fortificados os arraiais, aí deixou duas legiões e parte dos auxiliares, reconduzindo as quatro restantes aos arraiais maiores.
L — No seguinte dia tira Cesar suas tropas de ambos os arraiais, como dispusera; e adiantando-se um pouco dos maiores, as forma em batalha, oferecendo ao inimigo ocasião de pelejar. Vendo que nem assim saía a campo, reconduziu o exército à quartéis pela volta de meio dia. Então, finalmente, mandou Ariovisto parte de suas tropas atacar os arraiais menores, e de ambos os lados se combateu encarniçadamente até véspera. Ao pôr do sol reconduziu Ariovisto as tropas a quartéis, depois de causado e recebido muito dano. Inquerindo dos cativos o motivo por quê Ariovisto não aceitava a batalha, soube Cesar ser costume entre os germanos declararem as mães de família por meio de sortilégios e vaticínios, quando convinha ou não dar batalha; e diziam essas: “Não ser permitido aos germanos vencer, se antes da lua nova a dessem.”
LI — Um dia depois guarnece Cesar ambos os arraiais com força suficiente, e formando à vista dos inimigos todos os auxiliares em frente dos arraiais menores, para ostentação de número, por ter poucas legiões comparativamente à grande multidão daqueles, marcha em pessoa sobre o campo inimigo com o exército em três linhas. Obrigados então da necessidade tiram por fim os genmanos suas tropas dos quartéis e as ordenam em batalha por nações, mediando igual intervalo entre harudes(66), marcomanos(67), triboces(68), vangiones(69), nemetes(70), sedusios(71), suevos(72), e para tolher qualquer esperança de fuga, circundam toda a hoste(73) de veículos e carros, donde as mulheres com as mãos postas pediam chorando aos soldados que avançavam, as não deixassem cair na escravidão dos romanos.
LII — Prepondo a cada legião um lugar-tenente seu e um questor, para testemunharem o valor de cada um, trava Cesar a batalha com sua ala direita por notar que o inimigo estava menos firme desse lado. Com tal fúria investem os nossos ao sinal dado, e tão galhardamente correm os inimigos a encontrá-los, que não tiveram aqueles espaço de vibrar pilos contra estes. Omitidos os pilos, peleja-se a espada, recebendo os germanos o ímpeto destas ordenados em falange à sua usança. Houve muitos soldados nossos que, saltando por sobre as falanges(74), arrancavam-lhes os escudos com as mãos e feriam por cima. Desbaratada e posta em fuga a ala esquerda do inimigo, apertava a sua direita vigorosamente com os nossos assoberbados da multidão. Observa-o o moço Publio Crasso, general da cavalaria, por andar mais expedito, que os que se achavam na refrega, e envia a terceira linha a socorrer os nossos em aperto.
LIII — Restaurada por esta forma a batalha, voltaram costa todos os inimigos, e não pararam na fuga, senão quando chegaram à margem do Rim cerca de cinqüenta mil passos deste lugar. Aí, mui poucos, ou a passar o rio a nado, confiados nas próprias forças, se aventuraram, ou em canoas que por acaso encontraram, se salvaram(75). Deste número foi Ariovisto, que fugiu numa barquinha que estava amarrada à margem. Alcançados dos nossos com a cavalaria, todos os mais foram mortos. Duas mulheres teve Ariovisto, uma sueva, que trouxe comsigo da pátria; a outra norica, irmã do rei Vocião, com a qual casou na Galia, enviada pelo irmão: ambas pereceram nesta fuga. De duas filhas que houve delas, uma foi morta, a outra aprisionada. Caio Valerio Procilo, eniquanto é pelos guardas arrastado na fuga com três cadeias, encontra-se com o próprio Cesar que perseguia o inimigo à frente da cavalaria; e não é a este menor prazer, que a mesma vitória, ver tirado de mãos hostis, e salvo, a um dos homens mais honrados da província da Galia, amigo e hóspede seu, em que com sua perda agorentasse coisa alguma a fortuna de tanta satisfação e regozijo. Dizia ele haveremse três vezes feito sortilégios em sua presença, a ver se seria logo queimado vivo, ou reservado para outra ocasião, e dever aos sortilégios a salvação. É do mesmo modo encontrado Marco Mecio, e apresentado a Cesar.
LIV — Divulgada além Rim(76) a notícia desta batalha, entram a regressar a pátria os suevos acampados à margem deste. Deles aterrados, e acossados pelos Ubios que habitam perto do rio e lhes vão no encalço, são mortos muitos na retirada. Terminadas duas das maiores guerras em um só estio, conduz Cesar o exército aos sequanos(77) a quartéis de inverno, um pouco mais cedo do que o requeria a estação; e prepondo Labieno a esses quartéis, parte para a Galia citerior a reunir as juntas da província(78).
Fonte: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/cesarP.html



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Salústio
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Caio Salústio Crispo (86-34 a.C.), foi um dos grandes escritores e poetas da literatura latina.
Nasceu em Amiterno, na Sabina, em 86 a.C. em uma família interiorana, mas de posses, teve uma formação requintada. Foi cedo para Roma, e recebeu apoio de pessoas da influência da sua família. Com o apoio de César, Salústio foi eleito questor, cargo que lhe assegurou uma cadeira no Senado Romano. Investiu contra adversários de César, e estes passaram a ser seus adversários, como Milão e Cícero.
Esse inimizade que Salústio tinha com Cícero é refletira em sua obra: A conjuração de Catilina, o autor é hostil a Cícero e não entra em muitos detalhes quanto a importante participação de Cícero durante o ocorrido, ele nem mesmo reproduz os discursos de Cícero ao Senado, discursos que até hoje são lembrados pela historiografia política. Em compensação Salústio descreve com riqueza de detalhes o discurso de César, seu colaborador.
Salústio foi expulso do Senado pelo censor Ápio Cláudio Pulcher, grande amigo de Cícero, sob a acusação de imoralidade, mais pouco depois foi reconduzido ao cargo pelo chefe e padrinho. Durante a guerra Civil, ele apoiou a causa de César a quem prestou serviços e por quem foi nomeado governador da Numídia (África Nova), onde conseguiu acumular uma grande riqueza e passou a desfrutar da “angustiante fadiga romana”. Com o fim de sua carreira política, ele passou a se dedicar a literatura, já desiludido com a corrupção em Roma, escreveu sobre a decadência do povo romano e foi útil ao descrever dois grandes momentos do fim da república romana: a Conjuração de Catilina e a Guerra de Jugurta, escritos entre a morte de Cícero, em 43 a.C. e a guerra Purúgia, 40 a.C., quando os grandes personagens da conjuração, Crasso, Pompeu, Catão, César, Cícero e o próprio protagonista, Catilina; já haviam desaparecidos do cenário político.
Salústio usa suas narrativas como um pretexto para criticar os erros políticos cometidos pelos que governavam, principalmente os de Cícero, seu inimigo político e pessoal. Assim Salústio encerra sua vida publica, em sua mansão adquirida com as riquezas que arrecadou enquanto era governador da Numídia, escrevendo suas monografias em seu belo jardim, e assim como Cícero, ele entra para a história por relatar passagens da política romana na antiguidade.

César e Catão: algo de Salústio para ser relido
Por: Maria da Glória Novak
Lendo e ouvindo as muitas façanhas feitas pelo povo Romano na paz e na guerra, no mar e em terra, ocorreu-me o desejo de indagar que causas tornaram possivel tão grande atividade. Sabia eu que freqüentes vezes um punhado de homens se tinham batido com grandes legiões inimigas; tinham tido a oportunidade de conhecer que com recursos escassos se guerreara contra reis poderosos; que, além do mais, tivéramos com freqüência de suportar os golpes da fortuna, e que os gregos, pela eloqüência, e os gauleses, pela glória militar, estavam à frente dos Romanos.
À custa de muita reflexão, eu chegava a conclusão de que o valor eminente de uns poucos cidadãos tinha conseguido realizar tudo isso e assim se deu que a pobreza prevaleceu sobre a riqueza, a pouquidade, sobre a multidão.
Mas depois que o luxo e a ociosidade corromperam a Nação, a República, pela sua própria grandeza, foi, por sua vez, capaz de suportar os vícios dos generais e magistrados e, Roma, como se tivesse exaurida sua fecundidade, por longos anos não produziu nenhuma grande figura. Em meu tempo, porém, houve dois homens de extraordinãrio valor, de caracteres opostos: Marco Catão e Caio Cesar.
Pois bem, eles, pelo nascimento, idade, eloqüência, eram quase iguais; a mesma grandeza de alma, o mesmo desejo de glória também, mas cada um à sua maneira. À custa de favores e liberalidades granjeara César seu prestígio; Catão, pela integridade de sua vida. Aquele pela mansidão e clemência se fizera ilustre; a este a austeridade conferira o respeito. Ambos chegaram à glória: César dando, ajudando, perdoando; Catão, nada concedendo. Um era o refúgio dos infelizes, o outro a ruína dos maus. De um se louvava a condescendência, do outro a coerência. Por fim, César se propusera trabalhar, vigiar, descuidar de seus interesses para se consagrar aos interesses dos amigos; para si ambicionava uma grande missão, um exército, uma guerra diferente onde pudesse resplandecer seu valor. E Catão tinha o gosto da moderação, do dever, mas, acima de tudo, da austeridade. As armas com que lutava não eram a riqueza com os ricos nem a intriga com o intrigante, mas a coragem com o bravo, a discrição com o modesto, a integridade com o honesto. Preferia ser a parecer bom; por isso, quanto menos procurava a glória, mais ela o perseguia. Ita quo minus petebat gloriam, eo magis illum adsequebatur.
Salústio: De Coniuratione Catilinae, Sobre a conjuração de Catilina, 53-54.
Sed mihi multa legenti, multa audienti, quae populus Romanus domi militiaeque, mari atque terra praeclara facinora fecit, forte lubuit adtendere, quae res maxume tanta negotia sustinuisset. [3] sciebam saepenumero parva manu cum magnis legionibus hostium contendisse; cognoveram parvis copiis bella gesta cum opulentis regibus, ad hoc saepe fortunae violentiam toleravisse, facundia Graecos, gloria belli Gallos ante Romanos fuisse. [4] ac mihi multa agitanti constabat paucorum civium egregiam virtutem cuncta patravisse, eoque factum, uti divitias paupertas, multitudinem paucitas superaret. [5] sed postquam luxu atque desidia civitas conrupta est, rursus res publica magnitudine sua imperatorum atque magistratuum vitia sustentabat ac, sicuti effeta partu, multis tempestatibus haud sane quisquam Romae virtute magnus fuit. [6] sed memoria mea ingenti virtute, divorsis moribus fuere viri duo, M. Cato et C. Caesar. quos quoniam res obtulerat, silentio praeterire non fuit consilium, quin utriusque naturam et mores, quantum ingenio possum, aperirem.
LIV.[1] Igitur iis genus, aetas, eloquentia prope aequalia fuere, magnitudo animi par, item gloria, sed alia alii. [2] Caesar beneficiis ac munificentia magnus habebatur, integritate vitae Cato. ille mansuetudine et misericordia clarus factus, huic severitas dignitatem addiderat. [3] Caesar dando, sublevando, ignoscundo, Cato nihil largiundo gloriam adeptus est. in altero miseris perfugium erat, in altero malis pernicies. illius facilitas, huius constantia laudabatur. [4] postremo Caesar in animum induxerat laborare, vigilare; negotiis amicorum intentus sua neglegere, nihil denegare, quod dono dignum esset; sibi magnum imperium, exercitum, bellum novom exoptabat, ubi virtus enitescere posset. [5] at Catoni studium modestiae, decoris, sed maxume severitatis erat; [6] non divitiis cum divite neque factione cum factioso, sed cum strenuo virtute, cum modesto pudore, cum innocente abstinentia certabat; esse quam videri bonus malebat: ita, quo minus petebat gloriam, eo magis illum adsequebatur.
in: NOVAK, Maria da Glória: Antologia Bilíngüe de Escritos Latinos pp. 41-43.
Fonte: http://salterrae.org/2008/05/13/cesar-e-catao-algo-de-salustio-para-ser-relido/





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HORÁCIO - LÍRICA

Estudo sobre a lírica de Horácio:
A Lírica de Horácio: Uma Lição Clássica de Contornos Atuais, De José Mário Botelho - download pdf

Horácio (65 a.C. - 8 a. C.)
O poeta lírico, satírico e filósofo Quintus Horatius Flaccus ou Quinto Horácio Flaco nasceu em Venúsia, posteriormente Venosa, Itália. Filho de um escravo emancipado, que exercia as funções de recebedor dos dinheiros públicos no leilões, Horácio teve boa educação literária em Roma, completada, depois, em Atenas. Nesta cidade se achava ainda quando ocorreu o assassinato de César (44 a. C.).
Horácio e vários de seus colegas de estudos acolheram com entusiasmo o feito de Brutus, e quando esse organizou o exército que iria combater em Filipos, Horácio, com apenas vinte anos, recebeu o comando de uma legião.
Apesar da derrota em Filipos, pôde regressar a Roma graças a uma anistia.
Em Roma, conseguiu o cargo de escrivão de questor e, graças proteção do influente Caio Mecenas, a quem foi apresentado por Virgílio, Horácio entrou para os círculos literários, tornando-se o primeiro literato profissional romano. Mecenas ainda presenteou-o com uma casa de campo nos arredores de Tibur, hoje Tívoli. A partir daí Horácio dedicou-se somente ao cultivo da poesia, chegando a recusar até mesmo o posto de secretário particular de Augusto.
Horácio reagiu contra a escola de Catulo, procurando os seus modelos nos velhos líricos da escola lesbiana. Em seus versos, de notável perfeição formal, vemos refletido a moral epicurista, ou seja, não se entregue a ambição, goze com moderação dos bens da vida e não se preocupe como o futuro (carpe diem).
As obra lieterária de Horácio é composta por:
Odes (19 a. C.) - Peças líricas sobre vários assuntos;
Epodos, ou Iambos - coleção de 17 poemas escritos na mocidade, que tratavam de assuntos romanos e imitava, tanto no metro como no espírito satírico, o poeta Arquíloco;
Satíricas ou Sermones - baseado em assuntos literários ou morais, discute questões éticas;
Canto Secular, composta a pedido de Augusto. (20 a. C.) - hino epistolar de caráter litúrgico dedicado a Apolo e Diana;
Epístolas - coleção de cartas sobre assuntos variados: recomendações, convites e discussões filosóficas e morais. Dentre essas cartas destaca-se a carta aos Pisões, conhecida como Arte Poética.
Fonte: www.mundocultural.com.br

CARPE DIEM
Ode ( I, XI)
Horácio, séc. I a.C.
Tradução de Mauri Furlan
Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
Finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
Tentaris numeros. Ut melius quidquid erit pati!
Seu plures hiemes, seu tribuit Jupiter ultimam,
Quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum, sapias, vina liques et spatio brevi
Spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit invida
Aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.
Tu não procures, conhecer não deves, o fim que a mim,
a ti concederam os deuses, ó Leucone, nem experimentes
os números babilônicos. Melhor sofrer o que quer que seja!
Seja muitos invernos, seja o último que Júpiter concedeu,
e que agora o mar Tirreno quebra contra os rochedos,
sejas sábia, filtres os vinhos, e pelo curto espaço de tempo
suprimas qualquer longa esperança. Enquanto falamos, o tempo invejoso
foge: aproveita o dia, muito pouco crédula no que virá.
Fonte: http://www.latim.ufsc.br/Carpe%20diem.html

Ode 1, 9
tradução: Everton Lourenço
Vês como o Soracte se ergue branco,
coberto por uma densa neve, e já nem
as floresta fatigadas sustentam o peso,
e os rios se detiveram com o gelo penetrante?

Dissolve o frio, Taliarco, repondo as lenhas
em abundância sobre a lareira
e mais generosamente tira o puro vinho
quatro anos envelhecido do vaso sabino.

Deixa todo o resto aos deuses,
que tão logo estes acalmaram os ventos
que combatiam no mar turbulento,
nem os ciprestes, nem os velhos freixos são agitados.
O que há de ser amanhã será, deixa de se preocupar,
e, em todo caso, quantos forem os dias que te concederá
a fortuna , toma como lucro. E não te afastes, rapaz,
dos doces amores. E nem desprezes, tu, as danças
enquanto a penosa brancura estiver afastada de ti,
que ainda floresces. E agora, que o Campo de Marte,
e as praças, e os doces sussurros sob a noite
sejam retomados na hora propícia.

E também o agradável riso revelador
da menina que se esconde em um canto íntimo,
e o penhor arrebatado dos braços
ou do dedo pouco firme.



(Horácio. Odes I, 9 - fonte: http://palavrasnomundo.blogspot.com/2008/04/horcio-odes-i9.html)

Horácio, Odes XI
Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, uina liques, et spatio breui
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit inuida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.


Não sondes o destino, amiga, que os deuses
nos reservaram, nem interrogues
os astrólogos da babilônia.
Enfrentemos o que vier, seja o que for.
Quer Júpiter te conceda muitos invernos
quer seja este o último
em que as ondas do Tirreno
castigam os rochedos,
sê sábia e prova teus vinhos.
A vida é breve,
não alimentes longas esperanças.
Enquanto falamos,
o tempo, invejoso, foge:
vive o presente,
o menos crédula possível
no dia seguinte.

(tradução Miguel do Rosário, com influència de M.B.R)
fonte: http://oleododiabo.blogspot.com/2008/07/horcio-odes-xi.html)

Horácio - Odes I, 32
tradução: Everton Lourenço
Somos chamados. Se sob a sombra ociosos
compomos contigo algo, que não só viva
por este ano, mas por muitos.
Vamos! canta uma poema latino, ó lira

primeiramente tangida pelo cidadão lésbio,
que, entre as armas, valoroso foi na guerra,
porém, que também havia ligado
a nau agitada ao úmido litoral.

Este cantava não só Baco, as Musa, Vênus
e o menino sempre a ela ligado,
mas também Lyco de negros olhos
e negra cabeleira de ornamento.

Ó honra de Febo, ó lira agradável aos banquetes
do supremo Júpter,ó doce consolo do trabalho,
em qualquer circunstância salve a mim,
que segundo os ritos invoco.


(Horácio, Odes I, 32 - fonte: http://palavrasnomundo.blogspot.com/2008/05/horcio-odes-i-32.html)





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Virgílio
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Públio Virgílio Marão (em latim Publius Vergilius Maro), às vezes chamado de Vergílio, (Andes, 15 de Outubro de 70 a.C. - Brindisi, 21 de Setembro de 19 a.C.), foi um poeta romano.
Sua obra mais conhecida é a Eneida. Foi considerado ainda em vida como o grande poeta romano e expoente da literatura latina. Seu trabalho foi uma vigorosa expressão das tradições de uma nação que urgia pela afirmação histórica, saída de um período turbulento de cerca de dez anos, durante os quais as revoluções prevaleceram.
Biografia
Considerado o maior poeta latino. Era natural da região de Mântua (70-19 a.C.) e filho de uma família de camponeses. Alcançou pelo casamento uma situação estável, podendo então ouvir, em Milão e Roma, as lições de filósofos epicuristas. Amigo de Horácio, como ele protegido por Mecenas, entrou em contato com o imperador, de quem recebeu o incentivo para escrever a Eneida.
Admirador da cultura helênica, empreendeu uma viagem à Grécia, berço e viveiro da cultura, sonho que há muito acalentava: o destino concedeu-lhe a realização desse anseio, mas morreu no regresso, junto de Brindisi. O seu túmulo encontra-se em Nápoles.
A obra de Virgílio compreende, além de poemas menores, compostos na juventude, as Bucólicas ou Éclogas, em número de dez, em que reflete a influência do gênero pastoril criado por Teócrito.
As Geórgicas, dedicadas ao seu protetor Mecenas, constam de quatro livros, tratando da agricultura. Trata-se de uma obra de implicações políticas indiretas, embora bem definidas: ao fazer a apologia da vida do campo, o poeta serve o ideal político-social da dignificação da classe rural. Reflete a influência de Hesíodo e Lucrécio.
Literariamente, as Geórgicas são consideradas a sua obra mais perfeita. E finalmente, a Eneida, que o poeta considerou inacabada, a ponto de pedir, no leito de morte, que fosse queimada, constitui a epopéia nacional.
Esta refere-se à lenda do guerreiro Enéias, que, após a célebre guerra, teria fugido de Tróia , saqueada e incendiada, e chegado à Itália, onde se tornou o antepassado do povo romano. Epopéia erudita, a Eneida tem como objetivo dar aos romanos uma ascendência não-grega, formulando a cultura latina como original e não tributária da cultura helênica.
O poema consta de doze livros e a sua construção serviu de modelo definitivo às grandes epopéias do renascimento, nomeadamente para Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, o que se percebe claramente comparando o primeiro verso das duas epopéias:
Eneida: Arma uirumque cano... que significa: "As armas e o varão(herói) eu canto"; com
Lusíadas: As armas e os barões assinalados..

Uma Epopéia por encomenda
Virgílio já era ilustre pelas suas Bucólicas, um poema pastoril, e Geórgicas, um poema agrícola. Então, o imperador César Otaviano Augusto encomendou a Virgílio a composição de um poema épico que cantasse a glória e o poder de Roma. Um poema que rivalizasse e quiçá superasse Homero, e também que cantasse, indiretamente, a grandeza de César Augusto. Assim Virgílio vai elaborar um trabalho que, além de labor lingüístico e estro poético, é também propaganda política.
Muitos dos episódios na Eneida, que narra um tempo mítico, têm uma correspondência sincrônica com a atualidade de Augusto. Por exemplo o escudo de Enéias, simbolizando a batalha do Ácio, quando Otávio Augusto derrota Marco Antônio em 36 a.C. e a previsão de Anquises, no Hades, sobre as glórias de Marcelo, filho de Otávia, irmã do imperador.
Virgílio conclui a Eneida em 19. a.C.. A obra está completa mas não está ainda pronta segundo o seu criador. Virgílio gostaria ainda de visitar os lugares que aparecem no poema e revisar os versos dos cantos finais. Mas adoece e, às portas da morte, pede a dois amigos que queimem a obra por não estar ainda perfeita. O grande poema, já era conhecido de alguns amigos coevos, não é destruído - para nossa felicidade e fortuna literária. Sem a epopéia virgiliana, não haveria Orlando Furioso, O Paraíso Perdido, Os Lusíadas, dentre outros grandes clássicos da literatura mundial.
Ambição de Virgílio
Virgílio ao escrever esta epopéia inspirou-se em Homero, tentando superá-lo: Virgílio empenhou-se em fazer da Eneida o poema mais perfeito de todos os tempos. De certa forma, a primeira metade (seis primeiros cantos) da Eneida tenta superar a Odisseia, enquanto a segunda tenta superar a Ilíada. A primeira metade é um poema de viagem e a segunda um poema bélico.
Dramatis personæ
Há dois tipos de personagens na Eneida: os Humanos e os Deuses. Há uma espécie de terceira entidade que é a do Fatum (Fado, destino) que nem os deuses podem obliterar.
Humanos
• Anquises, pai de Eneias
• Ascânio, filho de Eneias e de Creusa.
• Creusa, esposa de Eneias.
• Dido, rainha de Cartago.
• Evandro, ancião
• Eneias, troiano, sobrevivente à guerra de Tróia
• Turno, rei latino, inimigo de Eneias em Ítália
Deuses
• Apolo, deus do Sol
• Éolo, deus dos ventos
• Juno, mulher de Júpiter, opositor de Eneias
• Júpiter, o rei dos deuses
• Mercúrio, o deus mensageiro
• Neptuno , deus dos mares
• Vénus, deusa do amor e da beleza, coadjuvante de Eneias
Nota: É de bom grado utilizar a terminologia latina (romana) para falar da Eneida, já que se trata de um poema romano.
Tempo da diegese
O tempo da diegese, ou seja dos acontecimentos narrados, ocorre imediatamente após a queda da cidade de Tróia, portanto a Eneida dá continuidade à Ilíada de Homero. Se a Odisséia narra as aventuras de um grego, de Ulisses (ou Odisseus), que tenta voltar para a sua casa e para a sua família, a Eneida narra as aventuras de um troiano que, depois da destruição de Tróia, foge com a sua família. A sua fuga dá-se por mar. Eneias procura um sítio para fundar uma nova cidade.
Tempo do discurso
Quando o texto começa, a aventura de Enéias já se iniciou (a narrativa começa in media res, isto é, a meio da acção). O herói naufraga ao largo de Cartago (a actual Tunes) e vai ter com a rainha Dido. Conta-lhe as suas viagens até ao momento em que se encontra. Esse é um processo de analepse (em inglês, flashback). A partir do quarto capítulo, o tempo da diegese é contemporâneo ao da narração do poema, ou seja os acontecimentos são narrados como se estivessem acontecendo no presente.
Capítulos ou Cantos
A Eneida tem doze capítulos, exactamente metade que a Odisseia.
I - Eneias naufraga ao largo de Cartago
Depois de partir da Sicília, Enéias é arrastado por uma tempestade que o faz naufragar. Enéias observa a cidade. Ele que vem de Tróia que fora totalmente arrasada e que tem por missão fundar uma nova cidade. É recebido por Dido, rainha de Cartago. Comove-se ao ver os frescos nas paredes que narram a guerra de Tróia. Dido começa a apaixonar-se por Enéias.
II- Enéias narra a Dido o último dia de Tróia
Dido solicita a Enéias que lhe relate a queda da lendária cidade de Tróia. Ele conta o célebre episódio do Cavalo de Tróia. E conta como se deu a batalha durante a noite. Como o incêndio começou a devorar a cidade. No desespero Enéias decide lutar até morrer. Vênus, sua mãe, aparece e lhe diz: vai procurar o teu pai, a tua mulher e teu filho e abandona a cidade.
A cidade é tomada pelos gregos. Enéias procura sua mulher, Creusa, gritando pelas ruas À sua procura. Encontra o espectro dela. Com muita ternura o fantasma de Creusa diz-lhe uma profecia: que ele irá ter muitos infortúnios mas acabará por conseguir fundar uma nova cidade. Enéias consegue fugir com o seu pai às cavalitas e com o seu filho pela mão.
III- Enéias narra a Dido as suas viagens rumo à Itália
Eneias continua a contar a Dido as suas peripécias para chegar à Itália, até aportar em Cartago temporaria e acidentalmente. Conta a sua escala na Trácia e em Creta. A chegada a Épiro e à Sicília. Conta também seu encontro com Andrômaca (viúva de Heitor) e como faleceu o seu pai Anquises.
IV- Os amores de Dido e seu fim trágico
A rainha Dido, segundo a Eneida de Virgílio, após ouvir a narração do fim de Tróia e das viagens e peripécias de Enéias, influenciada por Vênus, deusa do amor e mãe de Enéias, vê-se completamente apaixonada pelo herói. Ela convida os troianos (Enéias e os seus companheiros) para uma caçada. No meio de uma tempestade, abrigados em uma caverna, Dido e Enéias se amam. Entretanto Júpiter envia Mercúrio a Enéias para lhe lembrar que seu destino é encontrar o Lácio e fundar uma nova cidade que substitua a cidade de Tróia destruída e que governe as demais cidades do mundo. Enéias tenta sair de Cartago sem que Dido se aperceba disso. Sentido-se abandonada, enganada e vilipendiada, furiosa e ensandecidada pelo amor não retribuído, ela se suicida enquanto partem os navios troianos e Enéias ainda pôde ver a fumaça da pira funérea saindo de seu palácio.
V- Os jogos fúnebres
Eneias aporta à Sicília e decide realizar jogos fúnebres em honra de seu pai Anquises. Já se passou um ano desde que este morreu.
(Este capítulo é importante para quem estuda a antropologia dos romanos porque dá indicações de como eles se relacionavam com a morte.)
VI- Descida de Eneias ao Mundo dos Mortos/Submundo
Este é um dos episódios mais famosos da Eneida. Depois de Eneias ter partido da Sicília fez escala em Cumas. Nesse local consulta uma sacerdotisa (uma sibila) de Apolo. Ele tem um desejo intenso (em sonhos seu pai o havia conclamado a fazê-lo) de falar uma última vez com seu pai para lhe pedir conselho sobre a viagem. Obtém permissão de descer ao mundo dos mortos (este episódio faz lembrar outras descidas famosas ao mundo dos mortos: o episódio de Orfeu e Eurídice, a nekya de Odisseu, no canto XI da Odisséia. No mundo dos mortos vê vários espectros. Um deles o de Dido que, ladeada por seu primeiro esposo, não lhe responde.
O seu pai Anquises dá-lhe importantes informações sobre a sua viagem e faz uma longa profecia sobre o futuro glorioso de Roma. (infernos, o hades dos gregos)
VII- chegada ao Lacio
(Latium, província romana onde se situará Roma)
VIII- Evandro. Descrição do Escudo de Eneias
IX- Ataque ao acampamento troiano
X- Façanhas e morte de Palante
XI- Funerais dos guerreiros. Façanhas de Camila
XII- Combate de Eneias e de Turno. Vitória de Eneias.
Simbologias da Eneida
A Eneida simboliza o poder imperial de Roma, sob o comando de César Octaviano Augusto. Dido simboliza o poder de Cartago, rival de Roma, que seria por esta destruída na terceira das guerras púnicas. Dido também simboliza Cleópatra, rainha do egipto, que se tinha aliado a um general romano, Marco António, para resistirem a Roma. Marco António e Cleópatra foram derrotados na batalha marítima do Áccio, ao largo do delta do Nilo. Dido simboliza assim a mulher misteriosa e sedutora do oriente, que resiste ao poder romano mas que por ele é submetido. Por metonímia simboliza todo o Médio Oriente e Norte de África que foram das últimas terras a serem conquistadas pelo Império Romano.

Turno simboliza os antecedentes latinos da "raça" romana, enquanto Eneias simboliza os antecedentes troianos (que são ficcionais). Eneias é uma personagem que permite dar a Roma uma ascendência mítica, juntando-se assim ao mito da fundação de Roma por Rómulo e Remo.
Repercussões literárias da Eneida
Dante Alighieri, no seu famoso episódio da descida aos infernos, é levado pela mão de Virgílio para ver os mesmos. Luís de Camões inspira-se directamente neste grande Épico romano para escrever os seus Os Lusíadas.
Traduções
Há algumas traduções da Eneida para a língua portuguesa, feitas do latim. Em verso, citam-se as brasileiras de Manuel Odorico Mendes, do século XIX, que utilizou o decassílabo heróico, e de Carlos Alberto da Costa Nunes, do século XX, que utilizou o verso de dezesseis sílabas poéticas para verter o hexâmetro dactílico épico; e a portuguesa de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva, do século XIX, em decassílabos. Em prosa, publicaram-se a tradução de Tarsila Orpheu Spalding e a de Jaime Bruna.
• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005;
• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Carlos Aberto Nunes. Brasília: UnB, 1975;
• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004

Resumo de Eneida,
por: Prof. Silvio Medeiros
Fonte: http://imprimis.arteblog.com.br/home/
LIVRO I
Proêmio da "Eneida". O poeta dirige a invocação às Musas:
"As armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Tróia por injunções do Destino , instalou-se na Itália primeiro e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno, guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade e ao Lácio os deuses trazer _ o começo da gente latina, dos pais albanos primevos e os muros de Roma Altanados.
Musa! recorda-me as causas da guerra, a deidade agravada; por qual ofensa a rainha dos deuses levou um guerreiro tão religioso a enfrentar sem descanso esses duros trabalhos?" (p.9)
Assim tem início o canto sobre a saga do herói Enéias na "Eneida". Primeiro o poeta Virgílio canta as glórias do pio Enéias, em seguida faz a invocação às Musas.
A divindade inimiga do herói é a deusa Juno (esposa de Júpiter e mãe de Marte), dona das terras da Itália, além de protetora da cidade de Cartago, ao norte da África. Com efeito, para a deusa, Enéias é um invasor que deve ser combatido; apesar de Juno conhecer, desde o início da épica, as tramas que as Parcas já haviam tecido contra os inimigos do herói troiano: "Juno potente, a sangrar-lhe no peito a ferida, conversa consigo mesma: _ Aceitar o fracasso no início da empresa, sem conseguir afastar dessa Itália o caudilho troiano?..."
Em meio a outros pensamentos contra o herói troiano, Juno "baixa até à pátria dos ventos furiosos, a Eólia chamada, dos Autros feros", e súplice roga a Éolo, pai das tempestades, que impeça o avanço das frotas troianas sobre o território italiano. Prontamente a deidade é atendida por Éolo: os ventos reunidos tornam negro o dia e a tormenta desaba sobre o mar. Enéias aterrorizado com tal cenário, exclama: "_ Oh, três vezes e quatro felizes os que morreram à vista dos pais, sob os muros de Tróia!", lamentando, desse modo, não ter também perecido na guerra de Tróia. A tormenta bate de frente na frota dos troianos e a poderosa tempestade os domina. No entanto, Netuno (deus do mar e irmão da rancorosa Juno), presenciando e não apreciando tais acontecimentos, invoca os ventos propícios, tornando o mar manso. Só assim, Enéias e seus sócios desembarcam nas costas da Líbia. Aproximam-se da morada das ninfas e ali descansam. Enéias pede ânimo aos companheiros, dizendo-lhes que já enfrentaram coisas piores; lembra, então, que já escaparam dos terríveis Cilas e Ciclopes. Avisa que a viagem terá continuidade rumo ao Lácio prometido pelos deuses: sinônimo de um futuro risonho. Enéias insufla ânimo na alma dos troianos.
Enquanto isso, no Olimpo, a deusa Vênus, angustiada, roga ao pai dos deuses - Júpiter - que ponha fim aos trabalhos infindáveis e aos sofrimentos do povo troiano. Júpiter, tranqüilizando a filha Vênus, promete:
"Acalma-te, Citeréia: imutáveis encontram-se os Fados. Ainda verás a cidade e as muralhas da forte Lavínio, como te disse, e até aos astros o nome elevar-se de Enéias de alma sublime. Mudança não houve no meu pensamento. Mas, uma vez que tais cuidos te agitam, tomando de longe vou revolver o futuro e os arcanos do Fado mostrar-te. Guerras terríveis ele há de enfrentar..." (p.15)
Dito isto, o pai dos deuses narra à filha Vênus toda a história gloriosa da futura Roma, citando seus heróis fundadores - do governo de Rômulo até a futura e gloriosa "Tróia" do imperador Júlio César. Após essas promessas, o pai dos deuses solicita a Mercúrio (mensageiro dos deuses) que vá até o reino de Cartago - administrado pela infeliz rainha Elisa (cujo epíteto era Dido) -, para que, lá, o pio Enéias fosse bem recebido. Em seguida, Vênus aparece para Enéias, narrando a ele toda a história da desventurada Dido. Pigmalião - o irmão de Dido - assassinou Siqueu, o esposo de Dido. Em sonhos, Siqueu apareceu a Dido, revelando-lhe a maneira como o irmão Pigmalião havia tirado a vida do esposo Siqueu. Além disso, alertou Dido para que abandonasse o reino, levando com ela todas as fortunas acumuladas. Esta aventura foi chefiada por Dido até atingir a sua destinação; isto é, o local no qual Dido deveria fundar a cidade de Cartago.
Após narrar tal história, Vênus aconselha Enéias a procurar proteção junto a Dido. Enéias penetra no reino de Dido protegido por uma espessa neblina a cobrir todo o seu corpo. De tudo alí visto, Enéias admirava-se. A paisagem da cidade em construção, Enéias contemplava maravilhado. Fervia o trabalho por todos os cantos do burgo de Dido. Muros gigantescos erguiam-se no burgo nascente.
No templo de Juno, construído por Dido, Enéias contemplava e emocionava-se com as gravuras que registravam vários episódios da Guerra de Tróia. Enquanto Enéias admirava os sublimes quadros, a rainha Dido entra no palácio. Dido então passa a ditar os trabalhos dos operários responsáveis pela construção da cidade de Cartago. Um misto de medo e alegria apodera-se de Enéias e do seu fiel acompanhante Acates. Ilioneu, porta-voz da rainha, narra os infortúnios da tropa dos troianos que, há pouco, desembarcara nos domínios do seu reino. Então a rainha Fenícia, após ouvir a história, fala:
"Com os olhos baixos, em termos concisos lhe fala a Rainha: Bani, troianos , do peito o temor; expulsai os cuidados. As duras leis do começo de um reino, senão mesmo a própria necessidade me impõe rigor na patrulha da costa . Quem desconhece a ascendência de Enéias, a queda de Tróia, a proverbial resistência dos teucros, horrores da guerra? Nós, os fenícios , não somos tão bárbaros como pensastes..." (p.23)
e diz que muita feliz ficaria se ali estivesse presente o próprio Enéias. Com tal discurso, Enéias e Acates animam-se. De repente, a nuvem enviada por Vênus se desfaz e, à luz repentina, Enéias se mostra aos olhos de Dido. Apresenta-se, então, à rainha Dido, dizendo que era o teucro Enéias. A rainha fala: "És, pois, Enéias, aquele de Vênus divina, nascido nas margens claras do belo Simoente, e de Anquises troiano? (...)" E, logo aceitando a presença do estrangeiro no seu reino, a infeliz Dido fala: "Por ter passado por isso, aprendi a ser boa com todos."
Enéias então convida toda a sua frota a entrar no reino de Dido. A rainha recebe da tripulação de troianos inúmeros presentes; eram objetos salvos das ruínas de Tróia.
No Olimpo, Juno trama a paixão de Dido por Enéias. Cupido enfeitiça a rainha com um ardente amor por Enéias. Dido, consumida pelo amor, devora Enéias com os olhos. Aos poucos a imagem de Siqueu, o defunto marido, é apagada de sua memória.
Dido invoca Júpiter, prometendo ao referido deus hospitalidade aos estrangeiros. Em seguida, roga ao estrangeiro Enéias que o próprio narre as suas aventuras:
"Hóspede_ fala-lhe_ conta-nos tudo por ordem, do início, as artimanhas dos dânaos, desditas dos teus companheiros, este vagar sem descanso nem termo por mais de sete anos em toda terra infinita, nas ondas inquietas, por tudo." (p.28)
LIVRO II
Então, todos se calaram na corte de Dido, e Enéias deu início à sua narrativa.
Contou a história do cavalo de Tróia e como os adivinhos troianos procuravam encontrar a razão para o surgimento repentino do gigantesco cavalo no reino de Tróia. Teria sido trabalho de quem? E com qual intuito teria sido enviado à Tróia? Dentre os adivinhos, apenas Laocoonte desvendou o segredo. Dirigiu-se aos troianos, dizendo o seguinte:
"Cidadãos infelizes, que insânia vos cega? Imaginais porventura que os gregos já foram de volta, ou que seus dons sejam limpos? A Ulisses, então, a tal ponto desconheceis? Ou esconde esta máquina muitos guerreiros, ou fabricada ela foi para dano de nossas muralhas, e devassar nossas casas ou do alto cair na cidade. Qualquer insídia contém. Não confieis no cavalo , troianos!" (p.30)
No entanto, a multidão não deu atenção aos insistentes apelos e presságios do adivinho Laocoonte.
Ao mesmo tempo, Torvo - rei mancebo de Argos -, sem armas, apresenta-se à multidão e vocifera um astucioso relato contra Ulisses; o herói grego é por ele considerado um falso, pois Ulisses havia assassinado Palamedes (protetor de Torvo) por inveja. Os troianos, sem suspeitarem até onde ia a perfídia e a maldade de um grego, permitiram que Torvo prosseguisse o seu falso relato. Compadecidos com a desdita do infeliz, os troianos ofereceram-lhe a liberdade. Por Sinão, o grande "sábio das tramóias", mais uma vez os troianos foram alertados contra as artimanhas de Ulisses - de todo o mal inventor . Suas profecias também foram ignoradas.
Antes dos troianos permitirem a entrada do cavalo na cidade, Laocoonte teve uma terrível visão de todos os males que atingiriam Tróia por obra dos gregos. Cassandra, filha do troiano rei Príamo e irmã do príncipe Paris, também procurou avisar os troianos sobre todos os males que estavam por vir, mas foi calada pelo deus Apolo.
Finalmente, a cidade recebe o cavalo, entoando hinos de júbilo. Após beberem, os troianos exaustos adormecem.
Os heróis gregos, aproveitando-se deste fato, abandonam o interior do cavalo (ardiloso engenho) e invadem a cidade de Tróia. Pegos de surpresa, os troianos não resistem à força do exército grego.
Enéias vê o chefe guerreiro troiano Heitor a chorar diante de Tróia destruída. Heitor assim fala a Enéias:
"_ Foge daqui , filho de uma deidade; do incêndio se livra. Dentro dos muros campeia o inimigo; hoje Tróia extinguiu-se. Muito já demos a Príamo e à pátria. Se a Pérgamo a destra de algo valesse, estas mãos se imporiam na sua defesa. Tróia te entrega os seus deuses e os sacros objetos do culto. Leva contigo esses sócios; procura morada para eles, grande cidade, depois de cortares o mar tormentoso..." (p.36)
Ao ouvir isso da boca de Heitor, Enéias lamenta a distância de sua casa, temendo não conseguir lá chegar para salvar a esposa: Creúsa, o pai: Anquises, e o filho: Ascânio.
O fogo dominava a cidade de Tróia, tudo destruindo pela traição e pela perfídia dos gregos. Uma idéia dominou brevemente os pensamentos de Enéias: morrer pela pátria, pois o último dia chegara para os troianos.
"Todos os deuses, esteios da pátria, os santuários e altares já abandonaram. Correis em defesa de ruínas e escombros em labaredas. Morramos, então! Avancemos sem medo! Para os vencidos só há salvação na esperança perdida. (...) Quem poderia narrar os horrores, o atroz morticínio daquela noite, ou com o pranto igualar o trabalho dos teucros? Caiu por terra uma antiga cidade, rainha das outras." (p.38)
O palácio do rei Príamo ardia em chamas. Sem a ajuda dos deuses, uma chuva de dardos inunda a cidade ardente de Tróia. Tudo são ais nos interiores do Palácio Real. As autoridades troianas femininas: Andrômaca, Cassandra e Hécuba são raptadas. Príamo é morto por Pirro - temido guerreiro grego-, vingando, desse modo, a morte do filho do herói grego Aquiles, Neoptólemo.
Enéias mantém o seu pensamento voltado para a família e, com a alma furiosa, só pensa em vingar a pátria destruída. Porém, Enéias é aconselhado pela deusa Vênus a abandonar a cólera que o devora, e imediatamente socorrer a família, saíndo em fuga da Tróia destruída. O pai, Anquises, num primeiro momento, recusa-se a fugir com o filho. Enéias tenta convencer o pai que Tróia não tem mais salvação. Então Anquises foi surpreendido por um augúrio feliz: repentinamente da cabeça do neto Ascânio alçava uma chama, lambendo-lhe os cabelos. Anquises, convencido do aviso dos deuses, põe-se em fuga junto à nora, ao neto e ao filho:
"Pronto! partamos! agora! depressa! para onde quiserdes! Ó pátrios deuses, guardai esta casa, salvai meu netinho. O agoiro é vosso; sob vossa potência está Tróia segura. Não mais resisto, meu filho, nem faço objeção em seguir-te."
A pequena família foge com alguns servidores. A travessia pela cidade tomada pelos gregos é arriscada. Subitamente, o velho Anquises avista os gregos bastante próximos. Nesse momento, a esposa Creúsa desaparece para sempre de Enéias. O pio herói fica inconformado diante da perda da esposa. Segue-o somente o pai e o filho em meio aos horrores da cidade destruída.
"Amontoada, a riqueza de Tróia se via, templos saqueados, as mesas dos deuses, as mais belas copas de ouro existentes, e vestes e adornos dos pobres cativos. Ao derredor, em fileiras, morrendo de medo, os meninos, mães desoladas." (p.48)
Durante a fuga, a sombra da adorada esposa Creúsa apresenta-se ao herói troiano. Este procura agarrá-la, mas em vão. Então, Creúsa implora que Enéias aceite todas aquelas tragédias, pois sucessos futuros lhe são reservados: com a ajuda dos deuses fundará uma nova Tróia, em território italiano. Em seguida, diz o derradeiro adeus ao marido.
Cedendo à sorte e carregando o pai nos ombros, o pio Enéias apressa sua fuga do território troiano.
LIVRO III
Toda Tróia é destruída. O herói Enéias encontra-se exilado em alto mar, em companhia do pai, do filho, dos sócios e dos deuses de Tróia.
Aportam à praia das terras do feroz Licurgo. Enéias traça riscos no chão e passa a chamar a novata comunidade que o acompanhava de Enéadas; tudo sem os auspícios dos deuses. Às ninfas agrestes do local Enéias implora auxílio. De repente, ele é surpreendido pelo fantasma do guerreiro troiano Polidoro, outrora vencido naquelas terras. Polidoro, filho do rei Príamo, fôra morto no passado por um rei trácio; ele aconselha Enéias a abandonar imediatamente aquele lugar. Enéias presta honras fúnebres ao insepulto Polidoro e, logo em seguida, abandona as terras de Licurgo. A frota alcança o mar. Enéias desesperado pede ajuda a Apolo quanto a seu futuro incerto: "A quem seguimos? Aonde ir aconselhas? A sede assentarmos? Dá-nos agouro, Senhor! Ilumina estas mentes cansadas."
Então Enéias ouve vozes solicitando-lhe que busque as terras da "mãe primitiva" (a Itália), pois lá será o seu definitivo lar. Essas palavras a todos anima. A tropa chega, então, às praias dos Curetas. Lá os troianos descansam. No entanto, o pio Enéias encontra-se atormentado, solicitando novos auxílios a Apolo. Mais uma vez recebe o aviso de que a sua nova pátria encontra-se na Hespéria, em território italiano. Atarantado com tantas vozes e visões, Enéias acorda a toda a tripulação. Tendo Febo por guia, Enéias põe-se a caminho da terra prometida pelos deuses. Sempre obedientes aos destinos impostos pelos deuses, os troianos lançam-se em alto mar. Tempestades varrem o oceano. Após várias tormentas, avistam terras ao longe. Em breve, encontravam-se nas terras das Harpias; Celeno, a mais poderosa das fúrias, confirma os desígnios dos deuses: "com prósperos ventos heis de alcançar por sem dúvida a Itália longínqua. Mas, antes mesmo de vossa cidade querida dos deuses de muros altos cingirdes, haveis de roer até as mesas."
A frota troiana parte, então, daquelas terras. Logo aproximam-se de Ítaca. "De Ítaca reino de Laertes fugimos, de seus arrecifes, amaldiçoada por todos, a pátria de Ulisses nefando." E prosseguem a viagem... Passam próximos à ilha dos Feáceos até alcançarem terras gregas, onde reinava Heleno - filho de Príamo -, por ter esposado a viúva do guerreiro grego Pirro. Lá também encontrava-se Andrômaca a esposa-viúva do herói troiano Heitor.
Andrômaca relata a Enéias toda a seqüência de infortúnios que sofrera após a guerra de Tróia; nesta ilha, Andrômaca vivia na condição de escrava. Andrômaca demonstra extrema preocupação com a família do pio Enéias. Heleno, o monarca da ilha, recebe Enéias com gentileza e hospitalidade.
Em terras de Heleno, Enéias volta a consultar Apolo; o deus confirma-lhe, com precisão, o local onde deverá ser fundada a nova Tróia.
"Dou-te os sinais; na memória os retém, como é justo fazeres. Quando apreensivo estiveres nas margens de um rio sem nome, e deparares deitada na sombra de bela azinheira uma alva porca com trinta leitões ao seu lado, da mesma cor da mãe branca, deitados no chão a mamar com sossego: esse será o local da cidade, o descanso almejado." (p.61)
Dentre outros conselhos, o deus Apolo antecipa ao pio Enéias os perigos que deverá enfrentar em relação a Cila e a Caribde, dois monstros que dominam a costa da bela Sicília. Por antecipação - também através de Apolo -, Enéias fica sabendo que visitará a cidade de Cumas, na qual encontrará a poderosa Sibila, que o encaminhará até os bosques do Averno (Mundo dos Mortos).
Antes da partida, Andrômaca traz presentes ao menino Ascânio e antevê a fundação de uma Tróia reconstruída.
A frota de Enéias encontra-se novamente em alto mar. Finalmente,
" escorraçados os astros com a vinda do carro da Aurora, eis que avistamos ao longe os oiteiros modestos da Itália. Antes de todos, Itália! gritou para os sócios Anquises. Seus companheiros, Itália! a uma voz, despertados, exclamam." (p.64)
Dentre muitas coisas oferecidas pelas paisagens do local, a tripulação avista o santuário da deusa Minerva, o templo de Juno; mas ferozes ventos os afastam do roteiro, levando-os até o Etna e lançando-os próximos ao rochedo de Caribde. Sem saída, tomam de assalto as praias dos ferozes Ciclopes. Nesse local, encontram um grego, perdido; ele implora auxílio aos troianos nos seguintes termos: "Sou natural da ilha de Ítaca e um dos soldados de Ulisses, o desgraçado. Chamo-me Aquemênides. Vim para Tróia com meu pai, pobre de bens. Oxalá continuasse assim sempre!" E então passa a narrar as cenas horrendas que presenciou: viu o Ciclope gigante devorando muitos de seus companheiros tomados como reféns pelo terrível monstro; diz que o nome do monstro de um olho só é Polifemo. De repente, Aquemênides interrompe a sua narrativa, pois o monstro Polifemo, com a vista vazada e rangendo os dentes de dor, reaparece. Apavorados, os troianos põem-se em fuga, acolhendo o suplicante itacense.
Deixando as praias dos Ciclopes, procuram seguir o conselho de Heleno e evitam o caminho perigoso entre os monstros Cila e Caribde.
Açoitados por terríveis tempestades, Anquises não resistiu, e morreu. Essa foi a mais cruel desventura - não predita por nenhum adivinho - enfrentada pelo pio Enéias.
Finalmente, o pio Enéias dá por encerrada a narrativa de suas desventuras aos ouvintes da corte da rainha Elisa .
LIVRO IV
A rainha Elisa está ferida de paixão, com as palavras e com os gestos do herói troiano Enéias gravadas no peito. Ferida de morte, Dido fala a irmã:
"Ana querida, suspensa me encontro por sonhos horríveis. Que hóspede novo transpôs de inopino a soleira da porta? Como é galhardo! Quão forte guerreiro, em verdade, e que braço! _ Creio _ e bem certa estou disso _ ser ele de origem divina (...) Ana, confesso-o; depois de Siqueu me ter sido roubado, meu caro esposo, e os penates manchados de cruel fatricídio, este, somente, os sentidos tocou-me e a vontade oscilante venceu de todo. O calor sinto agora da chama primeira." (p.72)
E Ana relembra a Dido que a rainha já havia rejeitado muitos pretendentes, inclusive Jarbas, o monarca da Líbia. Por que se opor, então, a um desejo tão grato? E Ana continua na sua obstinada aposta em relação ao futuro matrimônio de Dido com Enéias. Chega a convencer a infeliz rainha Dido quanto aos futuros triunfos que Cartago poderia alcançar, caso a união entre os dois se consumasse. Ana pede à Elisa que cuide dos deuses e a eles ofereça sacrifícios, para obter o auxílio no ambicionado projeto. Põe-se a vagar pela cidade a infeliz Dido, com o peito em chamas:
"Inacabadas, as torres pararam; não mais se exercitam moços esbeltos nos jogos da guerra, na faina dos portos; interrompidas as obras, o céu das ameaças descansa; por acabar as ameias, merlões, toda a fábrica altiva."
Diante desse quadro, a indignada Saturna dirige-se à Vênus, interrogando a última sobre o destino de tudo aquilo; ao mesmo tempo, propõe firmar uma pacto de paz eterna. Vênus, sentindo a malícia no discurso da deusa, retruca e faz à Saturna uma proposta cheia de artimanhas: promover uma caçada e, durante uma forte tempestade, encerrar Enéias e Dido numa caverna, promovendo, dessa forma, a união entre os dois.
Tudo ocorre da forma como Vênus concebera o plano e, com grande estrondo nos céus, a união de Dido e Enéias foi consagrada. Relâmpagos brilhavam no céu e ninfas ululavam diante de tal consórcio.
Corre a Fama (monstro horrendo) por todo o território da Líbia, espalhando a recente notícia do casamento entre Dido e Enéias. Os boatos aumentam até chegar aos ouvidos do fiel pretendente de Dido: Jarbas, o fundador de cem templos. Jarbas então diz:
"Essa mulher, aqui vinda sem rumo, comprou por vil preço faixa de terra para uma cidade pequena, onde arasse quanto quisesse; porém, repelindo as alianças propostas, como a senhor de seus reinos a Enéias agora se prende. E ora esse Páris, seguido de um bando de gente somenos, fronte cingida com mitra da Meônia, no mento enlaçada, de perfumados cabelos, do rapto se goza." (p.76)
Jarbas antevê as futuras derrotas de Dido.
No reino de Dido, Enéias veste um belíssimo manto: presente valioso, tecido pela própria rainha Elisa. Porém, no Olimpo, Mercúrio é determinado pelos deuses a enviar um recado ao pio Enéias: que abandonasse todos os projetos contruídos juntamente com Dido. Mercúrio interpela Enéias e transmite-lhe a seguinte mensagem: abandonar os laços estabelecidos com a rainha e prosseguir viagem rumo à pátria prometida pelos deuses do Olimpo. A rainha pressente a tramóia engendrada pelos deuses e, fora de si , como uma bacante, percorre toda a cidade em delírio. De repente, depara-se com Enéias, que, naquele momento, alimentava pensamentos indecisos. Dido diz:
"Pérfido! Então esperavas de mim ocultar essa infâmia, e às escondidas deixares meus reinos sem nada dizer-me? Não te abalou nem a destra que outrora te dei, nem a morte que a Dido aguarda, inamável, tão próxima já do seu termo? Como se nada isso fora, teus barcos aprestas no inverno , quadra infeliz, pretendendo cortar os furiosos embates dos aquilões? Que crueldade!" (p.79)
A colérica rainha continua a injuriar e a cobrar todos os favores que havia concedido ao pio Enéias; este já havia sido convencido pelos deuses quanto à necessidade da partida iminente, mas seu coração estava ferido por ter de abandonar a rainha apaixonada. Procura convencer Dido que não tomara parte na decisão, pois tratava-se dos desígnios dos deuses.
"Fala-lhe afim por maneira sucinta: _ Jamais negaria tantos favores, Senhora, e outros muitos de que me recordas; em nunca a imagem de Elisa sairá do meu peito, por quanto tempo consciência tiver de mim mesmo e com vida eu mover-me. Quanto ao que ocorre, direi simplesmente: intenção nunca tive de retirar-me às ocultas _ apaga essa idéia _ nem menos planos forjei de casar ou de alianças contigo firmarmos." (p.79)
Enéias prossegue, então, dizendo que se apoiara na decisão do deus Apolo. Confessa à rainha Dido que não buscava a Itália por vontade própria, mas pela vontade dos deuses.
Dido permanecia alheada a tudo aquilo que o pio Enéias dizia e, num impulso violento, expulsa o herói de suas terras.
Apressadas as frotas de Enéias se preparam para deixar as terras da infeliz Dido. Enquanto isso, Dido recorre à irmã Ana, rogando-lhe socorro. Pede à Ana que procure Enéias e o convença a permanecer a seu lado. A rainha conhecia a capacidade de convencimento que a irmã possuía; assim, aos olhos de Dido somente Ana sabia falar com Enéias. Pede, então, à irmã que leve o recado ao herói.Todavia, Dido é atingida por um terrível presságio: o leite dos sacrifícios adquire uma tonalidade negra, transformando-se em sangue. Diante disso, conclui que o herói não a ouvirá; sua perda portanto é inexorável, e a morte iminente. A rainha, atormentada por sonhos terríveis, prepara o ritual a fim de executar o seu próprio suicídio.
Lança a culpa de todo o seu infortúnio sobre a sua irmã. Enquanto a rainha se consumia em ódios com relação a Enéias, este era advertido pelos deuses a afastar-se o mais rápido possível daquelas paragens, pois o herói seria alvo da vingança da rainha ou da volubilidade inerente a toda mulher.
A infeliz Dido sente o peso de toda a sua desgraça e chega a planejar a morte de Enéias e do filho do troiano: Ascânio; logo em seguida, incendiaria toda a cidade e a nau dos troianos.
Contudo, a idéia do auto-sacrifício prevalecera: a infeliz Dido lança-se nos braços da morte. A monstruosa Fama percorre a cidade, informando a todos o infortúnio da rainha. Juno, apiedada da agonia da rainha, envia do Olimpo a mensageira Íris, para por termo ao resto de vida da moribunda. Íris corta o cabelo de ouro da rainha e o espírito da infeliz logo se dilui, se evola.
LIVRO V
A frota troiana, em fuga, logo alcança o alto mar. Nas altas ondas tudo é trevas. Ao longe os troianos avistam as labaredas que incendeiam o castelo da infeliz rainha Elisa. De repente, as nuvens cobrem todo o céu, e a escuridão domina a nau. Palinuro temeroso da popa pressente os destinos que Netuno lhes prepara. Os ventos encontram-se trocados, confundindo toda a tripulação e extraindo-lhe a esperança de saltarem, a salvo, nas praias da Itália. Enéias então pede que se mudem os rumos, a fim de alcançar as terras de Acestes: local onde o herói deveria prestar as pompas fúnebres ao pai Anquises, e lá depositar suas cinzas. Tão logo chegaram àquelas paragens, Enéias executou aquilo que planejara; em seguida, reúne seus sócios para dar início aos jogos fúnebres em honra ao pai Anquises.
Os guerreiros então reunidos dão início a uma longa seqüência de modalidades esportivas.
Findo o certame, os prêmios são entregues aos respectivos vencedores.
Ao deixarem as terras de Acestes, a nau do herói Enéias aproxima-se do promontório da duras Sereias. Repentinamente, Enéias nota que a nau está sem rumo, pois Palinuro confiara na bela aparência do mar. O pio herói assume, então, o comando da frota.
LIVRO VI
Encontramos, agora, o pio Enéias nas paragens de Cumas, no interior dos bosques da deusa Diana, local onde Apolo é cultuado. Dédalo, Pasífaa, o Minotauro biforme, Ariadne, Teseu, Ícaro e outros personagens mitológicos são figuras gravadas na porta do Templo de Apolo. Enéias vai visitar a Sibila de Cumas, que predirá as guerras no Lácio, revelando, assim, as coisas do futuro. Enéias entra na pavorosa gruta da Sibila. Deífobe, vate de inspiração divinal, fala nos seguintes termos: "Não é o momento de vos entreterdes com tais espetáculos. Cumpre imolar sete touros perfeitos, de acordo com os ritos, e outras ovelhas de número igual, as mais belas do armento."
Cumpridas as ordens do ritual, a Sibila convida Enéias a entrar no templo: "Eis o deus! Eis o deus!" exclama a Sibila de aspecto monstruoso: "Como! Demoras com os votos e as preces, Enéias de Tróia? Pois antes disso os portões deste templo famoso não se abrem ."
A Sibila prediz que Enéias deverá fixar os deuses errantes de Tróia no Lácio. Saúda Enéias como um herói, pois conseguira sobreviver aos perigos dos mares; diz, ainda, que, no Lácio, nascera um outro Aquiles. Prediz que a união de Enéias com a sua futura esposa (Lavínia) gerará intrigas entre os povos que habitam a Itália. Com fortes rugidos, a Sibila de Cumas vai, assim, revelando mistérios a Enéias.
Entretanto, Enéias sentia uma avassalodora ansiedade em rever o pai Anquises no mundo dos mortos. Implora à deusa que apresse a atender o seu pedido:
"Uma vez que o caminho do Inferno começa aqui, na lagoa do rio aqueronte convulso, leva-me logo à presença da sombra do pai extremado. Mostra-me a entrada a transpor, escancara-me as portas sagradas.(...) Por isso suplico-te, ó Virgem, apieda-te do pai, do filho aqui vindo." (p.116)
A deusa então fala a Enéias que descer ao Averno é muito fácil, porém o difícil é o regresso. A deusa instrui o pio Enéias a localizar um ramo de ouro que se encontra nas florestas que margeiam o Averno. Enéias prontamente atende a solicitação da deusa; porém, tem dificuldades para encontrar o protetor talismã, isto é, o ramo de ouro. Além disso, restava outra tarefa a ser cumprida por Enéias: enterrar o cadáver insepulto de Miseno, guerreiro morto de forma traiçoeira. Assim, os troianos prantearam o corpo de Miseno. Enéias vai em busca do ramo de ouro. "Se nesta selva tremenda eu achasse o áureo ramo predito, tal como tão verazmente saiu tudo quanto a Sibila profetizou contra ti, ó Mísero! o teu triste destino!"
Enéias nota que duas pombas baixam dos céus; solicita às aves que lhe sirva de guia para a localização do ramo de ouro... Logo, entre as folhas de uma copa de árvore refulge o ramo.
Obedecendo as instruções da Sibila, Enéias desce para o mundo subterrâneo (o reino de Plutão: em grego, Hades, a morada dos mortos). Contudo, o ramo de ouro asseguraria a Enéias uma travessia a salvo pelo reino dos Infernos.
Enéias ainda oferece um sacrifício à Prosérpina, esposa de Hades. A divindade se aproxima: "Afastai-vos do bosque, profanos! a profetiza exclamou; afastai-vos do bosque! Bem longe! E tu, Enéias, adianta-te! Saca de vez dessa espada com varonil destemor; ora cumpre mostrar quanto vales."
Enéias entra no Averno. Primeiro de tudo vê as pavorosas imagens de todas desgraças que atingem com freqüência a humanidade (fome, doenças, pobreza, mazelas...). Outros monstros e feras vão surgindo. Tomam então o caminho que leva ao tartáreo rio Aqueronte. O velho barqueiro Caronte - de aparência horrível - guarda o rio e os aguarda. Sombras percorrem o local. Enéias pergunta à Sibila por quais razões as sombras vagueiam naquele local. A Sibila revela que são as sombras dos mortos insepultos. Enéias vê as sombras dos insepultos heróis de Tróia. Encontra a sombra inconformada de Palinuro; Enéias promete a Palinuro um belo túmulo.
Avançando ainda mais pelo interior do Averno, surge o escuro lago do Estige: região das sombras, do sono e da noite:
"...o teucro Enéias, varão mui piedoso e de braço invencível, desce à procura do pai, entre as sombras inanes do Inferno. (...) e, logo, de baixo das vestes o ramo oculto retira. De pronto acalmou-se-lhe a raiva. Nada mais disse a Sibila. Admirado Caronte ante o aspecto do dom fatal do áureo ramo, por ele não visto de muito..." (p.123)
Em águas lodosas avistam Cérbero. Ouvem queixas lamentos, vagidos. Aí avistam, num bosque, as sombras de todos aqueles que foram infelizes em vida: Prócis, Fedra, Erífile, Pasífaa, Evadne... e, finalmente, a sombria Dido, com sua recente ferida. Enéias logo a reconheceu. Enéias procura explicar à sombra da infeliz Dido que não era o culpado por tanta infelicidade, pois fôra designado a cumprir os desejos dos deuses; disse, inclusive, que teria permanecido com Dido, caso não tivesse uma missão a cumprir. Porém, a sombra irritada da infeliz rainha se afasta sem emitir qualquer sinal.
Dando prosseguimento à infernal visita, Enéias vê as sombras dos heróis de Tróia... avista Deífobo, filho de Príamo. Enéias dialoga com a sombra de Deífobo; ele procura mostrar a Enéias como todas as humilhações que sofrera em vida foram causadas por Helena e suas bacantes.
Tendo por companhia a sombra de Deífofo, Enéias revê os heróis gregos: Menelau, Ulisses - o artista do crime: "Celestes deidades! se houver justiça, voltai contra os gregos seus próprios delitos...", exclama Enéias.
Ambos prosseguem a caminhada, entrando, agora, no antro dos criminosos; e, atravessando rotas obscuras entre monstros, Fúrias e seres poderosos... "avançaram de par pelas rotas obscuras e logo as portas do grande palácio de Pluto alcançaram. Bem no saguão pára Enéias; o corpo aspergiu de água pura recém-colhida, e de pronto pendura ao portal o áureo ramo..."
Ambos encontram-se, agora, nas moradas das almas felizes. Nesse local está reunida toda a futura linhagem do pio Enéias. Somente as almas bem-aventuradas aí permanecem. Em altas e risonhas campinas, Enéias avista o pai, Anquises. Logo que vê o filho, Anquises fala: "Enfim chegaste! Venceste o caminho com a tua piedade de filho amado, e me dás a ventura de ver-te de perto, ouvir-te a voz, e em colóquios passarmos alguns momentinhos."
As lágrimas banharam os rostos de ambos, pai e filho. Anquises diz a Enéias que vai curá-lo de toda a cegueira: aponta para as águas do rio Letes; alí as almas procuram beber de suas águas para alcançar o esquecimento total. O pai Anquises apresenta, então, a Enéias toda a sua futura geração. Toda uma seqüência de futuros governantes é apresentada ao pio herói. Contudo são as figuras dos imperadores ainda não nascidos César e Augusto que se destacam na descrição feita por Anquises.
Enéias nota, ao lado de Marcelo - futuro imperador romano -, a presença de um belo mancebo.
Por fim, Enéias deixa o mundo subterrâneo.
LIVRO VII
Enéias deixa o Averno e, em seguida, prepara o sepultamento de Miseno; deposita o insepulto num túmulo. A tropa prossegue viagem costeando as paragens da deusa Circe - opulenta filha do Sol. Alí, ouvem-se uivos de animais ferozes, mas o deus Netuno insufla as velas das embarcações e, com ventos propícios, elas são afastadas da perigosa da ilha da feiticeira Circe.
Subitamente, o pio Enéias avista ao longe uma densa floresta.
[Neste trecho da "Eneida", a narrativa poética é interrompida, e o poeta Virgílio solicita, novamente, inspiração à Musa:
"Érato, inspira-me! Os reis, qual o estado das coisas naquele tempo, os sucessos variados no Lácio de antanho, quando na Ausônia aportou de improviso uma esquadra estrangeira, vou relatar. Sem a ajuda de cima, de ti, Musa excelsa, nada farei." (p.138) ]
A tripulação avista a terra do rei Latino; o local designado pelos deuses para a fundação da futura Roma.
Os fatos a serem enfrentados pelo pio Enéias - suas vitórias e seus infortúnios - nas terras do Lácio são revelados ao herói troiano.
De outra parte, o rei Latino vai consultar o futuro junto ao pai fatídico: o Fauno. O monarca Latino ouve o seguinte:
"Deixa de lado, meu filho, essa idéia de esposo latino dar a Lavínia, nem creias nas bodas agora aprestadas. Genro estrangeiro virá que até aos astros o nome dos nossos se incumbirá de levar, cujos filhos e netos cem povos submeterão sob o império de leis rigorosas e sábias, em todo o curso do Sol, desde o oceano nascente ao do poente." ( p.139)
Essa foi a resposta do Fauno ao monarca Latino.
A frota de Enéias comemora a chegada na nova Tróia com um grande festim. Enéias então lembra que o pai profetizara que, quando chegassem a uma terra esfomeados e lá saciassem a fome, esta seria a sede da futura Tróia. Tudo ocorre conforme os prognósticos do pai Anquises. Enéias brada: " Salve, terra que os Fados nos deram! Salve também , aqui mesmo, sagrados penates de Tróia! Eis nossa pátria, a morada (...) Eia, animai-vos..."
Enéias risca no chão um mapa com os contornos da futura cidade romana. Dirigi-se, então, ao palácio do monarca local. Entra no templo de Latino. O primeiro contato com Latino é efetivado em tom cordial e amistoso, haja vista ambas as partes já conhecerem os desígnios dos deuses. Ilioneu, o sábio do local, intermedeia os diálogos que se estabelecem entre o monarca e os estrangeiros. Latino já nutria a certeza que Enéias seria seu futuro genro.
Todavia, no Olimpo, as contendas entre os deuses quanto ao destino do herói troiano se chocavam. A fera esposa de Jove assim se refere aos estrangeiros:
"Ó geração aborrida! Ó destino da Frígia, contrário sempre ao meu Fado! Nos campos sigeus sucumbir não puderam? Presos, viver como escravos? No incêndio de Tróia abrasar-se? Livres se encontram. (...) Movi contra eles as forças do céu e do mar, impotentes. De que proveito me foram e Sirtes e Cila e Caribde desmesurada? Tranqüilos, a foz alcançaram do tibre, salvos do mar e de mim." (p.144-145)
A colérica deusa promete recorrer às potências do inferno, para não ser vencida pelo mortal Enéias. Entra em contato com a Juno infernal - divindade inimiga do pio Eneías - e solicita que as potências maléficas infestem a vida do herói Enéias. Amata, mãe de Lavínia (filha de Latino e futura esposa de Enéias), torna-se o alvo predileto das potências do mal. Inconformada por Latino ter consentido entregar a filha Lavínia como esposa ao pio Enéias, Amata, envenenada n'alma pela deusa cruel, interroga:
"Vais dar Lavínia, senhor, como esposa a esse teucro sem pátria? Não tens cuidado da sorte da filha, de ti não te apiedas, nem da mãe triste que ao vento primeiro o pirata abandona nestas paragens, levando consigo a donzela roubada? " (p.146)
Diante da indiferença de Latino, Amata é tomada de furor báquico. Invoca Baco e procura esconder a filha pelas matas e florestas, bradando: "Mães latinas, se acaso ainda tendes no coração uns resquícios de afeto para esta coitada, antes a Amata de todos; se o jus maternal vos importa, soltai as tranças e vinde comigo dançar nesta orgia..."
Enfurecida, Amata vai até o feroz guerreiro Turno e relata a decisão do monarca Latino em tornar Lavínia esposa do herói estrangeiro, Enéias. Essas decisões deixam Turno colérico, pois este, além de perder o futuro trono, deixaria, também, de ser o futuro genro de Amata e de Latino. Amata prossegue, provocando-o, jogando veneno nos pensamentos do aturdido e inconformado Turno frente às alterações imprevistas do seu destino.
Irado Turno manda avisar Latino que a paz fora violada. A demoníaca Alecto voa sobre os teucros; eles ouvem os gritos da odiosa deusa e ficam apavorados.
A guerra assim principia entre os pastores, e logo alcança cinco cidades: todas se esquecem da forte afeição e da estima outrora nutridas entre elas.
[Neste trecho, a narrativa épica virgiliana é interrompida e o poeta proclama nova invocação às Musas:
"Musas divinas, abri-me o Helicão e inspirai meus cantares, para dos reis eu falar, implicados na grande aventura, dos seguidores dos seus estandartes, os novos guerreiros, do márcio ardor animados nos plainos fecundos da Itália, pois vós, ó deusas! sabeis tudo o que houve e podeis relatar-nos seguramente o que as auras somente ao de leve contaram." (p.153) ]
Mezêncio - o desprezador dos deuses do Olimpo - e seu filho Lauso foram os primeiros guerreiros a entrar na contenda. Uma série de outros monarcas segue a ambos. Dentre eles, destaca-se o terrível Messapo - o domador de cavalos. Uma multidão de tropas começa a se alinhar para combater o herói estrangeiro e invasor Enéias.
Turno era o primeiro dentre os guerreiros. Uma guerreira também se destacava: era Camila - da raça dos volscos.
LIVRO VIII
O ódio de Mezêncio aumentava na mesma proporção que o nome do herói Enéias ganhava prestígio no Lácio. O peito de Enéias se agitava, já pressentindo os horrores que teria de enfrentar. Porém, em sonhos, a Enéias é revelada a seguinte profecia:
"Ó descendentes dos deuses, que as sacras muralhas de Tróia nos restituis (...) Morada certa encontrastes, segura mansão dos penates. Não temas esses aprestos de guerra; a ojeriza dos deuses já se acalmou.
E para que não presumas que tudo não passa de sonho, num azinhal desta fresca ribeira hás de achar uma porca branca de leite, com trinta leitões tão branquinhos quanto ela, recém-nascidos, e agora em descanso do parto recente. Este é o local da cidade, o remate de tantas fadigas." (p.160)
A dividindade diz, então, a Enéias, o mais curto caminho para a sua vitória.
Enéias dirige-se imediatamente à Palantéia, firmando aliança com o monarca local chamado Evandro, pai do jovem Palantes.
Enéias, ainda temeroso, pede auxílio às ninfas. Com o auxílio das ninfas, Enéias encontra na margem de um rio a ninhada com trinta leitõezinhos. Assim, está confirmado o local do futuro reino de Enéias. Roma, naquele tempo, era dominada por Evandro e por seu filho, Palantes.
O pio Enéias dirige-se à presença de Evandro, e fala: "A Evandro viemos buscar. Anunciai-lhe que chefes troianos de alto valor vêm pedir-vos aliança e trazer-vos reforços...". E o pacto de paz entre o pio Enéias e o magnânimo monarca Evandro é consagrado: "Ó dos teucros o mais valoroso, com que alegria te escuto e agasalho, e de quanto me lembro do grande Anquises ao ver-te, esse timbre da voz, a aparência!..."
Evandro convida Enéias a participar das festas anuais, oferecendo a mesa aos recentes aliados. Evandro narra a Enéias o motivo das festas anuais: elas eram promovidas para celebrar a vitória dos deuses sobre Caco - o maldoso e astucioso que furtava os touros dos deuses. O festival era dedicado em louvor ao deus vencedor Hércules. Nessas festividades toda a comunidade comemorava e cantava os feitos divinos do deus etrusco.
Em seguida, Evandro narra a Enéias a história da fundação da cidade. Saem ambos a visitar Palantéia. Saturno era o deus fundador. Toda a história de Palantéia é narrada até que ambos chegam à pobre moradia de Evandro, o monarca desprezador dos bens materiais, pois o monarca aceita a pobreza como desígnios dos deuses.
Enquanto isso, no Olimpo, Vênus e Vulcano preparam um poderoso instrumento de guerra para Enéias. Os deuses recorrem a três fortes Ciclopes, solicitando-lhes que forjem para Enéias um escudo que o herói troiano deveria usar nos futuros combates. E assim o imenso escudo preparado pelos filhos do Etna foi crivado de fatos passados e futuros: no referido escudo, toda a gloriosa história de Roma aparece inscrita.
Evandro, reconhecendo a própria velhice, aconselha o pio Enéias e o filho Palantes sobre os cuidados que ambos deveriam tomar em relação aos perigos das futuras guerras.
Rapidamente os pactos são rompidos e a guerra generaliza-se por todo o Lácio. Evandro roga aos deuses que Palantes volte vencedor. Pede que os deuses ouçam as preces de um pai desesperado pela vida do filho.
Pávidas mães debruçam-se sobre os muros em lamentações, ao saberem dos dos destinos dos filhos lançados na guerra. A mãe divinal do guerreiro Enéias aproveita a oportunidade para aconselhá-lo a não temer a guerra, oferecendo-lhe um presente: "Eis o presente que te prometi, prenda excelsa do gênio do meu marido! De agora em diante, meu filho, não temas aos laurentinos opor-te ou a turno enfrentar nos combates."
Enéias não se cansa de contemplar os presentes enviados pelos deuses: o capacete, a mortífera espada e o escudo coberto de estranhas pinturas - o sabedor dos grandes feitos da Itália e da longa série de conquistas e batalhas; o espelho da história primitiva do povo romano até as épocas imperiais: dos dois gêmeos, Rômulo e Remo, das Sabinas até César no Senado. Exulta maravilhado Enéias a vista de tão belo Escudo, que joga com o seu destino e honra a glória de todos os seus descendentes.
LIVRO IX
Do Olimpo, Juno Satúrnia, a protetora de Turno, envia ao feroz guerreiro recados sobre os novos acontecimentos. A mensageira é a celeste Íris.
O impetuoso Turno prontamente aceita o desafio enviado pela mãe divina: "Pouco importa quem sejas; acato teu chamamento: eis a guerra!" E a luta tem seu começo. Turno passa a recrutar vários chefes guerreiros, e junto a eles trama as alianças: "Vamos, rapazes! Quem quer ser comigo o primeiro a atacá-los? Pronto! exclamou . _ E volteando seu dardo, jogou-o para o alto, como a indicar o começo da pugna."
Neste trecho da "Eneida", novamente Virgílio interrompe a narrativa, conclamando outra invocação às Musas:
"Musas! Que deus apartou dos troianos o incêndio horroroso e repeliu para longe as naus a voragem do fogo? Dizei-nos! _ É tradição muito antiga, perene lembrança..." ]
As tropas de ambos os lados organizam-se para a guerra. As divindades do Olimpo se igualam e se preparam para proteger seus filhos prediletos, ou destruir a vida dos guerreiros inimigos. Potências diabólicas (as Parcas) lançam seus agouros sobre Turno.
As tropas aguardam o próximo combate. Enéias, encontrando-se distante das linhas de combate, desconhecia, na verdade, o que se passava. Niso e Euríalo, unidos por profunda amizade, incumbem-se de atravessar o exército inimigo a fim de levar notícias das tropas para o povo em geral, sobretudo para o pio Enéias. Os dois partem assumindo o papel de mensageiros do herói troiano. Entretanto, ao atravessarem o campo dos inimigos foram descobertos e ambos foram mortos pelos ferozes rútulos.
Neste trecho, o poeta mantuano interrompe a narrativa com a finalidade de lamentar a morte dos dois jovens guerreiros:
"Felizes ambos! Se alguma valia tiverem os meus versos, alcançareis vida eterna na grata memória dos homens, enquanto os filhos de Enéias ficarem no duro penhasco do Capitólio, com o Pai dos Romanos no império do mundo." (p.190)
O exército dos rútulos destroça os corpos dos infelizes rapazes e, em lanças erguidas, suas sujas cabeças foram expostas ao público.
A alada Fama dá a notícia a todos. A mãe do jovem Euríalo, num ato desesperador, arrancando os cabelos e lançando gritos lancinantes, chora a morte do amado filho, expressando do seguinte modo: "Assim te vejo, meu filho, meu único amparo da vida... Como pudeste deixar-me sozinha no meu abandono? Sem coração! Nem ao menos lembrou-te ao partir para essa tão perigosa missão despedir-te de tua mãezinha?"
Cessados os lamentos, os teucros amparam a mãe de Euríalo e levam-na até a sua morada.
A partir daí, a guerra recomeça.
O poeta Virgílio, aqui, interrompe mais uma vez a narrativa, dirigindo outra invocação às Musas nos seguintes termos:
"Musas! Calíope, a voz sustentai-me e dizei-me sem falta do morticínio espantoso causado por Turno, os estragos da sua espada e os guerreiros que os volscos enviaram para o Orco. Contai-me tudo; os sucessos incríveis da ingente peleja, pois em verdade o sabeis e podeis referi-lo a contento." (p.192) ]
O feroz guerreiro Turno, auxiliado pelo deus Jove, põe-se a liqüidar as suas vítimas numa escalada vertiginosa de crueldades. Pelas suas mãos morrem os guerreiros Helenor, Lico, Prômulo, Clônio, Dioxipo, Ságaris, Idante e outros troianos; todos os que lutavam junto a Enéias... Turno então se expressa da seguinte forma:
"Pejo não tendes, ó frígios! de mais uma vez vos cercardes de um valo fundo e de opordes à Morte barreira tão frágil? Com armas tais pretendeis disputar nossas belas esposas? Que divindade ou delírio vos trouxe às paragens da Itália? Não achareis entre nós nem Atridas nem falsos Ulisses. Somos de estirpe robusta..." (p.194)
Ascânio, sentindo-se humilhado, roga ao deus Jove: "Júpiter onipotente! reforça esta audácia nascida do desespero! Magníficos dons deporei no teu templo..."
"O pai dos deuses o ouviu; e a sinistra, no céu descampado, forte trovão retumbou, no momento preciso em que soa o arco letal e uma seta ligeira foi no alvo encravar-se, as duas fontes de Rêmulo unindo por dentro do crânio."
O vitorioso Ascânio é louvado pelo deus Apolo; o deus dirige-lhe as seguintes palavras:
"Cresce em valor, meu menino; é assim mesmo que aos astros chegamos. Filho de deuses, fadado também a ser pai de outros deuses, dia virá em que belo remate os nascidos de Assáraco porão nas lutas dos homens. É certo; não cabes em Tróia." (p.195)
Apolo consente, assim, ao filho de Enéias, uma bela vitória sobre o guerreiro Numano. Logo após, Ascânio é aconselhado pelo deus Apolo a afastar-se definitivamente da pugna.
Recresce a fúria das lutas e batalhas sangrentas se instauram. Deuses e mortais encontram-se numa luta insana. Os rútulos lutam com toda a ferocidade sob as benéficas influências e ordens do deus Marte. Então, subitamente, Turno é encurralado pelo exército inimigo: "Calmo, senão sorridente, responde-lhe Turno impetuoso: Bem; principia, se tens gosto nisso; meçamos as forças. Prestes a Príamo irás anunciar que encontraste outro Aquiles."
Em seguida, Turno mata Pândaro, que desafiara o guerreiro rútulo ao vê-lo encurralado. Turno colérico prossegue suas matanças. Porém, sentindo-se cada vez mais acuado, busca defender-se, procurando a barreira do rio que circunda o burgo. Os deuses estavam prontos a liquidá-lo. Entretanto, a largos movimentos alcançou as margens do rio e, num rápido salto, pulou nas águas com todas as suas armas, fugindo do encalço do exército inimigo.
LIVRO X
Os deuses encontram-se reunidos em Assembléia, no Olimpo. O pai dos deuses pergunta como pode a Discórdia se negar a obedecer seus mandatos. Pede que os excessos de guerra sejam extintos e solicita que novos pactos de paz sejam firmados.
Vênus dirige a Júpiter uma resposta. Diz que Turno insiste na luta, pois essa é a vontade do deus Marte, protetor de feroz guerreiro rútulo. Relata que Enéias está distante do local das lutas, ignorando tudo aquilo que se passa com os seus aliados. Ao pai dos deuses, Vênus procura demonstrar todo o seu temor em relação àqueles que ameaçam o surgimento da Tróia nascente.
O inferno entra na nova Tróia por intermédio da furiosa Alecto - alerta Vênus.
Logo em seguida, a deusa Vênus pede a Júpiter que a auxilie no salvamento de Ascânio contra as armas cegas. Mas a cólera de Juno interfere no diálogo dos deuses. E entre inúmeras queixas contra os estrangeiros troianos, colérica e indignada Juno dirige-se ao pai dos deuses com as seguintes palavras:
"É coisa indigna cercarem latinos de chamas a Tróia no nascedoiro? que Turno defenda o torrão seu paterno, ele que vem de Pilumno e por mãe teve a deusa Vanília? Muito pior será a guerra os troianos ao Lácio levarem , o jugo impor numa terra estrangeira, roubar todo o gado, eleger os sogros, e noivas roubar do regaço materno..." (p.203)
Juno assim falou. Júpiter então decreta que não tomará nenhum partido, dando por encerrada a Assembléia dos deuses.
Enquanto isso, Turno dava prosseguimento à guerra. Enéias tudo ignorava, pois ainda mal saíra das terras de Evandro e em companhia de Palantes. Ambos ainda se encontravam em alto mar, a caminho do campo de batalha.
Virgílio interrompe mais uma vez a narrativa, fazendo a seguinte invocação às Musas:
" Agora, Musas, abri-me o Helicão; inspirai o meu canto, para dizer-me que povos toscanos a Enéias seguiram, naus emprestaram e as ondas revoltas cortaram com ele." ]
O pio Enéias passa a recrutar chefes guerreiros para a batalha. Percorre várias regiões do Lácio, firmando inúmeros pactos com monarcas e respectivas populações. Enéias refere-se a Mântua [terra natal do poeta Virgílio] nestes termos:
"Ocno também traz das praias nativas seus homens, nascido de Manto, sábia adivinha, e do Rio toscano, que o nome da própria mãe te legou, das muralhas, ó Mântua! que te ornam, Mântua mui rica de avós, mas nem todos da mesma linhagem." (p.206)
O canto do herói prossegue enaltecendo outras cidades próximas a Mântua.
Enéias continua a viagem por mares. Repentinamente um grupo de ninfas se aproxima. A mais falante, a ninfa Cimódece, assim se dirige ao pio herói:
"Dormes, Enéias, progênie dos deuses, e rasgas os mares à toda vela? Pinheiros já fomos do monte sagrado do Ida; depois, tua esquadra; ora, ninfas marinhas, desde o momento em que o rútulo fero tentava assolar-nos com suas armas potentes, as chamas do incêndio furioso..." (p.207)
As ninfas dizem a Enéias que se apresse, pois o filho Ascânio corre grande perigo: o colérico Turno avança. Anda, é hora de apressar-te - as ninfas impõem ao pio Enéias.
Turno procura alcançar a praia, para impedir que os troianos ali desembarquem. O feroz guerreiro evoca a memória - fatos passados - para atiçar ainda mais os companheiros.
Enéias e sua embarcação se aproximam. Turno atira seus homens até a praia em sentido de defesa contra a frota do herói troiano.
O choque entre as tropas é inevitável. Então, a um fiel companheiro troiano Enéias fala: "Dai-me outras lanças, daquelas que em Tróia ficaram cravadas em corpos gregos; nenhuma há de frustrar passar pelos rútulos sem atingi-los."
A partir daí, toda Ausônia transforma-se num campo de batalha.
Por fim, o cenário é composto por uma tremenda batalha. As tropas de Enéias recuam diante das forças inimigas. Palantes implora para os companheiros de batalha que não recuem, mesmo porque já não têm para onde fugir. Todo Lácio é um campo de batalha. Em meio à pugna, Palantes, sempre a suplicar, roga proteção e auxílio aos deuses: "Pai Tibre! ao dardo possante que neste momento eu disparo, dá que a Fortuna o dirija até ao peito de Haleso! Um carvalho de tuas margens suas armas terá como honroso troféu."
Caem os filhos da Arcádia e os etruscos. "Morrem os filhos da Arcádia, os valentes e fortes etruscos, e vós também , teucros belos, escapos da fúria dos gregos! Chocam-se iguais contingentes, com cabos de guerra esforçados."
Turno, auxiliado pela irmã divinal Juturna, planeja algo mais surpreendente ao lançar o seguinte desafio: "_ Cesse a pugna! Eu, somente, a Palantes devo enfrentar! Essa vítima a mim é devida. Quem dera que aqui também estivesse seu pai, para ver esse encontro!"
Dito isto, Palantes imediatamente aceitou o desafio proposto por Turno. Numa luta cruel, Palantes é, então, mortalmente ferido pelo cruel rútulo. Turno pede que o filho seja devolvido a Evandro tal como o merece: morto.
Ao saber da morte de Palantes, o pio Enéias é tomado de fúria e desejo de vingança:
".... assim Enéias no campo da guerra semeava destroços desde que o gládio tingiu na matança (...) Desorientados ao vê-lo avançar com passadas gigantes, ameaçador, espantaram-se os brutos e logo, sem tino, por terra o dono jogaram e à praia, sem mais, se acolheram." (p.215)
Enéias prossegue lutando e promovendo mortes sucessivas. O Olimpo se agita. O pai dos deuses pede a Juno que retire Turno do campo de batalha. Uma luta encarniçada entre Enéias e Turno é prevista. No entanto, Turno (a humilhada Juno já conhecia seu destino!), começa a perceber que perde suas forças divinais, e lamenta sua desdita:
"Onipotente Senhor! de que crime impustate-me a culpa, para punir-me e me impor uma pena de tal gravidade? Para onde vou? De onde vim? De que modo fugir de tão grande humilhação, para os campos laurentes voltar e aos combates?" (p.218)
Flutua pela mente de Turno o desejo de suicidar-se. Mas a deusa Satúrnia o impede de realizar tal ato. Por outro lado, Júpiter inspira o cruel guerreiro Mezêncio a tomar o lugar do, agora, pusilânime Turno. Assim, o temível Mezêncio passa a matar inúmeros guerreiros das tropas inimigas. Messapo, outro terrível guerreiro, junta-se a Mezêncio na matança. Entretanto, o deus Marte a guerra equilibra e impõe entre os homens um infinito luto.
A luta agora travada envolve Enéias contra Lauso e Mezêncio. A lança de Enéias atinge mortalmente o guerreiro Lauso - filho de Mezêncio -, mandando-lhe para a morada dos Manes.
Surpreendente para a condição de um guerreiro, Enéias demonstra seus sentimentos de compaixão diante do corpo morto do inimigo:
"Ao ver Enéias no extremo da vida o inditoso guerreiro, de palidez assombrosa coberto, sentiu-se tomado de compaixão. À sua mente ocorreu-lhe a imagem do filho: a destra estende-lhe presto e lhe diz as seguintes palavras: Desventurado mancebo, o que pode fazer-te nesta hora minha piedade, em louvor de ti próprio e da minha coragem? Conserva as armas que tanto estimavas. Prometo entregar-te _ Sirva também de consolo e motivo de orgulho saberes que às mãos caíste de Enéias." (p.221)
Mezêncio chora sobre o cadáver do filho Lauso e, sem demonstrar vontade de continuar vivendo, resolve desafiar Enéias. Enéias vai ao encontro de Mezêncio e, com o auxílio do seu divino Escudo protetor, mata o inimigo. Mezêncio rende-se às forças de Enéias, e moribundo implora:
"Por que me ameaças com a morte, inimigo cruel? Sem desdouro podes matar-me; não vim combater-te pensando na fuga; nem o meu Lauso contigo firmou esse pacto humilhante. Mas, se ao vencido uma graça concedes, apenas te peço: dá sepultura ao meu corpo. Conheço que um ódio implacável os meus me votam; à fúria me poupa de suas desforras. Que lado a lado a meu filho, debaixo da terra eu repouse. Assim dizendo, esperou pelo golpe da espada inimiga. Aos borbotões a alma perde, no sangue que as armas lhe banham." (p.223)
LIVRO XI
Enéias assume como tarefa imediata dedicar louvores aos deuses pela vitória alcançada e enterrar os mortos, dando-lhes sepulturas dignas.
O burgo enlutado de Evandro chorava a morte de Palantes. Vendo o corpo morto de Palantes, Enéias explode em lamentos. Pede, então, aos guerreiros que preparem o leito de morte para Palantes. O cadáver coberto de belos adornos (tecidos com fios de ouro) é destinado ao cortejo fúnebre. Evandro, vendo o filho morto, desaba em lamentos e desconsolado promete não mais mover guerras a ninguém. Um período de trégua foi firmado por doze dias. Durante este período, a população, junto o velho monarca Leandro, lamentava a morte do jovem guerreiro. Outros cadáveres de jovens guerreiros juntaram-se ao do jovem Palantes.
"Era porém na cidade opulenta do velho Latino onde se via maior alvoroço, mais dores e luto. Míseras mães, desoladas esposas, irmãs sem consolo, órfãos pequenos privados do amparo mui cedo na vida, amaldiçoavam a guerra lutuosa e o noivado de Turno.Ele, sozinho, dispute Lavínia com armas e braço, visto aspirar ao domínio da Itália e a mais alta honraria." (p.230)
Para piorar o tumulto, as fortes alianças existentes anteriormente com Turno começam a se desfazer. O rei Latino convoca, então, a Assembléia, para discutir os rumos da guerra. Ali, a guerra de Tróia e seus heróis é narrada à população, elevando o nome de Enéias. Devido à sua coragem e a de Heitor, a guerra de Tróia fôra adiada por um período de dez anos. O rei Latino, insistindo em salvar a pátria arruinada, expõe à população o seu plano para por termo à guerra no Lácio: pretendia doar um vasto terreno perto do rio toscano para o estabelecimento dos troianos.
Drances, inimigo mortal de Turno, levanta-se e traz a lume a sua proposta na Assembléia. A proposta de Drances pretendia firmar a paz com Turno e expulsar Enéias do Lácio. Entretanto, Turno, ao conhecer os planos de Drances, assim reage:
" Drances , és pródigo em belos discursos em tempo de guerra, quando se exige trabalho; o primeiro a chegar ao Conselho, sempre que os homens de bem são chamados. Porém não é hora de belas frases, enquanto as muralhas detêm os ataques dos inimigos e o sangue lá fora nos fossos referve. Troveja, então; é o teu hábito. Assascas-me, Drances, a pecha de covardia? " (p.234)
Turno então pede que o idiota não se preocupe. E diz não às propostas apresentadas. O feroz guerreiro rútulo então convoca a guerreira Camila - da nação vitoriosa dos volscos - para ajudá-lo a combater Enéias. Turno diz colérico: "Contra ele, sim, partirei, ainda mesmo que seja outro Aquiles e, tal como este, se vista com armas do forte Vulcano."
O Conselho então se reuni e Turno decreta pela continuidade da guerra. Arma-se furioso juntamente com Camila, e reabre a peleja. Camila, dotada de uma coragem invulgar, solicita a Turno que ela seja a primeira a enfrentar os perigos da batalha prestes a começar. Turno, fixando-se na terrível virgem donzela, diz:
"Ó virgem, glória da Itália! Como hei de pagar-te, como hei de agradecer teu auxílio valioso em tamanha apertura? Teu brio a tudo supera; vem, pois, tomar parte na luta. Se for verdade o que os meus batedores há pouco informaram, o astuto Enéias os campos em torno devasta com a sua cavalaria ligeira, e ele próprio, galgando estes montes abandonados, tenciona alcançar a cidade hoje mesmo." (p.238)
Camila, afeiçoada de Diana, tem a deusa como sua protetora. A deusa prepara a virgem para entrar nos combates cruentos contra os troianos. Ao lado de Camila lutará o temível guerreiro Messapo. A luta tem seu início e Camila com o peito nú destaca-se no meio da indescritível batalha. Muitos na dor se contorceram frente à ferocidade assassina de Camila. Ela mata possantes guerreiros com velocidade e força descomunais. Sem precaver-se, desejando logo liquidar os troianos, Camila vai ao encalço de Arrunte. Este gira seu dardo ao redor de Camila. Num golpe, o dardo cravou-se no peito direito sem mama de Camila. Morta Camila, a emissária de Diana, Ópis, geme de dor. Logo em seguida, o matador de Camila é perseguido e morto por uma ninfa trácia.
Turno ao receber a notícia da morte de Camila encontra-se emboscado numa selva. Ao afastar-se da selva, Turno avista Enéias, e este a Turno.
LIVRO XII
Perdida a altivez pelas derrotas sucessivas, Turno, ao monarca Latino, expõe o seu desejo em duelar corpo-a-corpo com Enéias. Latino aconselha Turno a desistir de tal confronto, mostrando a ele tudo aquilo que possui em abundância. Mas Turno resiste aos conselhos do velho monarca. Amata interfere dizendo que Turno é o único arrimo dos Latinos; portanto, deveria desistir do confronto. Belicoso, Turno dirige-se a Amata com as seguintes palavras: "Mãe, não me aflijas com lágrimas e esses terríveis agouros, para não me deprimirem no instante de entrar em combate." E termina dizendo que o vencedor da peleja será o esposo de Lavínia. Por outro lado, não menos colérico encontra-se Enéias, que aceita o duelo proposto por Turno. Enquanto isso, a deusa Juno dizia a uma ninfa protetora de Turno que o fatal dia das Parcas aproximava-se do cruel guerreiro.
Enéias invoca os deuses, prometendo-lhes que, caso Turno fosse o vencedor, rumo à cidade de Evandro os vencidos se recolheriam. Caso contrário, se Enéias fosse o vencedor, o pio herói promete, então, um pacto de paz com todos os povos da Itália. Latino jurou que seguiria as palavras de Enéias, e assim firmaram um novo pacto.
Enquanto isso, Juturna, a deusa protetora de Turno, juntamente com seu povo, lamenta a desdita do feroz guerreiro. Mas o furor bélico a todos arrasta até o local da dura peleja. Enéias, ferido na perna, dá início ao combate. Ambos se encontram no campo de batalha. A rainha Amata, imaginando Turno vencido na peleja, suicida-se.
Os dois guerreiros concordaram em lutarem sós. Então, os belos escudos se chocam. Durante a sangrenta luta, Turno pede auxílio a Fauno. Uma ninfa auxilia Turno durante a luta. Vênus indignada livrou a espada do teucro, pronta para atingir mortalmente Turno. O pai dos deuses indignado com tudo aquilo pede à deusa Vênus um basta. Vênus diz ao pai dos deuses que desiste de tudo aquilo, implorando a Júpiter que estabeleça a paz entre os povos da Itália. Que todos os povos do Lácio se unissem em doce aliança: "Cresça a potência romana com base nos ítalos fortes. Tróia acabou; deixa então que com ela seu nome pereça." Que exista doravante um só povo com nome de latino. Esta era a vontade da deusa.
O Olimpo então enviou Juturna até o campo de batalha, onde os dois guerreiros lutavam. Ali transformou-se em ave negra agourenta, para o assombro e horror de Turno. Diante desse agouro, o guerreiro rútulo previu a própria morte iminente. A ninfa Juturna demonstrava tristeza profunda pelo fim do querido irmão.
Finalmente, embora demonstrando forte indecisão na hora fatal, Enéias mata Turno. "A alma indignada a gemer fundamente fugiu para as sombras."
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AS CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS FORAM EXTRAÍDAS DO SEGUINTE VOLUME:
VERGÍLIO. Eneida. Tradução Tassilo Orpheu Spalding. 3 a 9 ed. São Paulo: Cultrix, 1990-92.
PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
CAMPINAS, verão de 2005
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A "ENEIDA", de VIRGÍLIO (tentativa de resumo)2005Recanto das LetrasSÍLVIO MEDEIROSSÍLVIO MEDEIROStext/plain




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Virgílio
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Públio Virgílio Marão (em latim Publius Vergilius Maro), às vezes chamado de Vergílio, (Andes, 15 de Outubro de 70 a.C. - Brindisi, 21 de Setembro de 19 a.C.), foi um poeta romano.
Sua obra mais conhecida é a Eneida. Foi considerado ainda em vida como o grande poeta romano e expoente da literatura latina. Seu trabalho foi uma vigorosa expressão das tradições de uma nação que urgia pela afirmação histórica, saída de um período turbulento de cerca de dez anos, durante os quais as revoluções prevaleceram.
Biografia
Considerado o maior poeta latino. Era natural da região de Mântua (70-19 a.C.) e filho de uma família de camponeses. Alcançou pelo casamento uma situação estável, podendo então ouvir, em Milão e Roma, as lições de filósofos epicuristas. Amigo de Horácio, como ele protegido por Mecenas, entrou em contato com o imperador, de quem recebeu o incentivo para escrever a Eneida.
Admirador da cultura helênica, empreendeu uma viagem à Grécia, berço e viveiro da cultura, sonho que há muito acalentava: o destino concedeu-lhe a realização desse anseio, mas morreu no regresso, junto de Brindisi. O seu túmulo encontra-se em Nápoles.
A obra de Virgílio compreende, além de poemas menores, compostos na juventude, as Bucólicas ou Éclogas, em número de dez, em que reflete a influência do gênero pastoril criado por Teócrito.
As Geórgicas, dedicadas ao seu protetor Mecenas, constam de quatro livros, tratando da agricultura. Trata-se de uma obra de implicações políticas indiretas, embora bem definidas: ao fazer a apologia da vida do campo, o poeta serve o ideal político-social da dignificação da classe rural. Reflete a influência de Hesíodo e Lucrécio.
Literariamente, as Geórgicas são consideradas a sua obra mais perfeita. E finalmente, a Eneida, que o poeta considerou inacabada, a ponto de pedir, no leito de morte, que fosse queimada, constitui a epopéia nacional.
Esta refere-se à lenda do guerreiro Enéias, que, após a célebre guerra, teria fugido de Tróia , saqueada e incendiada, e chegado à Itália, onde se tornou o antepassado do povo romano. Epopéia erudita, a Eneida tem como objetivo dar aos romanos uma ascendência não-grega, formulando a cultura latina como original e não tributária da cultura helênica.
O poema consta de doze livros e a sua construção serviu de modelo definitivo às grandes epopéias do renascimento, nomeadamente para Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, o que se percebe claramente comparando o primeiro verso das duas epopéias:
Eneida: Arma uirumque cano... que significa: "As armas e o varão(herói) eu canto"; com
Lusíadas: As armas e os barões assinalados..

Uma Epopéia por encomenda
Virgílio já era ilustre pelas suas Bucólicas, um poema pastoril, e Geórgicas, um poema agrícola. Então, o imperador César Otaviano Augusto encomendou a Virgílio a composição de um poema épico que cantasse a glória e o poder de Roma. Um poema que rivalizasse e quiçá superasse Homero, e também que cantasse, indiretamente, a grandeza de César Augusto. Assim Virgílio vai elaborar um trabalho que, além de labor lingüístico e estro poético, é também propaganda política.
Muitos dos episódios na Eneida, que narra um tempo mítico, têm uma correspondência sincrônica com a atualidade de Augusto. Por exemplo o escudo de Enéias, simbolizando a batalha do Ácio, quando Otávio Augusto derrota Marco Antônio em 36 a.C. e a previsão de Anquises, no Hades, sobre as glórias de Marcelo, filho de Otávia, irmã do imperador.
Virgílio conclui a Eneida em 19. a.C.. A obra está completa mas não está ainda pronta segundo o seu criador. Virgílio gostaria ainda de visitar os lugares que aparecem no poema e revisar os versos dos cantos finais. Mas adoece e, às portas da morte, pede a dois amigos que queimem a obra por não estar ainda perfeita. O grande poema, já era conhecido de alguns amigos coevos, não é destruído - para nossa felicidade e fortuna literária. Sem a epopéia virgiliana, não haveria Orlando Furioso, O Paraíso Perdido, Os Lusíadas, dentre outros grandes clássicos da literatura mundial.
Ambição de Virgílio
Virgílio ao escrever esta epopéia inspirou-se em Homero, tentando superá-lo: Virgílio empenhou-se em fazer da Eneida o poema mais perfeito de todos os tempos. De certa forma, a primeira metade (seis primeiros cantos) da Eneida tenta superar a Odisseia, enquanto a segunda tenta superar a Ilíada. A primeira metade é um poema de viagem e a segunda um poema bélico.
Dramatis personæ
Há dois tipos de personagens na Eneida: os Humanos e os Deuses. Há uma espécie de terceira entidade que é a do Fatum (Fado, destino) que nem os deuses podem obliterar.
Humanos
• Anquises, pai de Eneias
• Ascânio, filho de Eneias e de Creusa.
• Creusa, esposa de Eneias.
• Dido, rainha de Cartago.
• Evandro, ancião
• Eneias, troiano, sobrevivente à guerra de Tróia
• Turno, rei latino, inimigo de Eneias em Ítália
Deuses
• Apolo, deus do Sol
• Éolo, deus dos ventos
• Juno, mulher de Júpiter, opositor de Eneias
• Júpiter, o rei dos deuses
• Mercúrio, o deus mensageiro
• Neptuno , deus dos mares
• Vénus, deusa do amor e da beleza, coadjuvante de Eneias
Nota: É de bom grado utilizar a terminologia latina (romana) para falar da Eneida, já que se trata de um poema romano.
Tempo da diegese
O tempo da diegese, ou seja dos acontecimentos narrados, ocorre imediatamente após a queda da cidade de Tróia, portanto a Eneida dá continuidade à Ilíada de Homero. Se a Odisséia narra as aventuras de um grego, de Ulisses (ou Odisseus), que tenta voltar para a sua casa e para a sua família, a Eneida narra as aventuras de um troiano que, depois da destruição de Tróia, foge com a sua família. A sua fuga dá-se por mar. Eneias procura um sítio para fundar uma nova cidade.
Tempo do discurso
Quando o texto começa, a aventura de Enéias já se iniciou (a narrativa começa in media res, isto é, a meio da acção). O herói naufraga ao largo de Cartago (a actual Tunes) e vai ter com a rainha Dido. Conta-lhe as suas viagens até ao momento em que se encontra. Esse é um processo de analepse (em inglês, flashback). A partir do quarto capítulo, o tempo da diegese é contemporâneo ao da narração do poema, ou seja os acontecimentos são narrados como se estivessem acontecendo no presente.
Capítulos ou Cantos
A Eneida tem doze capítulos, exactamente metade que a Odisseia.
I - Eneias naufraga ao largo de Cartago
Depois de partir da Sicília, Enéias é arrastado por uma tempestade que o faz naufragar. Enéias observa a cidade. Ele que vem de Tróia que fora totalmente arrasada e que tem por missão fundar uma nova cidade. É recebido por Dido, rainha de Cartago. Comove-se ao ver os frescos nas paredes que narram a guerra de Tróia. Dido começa a apaixonar-se por Enéias.
II- Enéias narra a Dido o último dia de Tróia
Dido solicita a Enéias que lhe relate a queda da lendária cidade de Tróia. Ele conta o célebre episódio do Cavalo de Tróia. E conta como se deu a batalha durante a noite. Como o incêndio começou a devorar a cidade. No desespero Enéias decide lutar até morrer. Vênus, sua mãe, aparece e lhe diz: vai procurar o teu pai, a tua mulher e teu filho e abandona a cidade.
A cidade é tomada pelos gregos. Enéias procura sua mulher, Creusa, gritando pelas ruas À sua procura. Encontra o espectro dela. Com muita ternura o fantasma de Creusa diz-lhe uma profecia: que ele irá ter muitos infortúnios mas acabará por conseguir fundar uma nova cidade. Enéias consegue fugir com o seu pai às cavalitas e com o seu filho pela mão.
III- Enéias narra a Dido as suas viagens rumo à Itália
Eneias continua a contar a Dido as suas peripécias para chegar à Itália, até aportar em Cartago temporaria e acidentalmente. Conta a sua escala na Trácia e em Creta. A chegada a Épiro e à Sicília. Conta também seu encontro com Andrômaca (viúva de Heitor) e como faleceu o seu pai Anquises.
IV- Os amores de Dido e seu fim trágico
A rainha Dido, segundo a Eneida de Virgílio, após ouvir a narração do fim de Tróia e das viagens e peripécias de Enéias, influenciada por Vênus, deusa do amor e mãe de Enéias, vê-se completamente apaixonada pelo herói. Ela convida os troianos (Enéias e os seus companheiros) para uma caçada. No meio de uma tempestade, abrigados em uma caverna, Dido e Enéias se amam. Entretanto Júpiter envia Mercúrio a Enéias para lhe lembrar que seu destino é encontrar o Lácio e fundar uma nova cidade que substitua a cidade de Tróia destruída e que governe as demais cidades do mundo. Enéias tenta sair de Cartago sem que Dido se aperceba disso. Sentido-se abandonada, enganada e vilipendiada, furiosa e ensandecidada pelo amor não retribuído, ela se suicida enquanto partem os navios troianos e Enéias ainda pôde ver a fumaça da pira funérea saindo de seu palácio.
V- Os jogos fúnebres
Eneias aporta à Sicília e decide realizar jogos fúnebres em honra de seu pai Anquises. Já se passou um ano desde que este morreu.
(Este capítulo é importante para quem estuda a antropologia dos romanos porque dá indicações de como eles se relacionavam com a morte.)
VI- Descida de Eneias ao Mundo dos Mortos/Submundo
Este é um dos episódios mais famosos da Eneida. Depois de Eneias ter partido da Sicília fez escala em Cumas. Nesse local consulta uma sacerdotisa (uma sibila) de Apolo. Ele tem um desejo intenso (em sonhos seu pai o havia conclamado a fazê-lo) de falar uma última vez com seu pai para lhe pedir conselho sobre a viagem. Obtém permissão de descer ao mundo dos mortos (este episódio faz lembrar outras descidas famosas ao mundo dos mortos: o episódio de Orfeu e Eurídice, a nekya de Odisseu, no canto XI da Odisséia. No mundo dos mortos vê vários espectros. Um deles o de Dido que, ladeada por seu primeiro esposo, não lhe responde.
O seu pai Anquises dá-lhe importantes informações sobre a sua viagem e faz uma longa profecia sobre o futuro glorioso de Roma. (infernos, o hades dos gregos)
VII- chegada ao Lacio
(Latium, província romana onde se situará Roma)
VIII- Evandro. Descrição do Escudo de Eneias
IX- Ataque ao acampamento troiano
X- Façanhas e morte de Palante
XI- Funerais dos guerreiros. Façanhas de Camila
XII- Combate de Eneias e de Turno. Vitória de Eneias.
Simbologias da Eneida
A Eneida simboliza o poder imperial de Roma, sob o comando de César Octaviano Augusto. Dido simboliza o poder de Cartago, rival de Roma, que seria por esta destruída na terceira das guerras púnicas. Dido também simboliza Cleópatra, rainha do egipto, que se tinha aliado a um general romano, Marco António, para resistirem a Roma. Marco António e Cleópatra foram derrotados na batalha marítima do Áccio, ao largo do delta do Nilo. Dido simboliza assim a mulher misteriosa e sedutora do oriente, que resiste ao poder romano mas que por ele é submetido. Por metonímia simboliza todo o Médio Oriente e Norte de África que foram das últimas terras a serem conquistadas pelo Império Romano.

Turno simboliza os antecedentes latinos da "raça" romana, enquanto Eneias simboliza os antecedentes troianos (que são ficcionais). Eneias é uma personagem que permite dar a Roma uma ascendência mítica, juntando-se assim ao mito da fundação de Roma por Rómulo e Remo.
Repercussões literárias da Eneida
Dante Alighieri, no seu famoso episódio da descida aos infernos, é levado pela mão de Virgílio para ver os mesmos. Luís de Camões inspira-se directamente neste grande Épico romano para escrever os seus Os Lusíadas.
Traduções
Há algumas traduções da Eneida para a língua portuguesa, feitas do latim. Em verso, citam-se as brasileiras de Manuel Odorico Mendes, do século XIX, que utilizou o decassílabo heróico, e de Carlos Alberto da Costa Nunes, do século XX, que utilizou o verso de dezesseis sílabas poéticas para verter o hexâmetro dactílico épico; e a portuguesa de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva, do século XIX, em decassílabos. Em prosa, publicaram-se a tradução de Tarsila Orpheu Spalding e a de Jaime Bruna.
• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005;
• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Carlos Aberto Nunes. Brasília: UnB, 1975;
• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004

Resumo de Eneida,
por: Prof. Silvio Medeiros
Fonte: http://imprimis.arteblog.com.br/home/
LIVRO I
Proêmio da "Eneida". O poeta dirige a invocação às Musas:
"As armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Tróia por injunções do Destino , instalou-se na Itália primeiro e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno, guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade e ao Lácio os deuses trazer _ o começo da gente latina, dos pais albanos primevos e os muros de Roma Altanados.
Musa! recorda-me as causas da guerra, a deidade agravada; por qual ofensa a rainha dos deuses levou um guerreiro tão religioso a enfrentar sem descanso esses duros trabalhos?" (p.9)
Assim tem início o canto sobre a saga do herói Enéias na "Eneida". Primeiro o poeta Virgílio canta as glórias do pio Enéias, em seguida faz a invocação às Musas.
A divindade inimiga do herói é a deusa Juno (esposa de Júpiter e mãe de Marte), dona das terras da Itália, além de protetora da cidade de Cartago, ao norte da África. Com efeito, para a deusa, Enéias é um invasor que deve ser combatido; apesar de Juno conhecer, desde o início da épica, as tramas que as Parcas já haviam tecido contra os inimigos do herói troiano: "Juno potente, a sangrar-lhe no peito a ferida, conversa consigo mesma: _ Aceitar o fracasso no início da empresa, sem conseguir afastar dessa Itália o caudilho troiano?..."
Em meio a outros pensamentos contra o herói troiano, Juno "baixa até à pátria dos ventos furiosos, a Eólia chamada, dos Autros feros", e súplice roga a Éolo, pai das tempestades, que impeça o avanço das frotas troianas sobre o território italiano. Prontamente a deidade é atendida por Éolo: os ventos reunidos tornam negro o dia e a tormenta desaba sobre o mar. Enéias aterrorizado com tal cenário, exclama: "_ Oh, três vezes e quatro felizes os que morreram à vista dos pais, sob os muros de Tróia!", lamentando, desse modo, não ter também perecido na guerra de Tróia. A tormenta bate de frente na frota dos troianos e a poderosa tempestade os domina. No entanto, Netuno (deus do mar e irmão da rancorosa Juno), presenciando e não apreciando tais acontecimentos, invoca os ventos propícios, tornando o mar manso. Só assim, Enéias e seus sócios desembarcam nas costas da Líbia. Aproximam-se da morada das ninfas e ali descansam. Enéias pede ânimo aos companheiros, dizendo-lhes que já enfrentaram coisas piores; lembra, então, que já escaparam dos terríveis Cilas e Ciclopes. Avisa que a viagem terá continuidade rumo ao Lácio prometido pelos deuses: sinônimo de um futuro risonho. Enéias insufla ânimo na alma dos troianos.
Enquanto isso, no Olimpo, a deusa Vênus, angustiada, roga ao pai dos deuses - Júpiter - que ponha fim aos trabalhos infindáveis e aos sofrimentos do povo troiano. Júpiter, tranqüilizando a filha Vênus, promete:
"Acalma-te, Citeréia: imutáveis encontram-se os Fados. Ainda verás a cidade e as muralhas da forte Lavínio, como te disse, e até aos astros o nome elevar-se de Enéias de alma sublime. Mudança não houve no meu pensamento. Mas, uma vez que tais cuidos te agitam, tomando de longe vou revolver o futuro e os arcanos do Fado mostrar-te. Guerras terríveis ele há de enfrentar..." (p.15)
Dito isto, o pai dos deuses narra à filha Vênus toda a história gloriosa da futura Roma, citando seus heróis fundadores - do governo de Rômulo até a futura e gloriosa "Tróia" do imperador Júlio César. Após essas promessas, o pai dos deuses solicita a Mercúrio (mensageiro dos deuses) que vá até o reino de Cartago - administrado pela infeliz rainha Elisa (cujo epíteto era Dido) -, para que, lá, o pio Enéias fosse bem recebido. Em seguida, Vênus aparece para Enéias, narrando a ele toda a história da desventurada Dido. Pigmalião - o irmão de Dido - assassinou Siqueu, o esposo de Dido. Em sonhos, Siqueu apareceu a Dido, revelando-lhe a maneira como o irmão Pigmalião havia tirado a vida do esposo Siqueu. Além disso, alertou Dido para que abandonasse o reino, levando com ela todas as fortunas acumuladas. Esta aventura foi chefiada por Dido até atingir a sua destinação; isto é, o local no qual Dido deveria fundar a cidade de Cartago.
Após narrar tal história, Vênus aconselha Enéias a procurar proteção junto a Dido. Enéias penetra no reino de Dido protegido por uma espessa neblina a cobrir todo o seu corpo. De tudo alí visto, Enéias admirava-se. A paisagem da cidade em construção, Enéias contemplava maravilhado. Fervia o trabalho por todos os cantos do burgo de Dido. Muros gigantescos erguiam-se no burgo nascente.
No templo de Juno, construído por Dido, Enéias contemplava e emocionava-se com as gravuras que registravam vários episódios da Guerra de Tróia. Enquanto Enéias admirava os sublimes quadros, a rainha Dido entra no palácio. Dido então passa a ditar os trabalhos dos operários responsáveis pela construção da cidade de Cartago. Um misto de medo e alegria apodera-se de Enéias e do seu fiel acompanhante Acates. Ilioneu, porta-voz da rainha, narra os infortúnios da tropa dos troianos que, há pouco, desembarcara nos domínios do seu reino. Então a rainha Fenícia, após ouvir a história, fala:
"Com os olhos baixos, em termos concisos lhe fala a Rainha: Bani, troianos , do peito o temor; expulsai os cuidados. As duras leis do começo de um reino, senão mesmo a própria necessidade me impõe rigor na patrulha da costa . Quem desconhece a ascendência de Enéias, a queda de Tróia, a proverbial resistência dos teucros, horrores da guerra? Nós, os fenícios , não somos tão bárbaros como pensastes..." (p.23)
e diz que muita feliz ficaria se ali estivesse presente o próprio Enéias. Com tal discurso, Enéias e Acates animam-se. De repente, a nuvem enviada por Vênus se desfaz e, à luz repentina, Enéias se mostra aos olhos de Dido. Apresenta-se, então, à rainha Dido, dizendo que era o teucro Enéias. A rainha fala: "És, pois, Enéias, aquele de Vênus divina, nascido nas margens claras do belo Simoente, e de Anquises troiano? (...)" E, logo aceitando a presença do estrangeiro no seu reino, a infeliz Dido fala: "Por ter passado por isso, aprendi a ser boa com todos."
Enéias então convida toda a sua frota a entrar no reino de Dido. A rainha recebe da tripulação de troianos inúmeros presentes; eram objetos salvos das ruínas de Tróia.
No Olimpo, Juno trama a paixão de Dido por Enéias. Cupido enfeitiça a rainha com um ardente amor por Enéias. Dido, consumida pelo amor, devora Enéias com os olhos. Aos poucos a imagem de Siqueu, o defunto marido, é apagada de sua memória.
Dido invoca Júpiter, prometendo ao referido deus hospitalidade aos estrangeiros. Em seguida, roga ao estrangeiro Enéias que o próprio narre as suas aventuras:
"Hóspede_ fala-lhe_ conta-nos tudo por ordem, do início, as artimanhas dos dânaos, desditas dos teus companheiros, este vagar sem descanso nem termo por mais de sete anos em toda terra infinita, nas ondas inquietas, por tudo." (p.28)
LIVRO II
Então, todos se calaram na corte de Dido, e Enéias deu início à sua narrativa.
Contou a história do cavalo de Tróia e como os adivinhos troianos procuravam encontrar a razão para o surgimento repentino do gigantesco cavalo no reino de Tróia. Teria sido trabalho de quem? E com qual intuito teria sido enviado à Tróia? Dentre os adivinhos, apenas Laocoonte desvendou o segredo. Dirigiu-se aos troianos, dizendo o seguinte:
"Cidadãos infelizes, que insânia vos cega? Imaginais porventura que os gregos já foram de volta, ou que seus dons sejam limpos? A Ulisses, então, a tal ponto desconheceis? Ou esconde esta máquina muitos guerreiros, ou fabricada ela foi para dano de nossas muralhas, e devassar nossas casas ou do alto cair na cidade. Qualquer insídia contém. Não confieis no cavalo , troianos!" (p.30)
No entanto, a multidão não deu atenção aos insistentes apelos e presságios do adivinho Laocoonte.
Ao mesmo tempo, Torvo - rei mancebo de Argos -, sem armas, apresenta-se à multidão e vocifera um astucioso relato contra Ulisses; o herói grego é por ele considerado um falso, pois Ulisses havia assassinado Palamedes (protetor de Torvo) por inveja. Os troianos, sem suspeitarem até onde ia a perfídia e a maldade de um grego, permitiram que Torvo prosseguisse o seu falso relato. Compadecidos com a desdita do infeliz, os troianos ofereceram-lhe a liberdade. Por Sinão, o grande "sábio das tramóias", mais uma vez os troianos foram alertados contra as artimanhas de Ulisses - de todo o mal inventor . Suas profecias também foram ignoradas.
Antes dos troianos permitirem a entrada do cavalo na cidade, Laocoonte teve uma terrível visão de todos os males que atingiriam Tróia por obra dos gregos. Cassandra, filha do troiano rei Príamo e irmã do príncipe Paris, também procurou avisar os troianos sobre todos os males que estavam por vir, mas foi calada pelo deus Apolo.
Finalmente, a cidade recebe o cavalo, entoando hinos de júbilo. Após beberem, os troianos exaustos adormecem.
Os heróis gregos, aproveitando-se deste fato, abandonam o interior do cavalo (ardiloso engenho) e invadem a cidade de Tróia. Pegos de surpresa, os troianos não resistem à força do exército grego.
Enéias vê o chefe guerreiro troiano Heitor a chorar diante de Tróia destruída. Heitor assim fala a Enéias:
"_ Foge daqui , filho de uma deidade; do incêndio se livra. Dentro dos muros campeia o inimigo; hoje Tróia extinguiu-se. Muito já demos a Príamo e à pátria. Se a Pérgamo a destra de algo valesse, estas mãos se imporiam na sua defesa. Tróia te entrega os seus deuses e os sacros objetos do culto. Leva contigo esses sócios; procura morada para eles, grande cidade, depois de cortares o mar tormentoso..." (p.36)
Ao ouvir isso da boca de Heitor, Enéias lamenta a distância de sua casa, temendo não conseguir lá chegar para salvar a esposa: Creúsa, o pai: Anquises, e o filho: Ascânio.
O fogo dominava a cidade de Tróia, tudo destruindo pela traição e pela perfídia dos gregos. Uma idéia dominou brevemente os pensamentos de Enéias: morrer pela pátria, pois o último dia chegara para os troianos.
"Todos os deuses, esteios da pátria, os santuários e altares já abandonaram. Correis em defesa de ruínas e escombros em labaredas. Morramos, então! Avancemos sem medo! Para os vencidos só há salvação na esperança perdida. (...) Quem poderia narrar os horrores, o atroz morticínio daquela noite, ou com o pranto igualar o trabalho dos teucros? Caiu por terra uma antiga cidade, rainha das outras." (p.38)
O palácio do rei Príamo ardia em chamas. Sem a ajuda dos deuses, uma chuva de dardos inunda a cidade ardente de Tróia. Tudo são ais nos interiores do Palácio Real. As autoridades troianas femininas: Andrômaca, Cassandra e Hécuba são raptadas. Príamo é morto por Pirro - temido guerreiro grego-, vingando, desse modo, a morte do filho do herói grego Aquiles, Neoptólemo.
Enéias mantém o seu pensamento voltado para a família e, com a alma furiosa, só pensa em vingar a pátria destruída. Porém, Enéias é aconselhado pela deusa Vênus a abandonar a cólera que o devora, e imediatamente socorrer a família, saíndo em fuga da Tróia destruída. O pai, Anquises, num primeiro momento, recusa-se a fugir com o filho. Enéias tenta convencer o pai que Tróia não tem mais salvação. Então Anquises foi surpreendido por um augúrio feliz: repentinamente da cabeça do neto Ascânio alçava uma chama, lambendo-lhe os cabelos. Anquises, convencido do aviso dos deuses, põe-se em fuga junto à nora, ao neto e ao filho:
"Pronto! partamos! agora! depressa! para onde quiserdes! Ó pátrios deuses, guardai esta casa, salvai meu netinho. O agoiro é vosso; sob vossa potência está Tróia segura. Não mais resisto, meu filho, nem faço objeção em seguir-te."
A pequena família foge com alguns servidores. A travessia pela cidade tomada pelos gregos é arriscada. Subitamente, o velho Anquises avista os gregos bastante próximos. Nesse momento, a esposa Creúsa desaparece para sempre de Enéias. O pio herói fica inconformado diante da perda da esposa. Segue-o somente o pai e o filho em meio aos horrores da cidade destruída.
"Amontoada, a riqueza de Tróia se via, templos saqueados, as mesas dos deuses, as mais belas copas de ouro existentes, e vestes e adornos dos pobres cativos. Ao derredor, em fileiras, morrendo de medo, os meninos, mães desoladas." (p.48)
Durante a fuga, a sombra da adorada esposa Creúsa apresenta-se ao herói troiano. Este procura agarrá-la, mas em vão. Então, Creúsa implora que Enéias aceite todas aquelas tragédias, pois sucessos futuros lhe são reservados: com a ajuda dos deuses fundará uma nova Tróia, em território italiano. Em seguida, diz o derradeiro adeus ao marido.
Cedendo à sorte e carregando o pai nos ombros, o pio Enéias apressa sua fuga do território troiano.
LIVRO III
Toda Tróia é destruída. O herói Enéias encontra-se exilado em alto mar, em companhia do pai, do filho, dos sócios e dos deuses de Tróia.
Aportam à praia das terras do feroz Licurgo. Enéias traça riscos no chão e passa a chamar a novata comunidade que o acompanhava de Enéadas; tudo sem os auspícios dos deuses. Às ninfas agrestes do local Enéias implora auxílio. De repente, ele é surpreendido pelo fantasma do guerreiro troiano Polidoro, outrora vencido naquelas terras. Polidoro, filho do rei Príamo, fôra morto no passado por um rei trácio; ele aconselha Enéias a abandonar imediatamente aquele lugar. Enéias presta honras fúnebres ao insepulto Polidoro e, logo em seguida, abandona as terras de Licurgo. A frota alcança o mar. Enéias desesperado pede ajuda a Apolo quanto a seu futuro incerto: "A quem seguimos? Aonde ir aconselhas? A sede assentarmos? Dá-nos agouro, Senhor! Ilumina estas mentes cansadas."
Então Enéias ouve vozes solicitando-lhe que busque as terras da "mãe primitiva" (a Itália), pois lá será o seu definitivo lar. Essas palavras a todos anima. A tropa chega, então, às praias dos Curetas. Lá os troianos descansam. No entanto, o pio Enéias encontra-se atormentado, solicitando novos auxílios a Apolo. Mais uma vez recebe o aviso de que a sua nova pátria encontra-se na Hespéria, em território italiano. Atarantado com tantas vozes e visões, Enéias acorda a toda a tripulação. Tendo Febo por guia, Enéias põe-se a caminho da terra prometida pelos deuses. Sempre obedientes aos destinos impostos pelos deuses, os troianos lançam-se em alto mar. Tempestades varrem o oceano. Após várias tormentas, avistam terras ao longe. Em breve, encontravam-se nas terras das Harpias; Celeno, a mais poderosa das fúrias, confirma os desígnios dos deuses: "com prósperos ventos heis de alcançar por sem dúvida a Itália longínqua. Mas, antes mesmo de vossa cidade querida dos deuses de muros altos cingirdes, haveis de roer até as mesas."
A frota troiana parte, então, daquelas terras. Logo aproximam-se de Ítaca. "De Ítaca reino de Laertes fugimos, de seus arrecifes, amaldiçoada por todos, a pátria de Ulisses nefando." E prosseguem a viagem... Passam próximos à ilha dos Feáceos até alcançarem terras gregas, onde reinava Heleno - filho de Príamo -, por ter esposado a viúva do guerreiro grego Pirro. Lá também encontrava-se Andrômaca a esposa-viúva do herói troiano Heitor.
Andrômaca relata a Enéias toda a seqüência de infortúnios que sofrera após a guerra de Tróia; nesta ilha, Andrômaca vivia na condição de escrava. Andrômaca demonstra extrema preocupação com a família do pio Enéias. Heleno, o monarca da ilha, recebe Enéias com gentileza e hospitalidade.
Em terras de Heleno, Enéias volta a consultar Apolo; o deus confirma-lhe, com precisão, o local onde deverá ser fundada a nova Tróia.
"Dou-te os sinais; na memória os retém, como é justo fazeres. Quando apreensivo estiveres nas margens de um rio sem nome, e deparares deitada na sombra de bela azinheira uma alva porca com trinta leitões ao seu lado, da mesma cor da mãe branca, deitados no chão a mamar com sossego: esse será o local da cidade, o descanso almejado." (p.61)
Dentre outros conselhos, o deus Apolo antecipa ao pio Enéias os perigos que deverá enfrentar em relação a Cila e a Caribde, dois monstros que dominam a costa da bela Sicília. Por antecipação - também através de Apolo -, Enéias fica sabendo que visitará a cidade de Cumas, na qual encontrará a poderosa Sibila, que o encaminhará até os bosques do Averno (Mundo dos Mortos).
Antes da partida, Andrômaca traz presentes ao menino Ascânio e antevê a fundação de uma Tróia reconstruída.
A frota de Enéias encontra-se novamente em alto mar. Finalmente,
" escorraçados os astros com a vinda do carro da Aurora, eis que avistamos ao longe os oiteiros modestos da Itália. Antes de todos, Itália! gritou para os sócios Anquises. Seus companheiros, Itália! a uma voz, despertados, exclamam." (p.64)
Dentre muitas coisas oferecidas pelas paisagens do local, a tripulação avista o santuário da deusa Minerva, o templo de Juno; mas ferozes ventos os afastam do roteiro, levando-os até o Etna e lançando-os próximos ao rochedo de Caribde. Sem saída, tomam de assalto as praias dos ferozes Ciclopes. Nesse local, encontram um grego, perdido; ele implora auxílio aos troianos nos seguintes termos: "Sou natural da ilha de Ítaca e um dos soldados de Ulisses, o desgraçado. Chamo-me Aquemênides. Vim para Tróia com meu pai, pobre de bens. Oxalá continuasse assim sempre!" E então passa a narrar as cenas horrendas que presenciou: viu o Ciclope gigante devorando muitos de seus companheiros tomados como reféns pelo terrível monstro; diz que o nome do monstro de um olho só é Polifemo. De repente, Aquemênides interrompe a sua narrativa, pois o monstro Polifemo, com a vista vazada e rangendo os dentes de dor, reaparece. Apavorados, os troianos põem-se em fuga, acolhendo o suplicante itacense.
Deixando as praias dos Ciclopes, procuram seguir o conselho de Heleno e evitam o caminho perigoso entre os monstros Cila e Caribde.
Açoitados por terríveis tempestades, Anquises não resistiu, e morreu. Essa foi a mais cruel desventura - não predita por nenhum adivinho - enfrentada pelo pio Enéias.
Finalmente, o pio Enéias dá por encerrada a narrativa de suas desventuras aos ouvintes da corte da rainha Elisa .
LIVRO IV
A rainha Elisa está ferida de paixão, com as palavras e com os gestos do herói troiano Enéias gravadas no peito. Ferida de morte, Dido fala a irmã:
"Ana querida, suspensa me encontro por sonhos horríveis. Que hóspede novo transpôs de inopino a soleira da porta? Como é galhardo! Quão forte guerreiro, em verdade, e que braço! _ Creio _ e bem certa estou disso _ ser ele de origem divina (...) Ana, confesso-o; depois de Siqueu me ter sido roubado, meu caro esposo, e os penates manchados de cruel fatricídio, este, somente, os sentidos tocou-me e a vontade oscilante venceu de todo. O calor sinto agora da chama primeira." (p.72)
E Ana relembra a Dido que a rainha já havia rejeitado muitos pretendentes, inclusive Jarbas, o monarca da Líbia. Por que se opor, então, a um desejo tão grato? E Ana continua na sua obstinada aposta em relação ao futuro matrimônio de Dido com Enéias. Chega a convencer a infeliz rainha Dido quanto aos futuros triunfos que Cartago poderia alcançar, caso a união entre os dois se consumasse. Ana pede à Elisa que cuide dos deuses e a eles ofereça sacrifícios, para obter o auxílio no ambicionado projeto. Põe-se a vagar pela cidade a infeliz Dido, com o peito em chamas:
"Inacabadas, as torres pararam; não mais se exercitam moços esbeltos nos jogos da guerra, na faina dos portos; interrompidas as obras, o céu das ameaças descansa; por acabar as ameias, merlões, toda a fábrica altiva."
Diante desse quadro, a indignada Saturna dirige-se à Vênus, interrogando a última sobre o destino de tudo aquilo; ao mesmo tempo, propõe firmar uma pacto de paz eterna. Vênus, sentindo a malícia no discurso da deusa, retruca e faz à Saturna uma proposta cheia de artimanhas: promover uma caçada e, durante uma forte tempestade, encerrar Enéias e Dido numa caverna, promovendo, dessa forma, a união entre os dois.
Tudo ocorre da forma como Vênus concebera o plano e, com grande estrondo nos céus, a união de Dido e Enéias foi consagrada. Relâmpagos brilhavam no céu e ninfas ululavam diante de tal consórcio.
Corre a Fama (monstro horrendo) por todo o território da Líbia, espalhando a recente notícia do casamento entre Dido e Enéias. Os boatos aumentam até chegar aos ouvidos do fiel pretendente de Dido: Jarbas, o fundador de cem templos. Jarbas então diz:
"Essa mulher, aqui vinda sem rumo, comprou por vil preço faixa de terra para uma cidade pequena, onde arasse quanto quisesse; porém, repelindo as alianças propostas, como a senhor de seus reinos a Enéias agora se prende. E ora esse Páris, seguido de um bando de gente somenos, fronte cingida com mitra da Meônia, no mento enlaçada, de perfumados cabelos, do rapto se goza." (p.76)
Jarbas antevê as futuras derrotas de Dido.
No reino de Dido, Enéias veste um belíssimo manto: presente valioso, tecido pela própria rainha Elisa. Porém, no Olimpo, Mercúrio é determinado pelos deuses a enviar um recado ao pio Enéias: que abandonasse todos os projetos contruídos juntamente com Dido. Mercúrio interpela Enéias e transmite-lhe a seguinte mensagem: abandonar os laços estabelecidos com a rainha e prosseguir viagem rumo à pátria prometida pelos deuses do Olimpo. A rainha pressente a tramóia engendrada pelos deuses e, fora de si , como uma bacante, percorre toda a cidade em delírio. De repente, depara-se com Enéias, que, naquele momento, alimentava pensamentos indecisos. Dido diz:
"Pérfido! Então esperavas de mim ocultar essa infâmia, e às escondidas deixares meus reinos sem nada dizer-me? Não te abalou nem a destra que outrora te dei, nem a morte que a Dido aguarda, inamável, tão próxima já do seu termo? Como se nada isso fora, teus barcos aprestas no inverno , quadra infeliz, pretendendo cortar os furiosos embates dos aquilões? Que crueldade!" (p.79)
A colérica rainha continua a injuriar e a cobrar todos os favores que havia concedido ao pio Enéias; este já havia sido convencido pelos deuses quanto à necessidade da partida iminente, mas seu coração estava ferido por ter de abandonar a rainha apaixonada. Procura convencer Dido que não tomara parte na decisão, pois tratava-se dos desígnios dos deuses.
"Fala-lhe afim por maneira sucinta: _ Jamais negaria tantos favores, Senhora, e outros muitos de que me recordas; em nunca a imagem de Elisa sairá do meu peito, por quanto tempo consciência tiver de mim mesmo e com vida eu mover-me. Quanto ao que ocorre, direi simplesmente: intenção nunca tive de retirar-me às ocultas _ apaga essa idéia _ nem menos planos forjei de casar ou de alianças contigo firmarmos." (p.79)
Enéias prossegue, então, dizendo que se apoiara na decisão do deus Apolo. Confessa à rainha Dido que não buscava a Itália por vontade própria, mas pela vontade dos deuses.
Dido permanecia alheada a tudo aquilo que o pio Enéias dizia e, num impulso violento, expulsa o herói de suas terras.
Apressadas as frotas de Enéias se preparam para deixar as terras da infeliz Dido. Enquanto isso, Dido recorre à irmã Ana, rogando-lhe socorro. Pede à Ana que procure Enéias e o convença a permanecer a seu lado. A rainha conhecia a capacidade de convencimento que a irmã possuía; assim, aos olhos de Dido somente Ana sabia falar com Enéias. Pede, então, à irmã que leve o recado ao herói.Todavia, Dido é atingida por um terrível presságio: o leite dos sacrifícios adquire uma tonalidade negra, transformando-se em sangue. Diante disso, conclui que o herói não a ouvirá; sua perda portanto é inexorável, e a morte iminente. A rainha, atormentada por sonhos terríveis, prepara o ritual a fim de executar o seu próprio suicídio.
Lança a culpa de todo o seu infortúnio sobre a sua irmã. Enquanto a rainha se consumia em ódios com relação a Enéias, este era advertido pelos deuses a afastar-se o mais rápido possível daquelas paragens, pois o herói seria alvo da vingança da rainha ou da volubilidade inerente a toda mulher.
A infeliz Dido sente o peso de toda a sua desgraça e chega a planejar a morte de Enéias e do filho do troiano: Ascânio; logo em seguida, incendiaria toda a cidade e a nau dos troianos.
Contudo, a idéia do auto-sacrifício prevalecera: a infeliz Dido lança-se nos braços da morte. A monstruosa Fama percorre a cidade, informando a todos o infortúnio da rainha. Juno, apiedada da agonia da rainha, envia do Olimpo a mensageira Íris, para por termo ao resto de vida da moribunda. Íris corta o cabelo de ouro da rainha e o espírito da infeliz logo se dilui, se evola.
LIVRO V
A frota troiana, em fuga, logo alcança o alto mar. Nas altas ondas tudo é trevas. Ao longe os troianos avistam as labaredas que incendeiam o castelo da infeliz rainha Elisa. De repente, as nuvens cobrem todo o céu, e a escuridão domina a nau. Palinuro temeroso da popa pressente os destinos que Netuno lhes prepara. Os ventos encontram-se trocados, confundindo toda a tripulação e extraindo-lhe a esperança de saltarem, a salvo, nas praias da Itália. Enéias então pede que se mudem os rumos, a fim de alcançar as terras de Acestes: local onde o herói deveria prestar as pompas fúnebres ao pai Anquises, e lá depositar suas cinzas. Tão logo chegaram àquelas paragens, Enéias executou aquilo que planejara; em seguida, reúne seus sócios para dar início aos jogos fúnebres em honra ao pai Anquises.
Os guerreiros então reunidos dão início a uma longa seqüência de modalidades esportivas.
Findo o certame, os prêmios são entregues aos respectivos vencedores.
Ao deixarem as terras de Acestes, a nau do herói Enéias aproxima-se do promontório da duras Sereias. Repentinamente, Enéias nota que a nau está sem rumo, pois Palinuro confiara na bela aparência do mar. O pio herói assume, então, o comando da frota.
LIVRO VI
Encontramos, agora, o pio Enéias nas paragens de Cumas, no interior dos bosques da deusa Diana, local onde Apolo é cultuado. Dédalo, Pasífaa, o Minotauro biforme, Ariadne, Teseu, Ícaro e outros personagens mitológicos são figuras gravadas na porta do Templo de Apolo. Enéias vai visitar a Sibila de Cumas, que predirá as guerras no Lácio, revelando, assim, as coisas do futuro. Enéias entra na pavorosa gruta da Sibila. Deífobe, vate de inspiração divinal, fala nos seguintes termos: "Não é o momento de vos entreterdes com tais espetáculos. Cumpre imolar sete touros perfeitos, de acordo com os ritos, e outras ovelhas de número igual, as mais belas do armento."
Cumpridas as ordens do ritual, a Sibila convida Enéias a entrar no templo: "Eis o deus! Eis o deus!" exclama a Sibila de aspecto monstruoso: "Como! Demoras com os votos e as preces, Enéias de Tróia? Pois antes disso os portões deste templo famoso não se abrem ."
A Sibila prediz que Enéias deverá fixar os deuses errantes de Tróia no Lácio. Saúda Enéias como um herói, pois conseguira sobreviver aos perigos dos mares; diz, ainda, que, no Lácio, nascera um outro Aquiles. Prediz que a união de Enéias com a sua futura esposa (Lavínia) gerará intrigas entre os povos que habitam a Itália. Com fortes rugidos, a Sibila de Cumas vai, assim, revelando mistérios a Enéias.
Entretanto, Enéias sentia uma avassalodora ansiedade em rever o pai Anquises no mundo dos mortos. Implora à deusa que apresse a atender o seu pedido:
"Uma vez que o caminho do Inferno começa aqui, na lagoa do rio aqueronte convulso, leva-me logo à presença da sombra do pai extremado. Mostra-me a entrada a transpor, escancara-me as portas sagradas.(...) Por isso suplico-te, ó Virgem, apieda-te do pai, do filho aqui vindo." (p.116)
A deusa então fala a Enéias que descer ao Averno é muito fácil, porém o difícil é o regresso. A deusa instrui o pio Enéias a localizar um ramo de ouro que se encontra nas florestas que margeiam o Averno. Enéias prontamente atende a solicitação da deusa; porém, tem dificuldades para encontrar o protetor talismã, isto é, o ramo de ouro. Além disso, restava outra tarefa a ser cumprida por Enéias: enterrar o cadáver insepulto de Miseno, guerreiro morto de forma traiçoeira. Assim, os troianos prantearam o corpo de Miseno. Enéias vai em busca do ramo de ouro. "Se nesta selva tremenda eu achasse o áureo ramo predito, tal como tão verazmente saiu tudo quanto a Sibila profetizou contra ti, ó Mísero! o teu triste destino!"
Enéias nota que duas pombas baixam dos céus; solicita às aves que lhe sirva de guia para a localização do ramo de ouro... Logo, entre as folhas de uma copa de árvore refulge o ramo.
Obedecendo as instruções da Sibila, Enéias desce para o mundo subterrâneo (o reino de Plutão: em grego, Hades, a morada dos mortos). Contudo, o ramo de ouro asseguraria a Enéias uma travessia a salvo pelo reino dos Infernos.
Enéias ainda oferece um sacrifício à Prosérpina, esposa de Hades. A divindade se aproxima: "Afastai-vos do bosque, profanos! a profetiza exclamou; afastai-vos do bosque! Bem longe! E tu, Enéias, adianta-te! Saca de vez dessa espada com varonil destemor; ora cumpre mostrar quanto vales."
Enéias entra no Averno. Primeiro de tudo vê as pavorosas imagens de todas desgraças que atingem com freqüência a humanidade (fome, doenças, pobreza, mazelas...). Outros monstros e feras vão surgindo. Tomam então o caminho que leva ao tartáreo rio Aqueronte. O velho barqueiro Caronte - de aparência horrível - guarda o rio e os aguarda. Sombras percorrem o local. Enéias pergunta à Sibila por quais razões as sombras vagueiam naquele local. A Sibila revela que são as sombras dos mortos insepultos. Enéias vê as sombras dos insepultos heróis de Tróia. Encontra a sombra inconformada de Palinuro; Enéias promete a Palinuro um belo túmulo.
Avançando ainda mais pelo interior do Averno, surge o escuro lago do Estige: região das sombras, do sono e da noite:
"...o teucro Enéias, varão mui piedoso e de braço invencível, desce à procura do pai, entre as sombras inanes do Inferno. (...) e, logo, de baixo das vestes o ramo oculto retira. De pronto acalmou-se-lhe a raiva. Nada mais disse a Sibila. Admirado Caronte ante o aspecto do dom fatal do áureo ramo, por ele não visto de muito..." (p.123)
Em águas lodosas avistam Cérbero. Ouvem queixas lamentos, vagidos. Aí avistam, num bosque, as sombras de todos aqueles que foram infelizes em vida: Prócis, Fedra, Erífile, Pasífaa, Evadne... e, finalmente, a sombria Dido, com sua recente ferida. Enéias logo a reconheceu. Enéias procura explicar à sombra da infeliz Dido que não era o culpado por tanta infelicidade, pois fôra designado a cumprir os desejos dos deuses; disse, inclusive, que teria permanecido com Dido, caso não tivesse uma missão a cumprir. Porém, a sombra irritada da infeliz rainha se afasta sem emitir qualquer sinal.
Dando prosseguimento à infernal visita, Enéias vê as sombras dos heróis de Tróia... avista Deífobo, filho de Príamo. Enéias dialoga com a sombra de Deífobo; ele procura mostrar a Enéias como todas as humilhações que sofrera em vida foram causadas por Helena e suas bacantes.
Tendo por companhia a sombra de Deífofo, Enéias revê os heróis gregos: Menelau, Ulisses - o artista do crime: "Celestes deidades! se houver justiça, voltai contra os gregos seus próprios delitos...", exclama Enéias.
Ambos prosseguem a caminhada, entrando, agora, no antro dos criminosos; e, atravessando rotas obscuras entre monstros, Fúrias e seres poderosos... "avançaram de par pelas rotas obscuras e logo as portas do grande palácio de Pluto alcançaram. Bem no saguão pára Enéias; o corpo aspergiu de água pura recém-colhida, e de pronto pendura ao portal o áureo ramo..."
Ambos encontram-se, agora, nas moradas das almas felizes. Nesse local está reunida toda a futura linhagem do pio Enéias. Somente as almas bem-aventuradas aí permanecem. Em altas e risonhas campinas, Enéias avista o pai, Anquises. Logo que vê o filho, Anquises fala: "Enfim chegaste! Venceste o caminho com a tua piedade de filho amado, e me dás a ventura de ver-te de perto, ouvir-te a voz, e em colóquios passarmos alguns momentinhos."
As lágrimas banharam os rostos de ambos, pai e filho. Anquises diz a Enéias que vai curá-lo de toda a cegueira: aponta para as águas do rio Letes; alí as almas procuram beber de suas águas para alcançar o esquecimento total. O pai Anquises apresenta, então, a Enéias toda a sua futura geração. Toda uma seqüência de futuros governantes é apresentada ao pio herói. Contudo são as figuras dos imperadores ainda não nascidos César e Augusto que se destacam na descrição feita por Anquises.
Enéias nota, ao lado de Marcelo - futuro imperador romano -, a presença de um belo mancebo.
Por fim, Enéias deixa o mundo subterrâneo.
LIVRO VII
Enéias deixa o Averno e, em seguida, prepara o sepultamento de Miseno; deposita o insepulto num túmulo. A tropa prossegue viagem costeando as paragens da deusa Circe - opulenta filha do Sol. Alí, ouvem-se uivos de animais ferozes, mas o deus Netuno insufla as velas das embarcações e, com ventos propícios, elas são afastadas da perigosa da ilha da feiticeira Circe.
Subitamente, o pio Enéias avista ao longe uma densa floresta.
[Neste trecho da "Eneida", a narrativa poética é interrompida, e o poeta Virgílio solicita, novamente, inspiração à Musa:
"Érato, inspira-me! Os reis, qual o estado das coisas naquele tempo, os sucessos variados no Lácio de antanho, quando na Ausônia aportou de improviso uma esquadra estrangeira, vou relatar. Sem a ajuda de cima, de ti, Musa excelsa, nada farei." (p.138) ]
A tripulação avista a terra do rei Latino; o local designado pelos deuses para a fundação da futura Roma.
Os fatos a serem enfrentados pelo pio Enéias - suas vitórias e seus infortúnios - nas terras do Lácio são revelados ao herói troiano.
De outra parte, o rei Latino vai consultar o futuro junto ao pai fatídico: o Fauno. O monarca Latino ouve o seguinte:
"Deixa de lado, meu filho, essa idéia de esposo latino dar a Lavínia, nem creias nas bodas agora aprestadas. Genro estrangeiro virá que até aos astros o nome dos nossos se incumbirá de levar, cujos filhos e netos cem povos submeterão sob o império de leis rigorosas e sábias, em todo o curso do Sol, desde o oceano nascente ao do poente." ( p.139)
Essa foi a resposta do Fauno ao monarca Latino.
A frota de Enéias comemora a chegada na nova Tróia com um grande festim. Enéias então lembra que o pai profetizara que, quando chegassem a uma terra esfomeados e lá saciassem a fome, esta seria a sede da futura Tróia. Tudo ocorre conforme os prognósticos do pai Anquises. Enéias brada: " Salve, terra que os Fados nos deram! Salve também , aqui mesmo, sagrados penates de Tróia! Eis nossa pátria, a morada (...) Eia, animai-vos..."
Enéias risca no chão um mapa com os contornos da futura cidade romana. Dirigi-se, então, ao palácio do monarca local. Entra no templo de Latino. O primeiro contato com Latino é efetivado em tom cordial e amistoso, haja vista ambas as partes já conhecerem os desígnios dos deuses. Ilioneu, o sábio do local, intermedeia os diálogos que se estabelecem entre o monarca e os estrangeiros. Latino já nutria a certeza que Enéias seria seu futuro genro.
Todavia, no Olimpo, as contendas entre os deuses quanto ao destino do herói troiano se chocavam. A fera esposa de Jove assim se refere aos estrangeiros:
"Ó geração aborrida! Ó destino da Frígia, contrário sempre ao meu Fado! Nos campos sigeus sucumbir não puderam? Presos, viver como escravos? No incêndio de Tróia abrasar-se? Livres se encontram. (...) Movi contra eles as forças do céu e do mar, impotentes. De que proveito me foram e Sirtes e Cila e Caribde desmesurada? Tranqüilos, a foz alcançaram do tibre, salvos do mar e de mim." (p.144-145)
A colérica deusa promete recorrer às potências do inferno, para não ser vencida pelo mortal Enéias. Entra em contato com a Juno infernal - divindade inimiga do pio Eneías - e solicita que as potências maléficas infestem a vida do herói Enéias. Amata, mãe de Lavínia (filha de Latino e futura esposa de Enéias), torna-se o alvo predileto das potências do mal. Inconformada por Latino ter consentido entregar a filha Lavínia como esposa ao pio Enéias, Amata, envenenada n'alma pela deusa cruel, interroga:
"Vais dar Lavínia, senhor, como esposa a esse teucro sem pátria? Não tens cuidado da sorte da filha, de ti não te apiedas, nem da mãe triste que ao vento primeiro o pirata abandona nestas paragens, levando consigo a donzela roubada? " (p.146)
Diante da indiferença de Latino, Amata é tomada de furor báquico. Invoca Baco e procura esconder a filha pelas matas e florestas, bradando: "Mães latinas, se acaso ainda tendes no coração uns resquícios de afeto para esta coitada, antes a Amata de todos; se o jus maternal vos importa, soltai as tranças e vinde comigo dançar nesta orgia..."
Enfurecida, Amata vai até o feroz guerreiro Turno e relata a decisão do monarca Latino em tornar Lavínia esposa do herói estrangeiro, Enéias. Essas decisões deixam Turno colérico, pois este, além de perder o futuro trono, deixaria, também, de ser o futuro genro de Amata e de Latino. Amata prossegue, provocando-o, jogando veneno nos pensamentos do aturdido e inconformado Turno frente às alterações imprevistas do seu destino.
Irado Turno manda avisar Latino que a paz fora violada. A demoníaca Alecto voa sobre os teucros; eles ouvem os gritos da odiosa deusa e ficam apavorados.
A guerra assim principia entre os pastores, e logo alcança cinco cidades: todas se esquecem da forte afeição e da estima outrora nutridas entre elas.
[Neste trecho, a narrativa épica virgiliana é interrompida e o poeta proclama nova invocação às Musas:
"Musas divinas, abri-me o Helicão e inspirai meus cantares, para dos reis eu falar, implicados na grande aventura, dos seguidores dos seus estandartes, os novos guerreiros, do márcio ardor animados nos plainos fecundos da Itália, pois vós, ó deusas! sabeis tudo o que houve e podeis relatar-nos seguramente o que as auras somente ao de leve contaram." (p.153) ]
Mezêncio - o desprezador dos deuses do Olimpo - e seu filho Lauso foram os primeiros guerreiros a entrar na contenda. Uma série de outros monarcas segue a ambos. Dentre eles, destaca-se o terrível Messapo - o domador de cavalos. Uma multidão de tropas começa a se alinhar para combater o herói estrangeiro e invasor Enéias.
Turno era o primeiro dentre os guerreiros. Uma guerreira também se destacava: era Camila - da raça dos volscos.
LIVRO VIII
O ódio de Mezêncio aumentava na mesma proporção que o nome do herói Enéias ganhava prestígio no Lácio. O peito de Enéias se agitava, já pressentindo os horrores que teria de enfrentar. Porém, em sonhos, a Enéias é revelada a seguinte profecia:
"Ó descendentes dos deuses, que as sacras muralhas de Tróia nos restituis (...) Morada certa encontrastes, segura mansão dos penates. Não temas esses aprestos de guerra; a ojeriza dos deuses já se acalmou.
E para que não presumas que tudo não passa de sonho, num azinhal desta fresca ribeira hás de achar uma porca branca de leite, com trinta leitões tão branquinhos quanto ela, recém-nascidos, e agora em descanso do parto recente. Este é o local da cidade, o remate de tantas fadigas." (p.160)
A dividindade diz, então, a Enéias, o mais curto caminho para a sua vitória.
Enéias dirige-se imediatamente à Palantéia, firmando aliança com o monarca local chamado Evandro, pai do jovem Palantes.
Enéias, ainda temeroso, pede auxílio às ninfas. Com o auxílio das ninfas, Enéias encontra na margem de um rio a ninhada com trinta leitõezinhos. Assim, está confirmado o local do futuro reino de Enéias. Roma, naquele tempo, era dominada por Evandro e por seu filho, Palantes.
O pio Enéias dirige-se à presença de Evandro, e fala: "A Evandro viemos buscar. Anunciai-lhe que chefes troianos de alto valor vêm pedir-vos aliança e trazer-vos reforços...". E o pacto de paz entre o pio Enéias e o magnânimo monarca Evandro é consagrado: "Ó dos teucros o mais valoroso, com que alegria te escuto e agasalho, e de quanto me lembro do grande Anquises ao ver-te, esse timbre da voz, a aparência!..."
Evandro convida Enéias a participar das festas anuais, oferecendo a mesa aos recentes aliados. Evandro narra a Enéias o motivo das festas anuais: elas eram promovidas para celebrar a vitória dos deuses sobre Caco - o maldoso e astucioso que furtava os touros dos deuses. O festival era dedicado em louvor ao deus vencedor Hércules. Nessas festividades toda a comunidade comemorava e cantava os feitos divinos do deus etrusco.
Em seguida, Evandro narra a Enéias a história da fundação da cidade. Saem ambos a visitar Palantéia. Saturno era o deus fundador. Toda a história de Palantéia é narrada até que ambos chegam à pobre moradia de Evandro, o monarca desprezador dos bens materiais, pois o monarca aceita a pobreza como desígnios dos deuses.
Enquanto isso, no Olimpo, Vênus e Vulcano preparam um poderoso instrumento de guerra para Enéias. Os deuses recorrem a três fortes Ciclopes, solicitando-lhes que forjem para Enéias um escudo que o herói troiano deveria usar nos futuros combates. E assim o imenso escudo preparado pelos filhos do Etna foi crivado de fatos passados e futuros: no referido escudo, toda a gloriosa história de Roma aparece inscrita.
Evandro, reconhecendo a própria velhice, aconselha o pio Enéias e o filho Palantes sobre os cuidados que ambos deveriam tomar em relação aos perigos das futuras guerras.
Rapidamente os pactos são rompidos e a guerra generaliza-se por todo o Lácio. Evandro roga aos deuses que Palantes volte vencedor. Pede que os deuses ouçam as preces de um pai desesperado pela vida do filho.
Pávidas mães debruçam-se sobre os muros em lamentações, ao saberem dos dos destinos dos filhos lançados na guerra. A mãe divinal do guerreiro Enéias aproveita a oportunidade para aconselhá-lo a não temer a guerra, oferecendo-lhe um presente: "Eis o presente que te prometi, prenda excelsa do gênio do meu marido! De agora em diante, meu filho, não temas aos laurentinos opor-te ou a turno enfrentar nos combates."
Enéias não se cansa de contemplar os presentes enviados pelos deuses: o capacete, a mortífera espada e o escudo coberto de estranhas pinturas - o sabedor dos grandes feitos da Itália e da longa série de conquistas e batalhas; o espelho da história primitiva do povo romano até as épocas imperiais: dos dois gêmeos, Rômulo e Remo, das Sabinas até César no Senado. Exulta maravilhado Enéias a vista de tão belo Escudo, que joga com o seu destino e honra a glória de todos os seus descendentes.
LIVRO IX
Do Olimpo, Juno Satúrnia, a protetora de Turno, envia ao feroz guerreiro recados sobre os novos acontecimentos. A mensageira é a celeste Íris.
O impetuoso Turno prontamente aceita o desafio enviado pela mãe divina: "Pouco importa quem sejas; acato teu chamamento: eis a guerra!" E a luta tem seu começo. Turno passa a recrutar vários chefes guerreiros, e junto a eles trama as alianças: "Vamos, rapazes! Quem quer ser comigo o primeiro a atacá-los? Pronto! exclamou . _ E volteando seu dardo, jogou-o para o alto, como a indicar o começo da pugna."
Neste trecho da "Eneida", novamente Virgílio interrompe a narrativa, conclamando outra invocação às Musas:
"Musas! Que deus apartou dos troianos o incêndio horroroso e repeliu para longe as naus a voragem do fogo? Dizei-nos! _ É tradição muito antiga, perene lembrança..." ]
As tropas de ambos os lados organizam-se para a guerra. As divindades do Olimpo se igualam e se preparam para proteger seus filhos prediletos, ou destruir a vida dos guerreiros inimigos. Potências diabólicas (as Parcas) lançam seus agouros sobre Turno.
As tropas aguardam o próximo combate. Enéias, encontrando-se distante das linhas de combate, desconhecia, na verdade, o que se passava. Niso e Euríalo, unidos por profunda amizade, incumbem-se de atravessar o exército inimigo a fim de levar notícias das tropas para o povo em geral, sobretudo para o pio Enéias. Os dois partem assumindo o papel de mensageiros do herói troiano. Entretanto, ao atravessarem o campo dos inimigos foram descobertos e ambos foram mortos pelos ferozes rútulos.
Neste trecho, o poeta mantuano interrompe a narrativa com a finalidade de lamentar a morte dos dois jovens guerreiros:
"Felizes ambos! Se alguma valia tiverem os meus versos, alcançareis vida eterna na grata memória dos homens, enquanto os filhos de Enéias ficarem no duro penhasco do Capitólio, com o Pai dos Romanos no império do mundo." (p.190)
O exército dos rútulos destroça os corpos dos infelizes rapazes e, em lanças erguidas, suas sujas cabeças foram expostas ao público.
A alada Fama dá a notícia a todos. A mãe do jovem Euríalo, num ato desesperador, arrancando os cabelos e lançando gritos lancinantes, chora a morte do amado filho, expressando do seguinte modo: "Assim te vejo, meu filho, meu único amparo da vida... Como pudeste deixar-me sozinha no meu abandono? Sem coração! Nem ao menos lembrou-te ao partir para essa tão perigosa missão despedir-te de tua mãezinha?"
Cessados os lamentos, os teucros amparam a mãe de Euríalo e levam-na até a sua morada.
A partir daí, a guerra recomeça.
O poeta Virgílio, aqui, interrompe mais uma vez a narrativa, dirigindo outra invocação às Musas nos seguintes termos:
"Musas! Calíope, a voz sustentai-me e dizei-me sem falta do morticínio espantoso causado por Turno, os estragos da sua espada e os guerreiros que os volscos enviaram para o Orco. Contai-me tudo; os sucessos incríveis da ingente peleja, pois em verdade o sabeis e podeis referi-lo a contento." (p.192) ]
O feroz guerreiro Turno, auxiliado pelo deus Jove, põe-se a liqüidar as suas vítimas numa escalada vertiginosa de crueldades. Pelas suas mãos morrem os guerreiros Helenor, Lico, Prômulo, Clônio, Dioxipo, Ságaris, Idante e outros troianos; todos os que lutavam junto a Enéias... Turno então se expressa da seguinte forma:
"Pejo não tendes, ó frígios! de mais uma vez vos cercardes de um valo fundo e de opordes à Morte barreira tão frágil? Com armas tais pretendeis disputar nossas belas esposas? Que divindade ou delírio vos trouxe às paragens da Itália? Não achareis entre nós nem Atridas nem falsos Ulisses. Somos de estirpe robusta..." (p.194)
Ascânio, sentindo-se humilhado, roga ao deus Jove: "Júpiter onipotente! reforça esta audácia nascida do desespero! Magníficos dons deporei no teu templo..."
"O pai dos deuses o ouviu; e a sinistra, no céu descampado, forte trovão retumbou, no momento preciso em que soa o arco letal e uma seta ligeira foi no alvo encravar-se, as duas fontes de Rêmulo unindo por dentro do crânio."
O vitorioso Ascânio é louvado pelo deus Apolo; o deus dirige-lhe as seguintes palavras:
"Cresce em valor, meu menino; é assim mesmo que aos astros chegamos. Filho de deuses, fadado também a ser pai de outros deuses, dia virá em que belo remate os nascidos de Assáraco porão nas lutas dos homens. É certo; não cabes em Tróia." (p.195)
Apolo consente, assim, ao filho de Enéias, uma bela vitória sobre o guerreiro Numano. Logo após, Ascânio é aconselhado pelo deus Apolo a afastar-se definitivamente da pugna.
Recresce a fúria das lutas e batalhas sangrentas se instauram. Deuses e mortais encontram-se numa luta insana. Os rútulos lutam com toda a ferocidade sob as benéficas influências e ordens do deus Marte. Então, subitamente, Turno é encurralado pelo exército inimigo: "Calmo, senão sorridente, responde-lhe Turno impetuoso: Bem; principia, se tens gosto nisso; meçamos as forças. Prestes a Príamo irás anunciar que encontraste outro Aquiles."
Em seguida, Turno mata Pândaro, que desafiara o guerreiro rútulo ao vê-lo encurralado. Turno colérico prossegue suas matanças. Porém, sentindo-se cada vez mais acuado, busca defender-se, procurando a barreira do rio que circunda o burgo. Os deuses estavam prontos a liquidá-lo. Entretanto, a largos movimentos alcançou as margens do rio e, num rápido salto, pulou nas águas com todas as suas armas, fugindo do encalço do exército inimigo.
LIVRO X
Os deuses encontram-se reunidos em Assembléia, no Olimpo. O pai dos deuses pergunta como pode a Discórdia se negar a obedecer seus mandatos. Pede que os excessos de guerra sejam extintos e solicita que novos pactos de paz sejam firmados.
Vênus dirige a Júpiter uma resposta. Diz que Turno insiste na luta, pois essa é a vontade do deus Marte, protetor de feroz guerreiro rútulo. Relata que Enéias está distante do local das lutas, ignorando tudo aquilo que se passa com os seus aliados. Ao pai dos deuses, Vênus procura demonstrar todo o seu temor em relação àqueles que ameaçam o surgimento da Tróia nascente.
O inferno entra na nova Tróia por intermédio da furiosa Alecto - alerta Vênus.
Logo em seguida, a deusa Vênus pede a Júpiter que a auxilie no salvamento de Ascânio contra as armas cegas. Mas a cólera de Juno interfere no diálogo dos deuses. E entre inúmeras queixas contra os estrangeiros troianos, colérica e indignada Juno dirige-se ao pai dos deuses com as seguintes palavras:
"É coisa indigna cercarem latinos de chamas a Tróia no nascedoiro? que Turno defenda o torrão seu paterno, ele que vem de Pilumno e por mãe teve a deusa Vanília? Muito pior será a guerra os troianos ao Lácio levarem , o jugo impor numa terra estrangeira, roubar todo o gado, eleger os sogros, e noivas roubar do regaço materno..." (p.203)
Juno assim falou. Júpiter então decreta que não tomará nenhum partido, dando por encerrada a Assembléia dos deuses.
Enquanto isso, Turno dava prosseguimento à guerra. Enéias tudo ignorava, pois ainda mal saíra das terras de Evandro e em companhia de Palantes. Ambos ainda se encontravam em alto mar, a caminho do campo de batalha.
Virgílio interrompe mais uma vez a narrativa, fazendo a seguinte invocação às Musas:
" Agora, Musas, abri-me o Helicão; inspirai o meu canto, para dizer-me que povos toscanos a Enéias seguiram, naus emprestaram e as ondas revoltas cortaram com ele." ]
O pio Enéias passa a recrutar chefes guerreiros para a batalha. Percorre várias regiões do Lácio, firmando inúmeros pactos com monarcas e respectivas populações. Enéias refere-se a Mântua [terra natal do poeta Virgílio] nestes termos:
"Ocno também traz das praias nativas seus homens, nascido de Manto, sábia adivinha, e do Rio toscano, que o nome da própria mãe te legou, das muralhas, ó Mântua! que te ornam, Mântua mui rica de avós, mas nem todos da mesma linhagem." (p.206)
O canto do herói prossegue enaltecendo outras cidades próximas a Mântua.
Enéias continua a viagem por mares. Repentinamente um grupo de ninfas se aproxima. A mais falante, a ninfa Cimódece, assim se dirige ao pio herói:
"Dormes, Enéias, progênie dos deuses, e rasgas os mares à toda vela? Pinheiros já fomos do monte sagrado do Ida; depois, tua esquadra; ora, ninfas marinhas, desde o momento em que o rútulo fero tentava assolar-nos com suas armas potentes, as chamas do incêndio furioso..." (p.207)
As ninfas dizem a Enéias que se apresse, pois o filho Ascânio corre grande perigo: o colérico Turno avança. Anda, é hora de apressar-te - as ninfas impõem ao pio Enéias.
Turno procura alcançar a praia, para impedir que os troianos ali desembarquem. O feroz guerreiro evoca a memória - fatos passados - para atiçar ainda mais os companheiros.
Enéias e sua embarcação se aproximam. Turno atira seus homens até a praia em sentido de defesa contra a frota do herói troiano.
O choque entre as tropas é inevitável. Então, a um fiel companheiro troiano Enéias fala: "Dai-me outras lanças, daquelas que em Tróia ficaram cravadas em corpos gregos; nenhuma há de frustrar passar pelos rútulos sem atingi-los."
A partir daí, toda Ausônia transforma-se num campo de batalha.
Por fim, o cenário é composto por uma tremenda batalha. As tropas de Enéias recuam diante das forças inimigas. Palantes implora para os companheiros de batalha que não recuem, mesmo porque já não têm para onde fugir. Todo Lácio é um campo de batalha. Em meio à pugna, Palantes, sempre a suplicar, roga proteção e auxílio aos deuses: "Pai Tibre! ao dardo possante que neste momento eu disparo, dá que a Fortuna o dirija até ao peito de Haleso! Um carvalho de tuas margens suas armas terá como honroso troféu."
Caem os filhos da Arcádia e os etruscos. "Morrem os filhos da Arcádia, os valentes e fortes etruscos, e vós também , teucros belos, escapos da fúria dos gregos! Chocam-se iguais contingentes, com cabos de guerra esforçados."
Turno, auxiliado pela irmã divinal Juturna, planeja algo mais surpreendente ao lançar o seguinte desafio: "_ Cesse a pugna! Eu, somente, a Palantes devo enfrentar! Essa vítima a mim é devida. Quem dera que aqui também estivesse seu pai, para ver esse encontro!"
Dito isto, Palantes imediatamente aceitou o desafio proposto por Turno. Numa luta cruel, Palantes é, então, mortalmente ferido pelo cruel rútulo. Turno pede que o filho seja devolvido a Evandro tal como o merece: morto.
Ao saber da morte de Palantes, o pio Enéias é tomado de fúria e desejo de vingança:
".... assim Enéias no campo da guerra semeava destroços desde que o gládio tingiu na matança (...) Desorientados ao vê-lo avançar com passadas gigantes, ameaçador, espantaram-se os brutos e logo, sem tino, por terra o dono jogaram e à praia, sem mais, se acolheram." (p.215)
Enéias prossegue lutando e promovendo mortes sucessivas. O Olimpo se agita. O pai dos deuses pede a Juno que retire Turno do campo de batalha. Uma luta encarniçada entre Enéias e Turno é prevista. No entanto, Turno (a humilhada Juno já conhecia seu destino!), começa a perceber que perde suas forças divinais, e lamenta sua desdita:
"Onipotente Senhor! de que crime impustate-me a culpa, para punir-me e me impor uma pena de tal gravidade? Para onde vou? De onde vim? De que modo fugir de tão grande humilhação, para os campos laurentes voltar e aos combates?" (p.218)
Flutua pela mente de Turno o desejo de suicidar-se. Mas a deusa Satúrnia o impede de realizar tal ato. Por outro lado, Júpiter inspira o cruel guerreiro Mezêncio a tomar o lugar do, agora, pusilânime Turno. Assim, o temível Mezêncio passa a matar inúmeros guerreiros das tropas inimigas. Messapo, outro terrível guerreiro, junta-se a Mezêncio na matança. Entretanto, o deus Marte a guerra equilibra e impõe entre os homens um infinito luto.
A luta agora travada envolve Enéias contra Lauso e Mezêncio. A lança de Enéias atinge mortalmente o guerreiro Lauso - filho de Mezêncio -, mandando-lhe para a morada dos Manes.
Surpreendente para a condição de um guerreiro, Enéias demonstra seus sentimentos de compaixão diante do corpo morto do inimigo:
"Ao ver Enéias no extremo da vida o inditoso guerreiro, de palidez assombrosa coberto, sentiu-se tomado de compaixão. À sua mente ocorreu-lhe a imagem do filho: a destra estende-lhe presto e lhe diz as seguintes palavras: Desventurado mancebo, o que pode fazer-te nesta hora minha piedade, em louvor de ti próprio e da minha coragem? Conserva as armas que tanto estimavas. Prometo entregar-te _ Sirva também de consolo e motivo de orgulho saberes que às mãos caíste de Enéias." (p.221)
Mezêncio chora sobre o cadáver do filho Lauso e, sem demonstrar vontade de continuar vivendo, resolve desafiar Enéias. Enéias vai ao encontro de Mezêncio e, com o auxílio do seu divino Escudo protetor, mata o inimigo. Mezêncio rende-se às forças de Enéias, e moribundo implora:
"Por que me ameaças com a morte, inimigo cruel? Sem desdouro podes matar-me; não vim combater-te pensando na fuga; nem o meu Lauso contigo firmou esse pacto humilhante. Mas, se ao vencido uma graça concedes, apenas te peço: dá sepultura ao meu corpo. Conheço que um ódio implacável os meus me votam; à fúria me poupa de suas desforras. Que lado a lado a meu filho, debaixo da terra eu repouse. Assim dizendo, esperou pelo golpe da espada inimiga. Aos borbotões a alma perde, no sangue que as armas lhe banham." (p.223)
LIVRO XI
Enéias assume como tarefa imediata dedicar louvores aos deuses pela vitória alcançada e enterrar os mortos, dando-lhes sepulturas dignas.
O burgo enlutado de Evandro chorava a morte de Palantes. Vendo o corpo morto de Palantes, Enéias explode em lamentos. Pede, então, aos guerreiros que preparem o leito de morte para Palantes. O cadáver coberto de belos adornos (tecidos com fios de ouro) é destinado ao cortejo fúnebre. Evandro, vendo o filho morto, desaba em lamentos e desconsolado promete não mais mover guerras a ninguém. Um período de trégua foi firmado por doze dias. Durante este período, a população, junto o velho monarca Leandro, lamentava a morte do jovem guerreiro. Outros cadáveres de jovens guerreiros juntaram-se ao do jovem Palantes.
"Era porém na cidade opulenta do velho Latino onde se via maior alvoroço, mais dores e luto. Míseras mães, desoladas esposas, irmãs sem consolo, órfãos pequenos privados do amparo mui cedo na vida, amaldiçoavam a guerra lutuosa e o noivado de Turno.Ele, sozinho, dispute Lavínia com armas e braço, visto aspirar ao domínio da Itália e a mais alta honraria." (p.230)
Para piorar o tumulto, as fortes alianças existentes anteriormente com Turno começam a se desfazer. O rei Latino convoca, então, a Assembléia, para discutir os rumos da guerra. Ali, a guerra de Tróia e seus heróis é narrada à população, elevando o nome de Enéias. Devido à sua coragem e a de Heitor, a guerra de Tróia fôra adiada por um período de dez anos. O rei Latino, insistindo em salvar a pátria arruinada, expõe à população o seu plano para por termo à guerra no Lácio: pretendia doar um vasto terreno perto do rio toscano para o estabelecimento dos troianos.
Drances, inimigo mortal de Turno, levanta-se e traz a lume a sua proposta na Assembléia. A proposta de Drances pretendia firmar a paz com Turno e expulsar Enéias do Lácio. Entretanto, Turno, ao conhecer os planos de Drances, assim reage:
" Drances , és pródigo em belos discursos em tempo de guerra, quando se exige trabalho; o primeiro a chegar ao Conselho, sempre que os homens de bem são chamados. Porém não é hora de belas frases, enquanto as muralhas detêm os ataques dos inimigos e o sangue lá fora nos fossos referve. Troveja, então; é o teu hábito. Assascas-me, Drances, a pecha de covardia? " (p.234)
Turno então pede que o idiota não se preocupe. E diz não às propostas apresentadas. O feroz guerreiro rútulo então convoca a guerreira Camila - da nação vitoriosa dos volscos - para ajudá-lo a combater Enéias. Turno diz colérico: "Contra ele, sim, partirei, ainda mesmo que seja outro Aquiles e, tal como este, se vista com armas do forte Vulcano."
O Conselho então se reuni e Turno decreta pela continuidade da guerra. Arma-se furioso juntamente com Camila, e reabre a peleja. Camila, dotada de uma coragem invulgar, solicita a Turno que ela seja a primeira a enfrentar os perigos da batalha prestes a começar. Turno, fixando-se na terrível virgem donzela, diz:
"Ó virgem, glória da Itália! Como hei de pagar-te, como hei de agradecer teu auxílio valioso em tamanha apertura? Teu brio a tudo supera; vem, pois, tomar parte na luta. Se for verdade o que os meus batedores há pouco informaram, o astuto Enéias os campos em torno devasta com a sua cavalaria ligeira, e ele próprio, galgando estes montes abandonados, tenciona alcançar a cidade hoje mesmo." (p.238)
Camila, afeiçoada de Diana, tem a deusa como sua protetora. A deusa prepara a virgem para entrar nos combates cruentos contra os troianos. Ao lado de Camila lutará o temível guerreiro Messapo. A luta tem seu início e Camila com o peito nú destaca-se no meio da indescritível batalha. Muitos na dor se contorceram frente à ferocidade assassina de Camila. Ela mata possantes guerreiros com velocidade e força descomunais. Sem precaver-se, desejando logo liquidar os troianos, Camila vai ao encalço de Arrunte. Este gira seu dardo ao redor de Camila. Num golpe, o dardo cravou-se no peito direito sem mama de Camila. Morta Camila, a emissária de Diana, Ópis, geme de dor. Logo em seguida, o matador de Camila é perseguido e morto por uma ninfa trácia.
Turno ao receber a notícia da morte de Camila encontra-se emboscado numa selva. Ao afastar-se da selva, Turno avista Enéias, e este a Turno.
LIVRO XII
Perdida a altivez pelas derrotas sucessivas, Turno, ao monarca Latino, expõe o seu desejo em duelar corpo-a-corpo com Enéias. Latino aconselha Turno a desistir de tal confronto, mostrando a ele tudo aquilo que possui em abundância. Mas Turno resiste aos conselhos do velho monarca. Amata interfere dizendo que Turno é o único arrimo dos Latinos; portanto, deveria desistir do confronto. Belicoso, Turno dirige-se a Amata com as seguintes palavras: "Mãe, não me aflijas com lágrimas e esses terríveis agouros, para não me deprimirem no instante de entrar em combate." E termina dizendo que o vencedor da peleja será o esposo de Lavínia. Por outro lado, não menos colérico encontra-se Enéias, que aceita o duelo proposto por Turno. Enquanto isso, a deusa Juno dizia a uma ninfa protetora de Turno que o fatal dia das Parcas aproximava-se do cruel guerreiro.
Enéias invoca os deuses, prometendo-lhes que, caso Turno fosse o vencedor, rumo à cidade de Evandro os vencidos se recolheriam. Caso contrário, se Enéias fosse o vencedor, o pio herói promete, então, um pacto de paz com todos os povos da Itália. Latino jurou que seguiria as palavras de Enéias, e assim firmaram um novo pacto.
Enquanto isso, Juturna, a deusa protetora de Turno, juntamente com seu povo, lamenta a desdita do feroz guerreiro. Mas o furor bélico a todos arrasta até o local da dura peleja. Enéias, ferido na perna, dá início ao combate. Ambos se encontram no campo de batalha. A rainha Amata, imaginando Turno vencido na peleja, suicida-se.
Os dois guerreiros concordaram em lutarem sós. Então, os belos escudos se chocam. Durante a sangrenta luta, Turno pede auxílio a Fauno. Uma ninfa auxilia Turno durante a luta. Vênus indignada livrou a espada do teucro, pronta para atingir mortalmente Turno. O pai dos deuses indignado com tudo aquilo pede à deusa Vênus um basta. Vênus diz ao pai dos deuses que desiste de tudo aquilo, implorando a Júpiter que estabeleça a paz entre os povos da Itália. Que todos os povos do Lácio se unissem em doce aliança: "Cresça a potência romana com base nos ítalos fortes. Tróia acabou; deixa então que com ela seu nome pereça." Que exista doravante um só povo com nome de latino. Esta era a vontade da deusa.
O Olimpo então enviou Juturna até o campo de batalha, onde os dois guerreiros lutavam. Ali transformou-se em ave negra agourenta, para o assombro e horror de Turno. Diante desse agouro, o guerreiro rútulo previu a própria morte iminente. A ninfa Juturna demonstrava tristeza profunda pelo fim do querido irmão.
Finalmente, embora demonstrando forte indecisão na hora fatal, Enéias mata Turno. "A alma indignada a gemer fundamente fugiu para as sombras."
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AS CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS FORAM EXTRAÍDAS DO SEGUINTE VOLUME:
VERGÍLIO. Eneida. Tradução Tassilo Orpheu Spalding. 3 a 9 ed. São Paulo: Cultrix, 1990-92.
PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
CAMPINAS, verão de 2005
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original (cite o nome do autor (Prof. Dr. Sílvio Medeiros) e o link para o site www.recantodasletras.com.br/autores/silviomedeiros). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
A "ENEIDA", de VIRGÍLIO (tentativa de resumo)2005Recanto das LetrasSÍLVIO MEDEIROSSÍLVIO MEDEIROStext/plain




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Ovídio
Publius Ovidius Naso (Sulmo, 20 de março de 43 a.C. — Tomis, 18) foi um poeta latino, é mais conhecido nos países de língua portuguesa por Ovídio.
Vivia uma vida boêmia, sendo admirado como um grande poeta. No ano 8, foi banido de Roma pelo imperador Augusto por causa de seu livro A Arte de Amar (Ars Amatoria), considerada imoral por Otávio Augusto, o que lhe causou um profundo desgosto até o final de sua vida. Foi nessa época que Ovídio escreveu a sua obra mais famosa: Metamorfoses (Metamorphoses), escrita em hexâmetro dactílico, métrica comum aos poemas épicos de Homero e Virgílio. Faleceu no ano 17 em Tomis, atual Constança, na Romênia.
Ovídio influenciou com seus versos, cheios de suavidade e harmonia, autores tão diversos como Dante, Milton e Shakespeare.
(Fonte: Wikipédia)
Metamorfoses de Ovídio é um livro guia sobre a mitologia greco- romana, narra os acontecimentos mitológicos mais importantes e, em especial, as transformações que dão nome ao livro. Pessoas transformando-se em rios, flores, rochas, ninfas que são transformadas em sons, deuses que se transformam em pássaros. O elemento que une essas transformações é o amor, quer por seu excesso, quer por seu fim, quer pelo medo dele. O ciúmes cria monstros, o amor pássaros e flores. O amor transforma os brutos e insensíveis, e sua perda enlouquece os bons.
Em Metamorfoses é possível encontrar belas histórias da tradição clássica: Jasão e os Argonautas, a Canção de Polifermo, a disputa de Ulisses e Ajax pela armadura de Aquiles, histórias sobre Hércules, a bela história de Eco e Narciso, as escapadelas amorosas de Júpiter, a declaração de vegetarianismo de Pitágoras, dentre outros temas. É um livro que também narra amores impossíveis, incestuosos, não-consentidos. Há de todos os tipos. Irmã que se apaixona por irmão, filha por pai e todas suas variações. De forma poética Ovídio narra essas passagens, que fazem com que ele ocupe o Olimpo da Poesia. (Loberto Lins) - fonte: http://pt.shvoong.com/books/classic-literature/1709005-metamorfoses/
Dois estudos acerca de Metamorfoses em PDF:
1) As Faces de Vênus em Metamorfoses de Ovídio, de Gabriela Staraffi Orosco, IEL/Unicamp - download
2) Metamorfose: Veículo de Sofisticação do Mito na Poesia Ovidiana, de Elaine C. Prado dos Santos, UPM - download

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Advertência:
Começa aqui uma pequena série (irregular) de artigos, com traduções, sobre as Metamorfoses, de Ovídio, dentro da Officina.
Por quê?
Pelo auto-propalado caráter oficinal da Officina (ou não teria nem mereceria esse nome) e porque é um dos poemas mais interessantes e importantes de todos os tempos além de, pasmem: NÃO HÁ há tradução completa em versos, na língua portuguesa, para os quinze livros que perfazem a obra. Qui possum facere? foi a interrogação que me fisgou há uns três anos. Traduzir e comentar me pareceu ser a resposta, e então, o resultado parcial e provisório — a se estender para um futuro indeterminado — é o que segue.
Duas Palavras Iniciais sobre as Metamorfoses, de Ovídio
A Primeira Lei da Conservação das Massas, de Lavoisier, o "nada se perde, tudo se transforma", registra filosoficamente — e talvez como um paradoxo — que o núcleo da mudança é a permanência. É assim que podemos ler também as Metamorfoses, de Ovídio, poema, como disse, do primeiro século da era cristã (e que nada tem a ver com ela).
Um pouco de ficção biográfica: Ovídio nasceu em Sulmona — Sulmo mihi patria est — e se educou em Roma, como seu irmão mais velho, para a carreira de advogado, que demandava os cuidados uma educação retórica esmerada. O problema é que não lhe agradava o trabalho; a retórica serviu, enfim, para a construção da técnica absoluta que demonstraria como poeta. Um primeiro exemplo são os Amores e as epístolas chamadas Heróides, em que Ovídio apresenta cartas amorosas entre heroínas e heróis mitológicos, como Hero e Leandro, que se queixam retoricamente de seus infortúnios. Seu pai não gostava da idéia de ter um filho poeta — não podemos censurá-lo —, e teria dito que "até mesmo Homero morreu miserável", apelando para outra eloqüência, a financeira. A situação da poesia, como vemos, não mudou muito nos últimos dois mil anos.
A profecia do pai, ou a praga, pegou. De poeta cortesão, elegante, refinado e apreciado por aqueles que eram seus pares, caiu em desgraça com o Imperador Augusto, o divino Augusto, e foi exilado para Tomos, um lugar inóspito na Europa Oriental — atualmente Constantza, na aprazível Romênia. Tentou captar a benevolência do imperador com os Fastos, poema sobre as festividades romanas através do calendário, e com Júlio César, no fim das Metamorfoses, se transformando numa estrela — Júlio César fora tio de Augusto. Não adiantou nada, e Ovídio morreria mesmo afastado de Roma, no exílio, apenas quatro anos após a morte de Augusto.
As hipóteses a respeito da ira de Augusto são várias e, como tudo que versa sobre o passado, pura especulação, às vezes um tanto patética: talvez Ovídio tenha sido indiscreto sobre algum aspecto delicado do imperador ou de sua família, pois no seu poema, já do exílio, de onde veio a maior parte dessas informações (Tristia, livro IV, décima elegia) ele emparelha sua sina com a de Actæon — o neto infeliz de Cadmo, que, por ter flagrado Diana, a deusa da caça, nua durante a toilette, é transformado em gamo silvestre e despedaçado por seus próprios cães de caça — através do uso de duas palavrinhas bastante específicas em oposição, que aparecem tanto no episódio mencionado das Metamorfoses (III, vv.138-252), quanto na elegia sobre seu próprio desterro. Então:
(Tris., IV, "Elegia decima", vv. 89-90):
Scite, precor, causam — (nec vos mihi fallere faz est) —
Errorem jussae, non scelus, esse fugae.
Sabei, pois, e eu vos rogo (não me é lícito enganar-vos),
Que causou meu exílio um erro, não um crime.
(trad. José Paulo Paes1)
(Met. III, vv. 141-142):
At bene si quaeras, Fortunae crimen in illo,
non scelus invenies; quad enim scelus error habebat?
Mas se bem consideras o crime da sorte no caso,
crime não há; pois como haveria crime num erro?
(Tradução de Dirceu Villa)
Negritos por minha conta, a fim de ajudar a perceber; e essa história colocou a pulga atrás da orelha de muitos latinistas, especialistas em Ovídio, etc., interessados em desvendar a causa do banimento. Talvez seja um trecho de texto posterior nas Metamorfoses, mas do próprio Ovídio: não saberemos. De qualquer forma, o fim melancólico e todas as anedotas já tradicionais sobre o poeta não têm muito a dizer sobre o que é provavelmente o poema mais importante da tradição ocidental, as Metamorfoses, ou Metamorphoseon Libri. A quantidade de grandes poetas, escritores, escultores, pintores e músicos que lhe deve muito é enorme. E da mesma maneira que Ovídio legou à tradição ocidental posterior os contos de seu poema, senão mesmo um exemplo de técnica poética e perícia retórica, eles também vieram de outras fontes, numa época em que a poesia era considerada uma arte regrada por códigos de imitação, citação, alusão e emulação, etc.2; por isso, digamos que ele opera como que um nó no repertório de temas greco-romanos, concentrando a matéria antes dispersa, e que se veria esparsa novamente depois dele.
Como muitos dos prováveis modelos de Ovídio (e possivelmente gregos em sua maioria) estão perdidos, podemos apenas apresentar alguns deles e especular que o poema tenha surgido de diversas outras recolhas de histórias mitológicas além dos evidentes Hesíodo, da Teogonia, e Homero — este último nos dois poemas mais famosos e naquilo que vieram a chamar Hinos Homéricos. Há, no trecho traduzido, empréstimos de Eurípedes em As Bacantes; a estilística helênica do verso (já desde os Amores); o Virgílio da Eneida, etc.
O perpetuum carmen que Ovídio se arroga é também um perpetuum motuum, um movimento perpétuo. O caos muda em ordem; César mudado numa estrela, mulheres em pássaros, árvores; as coisas mudam em ouro na mão de Midas, e o que parecia uma bênção é, na verdade, um inferno. Estamos diante de um livro didático? De um livro moral? De uma coleção de contos antigos? Estamos diante de tudo isso e mais outras tantas coisas. Ovídio não descende, como Virgílio, da épica homérica; não em linha direta. Poderíamos olhar para as Metamorfoses acreditando ver uma série de poemas. Seria mais lúcido, porém, ver apenas um poema composto de diversas faces; se formos ainda mais caprichosos, poderemos até mesmo admitir poeticamente que a linha que Ovídio se impôs, a das metamorfoses, é parte também da composição estrutural do poema — ele está cambiando um trecho no outro, de tal forma que os livros se interpenetram e a estrutura, antes invisível, se torna implícita e inevitável. Afastamos uma limitação muito comum de descobrir unidade somente onde ela está manifesta como evidente.
OVÍDIO EM PORTUGUÊS & ESTA TRADUÇÃO (en passant)
Ovídio não deu muita sorte em português. Não como Homero, para citar um poeta antigo, ou mesmo Dante Alighieri, da Divina Comédia, que tem as traduções sérias de Cristiano Martins (completa) e Haroldo de Campos (o Paradiso), e ainda conta, para efeito educativo, com aquele fiasco horrendo de Xavier Pinheiro.
Isso não quer dizer que poetas e tradutores muito bons não tenham se dedicado a traduzir o grande poema de Ovídio: o problema é que nenhum dos esforços levou a cabo a longa e árdua tarefa de passar para a língua os quinze livros das Metamorfoses, e sequer os teríamos completos se juntássemos as tentativas esparsas. Houve, entre os exemplos mais notáveis, Bocage3, que escolheu trechos (Midas transformando tudo em ouro, Tereu e Procne, Orfeu descendo aos Infernos atrás de Eurídice, etc.) e usou um decassílabo fluente, engenhoso, para a sua tradução. O trecho de Tereu e Procne, um dos mais cruéis de todas as Metamorfoses, é um bom exemplo de como o decassílabo funcionou com Bocage:
Com estes ameaços o tirano
Sente no coração ferver-lhe a raiva,
Mas não menor que a raiva é nele o medo;
E de uma, e de outra coisa estimulado,
Da lustrosa bainha o ferro despe,
E às tranças da infeliz a mão lançando,
Em duros nós lhe enleia os tenros braços.
Inclina Filomela o níveo colo,
Da espada, que vê nua, espera a morte;
Mas o duro, o feroz, por mais que a triste
Lute, resista, invoque o pátrio nome,
Com rígida turquês lhe aferra a língua,
A língua, que falar em vão procura,
Lhe extrai da boca, e rápido lha corta.
A purpúrea raiz lhe nada em sangue,
Cai o resto ao chão, murmura, e treme,
Qual da escamosa serpe mutilada
A cauda palpitante, e moribunda,
Que ao corpo em que viveu pretende unir-se.
Como escreve João Angelo na introdução do volume da Hedra: "o princípio geral (...) que nos parece nortear a versão de Bocage é a fluência, vale dizer, o ritmo" — palavras odiadas hoje por teorias (ah, teorias) de tradução — e continua, afirmando que ela se faz ler "e ouvir sem que se percam o tom, imagens e, principalmente, o deleite na compreensão". Mais exato, impossível. Comparada ao original, pouco se perde; Bocage tenta até mesmo imitar sons terminais, aproximar a língua etimologicamente, mas sem mão pesada.
Houve também Antônio Feliciano de Castilho, mais lembrado nos soporíferos livros de História da Literatura Portuguesa como o velho romântico que criou caso com Antero de Quental — a célebre e ridícula "Questão Coimbrã" —, e chegou a traduzir os primeiros cinco livros completos, também no esquema decassilábico, na verdade bastante baseado no trabalho anterior de Bocage. Há trechos até bem feitos, como o de Narciso, mas não é o seu melhor trabalho, nem mesmo com Ovídio: a tradução de Castilho para a Arte de Amar (Ars Amatoria) é espantosamente melhor. Nela, aproveitando o fato de que Ovídio a escrevera no dístico elegíaco latino, transpôs o poema para alexandrinos em dísticos rimados, e nem sequer despreza paralelismos ou aliterações4 — que contribuem enfaticamente para a robustez do verso de Ovídio.
Se inda alguém neste povo a arte de amar ignora,
leia-me: os versos meus o farão mestre agora.
Com arte, a vela e remo, um lenho é voador;
é-o com arte um coche; arte governe o amor.
Vive na voz da fama o auriga Automedonte;
vive Tífis, mareando a nau do hemônio monte,
Vênus de amor à escola impôs-me professor5
Esse é o início da proposição, e já percebemos a que Castilho veio, numa grande tradução, até hoje sem par. Remoque mouentur não pôde ser traduzido mantendo a aliteração no verso três; no verso seis, entretanto, temos mareando a nau do hemônio monte. Castilho não perde tempo nem enfraquece no decorrer do serviço. Isso na Ars Amatoria.
Sua versão em decassílabos para as Metamorfoses não foi a melhor opção, muito desanimadora em face da Arte de Amar , nos deixando a lamentar o fato de não ter feito com o maior poema de Ovídio o que sabia tão bem fazer. Quero dizer coisas muito específicas com isso: o tom do poema alcançado no caso decassilábico em geral não é o tom de Ovídio (mesmo considerando o certeiro trabalho de Bocage), que exige uma certa opulência verbal. Se você o traduz em dez mirradas sílabas, significando o que foi feito num hexâmetro que podia alcançar dezesseis ou dezessete (todos os recursos técnicos inclusos), ou você é um gênio bizarro — como Odorico Mendes —, ou algum nível de malogro é inevitável. Na versão de Castilho, o malogro foi com tudo que tinha direito, hélas! Leiam o pedaço que inicia o episódio de Baco e os piratas tirrenos:
Indo uma vez a Delos, costeamos
Naxos; à destra remo, alcanço o pôrto,
E salto à praia. Ao cabo dessa noute,
Vindo a arraiada a apavonar as nuvens,
Alevanto-me; aos nautas determino,
Que se renove a aguada, e lhes aponto
Caminho, que os depara a fontes frescas.
Subo-me num outeiro, exploro os ventos
Pelo cariz do céu; apupo aos homens,
Que façam volta (…)6
Acho que basta. Comparem esse excerto muito infeliz com o original; com a minha tradução; com o decassílabo de Bocage; ou com o próprio trabalho de Castilho na Ars Amatoria: é inexplicável. Parece um resumo pronto às pressas, sem cuidado com aliterações, repleto de palavras mal-colocadas — "apavonar", "cariz", "apupo" —, descuido com o tom, com o fato de que é um marinheiro falando a Penteu, e feito num esquema sintático de staccato, de toscos enjambements, etc. O oposto de Ovídio, e do elogio de Angelo às qualidades da versão de Bocage.
Houve também a ótima tradução de Haroldo de Campos para o episódio de Narciso. Campos usou o dodecassílabo e dispensou rimas (que deram um grande resultado no caso de Arthur Golding7, e no de Castilho da Amatoria); teve toda a atenção típica dos concretos no elemento por assim dizer "inventivo" da linguagem: percebeu que Ovídio, valendo-se de seu virtuosismo, aproveitou que a história baseava-se em espelhamentos e os mimetizou nos versos; Campos o seguiu com muita sensibilidade. Exemplos de quando Narciso se contempla e deseja a si mesmo sem saber: "Se inclina, vai beber, mas outra sede o toma:/ enquanto bebe o embebe a forma do que vê", ou, "No mirar-se, admira o que nele admiram".
Haroldo de Campos consegue uma tradução exemplar de Ovídio também por manter-se fiel à elegância de seu fraseado. O início do trecho, típica descrição ovidiana, é traduzida com economia de meios e ainda assim, estilisticamente perfeita:
Fonte sem limo, pura prata em ondas límpidas,
jorrava. Nem pastor se achega, nem pastando
seu rebanho montês, ou gado avulso, acode.
Nem pássaro, nem fera, nem, tombando, um ramo
perturba a úmida grama que o frescor irriga.
O bosque impede o sol de aquentar este sítio.
Da caça e do calor exausto, aqui vem dar
Narciso, seduzido pela fonte amena8
Nesse momento cheguei a pensar que teríamos as Metamorfoses em língua portuguesa de um jeito decente. É pena que tenha traduzido tão pouco.
E há Pound, que é preciso considerar porque incorporou o trecho de Baco e os piratas ao Canto II de maneira única, até certo ponto traduzindo, mas dispondo os versos na ordem que lhe convinha.
Ezra Pound é talvez o mais notável dos admiradores da obra de Ovídio no século XX; se The Cantos deve a Dante Alighieri, deve igualmente, senão mais, a Ovídio: a idéia da "épica sem enredo", definição cunhada pelo maior especialista em sua obra, Hugh Kenner; os "momentos mágicos" do poema, em que vários são transformações físicas ou mentais; a paráfrase no Canto II do seqüestro de Baco por piratas tirrenos; citações contínuas de Ovídio que perpassam a obra: no Canto IV é mencionada a história de Actæon, do livro III, e Ovídio comparece como personagem; no Canto XX, nova citação nominal de Ovídio, etc.
Outro desses pontos de contato é também a tradução de Arthur Golding (que veremos mais tarde), elogiada por Pound no ABC of Reading: "é o mais belo livro da língua", e prioriza na antologia Confucius to Cummings, com a colaboração de Marcela Spann, dando-lhe mais páginas do que para Shakespeare. Mas seria excessivo dizer que as 27 páginas são para Arthur Golding; elas são para Ovídio, lido na tradução quinhentista.
Aqui vai a parte do Canto II, extraída do episódio das Metamorfoses — comparar depois com o texto de Ovídio e com a minha tradução:
O barco aportou em Quios,
homens querendo água fresca,
E junto da fonte um garoto pequeno, lerdo com o mosto da uva,
"Pra Naxos9? Claro, a gente te leva pra Naxos,
Chega aí, guri." "Não, não é pra lá!"
"Êeh, pra lá é Naxos."
E eu disse: “Este é um navio honesto."
E um ex-presidiário saído da Itália
derrubou-me entre o cordame,
(Era procurado por homicídio na Toscana)
E todos os vinte contra mim,
Loucos por pouco dinheiro escravo.
E o levaram para fora de Quios
E para fora da rota...
E o garoto acordou, de novo, com o rumor,
E olhou por cima da proa,
ao leste, e para o estreito de Naxos.
Ardil divino então, ardil divino:
O barco breca no redemoinho,
Hera pelos remos, rei Penteu10
uvas sem semente só espuma,
Hera no embornal.
É, eu, Acetes, estava lá,
e o deus ao meu lado,
Água cortando sob a quilha
Quebradeira sob a popa,
esteira escorre pela proa,
E onde fora o alcatrate, era agora a trepadeira,
E gavinhas onde havia a cordagem,
folhas de videira nos toletes,
Pesada vinha nas hastes dos remos,
E, do nada, um bafejo,
hálito quente nos meus tornozelos,
Feras feito sombras em espelhos,
uma cauda felpuda sobre o nada.
Rosnar de lince, e acre odor de feras,
onde cheirava a alcatrão,
Farejar e pegada de feras,
olho-faísca no ar escuro.
Céu em excesso, seco, sem tempestade,
Farejar e pegada de feras,
pêlo roçando meu joelho,
Farfalhar de élitros voando,
formas secas no æther.
E o navio como a quilha no estaleiro,
engastado como um boi no guincho do gaivão11,
Ripas aderem ao casco,
uva em cachos nas cavilhas,
ar vazio ganhando pele.
Tendões se enlaçam no ar sem vida,
vagar felino de panteras,
Leopardos farejando brotos de uva no embornal,
Panteras agachadas na escotilha,
E em torno, o mar azul-profundo,
verde-rosa em sombras,
E Lieu: "Doravante, Acetes, meus altares,
Sem temer o cativeiro,
sem temer os felinos selvagens,
Seguro com meus linces,
dando uvas aos meus leopardos,
Olíbano é o meu incenso,
vinhas crescem em minha homenagem."
A maré agora suave nas correntes do leme,
Focinho negro de um golfinho
onde estava Lycabas,
Escamas de peixe nos remadores.
E eu venero.
Eu vi o que vi.
Quando trouxeram o garoto eu disse:
"Há um deus nele,
embora eu não saiba que deus."
E me chutaram pros cordames.
Eu vi o que vi:
A face de Médon feito a dum peixe-galo,
Braços encolhem em barbatanas. E tu, Penteu,
Devias ouvir Tirésias12 e Cadmo,
ou a tua sorte vai te deixar.
Escamas cobrindo as virilhas,
rugido de lince em meio ao mar...13
(Tradução de Dirceu Villa)
*
A minha tradução de Ovídio se deve a diversos motivos. O principal é que eu acho esse, provavelmente, o melhor poema da tradição ocidental: as histórias são magníficas em si, o artesanato do verso de Ovídio só é comparável ao dos melhores, e é o poema mais influente da história da poesia e da arte. O que seria dos pintores do Renascimento até o século XIX sem Ovídio? Há quatro painéis de Delacroix no acervo do MASP (Museu de Arte de São Paulo) que vieram diretamente das Metamorfoses; Velázquez, o maior dos pintores, tinha dois exemplares das Metamorfoses em sua biblioteca, um em espanhol, outro em italiano. Sei lá se estavam traduzidos em verso, mas ele, assim como a tradição que vinha de Caravaggio, compreendeu a idéia hoje talvez meio poundiana (The Spirit of Romance14) de que Ovídio "caminhava com as pessoas do mito", significando que deuses e heróis surgiam em retratos na velocidade da ação contínua que, como diz Italo Calvino15, percorre páginas e páginas com os verbos no presente, ou dramaticamente cedendo a voz para uma narrativa em primeira pessoa.
No sentido pictórico, isso significa o famoso Narciso de Caravaggio, ou o Festim de Baco — Los Borrachos, ou como se queira chamar o quadro — de Velázquez, que propõe um Baco como o vemos no livro III das Metamorfoses, um rapaz sensual, e coroando de folhas de parreira um bando de beberrões camponeses na pintura. Ortega y Gasset, que nos seus comentários associa a tela à picaresca espanhola, não vislumbrou a ligação direta com o estilo de Ovídio nem com a tradição italiana de Caravaggio (embora esta última certamente terá sido omitida por demasiado óbvia). Ele diz: "Este es un hecho muy interesante" — o fato do quadro ser uma novidade na Espanha — "porque, en cambio, en la literatura picaresca, tan popular en los siglos XVI y XVII, se encuentran muchas escenas de borrachos."16 A pintura é totalmente o avesso da picaresca, porque o "realismo" do Baco adiposo e dos beberrões pobres e esfarrapados não é caricatural, não é a vis comica: é aplicação de Ovídio mais Caravaggio numa concepção de caminhar com as pessoas do mito; o que, por sua vez, também não é tão poundiana assim. Pode-se encontar uma formulação muito semelhante no livro de Junito de Souza Brandão, Mitologia Grega, que escreveu o seguinte:
Dioniso é um deus humilde, um deus da vegetação, um deus dos campônios.17
Afirmando também que Baco era o, por assim, dizer, "mais humano" dos deuses, e que está no trecho de Ovídio, de certa forma, quando Acetes diz: nec enim praesentior illo est deus; e Brandão está falando da concepção mais antiga que pôde encontrar de Baco; e está além de qualquer suspeita quanto a ser um poundiano, tinha um gosto antiquado para poesia, era o seu tanto junguiano, etc. Seria cansativo tentar apreender a quantidade de bons artistas em tempos diversos que deve alguma coisa a Ovídio..
Outro motivo da tradução, que está em processo, é tentar completar enfim os quinze livros para o português, o que significa trabalho pesado por tempo indeterminado. Além disso, há uma questão interessante de opção tradutória. O hexâmetro datílico, usado nas epopéias de Homero e Virgílio, e nas Metamorfoses, é normalmente traduzido em português como:
a) decassílabo;
b) dodecassílabo ou alexandrino;
c) imitação estrita dos seis pés datílicos — isto é, uma longa e duas breves —, a cada verso, como fez Carlos Alberto Nunes, contra todos que disseram que isso "não é verso de língua portuguesa";
d) em prosa.
Então, resolvi que não usaria nenhum desses métodos, procurando descobrir se o verso livre (coisa que Eliot espertamente disse não existir) poderia funcionar. Evitei, portanto, embora dele me aproxime mais do que dos outros, o sistema de Carlos Alberto Nunes (que nos dá uma narrativa rítmica, sem responder propriamente às técnicas poéticas, e num ritmo sem truques, monótono). O poema de Ovídio à primeira vista poderá parecer mais um poema moderno, inclusive pelas interpolações, nada estranhas, de qualquer forma, à sua própria prática. Brandas, suaves, mas interpolações. Enfim.
Neste trecho que traduzi do livro III, em que os piratas seqüestram Baco para vendê-lo como escravo, Ovídio está na verdade parafraseando e ampliando o Primeiro Hino Homérico a Dionísio; as diferenças gerais estão em que no poema grego Dionísio se transforma em leão e faz outros animais surgirem no barco, como um urso, e há, no começo, uma apresentação do tema e um elogio à mãe do deus, Sêmele. Este pequeno trecho do Hino, por exemplo:
Quando eles [os piratas] o viram [Baco, na forma de garoto],
fizeram sinais uns pros outros
e logo o agarraram e o puseram cativo, exultantes, a bordo,
pensando que filho ele fosse de reis estimados dos deuses.
Queriam prendê-lo com rudes amarras,
é impossível: os nós não apertam, e voam as cordas de juta
distantes dos pulsos e pés; e o deus então se sentou
com um sorriso em seus olhos escuros.
O timoneiro enfim compreende e grita aos seus sócios, dizendo:
"Loucos! Que deus forte foi esse trazido amarrado?
Nem mesmo o navio de enorme convés poderá carregá-lo.
É certo que é Zeus ou Apollo do arco de prata, ou Posêidon,
pois não parece um mortal,
e sim um dos deuses que vivem no Olympo.
Deixemos que vá pela praia de areias escuras:
que fique intocado para não nos punir com ávidos ventos
nem tempestades pesadas." Assim ele disse;
mas com palavras de insulto o mestre lhe disse:
"Louco, cuida do vento e dá velas ao barco:
nós vamos cuidar do garoto; (..)"

(Tradução de Dirceu Villa)

como vocês verão, é muito parecido com o das Metamorfoses. Depois, Ovídio acrescenta desenvolvimentos da história a partir de As Bacantes, de Eurípides.
Em "Baco & os Piratas Tirrenos" se pode observar que o estilo de Ovídio não é o de epítetos e de trechos de verso que se repetem, como em Homero. Não há a "políssona praia"18 da Ilíada, v. 34 (a expressão que retorna, como é comum em Homero, por todo o poema, sempre que se refere a onde estavam as naus dos aquivos), ou a expressão também homérica do hino a Dionísio, em que lemos, no verso 7: "sobre o mar cor de vinho", embora seja uma das fontes de Ovídio para a confecção do poema.
Evidentemente usei referências diretas das outras traduções para o português, como, por exemplo, a de Castilho: a palavra específica que consta da sua tradução do mesmo episódio, o "portaló" — uma abertura no lado do navio, por onde entra a tripulação. Muito fiel ao espírito de Ovídio, Castilho empregou uma palavra precisa, e considerei que, além da homenagem ao esforço de Castilho, ainda acrescentaria a precisão, cara às descrições de ovidianas.
A importância de procurar semelhanças estilísticas é muito grande porque Ovídio é um esteta. Muitas vezes pude aproveitar jogos interessantes com o original quando podia conseguir o mesmo efeito aproveitando inúmeras coincidências etimológicas; outras vezes forcei semelhanças etimológicas, quando era possível produzir uma reflexão sobre o significado das palavras além do dicionário — o dicionário não registra estilo, muito menos nuances contextuais, emocionais, trocadilhescas, etc. Como escreveu, mui esperto, o poeta chileno Vicente Huidobro: "En todas las cosas hay una palabra interna, una palabra latente y que está debajo de la palabra que las designa. Esa es la palabra que debe descubrir el poeta".19
Há um exemplo de uso feliz da mesma matriz vocabular no episódio de Baco. O verbo "titubo", que aparece "titubare", no momento em que o deus está zonzo por beber o vinho forte. Quebrando um andamento fluente e elegante, escrevo o verso "Turvo do mosto da uva, titubeia de pernas trançadas", em que as aliterações em t mimetizam o trançar de pernas do deus bêbado. Outro exemplo, ainda no episódio de Baco, é o do barulho dos corpos dos marinheiros, transformados em golfinhos, contra a água do mar, em que acrescentei também uma paráfrase de um verso de Camões, nos Lusíadas, ele que também era um especialista em imagens marinhas e grande devedor, não só estilisticamente, de Ovídio20. Etc.
Não vou esticar esse texto em miudezas técnicas; sou da opinião que a tradução deve falar por si. E isso tem bons motivos: os loucos por detalhes cotejam os dois textos — latino e português — e acham as possíveis semelhanças e diferenças (e eu não estou disposto a surrupiar a diversão de ninguém); os que querem apenas ler um bom poema não terão de bocejar sobre as minhas notas de tradução que, além do mais, n'éxistent pas.
Boa leitura.
Baco & os Piratas Tirrenos
(Ovídio, Metamorfoses, III, vv. 597-691; tradução de Dirceu Villa)21
Em Delos me vi uma vez, na costa da terra de Quios,
dobram-se as velas, dirijo à direita com os remos
e salto na praia, ganhando a úmida areia:
consumida a noite no céu e à luz do arrebol
levanto e comando meus homens atrás de água fresca,
mostrando o caminho da fonte; e eu mesmo
no alto de um monte percebo a promessa dos ventos
e chamo de volta os parceiros à nave;
"tamo aqui", grita Ofeltes primeiro,
que puxa uma presa achada num campo deserto,
um garoto da praia, uma virgem na forma.
Turvo do mosto da uva, titubeia de pernas trançadas;
reparo em seu porte, seu rosto, seus passos;
nada vi que pudesse dizer "é mortal".
E eu disse aos parceiros: "qual é o deus neste corpo
não sei; mas é certo que há um deus neste corpo!"
Quem quer que tu sejas, assiste propício aos trabalhos;
perdoa estes homens!" "Não vem pedir nada por nós!",
brada Dictys — ninguém o supera em subir o alto mastro,
nem em descer pelas rudes amarras —,
e assim Libys e o loiro Melantho, vigia de proa,
e Alcimédon aprovam, e também Epopeu, que modula
o ritmo dos remos co’a voz e os ânimos ergue;
todos concordam: cupidez tão cega de o capturar.
"Não vou permitir violar este barco com o peso de um deus",
eu disse, "pois aqui minha voz vale mais",
e no portaló eu resisto: mas de todos o mais atrevido,
em fúria, Lycabas etrusco, expulso de sua cidade,
cumprindo o exílio por negro homicídio,
me agarra a garganta com seu punho jovem
e num murro por pouco não caio nas águas, não fosse,
sem auxílio da mente, travar do cordame.
Ímpia, a turba aprova tal ato; e eis que então Baco,
(Baco era sim), como se pelo clamor dissipado ficasse
o torpor da bebida, tornando ao seu peito os sentidos,
"o que estão fazendo? e o clamor o que é? Cheguei aqui como?",
pergunta, "para onde vão me levar?" e Proreu,
"fica frio, ô garoto: escolhe o porto pra gente chegar,
que cê fica na terra pedida." E Líber,
"pra Naxos. Invertam o curso pra Naxos!
é lá a minha casa, terra agradável aos hóspedes."
Falazes juraram, pelo mar e os numes, que assim o fariam.
E a mim deram o fardo de as velas encher ao negro navio.
À destra era Naxos: à destra o linho eu inflava,
"O que fazes, demente?", grita Ofeltes, “que furor te deu, Acetes?"
"Põe pra esquerda!" — me fazem notar quase todos
por sinal com a cabeça, por sussurro ao ouvido.
Disse, aturdido: "pois bem, que assuma o leme algum outro,
que eu não serei cúmplice em esquema de crime."
Todos me insultam, multidão de murmúrios me ofende;
Æthalion, então: "Cabeçudo! Somente contigo
nossa sorte se encerra?" disse e subiu ele mesmo
ao meu posto, se opondo ao trajeto pra Naxos.
Ardil divino, o deus finge que então desconfia da fraude,
e, da popa adunca o mar ele mira e diz, aflito num choro:
"Não são estas praias, marujos, que me prometeram",
diz: "Não são estas terras, as que eu lhes pedi!"
"O que por acaso lhes fiz? que glória enganar,
Jovens, um pobre garoto; muitos, contra só um?"
Choro junto e aflito: o bando de ímpios ri dessas lágrimas,
rápidos remos varrem as vagas.
Juro agora em seu nome (não há deus mais presente)
que é tão verdade o que digo,
quanto parece impossível: ’stanca n’água a popa,
qual num seco estaleiro atracada.
No espanto persistem com golpes de remo
e tentam a todo pano prover a nau de impulso:
heras impedem os remos, gavinhas serpeiam recurvas,
corimbos fecundos adornam as velas.
Racimos circundam com uvas a fronte de Baco,
que agita uma hástea frondosa de pâmpano;
tigres em torno, sombras de linces surgem do vácuo,
panteras, corpos de feras deitadas.
Homens ao mar, que a loucura tomou,
ou medo imenso; e Médon primeiro enegrece
em todo o corpo e, curva, a espinha se inflete;
Lycabas então: “que milagre”, ele diz,
"te reverte?", mas rasga-lhe a boca o gritar,
narinas se curvam e a cútis se encrosta de rígida escama.
E Lybis, querendo soltar os seus remos,
vê rápido as mãos retraírem,
mãos já bem pouco, mais barbatanas.
Outro tenta co’s braços tirar da cordagem a hera,
mas braço nenhum ele encontra: o corpo truncado mergulha
no fundo profundo das ondas, e ao ar ele ergue
a novíssima cauda forcada, com a curva dos cornos da lua.
Homens saltando por todos os lados, mergulham
e espalham espuma marinha,voltam pro alto, imergem de novo,
retornam das águas, brincam em danças e alegres atiram os corpos,
e expulsam das largas narinas a água que tomam do mar.
Éramos vinte (tantos assim nossa nave levava),
ficara só eu, tremendo de gélido horror;
mal me refiz, e o deus então disse: "Espanta o pavor do teu peito,
partimos pra Dia", e , lá chegando, o deus me inicia
nos ritos sagrados de Baco, que agora freqüento.
Baco & os Piratas Tirrenos
(Ovídio, Metamorfoses, III, vv. 597-691)
Forte petens Delum Chiae telluris ad oras
adplicor et dextris adducor litora remis
doque levis saltus udaeque inmittor harenae:
nox ibi consumpta est; aurora rubescere primo
coeperat: exsurgo laticesque inferre recentis
admoneo monstroque viam, quae ducat ad undas;
ipse quid aura mihi tumulo promittat ab alto
prospicio comitesque voco repetoque carinam.
"adsumus en" inquit sociorum primus Opheltes,
utque putat, praedam deserto nactus in agro,
virginea puerum ducit per litora forma.
ille mero somnoque gravis titubare videtur
vixque sequi; specto cultum faciemque gradumque:
nil ibi, quod credi posset mortale, videbam.
et sensi et dixi sociis: "quod numen in isto
corpore sit, dubito; sed corpore numen in isto est!
quisquis es, o faveas nostrisque laboribus adsis;
his quoque des veniam!" "pro nobis mitte precari!"
Dictys ait, quo non alius conscendere summas
ocior antemnas prensoque rudente relabi.
hoc Libys, hoc flavus, prorae tutela, Melanthus,
hoc probat Alcimedon et, qui requiemque modumque
voce dabat remis, animorum hortator, Epopeus,
hoc omnes alii: praedae tam caeca cupido est.
"non tamen hanc sacro violari pondere pinum
perpetiar" dixi: "pars hic mihi maxima iuris"
inque aditu obsisto: furit audacissimus omni
de numero Lycabas, qui Tusca pulsus ab urbe
exilium dira poenam pro caede luebat;
is mihi, dum resto, iuvenali guttura pugno
rupit et excussum misisset in aequora, si non
haesissem, quamvis amens, in fune retentus.
inpia turba probat factum; tum denique Bacchus
(Bacchus enim fuerat), veluti clamore solutus
sit sopor aque mero redeant in pectora sensus,
"quid facitis? quis clamor?" ait "qua, dicite, nautae,
huc ope perveni? quo me deferre paratis?"
"pone metum" Proreus, "et quos contingere portus
ede velis!" dixit; "terra sistere petita."
"Naxon" ait Liber "cursus advertite vestros!
illa mihi domus est, vobis erit hospita tellus."
per mare fallaces perque omnia numina iurant
sic fore meque iubent pictae dare vela carinae.
dextera Naxos erat: dextra mihi lintea danti
"quid facis, o demens? quis te furor," inquit "Acoete,"
pro se quisque, "tenet? laevam pete!" maxima nutu
pars mihi significat, pars quid velit ore susurro.
obstipui "capiat" que "aliquis moderamina!" dixi
meque ministerio scelerisque artisque removi.
increpor a cunctis, totumque inmurmurat agmen;
e quibus Aethalion "te scilicet omnis in uno
nostra salus posita est!" ait et subit ipse meumque
explet opus Naxoque petit diversa relicta.
tum deus inludens, tamquam modo denique fraudem
senserit, e puppi pontum prospectat adunca
et flenti similis "non haec mihi litora, nautae,
promisistis" ait, "non haec mihi terra rogata est!
quo merui poenam facto? quae gloria vestra est,
si puerum iuvenes, si multi fallitis unum?"
iamdudum flebam: lacrimas manus inpia nostras
ridet et inpellit properantibus aequora remis.
per tibi nunc ipsum (nec enim praesentior illo
est deus) adiuro, tam me tibi vera referre
quam veri maiora fide: stetit aequore puppis
haud aliter, quam si siccam navale teneret.
illi admirantes remorum in verbere perstant
velaque deducunt geminaque ope currere temptant:
inpediunt hederae remos nexuque recurvo
serpunt et gravidis distinguunt vela corymbis.
ipse racemiferis frontem circumdatus uvis
pampineis agitat velatam frondibus hastam;
quem circa tigres simulacraque inania lyncum
pictarumque iacent fera corpora pantherarum.
exsiluere viri, sive hoc insania fecit
sive timor, primusque Medon nigrescere toto
corpore et expresso spinae curvamine flecti
incipit. huic Lycabas "in quae miracula" dixit
"verteris?" et lati rictus et panda loquenti
naris erat, squamamque cutis durata trahebat.
at Libys obstantis dum vult obvertere remos,
in spatium resilire manus breve vidit et illas
iam non esse manus, iam pinnas posse vocari.
alter ad intortos cupiens dare bracchia funes
bracchia non habuit truncoque repandus in undas
corpore desiluit: falcata novissima cauda est,
qualia dividuae sinuantur cornua lunae.
undique dant saltus multaque adspergine rorant
emerguntque iterum redeuntque sub aequora rursus
inque chori ludunt speciem lascivaque iactant
corpora et acceptum patulis mare naribus efflant.
de modo viginti (tot enim ratis illa ferebat)
restabam solus: pavidum gelidumque trementi
corpore vixque meum firmat deus "excute" dicens
"corde metum Diamque tene!" delatus in illam
accessi sacris Baccheaque sacra frequento.'
________________________________________________________________________
(Gostaria de agradecer a Ram Devineni, que me presenteou com a novíssima tradução das Metamorfoses, em inglês, de Charles Martin, e a Flávia Rocha, pelo incentivo.)
[1]
Eu te dizia, ó zombador, que o amor havia de chegar, que tu não haverias de falar para sempre livremente: eis que jazes abandonado e suplicante te arrastas para as leis de uma mulher, e agora a ti dá ordens (uma mulher) qualquer, recentemente comprada.
Nem as pombas da Caônia me superariam no amor, em predizer quais jovens cada moça dominará. Com razão, o sofrimento e as lágrimas me tornaram experiente; e oxalá seja eu, após ter abandonado um amor, chamado de inexperiente!
De que vale a ti, agora infeliz, recitar um grande poema ou lamentar as muralhas (construídas ao som) da lira de Anfião? Mais vale no amor um verso de Mimnermo do que um de Homero: um Amor doce procura versos amenos.
Vai, peço-te, e abandona esses tristes poemas e canta (aquilo) que qualquer donzela gosta de ouvir. Por que não, se tu terias talento de sobra? Agora, insensato, tu procuras água no meio de um rio.
De fato, tu ainda não estás pálido, nem também foste tocado pelo fogo da paixão: esta é a primeira centelha do mal que há de vir. Então desejarás mais se aproximar dos tigres da Armênia e conhecer mais os grilhões da roda do inferno do que sentir tantas vezes em (teu) coração o arco do jovem (Cupido), e nada poder negar à tua (amada) enfurecida.
Nenhum Amor deu liberdade a alguém assim tão facilmente sem que, por outro lado, não (o) tenha oprimido. Que ela, ainda que seja bastante fácil, não te iluda: ó Pôntico, mais profundamente ela penetra (no coração), se de algum modo te pertence. Desde então não se pode desviar (dela) os olhos, (nem mantê-los) tranqüilos, nem o Amor que não se manifesta antes (e) enquanto (sua) mão (não) atinge (nossas) entranhas, (nos) permite ficar acordado com outro nome.
Ah! Quem quer que tu sejas, foge das freqüentes carícias; a elas, nem as rochas, nem os carvalhos poderiam resistir; tu, essa alma frágil, poderias menos ainda.
Portanto, se tens vergonha, reconhece o quanto antes (teus) erros: confessar porque te consomes freqüentemente no amor, alivia (a dor).
ANÁLISE
Percebemos que o núcleo temático desta elegia, marcada pela freqüência da palavra amor e por outros vocábulos a ela relacionados, tais como igni (v. 17) e blanditias (v. 30), gira em torno do amor, tema explorado exaustivamente pelos poetas elegíacos.
O emprego do vocativo Pontice (v. 26) denuncia que Propércio não se dirige como de praxe à sua musa Cíntia, mas ao amigo Pôntico, a quem censura por compor carmes épicos (graue carmen – v. 9). Contudo, é a experiência amorosa vivenciada com Cíntia, a verdadeira paixão de Propércio, que servirá de fio condutor para o diálogo entre o poeta e Pôntico.
Ao ler os poemas de Propércio, observamos que este procedimento, por parte do poeta, de se endereçar a um amigo para tratar de assuntos de amor, ocorre com uma certa freqüência nas elegias do livro I, tais como nas de número 4, 5 e 6, dirigidas, respectivamente, aos amigos Basso, Galo e Túlio. Já na elegia I, 7 (v. 1 a 6), Propércio se dirige também a Pôntico para falar de amor, referindo-se, inclusive, à inclinação do amigo para o canto de poemas bélicos:
Dum tibi Cadmeae dicuntur, Pontice, Thebae
armaque fraternae tristia militiae,
atque, ita sim felix, primo contendis Homero
(sint modo fata tuis mollia carminibus),
nos, ut consuemus, nostros agitamus amores,
atque aliquid duram quaerimus in dominam.
Enquanto, ó Pôntico, tu celebras Tebas de Cadmo
e as terríveis armas da milícia do irmão,
e competes com o distinto Homero, assim seja eu feliz,
(contanto que o destino seja favorável a teus versos),
eu, como me habituei, ocupo-me com meus amores,
e procuro algo contra uma cruel amante.
Nesta elegia, o poeta fala com a voz de um homem experiente, marcado profundamente pelas dores e sofrimentos do amor, como ele próprio confessa no verso 7. É essa experiência dolorosa que lhe permitirá, portanto, dirigir-se ao amigo Pôntico, em tom de freqüente advertência. O emprego do imperfeito do indicativo dicebam (v. 1), revela, contudo, que o poeta vem advertindo o amigo sobre os males do amor desde o passado e continua no presente, como o comprovam as formas de imperativo fuge (v. 30) e fatere (v. 33).
É também em nome dessa amarga experiência que o poeta assume o papel de um verdadeiro profeta do amor (v. 5-6). Com essa atitude, ele arroga a si mesmo o direito de fazer previsões, como notamos claramente no conteúdo dos versos 1, 2, 18 e 19, marcados todos por formas verbais de futuro. Mas é, sobretudo, nos versos 5 e 6 que essa nota profética mais se acentua, quando o poeta-vate, para mostrar-se superior às pombas da Caônia nas predições que faz acerca do amor, emprega dois verbos de ação projetada para o futuro: o subjuntivo potencial uincant e domet. A passagem alusiva à região da Caônia representa aqui um primeiro indício da erudição de Propércio, mostrando que o mesmo conhece não apenas sua fauna (columbae – v. 5), mas também sua flora, pois como descreve Spalding (1965:49), esse lugar era uma
...região ao nordeste do Epiro, na Grécia, assim chamada por causa de Cáon. Essa região, cheia de montanhas e florestas, era célebre pelas glandes de que se alimentavam os homens, antes da invenção do pão. Igualmente célebres eram suas pombas, que prediziam o futuro.
Por outro lado, quando Propércio se refere às pombas profetizas da Caônia, com ar de superioridade, o faz para ratificar sua experiência amorosa.
Com a mudança do tempo verbal, de passado para presente, ocorrida entre o primeiro, terceiro e quarto versos, este último modificado, inclusive, pelo advérbio nunc, Propércio acaba por ver concretizadas suas previsões feitas no passado (dicebam – v. 1), passando a descrever, desse modo, uma relação amorosa na qual o amigo Pôntico se apresenta perante a amada na condição de submisso. Lembremos, contudo, que nessa relação amorosa, os papéis do amante e da mulher amada se invertem, passando esta de escrava (empta – v. 4) a senhora, e aquele, de senhor a escravo, idéia retratada nos terceiro e quarto versos. Essa relação amorosa de submissão do amante à mulher amada, que se reflete, por um lado, no emprego do verbo iaces e do adjetivo supplex (v. 3), e, por outro, nas formas verbais uenis e imperat (v. 3-4), vai mais tarde impregnar o amor vivenciado pelos poetas da Idade Média e do Renascimento. Assim foi com Propércio, assim será com Petrarca e Camões, que, ao contrário do autor latino, exaltaram a figura da mulher amada no nível de um amor platônico.
Retomando a questão da experiência amorosa, podemos afirmar que no oitavo verso, a começar pelo tom da exclamação, Propércio se revela um tanto arrependido por ter conhecido um dia um amor que lhe trouxe tantos dissabores, preferindo antes não tê-lo vivenciado. Esse arrependimento, que se reflete no desejo manifestado pelo poeta de ser chamado de inexperiente (utinam dicar rudis!), torna-se mais evidente quando Propércio, para mostrar sua decepção com a experiência amorosa vivida com Cíntia, opõe o rudis final ao peritum do verso anterior, não sem razão posto na mesma posição do adjetivo que lhe serve de antítese.
No verso 9, o poeta se dirige a Pôntico empregando o adjetivo misero, em dativo, que, aliado ao verbo flere (v. 10), ressalta o estado de infelicidade em que se encontra seu amigo. Percebemos que nesse momento Propércio chama o amigo à razão, como que despertando-o de uma profunda letargia, daí o emprego de uma interrogação retórica, que, acrescida da lição ministrada nos versos 11-12, busca mais convencer do que propriamente indagar.
Ainda nos versos 10 e 11, notamos duas referências centradas no universo da cultura grega. A primeira, no campo mitológico, diz respeito ao episódio de Anfião; e a segunda, no âmbito da literatura, relaciona-se ao nome de Mimnermo e Homero. Ambas confirmam, mais uma vez, a erudição de Propércio, ou seja, o conhecimento do poeta acerca do mundo e da civilização dos Helenos.
Vamos, então, agora, antes de passarmos à análise do verso seguinte, tentar esclarecer, à luz da mitologia, o episódio de Anfião. Anfião era, segundo Bulfinch (1965:163),
...filho de Júpiter e Antíope, rainha de Tebas. Com seu irmão gêmeo Zétus, foi exposto ao nascer no Monte Citéron, onde os dois cresceram entre os pastores, sem conhecer os pais. Mercúrio ofereceu uma lira a Anfíon e ensinou-lhe a tocar, enquanto seu irmão ocupava-se em caçar e pastorear os rebanhos. Durante esse tempo, Antíope, a mãe dos gêmeos, que fora tratada com grande crueldade por Lícus, o rei usurpador de Tebas, e por sua esposa Dirce, conseguiu, afinal, informar os filhos de seus direitos e pedir-lhes ajuda. Com um bando dos pastores seus companheiros, os gêmeos atacaram e mataram Lícus e amarraram Dirce pelos cabelos à cabeça de um touro, deixando que o animal a arrastasse até matá-la. Anfíon tendo-se tornado rei de Tebas, fortificou a cidade com uma muralha. Dizia-se que, quando tocava sua lira, as pedras se moviam por si mesmas e iam tomar seu lugar na muralha.
Na descrição do mito, Anfião, à semelhança de Orfeu, possui o poder de encantar, com a doce melodia de sua lira, até mesmo seres inanimados. Propércio, quando alude a esse mito, o faz para mostrar a Pôntico que nem mesmo as muralhas erigidas por Anfião se comoveriam com seus tristes cantos.
A afirmativa expressa no verso 11, através do emprego do verbo ualet, modificado pelo advérbio de intensidade plus, demonstra que Propércio atribui maior valor às pequenas composições de temática amorosa. Para o poeta, os versos de amor, por sua natureza amena (carmina lenia – v. 12), agradam mais às donzelas do que os poemas bélicos, daí empregar, num gesto de polidez (quaeso), os imperativos i, compone (v. 13), opondo este último ao imperativo cane (v. 14), para convencer o amigo Pôntico a desistir dos versos tristes (tristis libellos – v. 13) e induzi-lo a cantar o que as moças gostam de ouvir (v. 14).
A partir da análise dos versos 12 e 13, feita no parágrafo anterior, percebemos que Propércio emprega a antítese lenia/tristis para estabelecer, respectivamente, uma distinção entre poesia amorosa e poesia bélica, associando o primeiro tipo de composição ao nome de Mimnermo e o segundo, ao de Homero.
Homero, como sabemos, compôs a Ilíada e a Odisséia, obras de assunto bélico. Mimnermo, ao contrário, pôs seu talento poético a serviço das elegias de amor. A comparação no verso 11, estabelecida entre seu nome e o de Homero (no abl. de comparação), revela a preferência de Propércio pelo poeta elegíaco, portanto, pelos carmes de amor. Aliás, esta inclinação pelos poemas de temática amorosa não é exclusiva de Propércio. Tibulo, igualmente, repudia os temas bélicos, preferindo tanger sua lira naqueles de amor, como confessa na seguinte passagem da elegia I, 1, v. 53-55:
Te bellare decet terra, Messalla, marique,
ut domus hostiles praeferat exuuias:
me retinent uinctum formosae uincla puellae.
A ti, ó Messala, convém guerrear, na terra e no mar,
para que a tua casa ostente os despojos inimigos:
a mim retêm, cativo, os vínculos de uma formosa mulher.
Guillemin (1939: 285) exprime essa atitude antibélica dos autores elegíacos latinos nos seguintes termos: “maudite soit la guerre et bien venue soit la paix avec toutes les bonnes choses qu’elle apporte. Son premier présent est l’amour”.
E, novamente, no verso 15, com o emprego da interrogação retórica, Propércio, consciente da capacidade de Pôntico, encoraja-o a cantar versos de amor, mostrando que somente sua insensatez, expressa pelo adjetivo insanus, não lhe permite enxergar seu próprio talento poético, idéia retratada no verso 16.
Numa atitude paradoxal, pois há pouco surpreendíamos o poeta aconselhando o amigo Pôntico a cantar versos de amor, agora, nos dísticos seguintes, Propércio, já profundamente amargurado, apresenta uma visão negativa desse sentimento, marcada, de um lado, pelo emprego do substantivo mali (v. 18), e, de outro, pela descrição de um estado físico de decadência (palles – v. 17), visto como conseqüência da paixão amorosa (igni – v. 17). Essa visão pessimista do amor acentua-se mais ainda pelo tom profético e negativo, conferido ao verso 18, no qual o mal previsto para o futuro, uenturi mali, é associado àqueles descritos no verso 17.
A partir dessa visão negativa, o poeta julga qualquer outra experiência menos dolorosa do que aquela vivenciada no amor. Esta idéia se encontra sintetizada nos versos 19 a 22, nos quais ele afirma, mediante a comparação magis ... quam, ser preferível experimentar o doloroso tormento do inferno e os perigosos tigres da Armênia a suportar as intensas torturas causadas pelo amor. Temos, então, no verso 19, outra referência à fauna. Dessa vez, relacionada aos tigres da Armênia, enfatizando não só o conhecimento de Propércio desta região, localizada na Ásia Ocidental, mas também dos animais ferozes que nela habitam.
No verso 21, Propércio alude, empregando a metonímia pueri, à figura de Cupido, deus do Amor, que, segundo a descrição de Harvey (1987:146), representa, na religião romana,
...o deus-menino do amor, filho de Vênus, uma adaptação do grego Eros, pouco importante no Panteão romano. Na literatura sua aparição mais notável é no primeiro canto da “Eneida”, onde Vênus lhe dá ordens para disfarçar-se em Ascânio e provocar o amor de Dido por Enéias.
Na mitologia grega, Eros, como afirma Spalding (1965:90), é concebido como
...o filho de Afrodite, com o carcaz bem fornido de setas, é um encantador menino alado, de cabelos encaracolados, risonho e trêfego, cujas travessuras nem sempre são inocentes. Toda vez que despede uma seta com seu infalível arco, o amor se implanta no coração e aí reina como tirano. Quando liga numa escolha feliz os corações de um homem e uma mulher, tudo vai bem; não raro, porém, seus caprichos dirigem-se a objetivos já comprometidos, e o final, sempre, é uma tragédia. Assim foi com Dido, assim foi com Pasífae, com Ariadne, com Fedra, com Medéia, com Hipodâmia.
Notamos que, no plano mítico, Cupido, o Eros grego, na maioria das vezes, interfere no coração dos amantes, para semear o sofrimento amoroso. No plano real, Propércio ratifica a tirania do deus do Amor, mostrando as freqüentes torturas (v. 21) e as fúrias (irata – v. 22) que o amante tem de suportar da mulher amada, quando submisso aos seus caprichos.
Nos versos 23-24, o poeta sintetiza, numa frase de tom universal, os aspectos contraditórios do amor, que poderiam enfeixar-se em pares opositivos, tais como: liberdade/prisão, alegria/tristeza, fidelidade/infidelidade, harmonia/desarmonia, ódio/amor, dentre outros. Com relação às antíteses inerentes ao amor, sobretudo ao amor-paixão, merece destaque o carmen 85 de Catulo, no qual o antológico verso odi et amo ressalta uma das contradições próprias desse sentimento. Na elegia properciana, essa contradição do sentimento amoroso se expressa, no plano lexical, pelo contraste entre os verbos praebuit (v. 23) e presserit (v. 24) e, no sintático, pela oração introduzida pela conjunção consecutiva ut non, que figura como contrapartida em relação ao fato descrito na principal.
Na condição de amante experiente, Propércio assume o papel de um verdadeiro analista da alma feminina, trazendo à tona, no verso 25, a questão do ser/parecer. Por isso, através do emprego do subjuntivo jussivo decipiat, volta a advertir o amigo Pôntico para que não se deixe iludir com falsas aparências. Alerta-o ainda para o poder de sedução da mulher amada, a qual, segundo o poeta, vai tomando conta do coração do amante, sem que ele perceba (v. 26). Essa idéia é retratada de forma mais intensificada pela antecipação da apódose acrius illa subit e pelo advérbio de intensidade que a introduz.
Mais adiante, como conseqüência do seu poder de dominação e de aprisionamento, Propércio apresenta o amor como motivo de inquietação. Esta idéia é transmitida, de um lado, pela constante vigilância do amante (v. 27) e, de outro, pelo desassossego provocado pela imagem da mulher amada, que passa a dominar completamente o pensamento do homem enamorado (v. 28).
No verso 29, Propércio mostra que o verdadeiro amor só se manifesta depois de haver dominado completamente o homem, ou seja, non ante donec manus attigit ossa. Podemos confirmar esse ponto de vista do poeta, tomando por base a litote non ante patet, empregada pelo mesmo para abrandar uma afirmação que se nega pelo seu oposto.
Propércio encerra seu canto elegíaco mostrando que tudo é frágil diante do amor (v. 31-32), daí, numa personificação hiperbólica, colocar este sentimento não só acima das forças humanas, mas, sobretudo, acima da própria força da natureza. Nesta, como registra o poeta, com o emprego do subjuntivo potencial possint, formando locução verbal com cedere (v. 31), até mesmo os seres mais resistentes, como silices e quercus, acabariam por sucumbir ao poder irresistível do amor.
É essa fragilidade, atribuída a Pôntico através do epíteto spiritus leuis (v. 32), que impossibilita o homem de reagir diante das flechas de Cupido. Consciente dessa dura realidade, que também experimentou, Propércio, numa derradeira advertência, emprega os imperativos fuge (v. 30) e fatere (v. 33), visando a libertar de vez o amigo das garras do amor.
Por fim, criticando os atos de Pôntico e levando-o a admitir seus erros (v. 33), Propércio tenta, por todos os meios, convencer o amigo de que o desabafo é a melhor forma de amenizar a dor resultante do sofrimento amoroso (v. 34).
Somente a experiência dolorosa do amor, confessada abertamente pelo poeta, no verso 7, pode lhe permitir incursões pelo universo da mitologia, dando voz a uma pessoa que se desabafa, ora advertindo, ora vaticinando, ora apregoando as agruras do amor.
CONCLUSÃO
A Elegia I, 9 tem como principal fio condutor a experiência amorosa de Propércio vivenciada com Cíntia. É um poema-catarse, fruto de uma grande paixão, elaborado por Propércio para dar vazão às suas decepções e desilusões amorosas. Está centrado em um tu, com quem um eu, experiente em matéria de amor, dialoga e se desabafa, mostrando os males a que se submete um amante quando dominado por Cupido. Não apresenta nenhuma nota de otimismo. Ao contrário, o amor é retratado pelo poeta de forma negativa e descrito como um mal que perturba e tira o sossego do amante.
É o canto de uma pessoa desiludida, que só pôs na balança o lado ruim do amor, esquecendo-se dos momentos felizes que muitas vezes ele proporciona. É verdade que a mulher amada, usando, às vezes, certos artifícios, faz o homem sofrer, mas ela é também fonte de alegria e de prazer.
O poeta não dedica nenhuma linha exaltando o lado bom do amor, nem as qualidades da mulher amada. Não há no seu canto uma autocrítica, nem uma avaliação de seus atos. Terá sido deliberação ou simplesmente descrença no amor? Não teria também o cantor de Cíntia uma parcela de culpa pela dor que carrega?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia. Trad. David Jardim Jr. Rio de Janeiro: Ediouro, 1965.
FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 4a ed. Rio de Janeiro: MEC, 1967.
––––––. Gramática da língua latina. 2a ed. Brasília: FAE, 1995.
GRIMAL, Pierre. Le lyrisme à Rome. Paris: PUF, 1978.
GUILLEMIN, A. “Sur les origines de l’élégie latine”. In: Revue des études latines. Paris: Les Belles Lettres, 1939.
HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Trad. Mário G. Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
MARMORALE, Enzo V. História da literatura latina. Trad. João Bartolomeu Jr. Lisboa: Estúdios Cor, s/d.
PROPERCE. Élégies. Trad., estabel. do texto D. Paganelli. Paris: Les Belles Lettres, 1929.
SARAIVA, F.R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português. 10a ed. Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Garnier, 1993.
SPALDING, Tassilo O. Dicionário de mitologia greco-latina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.
TORRINHA, Francisco. Dicionário latino-português. 2a ed. Porto: Porto Ed., 1942.



[1] Em nossa tradução, levamos em conta não só a sintaxe latina, mas também o espírito do texto, procurando sempre o melhor sentido para as palavras e construções latinas.
Fonte: http://www.filologia.org.br/revista/34/12.htm

Propércio, I.2
Quid iuvat ornato procedere, vita, capillo
et tenuis Coa veste movere sinus,
aut quid Orontea crines perfundere murra,
teque peregrinis vendere muneribus,
naturaeque decus mercato perdere cultu,
nec sinere in propriis membra nitere bonis?
crede mihi, non ulla tuaest medicina figurae:
nudus Amor formam non amat artificem.
aspice quos summittat humus non fossa colores,
ut veniant hederae sponte sua melius,
surgat et in solis formosior arbutus antris,
et sciat indocilis currere lympha vias.
litora nativis praefulgent picta lapillis,
et volucres nulla dulcius arte canunt.
non sic Leucippis succendit Castora Phoebe,
Pollucem cultu non Helaira soror;
non, Idae et cupido quondam discordia Phoebo,
Eueni patriis filia litoribus;
nec Phrygium falso traxit candore maritum
avecta externis Hippodamia rotis:
sed facies aderat nullis obnoxia gemmis,
qualis Apelleis est color in tabulis.
non illis studium fuco conquirere amantes:
illis ampla satis forma pudicitia.
non ego nunc vereor ne sis tibi vilior istis:
uni si qua placet, culta puella sat est;
cum tibi praesertim Phoebus sua carmina donet
Aoniamque libens Calliopea lyram,
unica nec desit iucundis gratia verbis,
omnia quaeque Venus, quaeque Minerva probat.
his tu semper eris nostrae gratissima vitae,
taedia dum miserae sint tibi luxuriae.


Por que tens tanto prazer, vida minha, em andar com os cabelos enfeitados,
em fazer ondular as leves pregas do teu traje, de tecido de Cós?
Por que tens tanto prazer em inundar os cabelos com mirra de Orontes
e vender-te por presentes estrangeiros?
Por que tens tanto prazer em trocar tua beleza natural por um luxo comprado
e em não permitir que teus membros brilhem com seus próprios dotes?
Crê-me: nenhum cosmético é necessário ao teu semblante;
o Amor é nu e não ama os artifícios da beleza.
Observa as cores formosas que a terra produz
para que as heras, espontaneamente, cresçam mais belas;
para que, nas grutas abandonadas, o medronheiro surja mais formoso
e as águas indóceis saibam percorrer o seu caminho.
As praias atraem, matizadas com seixos nativos,
e os pássaros, sem aprender,cantam com doçura maior.
Não foi assim que Febe, a filha de Leucipo, inflamou o coração de Cástor;
não foi pela beleza cultivada que Hilaíra, sua irmã, inflamou o de Pólux;
não foi assim que a filha de Eveno, na praia de seu país,
foi motivo de discórdia para Idas e o cúpido Febo;
não foi com a falsa brancura de uma tez pintada que Hipodâmia,
raptada por um carro estrangeiro, conquistou um esposo frígio:
seu rosto não devia nada às pedras preciosas;
tal é seu aspecto nos quadros de Apeles.
Nenhuma delas teve a intenção de conquistar o amante de forma vulgar;
nelas, o grande pudor já era suficiente formosura.
Não tenho receio de ser para ti menos do que todos estes.
Se uma mulher agrada um único homem, ela já é enfeitada
principalmente quando Febo te oferece seus versos
e a jovial Calíope, sua lira aônia.
Não te falta a graça de palavras belas
e tudo que Vênus e Minerva aprovam.
Serás sempre o encanto de minha existência
desde que sintas repulsas por todo esse luxo infeliz.

Tradução: Zélia de Almeida Cardoso. In: NOVAK, M.da G. & NERI,M.L.(org.) Poesia Lírica Latina. SP: Martins Fontes. 2003.
Fonte: http://primeiros-escritos.blogspot.com/2008/07/por-que-tens-tanto-prazer-vida-minha-em.html



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Satyricon - Petrónio
Por: Hugo Santos
Titus Petronius Niger é, por certo, o autor que hoje conhecemos como Petrónio: a generalidade dos estudiosos considera espúrio o nome Gaius, proposto por Tácito. Terá sido governador em Bitínia e, mais tarde, cônsul. Nero tê-lo-á acolhido na sua corte, como elegantiae arbiter (árbitro de elegâncias), daí a designação Arbiter por que é frequentemente conhecido. Segundo Tácito, «Os dias passava-os ele mergulhado no sono e as noites nas ocupações e prazeres da vida.» (p.20) Terá morrido no ano 66 da nossa era, acusado de conspiração e levado ao suicídio por Nero.
O Satyricon (que inspirou o filme homónimo de Fellini) chegou até nós em forma fragmentária, uma vez que se perderam vários dos livros que comporiam a totalidade da obra. Esta é a primeira tradução (havia, pelo menos, duas anteriores: a de Jorge de Sampaio, Europa-América; e a de Carlos Grifo, Editorial Presença) feita directamente a partir do latim original e esteve a cargo – em boa hora! – de Delfim Leão, docente da Universidade de Coimbra, que, entre outras obras, traduziu Aristóteles, publicou uma tradução de Sólon, acompanhada de vasto estudo, e verteu Plutarco).
Este conjunto de ‘livros das lascívias à maneira dos sátiros’ (Satyricon Libri) relata o percurso de Encólpio, narrador na primeira pessoa, e o seu companheiro e amante, Ascilto, a quem se junta o jovem Gíton. As duas personagens principais simbolizam, de certa forma, a juventude literata e algo diletante do tempo de Nero – «E que mais podia fazer, meu grande parvalhão, se já estava a morrer de fome? Ficar a ouvir grandes sentenças, que é como quem diz o tilintar dos copos e interpretação dos sonhos?» (p.36) O seu desregramento irónico assoma na escrita, fortemente realista, que confere ao Satyricon uma frescura e uma actualidade impressionantes.
Central na narrativa – entrecortada pelo estilo rápido e pela fluidez da narração e ainda pelas lacunas no texto – é o chamado «Banquete de Trimalquião», tão célebre que, por vezes, é editado em separado. Trimalquião, escravo liberto, é o típico novo-rico, desejoso de ostentar e ofuscar com a sua recente riqueza. Juntamente com a mulher, Fortunata, compõe um quadro em que se evidenciam os dotes críticos e jocosos do autor – «Portanto, comprei agora ao miúdo alguns alfarrábios avermelhados, pois quero que ele prove umas lascas de direito para uso da casa. É uma coisa que dá pão. De letras já está infestado que chegue.» (p.82) Juntamente com o poeta Eumolpo, Encólpio e Ascilto navegam para o Sul de Itália, em Crotona. Num trecho particularmente curioso, o poeta expõe a sua visão sobre a poesia épica, num longo poema (situação recorrente ao longo da obra, a interpolação de composições poéticas) que intercala com a ficção e em que o vate narra a queda de Tróia e a Guerra Civil. Os viajantes acabam por naufragar. Na sequência desse percalço, seguem-se diversas peripécias de carácter amoroso, eivadas de realismo, mas também de subtis descrições ardorosas – «Quem impede ao corpo de inflamar-se na tepidez de um leito?» (p.225). O fim da obra encerra ainda uma reviravolta diegética curiosa: Encólpio, que sempre alardeara proezas sexuais, é acometido por uma impotência que apenas Mercúrio consegue resolver. Eumolpo, por seu turno, na sequência de uma farsa em que se fizera passar por rico proprietário, lavra o seu testamento, com momentos de invulgar intensidade e de um poder imagético notáveis – «Todos os que são contemplados no meu testamento, à excepção dos meus libertos [na verdade, inexistentes…], só entrarão na posse dos bens que lhes leguei com esta condição: cortarem em pedaços o meu corpo e, na presença do povo, o devorarem...» (p.241)
Em Satyricon cabem a peripécia; os giros da linguagem, do registo popular – «– Mas eu já te servi… rapaz, e tu foste o único a emborcar o remédio todo?!» (p.48) – até aos píncaros da reflexão – «É semelhante a maneira como a fúria toma assento nos corações: agarra-se aos espíritos agrestes, mas escorre pelas mentes instruídas.» (p.162) «Se deitarmos bem contas à vida, por todo o lado há naufrágio!» (p.193) –; a prosa intercalada com a poesia – «Que noite aquela, deuses e deusas,/ que leito suave. Unidos no calor da paixão,/ trocámos entre um e outro, através dos lábios,/ as nossas almas errantes. Adeus cuidados/ mortais. Assim comecei eu a morrer.» (p.133) –; um documento histórico-literário de invulgar importância. Em suma, «um caso especial e único, quer pelo tema, quer pela estrutura, quer pelo estilo» (p.9).
Hugo Santos, 2007

Satyricon
Viagem ao "baixo"-Roma*
Ariovaldo Augusto Peterlini
Paulo Leminski está entre os tradutores que amam o perigo. Depois de Joyce, Petrônio. O Satyricon (texto latino escrito provavelmente sob Nero, por um suposto Petrônio), é um desafio que impõe audácias. E como é audacioso o artista que há em Paulo Leminski. "Entre trair Petrônio a trair os vivos", escreve ele no posfácio, "escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém". Leminski sabe que as traduções das obras clássicas greco-romanas ao nosso dispor trazem, de comum, ao leitor atual, de língua para língua, o escritor há centenas de anos, com sacrifício quase sempre da estrutura da língua receptora, em benefício da língua a do estilo de origem. Leitura restrita a minorias interessadas, já que supõe adaptação cultural. Mas Leminski, atendendo talvez a Henri Meschonnic (Propostas para uma Poética da Tradução), pretendeu "produzir um texto original em língua de chegada, homólogo ao texto da língua de partida".
No Satyricon, a variedade dos registros de língua corre desde a prosa culta até o vulgar do calão, sem falar nos trocadilhos a no raro de certo vocabulário só ali deparável. Apostando em mergulhar o leitor moderno na obra antiga, Leminski não hesita em "transcriar", em preencher e, mesmo, em reduzir, se disso necessita para trazer a seu leitor um Petrônio tão acessível a agradável quanto deve ter sido aos de sua época. "Esta não é uma tradução para especialistas. É um compromisso entre uma fidelidade essencial (o grifo é meu) ao texto latino do Satyricon às vezes até literal, e o não menos legítimo compromisso de envolver diretamente o leitor de hoje na vida de um texto dois mil anos vivo". "No caso dos poemas, mantive o sentido geral, aliviando-os, porém, do pesado lastro de alusões mitológicas que, evidentemente, só faziam sentido para um leitor da Antigüidade. Ou, hoje, para um especialista, versado em cultura greco-latina". Coerente com sua afirmação, não vacila em reduzir os 295 pesados versos originais do poema sobre a Guerra Civil a apenas sete. Mas, ao transformar os textos poéticos, visando à melhor sintenia com o leitor atual, aí então avulta sobremaneira a experiência e a arte de Leminski. Melhor, ler a sentir. Petrônio compõe uma paisagem ideal para o encontro de Encolpo a Circe: "Ondulante o plátano estendera as sombras estivais a assim também fizeram Dafne, coroada de bagas, a os trêmulos ciprestes a os pinheiros de contorno recortado na copa buliçosa. Por entre eles brincava, com águas errantes, um riacho espumoso, rolando os seixos na múrmura linfe." Leminski o "transcria", aligeirando-lhe os versos: "Lá onde o pinho e o plátano/ Entrelaçam suas ramagens,/ Lá onde o perfume das flores/ E o frescor das águas/ São os principais personagens/ Onde o cipreste ondula na brisa/ Que leva embora o canto dos pássaros..." (capítulo 126). Vezes há, porém, em que o aspecto paródico do original fica prejudicado, como, por exemplo, na passagem em que Encolpo, revoltado, interpela teatralmente o próprio membro, que se dobra teimoso na flacidez da impotência. Petrônio, valendo-se da técnica do centão, insere, aí, faceto, três versos de Vergílio, visando à paródia. Isso escapará ao leitor comum.
No trabalho de reviver o texto milenar, Leminski sabe escolher a primor a expressão moderna exata a agradável, quer, na tradução, quer nos comentários: "E um bofe, não uma mulher. Mas, enfim, quem nasce na senzala, nunca sonha com a casa-grande". (74). "A cultura 'nouveau riche' de Trimalcião é um verdadeiro 'samba do crioulo doido'." (52) Tão identificado com Petrônio me parece Leminski, que a tradução, a meu ver, só perde impulso em umas dez páginas do capítulo 11, exatamente um texto que deve ser apócrifo, pois não consta de excelentes edições modernas como, por exemplo, a da Las Belles Lettres.
Prós a contras pesados, o saldo é em extremo positivo. Tradução planejada à luz de objetivo específico e... com dedo de artista. Liberado de compromissos ferozes com os originais latinos, o tradutor ousa a "transcriação", preenchendo as lacunas do original a religando as malhas rotas do entrecho; facilita, enfim, os poemas a reduz ao mínimo a mitologia. Algumas falhas, como a ausência do capítulo 110 do original e a distração da passagem, só numérica, do capítulo 129 para o 135, poderão ser retificadas em próxima edição.
A bem da verdade, Leminski manteve todos os aspectos do Satyricon: está ali a novela erótica, a sátira menipéia, o mimo, a fábula milésia. Saem machucados, mas de leve, a crítica literária e a paródia, muito ligados que estão ao conhecimento especializado da cultura clássica antiga. Com polêmica ou sem ela, obra imprescindível a quem traduz do latim a do grego. Difícil dizer até que ponto o Satyricon de Leminski é o Satyricon de Petrônio, mas certo estou de que, se Petrônio fosse contemporâneo nosso a escrevesse, hoje, o Satyricon, escreveria provavelmente como Leminski.

Ariovaldo Augusto Peterlini
*OBS.: Publicado originalmente com o título "Viagem ao "baixo"-Roma", Folha de S. Paulo, 1985.
Fonte: http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/kamiquase/ensaio37.htm

Resenha: A pobreza no Satyricon de Petrônio.
Livro de : FAVERSANI, Fábio.
Resenha de:Marilena Vizentin
Mestre-História, USP
A reflexão sobre os Estudos Clássicos coloca-se como fundamental na construção de uma História Cultural do Ocidente; e já que o Brasil se insere dentro deste quadro, é razoável esperar que nós, brasileiros, possamos produzir algo sobre este momento do pensar em nossa própria cultura.
É aproximadamente com esta colocação que Fábio Faversani, autor da obra em epígrafe, inicia o trabalho sobre o qual nos deteremos nesta resenha. Fruto de sua dissertação de mestrado, A pobreza no Satyricon de Petrônio, lançada recentemente por uma iniciativa da Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, representa uma contribuição de grande relevância para o avanço dos estudos sobre a Antigüidade Clássica no Brasil.
Malgrado o número bastante reduzido da tiragem (apenas 90 exemplares), acreditamos que a publicação e divulgação deste texto causará um impacto bastante positivo na comunidade científica brasileira que se dedica a este ramo da História. Além disso, trata-se de um estudo que se insere dentro de uma nova frente de trabalhos sobre História Antiga no Brasil, os quais buscam uma maior autonomia em relação à historiografia produzida na Europa e Estados Unidos, bem como uma nova abordagem de conceitos há muito cristalizados. Nesse sentido, esta nova "geração" de historiadores procura uma melhor inteligibilidade de problemas inerentes à época atual a partir do estudo de sociedades antigas, de forma a contribuir para a construção de uma identidade cultural nacional própria.
A obra de Faversani, deste modo, procura responder à seguinte questão: "(...) as posições sociais são determináveis pela posição dos agentes nas relações de poder?" Na tentativa de respondê-la, o autor dedica-se à análise de uma das obras mais polêmicas produzidas pelo mundo antigo, seja pelo seu conteúdo, seja pelo estilo único com que foi redigida: o Satyricon, de Petrônio. A partir dela, reflete sobre os livres pobres em Roma à época do Principado e sobre as relações diretas de poder engendradas por estes personagens. Sua primeira conclusão é a de que a posição dos agentes sobre os quais se detém é determinável pela sua inserção na dinâmica das relações sociais e não apenas pelo controle deste ou daquele atributo. Discute, para tanto, ao longo dos capítulos, questões que se referem diretamente à problemática da obra latina; questões de fundo mais teórico, como os conceitos de "classe" e "estamento"; e o tratamento dado pela historiografia aos livres pobres do Império romano. Ademais, utiliza-se de instrumentos analítico-conceituais próprios de forma a efetivar sua proposta inicial de trabalho.
Estruturada desta maneira, Faversani dá início à sua exposição enfocando primeiramente a obra latina sob múltiplos aspectos. Assim, propõe um resumo bastante breve e esquemático de seu conteúdo, dividindo-o em cinco partes, de modo a colocar o leitor a par da história ali narrada. A seguir, passa para os problemas, a nosso ver bastante comuns quando se trata de um texto antigo, relativos à data e autoria do mesmo. Nesse sentido, perfaz, com bastante acuidade, todo o caminho de estudos realizados com esta finalidade, ressaltando a grande importância dos próprios códices para a definição destas questões. No sentido de elucidar o nome de seu verdadeiro autor, tece uma série de argumentos que, se de início nos parecem relativamente confusos, aos poucos vão se definindo mais claramente. Identifica, pois, C. Petrônio Arbiter como o verdadeiro autor em questão.
No concernente à data em que foi escrito o Satyricon, Faversani apresenta os diferentes meios pelos quais se procurou chegar a um período aproximado, quais sejam: recursos lingüísticos, econômicos e estilísticos. A seu ver, entretanto, nenhuma das datas propostas pôde solucionar verdadeiramente o embate, o que o leva a tomar o termo hortus pompeianus como chave para a elucidação do mesmo1.
Outros pontos sobre os quais ainda tece algumas considerações referem-se aos locais em que se ambientam os episódios narrados e as condições em que foi escrita a história. Para Faversani, a definição precisa das cidades citadas no texto latino, para seu estudo, é absolutamente irrelevante; basta-lhe saber que se tratava de um ambiente urbano do centro-sul italiota, notadamente cidades de porte médio. Quanto ao contexto em que teria sido escrito, deixa alguns aspectos a desejar, pois pressupõe que o leitor esteja bastante familiarizado com o período retratado, não entrando em maiores detalhes sobre os aspectos políticos e econômicos — fundamentais pelo que se pôde depreender da análise subseqüente. Este fato, por sua vez, produz uma visão — errônea — da existência de um mundo à parte, composto apenas pelos livres pobres, como se eles não interagissem e não fizessem parte de toda uma estrutura social já estabelecida.
Finalmente, para encerrar este capítulo, Faversani esboça a trajetória da tradição textual petroniana atentando para as falsificações existentes acerca do Satyricon (o texto que nos chegou não está completo), e alertando para o uso inadequado destas falsificações, principalmente em edições brasileiras (segundo ele, todas elas dão o texto como concluído). Este item serve de mote para a introdução do estilo e das intenções petronianas. Para o autor, Petrônio, ao pintar a realidade que o cerca de forma cômica e parcial, acaba controlando o que seus leitores vêem de forma direta, daí a dificuldade, hoje, em se compreender e nomear seu estilo. Chega-se à conclusão, portanto, de que se trata de um estilo original e inédito, na medida em que faz uso de inúmeros gêneros literários já existentes. Sua exposição, mesmo que em tom popularesco, apresenta criticamente uma "realidade afastada do natural e inegavelmente em crise", daí o recurso adotado por Petrônio, qual seja, o de apontar para diferentes perspectivas na busca de outras tantas soluções.
O segundo capítulo, a seu turno, tratará dos aspectos teórico-metodológicos e dos instrumentos analítico-conceituais a serem utilizados na posterior análise da fonte, cujo foco de preocupação será apenas a pobreza construída no Satyricon. Tendo isto em vista, Faversani coloca a abordagem da historiografia com relação ao tema escolhido, centrando sua atenção em historiadores como Rostovtzeff, Catherine Salle, Paul Veyne, E. Badian e Ramsey MacMullen. Alguns deles encontram o que ele chamou, bastante a propósito, de "consoladora solução", isto é, a idéia do panem et circenses, na qual os pobres viveriam despreocupadamente à sombra das dádivas dos ricos... Os argumentos subseqüentes, em função disso, procuram recolocar a questão das condições de vida dos pobres — verdadeiramente "sofríveis" —, concluindo que a plebe não poderia sobreviver sem qualquer tipo de estratégia que lhe garantisse ao menos o sustento.
Esta constatação leva Faversani a uma discussão sobre dois conceitos hegemônicos na historiografia social: classe e estamento. Sua abordagem dar-se-ia pelo fato de constituírem elementos bastante importantes para a compreensão da posição social ocupada por Trimalchio, um dos principais personagens da narrativa petroniana e comumente o mais analisado pela historiografia. Seria Trimalchio um típico representante de uma classe ascendente, vinculada ao mercado, e concorrente ou aliada plausível da aristocracia fundiária romana ou, ao contrário, seria típico na demonstração de que os libertos não podiam constituir um grupo hegemônico ou serem admitidos naqueles já existentes, tanto por limitações jurídicas, quanto culturais? É o que Faversani procurará demonstrar por meio da análise dos dois conceitos acima referidos. Tanto um quanto o outro, infere, são ou insuficientes para a análise da sociedade romana, ou eficientes apenas para a compreensão da elite senatorial, e não em relação aos libertos. Crê, portanto, que a solução para todos os impasses apontados esteja na "(...) criação de uma categoria analítica alternativa, capaz de satisfazer as necessidades de compreensão das potencialidades ou efetiva ocorrência de ações coletivas dos agentes sociais".
Nesse sentido, Faversani vai se ocupar do que chamou de "relações diretas de poder". Retoma, para tanto, a discussão encetada a partir da década de 60 pelos historiadores ingleses (P. Gansey, R. Saller, A. Wallace-Hadrill, C. Whitaker, entre outros) e dá continuidade à mesma aumentando as possibilidades de tipos de relações diretas de poder e observando — daí sua inovação —, as redes de ordenação e controle que, em conjunto, elas estruturam. Ademais, respeita a multiplicidade qualitativa destas relações, tratando-as como tipologicamente diferenciadas, sem privilegiar um único tipo. Inclui, assim, diferentes categorias que se inter-relacionam, tais como clientes, libertos, protegidos, amigos, protetores, senhores e patronos, inferindo ser a extensão das redes entre eles muito variável e dependente da capacidade de cada agente em estabelecer ligações.
Na "difícil busca de uma idéia de pobreza", portanto, Faversani conclui este capítulo com um panorama de como os romanos da elite encaravam seus contemporâneos pobres e com uma nova abordagem das categorias utilizadas pela historiografia para classificar e definir a pobreza. Busca, a partir disso, uma melhor visualização de como os pobres se colocavam diante do universo dos ricos e de que maneira interagiam com ele. Assim, segundo o autor, existiria um grande debate a respeito da idéia de pobreza, mais do que sobre o pobre enquanto agente social em si, o que não contribuiria em muito na reconstrução dos mecanismos de produção e reprodução da vida social criados pelos pobres. Nesse sentido, aponta para as dificuldades de se delimitar conceitualmente a pobreza, passando a discutir alguns estudos que, mesmo não tendo como tema central a Antigüidade Clássica, procuraram esclarecer, ou pelo menos levar em consideração a questão da pobreza.
Em "As relações de poder no Satyricon", temos finalmente a análise dos agentes sociais presentes na narrativa de Petrônio. Em relação a isso, e visando a uma maior inteligibilidade por parte do leitor, Faversani divide o texto latino em "episódios" (mais precisamente quatro), nos quais buscará conclusões de validade mais geral para esta fonte. Estuda, para tanto, cada um deles por ordem crescente de complexidade, levando em conta sua extensão, as redes de poder minimamente independentes, o número de agentes sociais envolvidos e os dados que levam à caracterização destes. Antes de iniciar sua análise acerca destas questões, entretanto, elabora um estudo dos protagonistas do Satyricon, pois cada um deles participa de mais de um episódio e sua repetição, a seu ver, poderia se revelar enfadonha.
A partir de sua caracterização, Faversani traça as diversas estratégias de sobrevivência empreendidas por estes personagens, bem como as relações sociais encetadas pelos mesmos. Disso infere que tais estratégias teriam um caráter mais defensivo, ao mesmo tempo em que funcionavam como mecanismos de escape para as faltas cometidas ao longo de seus estratagemas. Daí as relações sociais que estabeleciam não poderem, de forma alguma, ser duradouras, visto a iminência de serem reconhecidas por outrem.
Na análise que se segue dos episódios ("de Quartilla", "Viagem a Crotona", "Farsa de Crotona" e "Cena Trimalchionis"), observa-se sempre uma breve síntese de cada um deles e uma primeira identificação dos principais personagens envolvidos no excerto em questão. Dentre eles, Faversani detém-se sobretudo no último episódio elencado, destacando a figura de Trimalchio e sua atuação perante os convivas do lauto banquete que oferece. Para tanto, apresenta "os olhares da historiografia" sobre este personagem, verificando as "tipicidades" atribuídas a ele e as diferentes concepções de sociedade romana que motivaram a criação dos "típicos Trimalchios". A seu ver, Trimalchio seria típico apenas de como as elites viam os libertos ricos e não de como eles de fato poderiam ser, de forma que uma análise mais coerente deveria levar em consideração também as suas relações sociais e não apenas os estereótipos elaborados tanto pela epigrafia produzida pelos próprios romanos, quanto pela tradição textual remanescente.
Em vista disso, sob o "prisma das relações diretas de poder", Faversani vai analisar a figura de Trimalchio ressaltando a multiplicidade de personagens que atuam na Cena Trimalchionis e seu verdadeiro papel em relação a seu anfitrião, aspectos estes que considera extremamente importantes para a construção da personalidade do mesmo. Estabelece, assim, uma tipologia, dividindo-os entre comensais (em sua maioria libertos), indivíduos mencionados pelos comensais, e servidores (pertencentes à familia trimalchionis), de maneira a reconstruir as inter-relações estabelecidas entre eles. Ao examinar cada uma destas "categorias" — que convergem, direta ou indiretamente para uma única pessoa, ou seja, Trimalchio —, estabelece, por fim, um quadro geral de relações de poder que os envolvem, cumprindo, sem dúvida alguma, os objetivos a que se propusera no início de seu trabalho.
Na busca de uma melhor compreensão da pobreza, portanto, Faversani acaba confirmando "a importância das relações diretas de poder como elemento ordenador e estruturador da sociedade romana" — ao menos daquela cuja imagem Petrônio nos permitiu vislumbrar —, por meio de instrumentos analítico-conceituais próprios que, à primeira vista, pareceram-nos absolutamente pertinentes. Talvez, como o próprio autor afirmou, estes instrumentos não tenham a mesma validade junto a períodos históricos mais abrangentes, daí a necessidade de se propor novas alternativas de análise que possam contemplar também outras questões, além da pobreza.
Ao enfocar os livres pobres do período neroniano, todavia, Faversani coloca-nos diante de questões que, malgrado os muitos séculos decorridos, ainda se revelam preocupantes. Nesse sentido, a utilização que faz de exemplos tirados de outros contextos históricos não é fortuita. Apenas revela ser a pobreza um problema latente, não só para os que a observam de longe — sejam senadores romanos ou acadêmicos —, mas sobretudo para os que dela fazem parte e que sobrevivem, ainda, graças àquelas mesmas estratégias (guardadas as devidas proporções). Procurar investir em outras "alternativas de análise", como a aqui esboçada, embora possa parecer muito pouco perante a injusta realidade brasileira, sem dúvida muito auxilia na construção de "uma visão do passado a serviço da transformação (...) de nossa sociedade". O caminho escolhido, convenhamos, não é dos mais fáceis, mas até aqui, parece-nos, andou-se bem!
NOTAS
1Segundo Faversani, só teria sentido possuir um hortus pompeianus antes de 79 d.C., ano em que Pompéia é soterrada pela erupção do Vesúvio. Deste modo, a obra só poderia ser anterior a esta data.
Resenha recebida em 06/2000. Aprovada em 11/2000.

SATYRICON - Fellini

Sinopse
Esta é a livre adaptação de Fellini da famosa peça de Petronius, que faz uma crônica da vida na Roma antiga. Encolpio (Martin Potter) e seu amigo Ascilto (Hiram Keller) disputam o afeto do jovem Gitone (Max Born). Quando Encolpio é rejeitado, ele começa uma jornada na qual encontra todos os tipos de pessoas e de acontecimentos, entre eles uma orgia e um desfile de prostitutas na Roma antiga. Durante a orgia, organizada por Trimalchio (Mario Romagnoli), encontra um ex-escravo que menosprezou a mulher em troca dos prazeres oferecidos por um jovem garoto.
O filme é estruturado em uma narrativa truncada e é uma reflexão sobre a sexualidade masculina e suas variações. Cada trecho do filme trata de uma delas, como o homossexualismo, e outras questões delicadas que envolvem o sexo. Apesar de ser baseado na sociedade da Roma antiga, Satyricon reflete também um momento de caos pelo qual a sociedade da década de 60 vivia. Informações Técnicas
Título no Brasil: Satyricon de Fellini
Título Original: Fellini - Satyricon
País de Origem: França / Itália
Gênero: Drama
Classificação etária: 16 anos
Tempo de Duração: 138 minutos
Ano de Lançamento: 1969
Site Oficial:
Estúdio/Distrib.: Mais Filmes
Direção: Federico Fellini
Elenco
Martin Potter ... Encolpio
Hiram Keller ... Ascilto
Max Born ... Gitone
Salvo Randone ... Eumolpo
Mario Romagnoli ... Trimalcione
Magali Noël ... Fortunata
Capucine ... Trifena
Alain Cuny ... Lica
Fanfulla ... Vernacchio
Danika La Loggia ... Scintilla
Giuseppe Sanvitale ... Abinna
Genius ... Liberto arricchito
Lucia Bosé ... La matrona
Joseph Wheeler ... Il suicida
Hylette Adolphe ... La schiavetta

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Petrônio
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Petrônio ou Petronius foi um escritor romano, mestre na prosa da Literatura latina, satirista notável, autor de Satíricon. Não existem provas seguras acerca da identidade de Petrônio, mas é hoje quase certo que se trata de Gaius Petronius Arbiter ou Titus Petronius (c.27-66 AD), distinto frequentador da corte do imperador Nero.
Vida
Petrônio nasceu em Marselha no de 14 a.C. Nascido de uma família aristocrática e abastada, mostrou toda sua competência política ao ocupar os cargos de governador e depois o de cônsul da Bitínia, atual Turquia. Depois ocupou o cargo de conselheiro de Nero, sendo nomeado arbiter elegantiae (árbitro da elegância, 63). Em 65, acusado de participar na conspiração contra o imperador e caindo em desfavor, acabou com sua estranha vida, uma mistura de atividade e de libertinagem, no ano de 66 d.C., cometendo um lento e relaxado suicídio, abrindo e fechando as veias, enquanto discursava sobre temas joviais, mandando para Nero um documento no qual detalhava seus abomináveis passatempos.
Sobre ele, na famosa obra O Anais, o historiador Tácito traçou uma imagem viva, que vale a pena ser lembrada e transcrita.
Petrônio consagrava o dia ao sono, e a noite aos deveres e aos prazeres. Se outros chegam à fama pelo trabalho, ele adquiriu-a pela sua vida descuidada. Não tinha a reputação de dissoluto ou de pródigo, como a maioria dos dissipadores, mas a de um voluptuoso refinado em sua arte. A própria incúria, o abandono que se notava nas suas ações e nas suas palavras, davam-lhe um ar de simplicidade, emprestando-lhe um valor novo. Contudo, procônsul na Bitinia e depois cônsul, deu prova de vigor e de capacidade. Voltando aos seus vícios ou à imitação calculada dos vícios, foi admitido entre os poucos íntimos de Nero e tornou-se na corte o árbitro do bom gosto: nada mais delicado, nada mais agradável do que aquilo que o sufrágio de Petrônio recomendava ao príncipe, sempre embaraçado na escolha.
Nasceu daí a inveja de Tigelino, o prefeito do pretório e poderoso conselheiro de Nero, que receava um concorrente mais hábil do que ele na ciência da volúpia. Conhecendo a crueldade do imperador, sua qualidade dominante, insinuou que Petrônio era amigo do conjurado Flávio Scevino; em seguida comprou um delator entre os escravos do acusado, sendo-lhe vedada qualquer defesa e mandando prender membros da sua família. O imperador encontrava-se então na Campânia e Petrônio tinha-o acompanhado até Cumes, onde recebeu ordem de ficar. Ele, sabendo que o seu destino já estava marcado, repeliu tanto o temor quanto a esperança, mas não quis se afastar bruscamente da vida. Abriu as veias, fechou-as depois, abrindo-as novamente ao sabor da sua fantasia, falando aos amigos e ouvindo por sua vez, mas nada havia de grave nas suas palavras, nenhuma ostentação de coragem; não quis ouvir reflexões sobre a imortalidade da alma, nem sobre as máximas dos filósofos: pediu que lhe lessem somente versos zombeteiros e poesias ligeiras. Recompensou alguns escravos e mandou castigar outros; chegou a passear, entregou-se ao sono a fim de que sua morte, ainda que provocada, parecesse natural. Não adulou no seu testamento Nero ou Tigelino ou qualquer outro poderoso do dia, como fazia a maioria dos que pereciam. Mas, em nome de jovens impudicos ou de mulheres perdidas, narrou as davassidões do príncipe e os seus refinamentos; mandou o escrito a Nero, fechado, imprimindo-lhe o sinete de seu anel, que destruiu a fim de que não fizesse vítimas mais tarde.”
Era esse o ambiente da corte de Nero. Porém havia nela um personagem desse mundo cheio de contrastes – Petrônio. A maioria de seus críticos admite que foi ele o “arbiter elegantiarum” da época, o autor do “Satiricon”. E entre os muitos estudiosos interessados no assunto houve inclusive opiniões divergentes, mas o parecer mais acertado parece ter sido o do estudioso italiano Marchesi: “Petrônio, nos últimos momentos da vida, teria acrescentado alguma página ao seu romance, enviando-a ao imperador, feroz e desequilibrado, como presente de uma vítima aristocrática e refinada. O filósofo Sêneca enviou alguma página de moral; Petrônio, a pintura e a descrição daquele mundo terrivelmente corrupto”. O Satiricon não nos chegou íntegro e sim fragmentário. Mesmo assim, o que ficou do mesmo basta para considerar as páginas de Petrônio como um monumento literário de incomparável beleza artística e de inestimável valor para a reconstrução da vida particular da antiga Roma.
(Extraído do prefácio do prof. Giulio D. Leoni).
Obra
Sua única obra remanescente, o Satíricon, uma história mundana de entretenimento, nada fala diretamente sobre a vida do autor.
De Petrônio sobraram os livros XV e XVI de um longo romance, chamado de “Saturae” e que, sob o nome de “Satyricon” parodia os romances gregos, sentimentais e sensacionais, que estavam na moda. Em vez de heróis em extraordinárias aventuras, temos os feitos pouco recomendáveis de três jovens patifes: Encolpius, que conta a história, Asciltos e Giton. Mas, o mais conhecido episódio, que é também o menos censurável, é o famoso “Jantar de Trimalchão”, uma festa elaborada na mansão de um rico cidadão, um típico “self-made man”. O estilo varia entre uma retórica pretenciosa e uma gíria das mais vulgares. Mas, apesar de todas as críticas, em razão da língua, do humor e do realismo, o Satiricon é uma das mais notáveis obras da literatura latina. (Guido Definetti)

Matrona Ephesi / A Matrona de Éfeso
Petrônio, séc. I
Tradução de Mauri Furlan
CX. Ceterum Eumolpos, et periclitantium advocatus et praesentis concordiae auctor, ne sileret sine fabulis hilaritas, multa in muliebrem levitatem coepit iactare: quam facile adamarent, quam cito etiam filiorum obliviscerentur, nullamque esse feminam tam pudicam, quae non peregrina libidine usque ad furorem averteretur. Nec se tragoedias veteres curare aut nomina saeculis nota, sed rem sua memoria factam, quam expositurum se esse, si vellemus audire. Conversis igitur omnium in se vultibus auribusque sic orsus est:
CXI. Matrona quaedam Ephesi tam notae erat pudicitiae, ut vicinarum quoque gentium feminas ad spectaculum sui evocaret. Haec ergo cum virum extulisset, non contenta vulgari more funus passis prosequi crinibus aut nudatum pectus in conspectu frequentiae plangere, in conditorium etiam prosecuta est defunctum, positumque in hypogaeo Graeco more corpus custodire ac flere totis noctibus diebusque coepit. Sic adflictantem se ac mortem inedia persequentem non parentes potuerunt abducere, non propinqui; magistratus ultimo repulsi abierunt, complorataque singularis exempli femina ab omnibus quintum iam diem sine alimento trahebat. Adsidebat aegrae fidissima ancilla, simulque et lacrimas commodabat lugenti, et quotienscumque defecerat positum in monumento lumen renovabat.
Una igitur in tota civitate fabula erat: solum illud adfulsisse verum pudicitiae amorisque exemplum omnis ordinis homines confitebantur, cum interim imperator provinciae latrones iussit crucibus affigi secundum illam casulam, in qua recens cadaver matrona deflebat. Proxima ergo nocte, cum miles, qui cruces asservabat, ne quis ad sepulturam corpus detraheret, notasset sibi lumen inter monumenta clarius fulgens et gemitum lugentis audisset, vitio gentis humanae concupiit scire quis aut quid faceret. Descendit igitur in conditorium, visaque pulcherrima muliere, primo quasi quodam monstro infernisque imaginibus turbatus substitit; deinde ut et corpus iacentis conspexit et lacrimas consideravit faciemque unguibus sectam, ratus (scilicet id quod erat) desiderium extincti non posse feminam pati, attulit in monumentum cenulam suam, coepitque hortari lugentem ne perseveraret in dolore supervacuo, ac nihil profuturo gemitu pectus diduceret: “Omnium eumdem esse exitum et idem domicilium” et cetera quibus exulceratae mentes ad sanitatem revocantur.
At illa ignota consolatione percussa laceravit vehementius pectus, ruptosque crines super corpus iacentis imposuit. Non recessit tamen miles, sed eadem exhortatione temptavit dare mulierculae cibum, donec ancilla, vini odore corrupta, primum ipsa porrexit ad humanitatem invitantis victam manum, deinde retecta potione et cibo expugnare dominae pertinaciam coepit et: “Quid proderit, inquit, hoc tibi, si soluta inedia fueris, si te vivam sepelieris, si antequam fata poscant indemnatum spiritum effuderis? Id cinerem aut manes credis sentire sepultos? Vis tu reviviscere! Vis discusso muliebri errore! Quam diu licuerit, lucis commodis frui! Ipsum te iacentis corpus admonere debet ut vivas”. Nemo invitus audit, cum cogitur aut cibum sumere aut vivere. Itaque mulier aliquot dierum abstinentia sicca passa est frangi pertinaciam suam, nec minus avide replevit se cibo quam ancilla, quae prior victa est.
CXII. Ceterum, scitis quid plerumque soleat temptare humanam satietatem. Quibus blanditiis impetraverat miles ut matrona vellet vivere, iisdem etiam pudicitiam eius aggressus est. Nec deformis aut infacundus iuvenis castae videbatur, conciliante gratiam ancilla ac subinde dicente: Placitone etiam pugnabis amori?
Quid diutius moror? ne hanc quidem partem [corporis] mulier abstinuit, victorque miles utrumque persuasit. Jacuerunt ergo una non tantum illa nocte, qua nuptias fecerunt, sed postero etiam ac tertio die, praeclusis videlicet conditorii foribus, ut quisquis ex notis ignotisque ad monumentum venisset, putasset expirasse super corpus viri pudicissimam uxorem.
Ceterum, delectatus miles et forma mulieris et secreto, quicquid boni per facultates poterat coemebat et, prima statim nocte, in monumentum ferebat. Itaque unius cruciarii parentes ut viderunt laxatam custodiam, detraxere nocte pendentem supremoque mandaverunt officio. At miles circumscriptus dum desidet, ut postero die vidit unam sine cadavere crucem, veritus supplicium, mulieri quid accidisset exponit: nec se expectaturum iudicis sententiam, sed gladio ius dicturum ignaviae suae. Commodaret ergo illa perituro locum, et fatale conditorium familiari ac viro faceret. Mulier non minus misericors quam pudica: “Ne istud, inquit, dii sinant, ut eodem tempore duorum mihi carissimorum hominum duo funera spectem. Malo mortuum impendere quam vivum occidere.” Secundum hanc orationem iubet ex arca corpus mariti sui tolli atque illi, quae vacabat, cruci affigi.
Usus est miles ingenio prudentissimae feminae, posteroque die populus miratus est qua ratione mortuus isset in crucem.”
A Matrona de Éfeso
[…]
Entrementes, Eumolpo, defensor do arriscar-se e autor da presente reconciliação, para não deixar o riso silenciar por falta de histórias, começou a dizer muitas coisas sobre a leviandade das mulheres: quão facilmente se apaixonariam, quão rápido também se esqueceriam dos filhos, que não haveria nenhuma mulher tão pudica que não pudesse ser levada de um desejo passageiro a uma paixão arrebatadora. Não se serviria das tragédias antigas ou de nomes ilustres desde séculos, mas de um fato produzido em sua época, que nos seria apresentado se quiséssemos escutá-lo. Com os olhos e os ouvidos de todos a ele dirigidos, começou a narrar:
“Certa matrona de Éfeso possuía tanta reputação por sua pudicícia que mesmo as mulheres de povos vizinhos acorriam até ela para admirá-la. Aconteceu, pois, que esta mulher, tendo que enterrar o marido, e não satisfeita com a tradição popular de acompanhar o enterro com os cabelos desgrenhados ou bater no peito descoberto em presença da multidão, ainda acompanhou o defunto até o sepulcro, e tendo sido depositado num jazigo subterrâneo, conforme a tradição grega, pôs-se a guardar e chorar o corpo noites e dias inteiros. Assim permaneceu torturando-se e buscando a morte na abstenção de alimentos, e nem familiares nem amigos conseguiram apartá-la de lá; por fim, mesmo as autoridades públicas acabaram derrotadas e retiraram-se. Deste modo, lamentada por todos, aquela mulher de exemplo ímpar chegava já ao quinto dia sem comida. Acompanhava a infeliz uma fidelíssima escrava, que lhe emprestava suas lágrimas de luto, ao mesmo tempo em que também renovava a candeia colocada no túmulo todas as vezes que arrefecia. Apenas um e mesmo assunto era, assim, comentado em toda a cidade: de que se havia manifestado o único verdadeiro exemplo de pudicícia e de amor, e reconheciam-no homens de todas as classes.
Neste ínterim, o governador da província ordenou que alguns ladrões fossem crucificados nas proximidades do túmulo em que a matrona chorava o recente defunto. Na noite seguinte, o soldado, que vigiava as cruzes para que ninguém pudesse retirar algum corpo e sepultá-lo, notou uma luz que brilhava mais forte entre as tumbas e ouviu um gemido lastimoso. Por um defeito da espécie humana desejou saber quem ou o quê os produzia. Desceu, pois, até o sepulcro, e tendo se deparado com uma belíssima mulher, primeiramente ficou perturbado, como se diante de algo sobrenatural ou de imagens infernais; em seguida, vendo também o corpo que jazia e considerando as lágrimas e o rosto machucado pelas unhas, convenceu-se (evidentemente, do que se tratava) de que a mulher não podia suportar a perda do falecido. Levou então para o sepulcro o seu parco jantar e começou a exortar aquela mulher em prantos a não permanecer numa dor inútil, não partir o coração em gemidos vãos: “A todos cabe o mesmo fim e a mesma morada”, e outras coisas que são ditas para a saúde de espíritos enfermos.
Ela, porém, tocada por aquele consolo obscuro, feriu mais duramente o peito e arrancando cabelos lançou-os sobre o corpo que jazia. O soldado, no entanto, não recuou, mas com a mesma exortação tentou dar algum alimento à pobre mulher, até que a escrava, seduzida pelo aroma do vinho, primeiro estendeu a mão vencida à humanidade daquele tentador, em seguida, reanimada pela bebida e pelo alimento, começou a lutar contra a obstinação de sua senhora: “De que te servirá tudo isso, disse ela, se te deixares consumir pela inanição, se te sepultares viva, se entregares teu espírito inocente antes que o destino o deseje? Crês que entendem isso as cinzas ou as almas sepultas? [Eneida, IV, 35] Volta a viver! Libera-te desta ilusão feminina! Por todo o tempo que te for concedido, goza o privilégio da luz! O corpo mesmo deste que jaz deve te incitar a viver”. Ninguém ouve de má vontade quando é instigado a tomar alimentos ou a viver. Por isso, a mulher, extenuada pelos vários dias em jejum, consentiu em acabar com sua obstinação, e não menos voraz que sua escrava, que fora a primeira a ceder, saciou-se com o alimento.
Mas, já sabeis o que a saciedade humana geralmente costuma provocar. Da mesma forma carinhosa com que o soldado conseguira que a matrona desejasse viver, assim também foi seu ataque à pudicícia desta. E à casta senhora o jovem não lhe parecia em nada feio nem pouco expressivo; e a escrava, intervindo em seu favor, repetia freqüentemente: Lutarás também contra um amor desejado? [Eneida, IV, 38]
Por que retardo por mais tempo? A mulher, na verdade, também não se absteve naquela parte [do corpo], e o soldado vitorioso ganhou uma e outra. Deitaram-se, pois, juntos não só essa noite, que a fizeram de núpcias, mas a seguinte e a terceira também, com a porta do sepulcro trancada, evidentemente, de forma que se alguém tivesse ido ao túmulo, conhecidos ou desconhecidos, teria pensado que a pudicíssima esposa havia expirado sobre o corpo do marido.
Entrementes, o soldado, encantado tanto com a beleza da mulher como com seu próprio segredo, comprava tudo aquilo que de bom podia conforme suas possibilidades e, logo ao cair da noite, levava para o sepulcro. Assim, os familiares de um dos crucificados, vendo a vigilância descuidada, subtraíram o condenado durante a noite e lhe prestaram as últimas homenagens. Ora, o soldado foi enganado enquanto se corrompia. No dia seguinte, viu a cruz sem seu cadáver e, temendo a punição, expôs à mulher o que tinha acontecido: não esperaria a sentença do juiz, mas com a própria espada prescreveria a justiça à sua negligência. Que ela, pois, lhe obsequiasse um lugar onde morrer, cedendo aquele sepulcro fatal ao amante e ao esposo. A mulher, não menos compassiva que pudica, respondeu: “Isto os deuses não hão de consentir, deixar-me ver ao mesmo tempo os funerais dos dois homens mais amados para mim. Prefiro crucificar um morto que dar a morte a um vivo”. Depois destas palavras ordenou que o corpo do seu marido fosse retirado do ataúde e preso à cruz que estava vazia.
O soldado serviu-se do engenho daquela sapientíssima mulher, e no dia seguinte o povo se admirava de que forma o morto tinha voltado à cruz.”
Fonte: http://www.latim.ufsc.br/Matrona%20Ephesi.html

Puer Pergami / O Garoto de Pérgamo
Petrônio, séc. I
Tradução de Mauri Furlan
[LXXXV] "In Asiam cum a quaestore essem stipendio eductus, hospitium Pergami accepi. Vbi cum libenter habitarem non solum propter cultum aedicularum, sed etiam propter hospitis formosissimum filium, excogitavi rationem qua non essem patri familiae suspectus amator. Quotiescunque enim in convivio de usu formosorum mentio facta est, tam vehementer excandui, tam severa tristitia violari aures meas obsceno sermone nolui, ut me mater praecipue tanquam unum ex philosophis intueretur. Jam ego coeperam ephebum in gymnasium deducere, ego studia eius ordinare, ego docere ac praecipere, ne quis praedator corporis admitteretur in domum.
Forte cum in triclinio iaceremus, quia dies sollemnis ludum artaverat pigritiamque recedendi imposuerat hilaritas longior, fere circa mediam noctem intellexi puerum vigilare. Itaque timidissimo murmure votum feci et: "Domina, inquam, Venus, si ego hunc puerum basiavero, ita ut ille non sentiat, cras illi par columbarum donabo". Audito voluptatis pretio puer stertere coepit. Itaque aggressus simulantem aliquot basiolis invasi. Contentus hoc principio bene mane surrexi electumque par columbarum attuli expectanti ac me voto exsolvi.
[LXXXVI] Proxima nocte cum idem liceret, mutavi optionem et: "Si hunc, inquam, tractavero improba manu, et ille non senserit, gallos gallinaceos pugnacissimos duos donabo patienti". Ad hoc votum ephebus ultro se admovit et, puto, vereri coepit ne ego obdormissem. Indulsi ergo sollicito, totoque corpore citra summam voluptatem me ingurgitavi. Deinde ut dies venit, attuli gaudenti quicquid promiseram. Vt tertia nox licentiam dedit, consurrexi ad aurem male dormientis: "Dii, inquam, immortales, si ego huic dormienti abstulero coitum plenum et optabilem, pro hac felicitate cras puero asturconem Macedonicum optimum donabo, cum hac tamen exceptione, si ille non senserit". Nunquam altiore somno ephebus obdormivit. Itaque primum implevi lactentibus papillis manus, mox basio inhaesi, deinde in unum omnia vota coniunxi. Mane sedere in cubiculo coepit atque expectare consuetudinem meam. Scis quanto facilius sit columbas gallosque gallinaceos emere quam asturconem, et, praeter hoc, etiam timebam ne tam grande munus suspectam faceret humanitatem meam. Ergo aliquot horis spatiatus, in hospitium reverti nihilque aliud quam puerum basiavi. At ille circumspiciens ut cervicem meam iunxit amplexu: "Rogo, inquit, domine, ubi est asturco?"
[LXXXVII] Cum ob hanc offensam praeclusissem mihi aditum quem feceram, iterum ad licentiam redii. Interpositis enim paucis diebus, cum similis casus nos in eandem fortunam rettulisset, ut intellexi stertere patrem, rogare coepi ephebum ut reverteretur in gratiam mecum, id est ut pateretur satis fieri sibi, et cetera quae libido distenta dictat. At ille plane iratus nihil aliud dicebat nisi hoc: "Aut dormi, aut ego iam dicam patri". Nihil est tam arduum, quod non improbitas extorqueat. Dum dicit: "Patrem excitabo ", irrepsi tamen et male repugnanti gaudium extorsi. At ille non indelectatus nequitia mea, postquam diu questus est deceptum se et derisum traductumque inter condiscipulos, quibus iactasset censum meum: "Videris tamen, inquit, non ero tui similis. Si quid vis, fac iterum". Ego vero deposita omni offensa cum puero in gratiam redii, ususque beneficio eius in somnum delapsus sum. Sed non fuit contentus iteratione ephebus plenae maturitatis et annis ad patiendum gestientibus. Itaque excitavit me sopitum et: "Numquid vis?" inquit. Et non plane iam molestum erat munus. Vtcunque igitur inter anhelitus sudoresque tritus, quod voluerat accepit, rursusque in somnum decidi gaudio lassus. Interposita minus hora pungere me manu coepit et dicere: "Quare non facimus?" Tum ego toties excitatus plane vehementer excandui et reddidi illi voces suas: "Aut dormi, aut ego iam patri dicam".
O Garoto de Pérgamo
“Tendo sido enviado à Ásia a trabalho, por delegação de um magistrado, instalei-me numa hospedaria em Pérgamo. Como estava vivendo prazerosamente no local, não só pelo conforto dos aposentos, mas também por causa do belíssimo filho do hospedeiro, inventei um plano no qual eu não passaria por libertino ao pai da família. Todas as vezes, pois, que, durante as refeições, se comentava sobre o comportamento sexual dos jovens que são formosos, eu me exaltava tão acaloradamente, e, aparentando uma austeridade incorruptível, me recusava a ferir meus ouvidos com tal assunto obsceno, que, sobretudo a mãe passou a considerar-me como a um grande filósofo. Em pouco tempo eu começaria a levar o efebo ao colégio, eu coordenaria seus estudos, eu lhe daria aulas e o instruiria, e que nenhum caçador de corpos fosse admitido na casa.
Em certa ocasião, encontrando-nos deitados num triclínio – porque naquele dia festivo haviam reduzido as aulas e a prolongada diversão nos dera muita preguiça de ir embora –, notei que, por volta da meia-noite, o garoto ainda estava desperto. Por isso, num suave murmúrio, fiz uma prece, dizendo: “Deusa Venus, se eu puder beijar este garoto de forma que ele não perceba, amanhã lhe darei um par de pombos”. Ao ouvir o preço do meu desejo, o garoto começou a roncar. Aproximei-me, assim, do fingidor e dei-lhe alguns beijos. Satisfeito com este bom começo, levantei-me pela manhã e trouxe um lindíssimo par de pombos àquele que os esperava, cumprindo minha promessa.
Na noite seguinte, como se me apresentasse a mesma possibilidade, mudei minha oração e disse: “Se com estas indignas mãos eu puder tocá-lo sem ele sentir, darei ao complacente dois galos de briga dos mais lutadores”. Ao ouvir esta prece, o efebo se aproximou espontaneamente de mim e, creio, começou a recear que eu dormisse. Cuidei, pois, daquele espírito perturbado, e me saciei com todo seu corpo, sem, contudo, chegar ao prazer supremo. Depois, ao nascer o dia, trouxe àquele que se regozijava tudo o que lhe havia prometido. Como se nos permitisse uma terceira noite, acerquei-me ao ouvido daquele que pouco dormia, e supliquei: “ Deuses imortais, se eu conseguir ter com este que dorme uma relação sexual completa e prazerosa, em nome desta felicidade darei amanhã ao garoto um cavalo da Macedônia, com a única condição, porém, de que ele não se inteire de nada”. Nunca dormira o efebo um sono mais profundo. Assim, primeiro enchi minhas mãos em seus peitos delicados, em seguida o cubri com beijos, finalmente, realizei em um só todos os meus desejos. Pela manhã, permaneceu ocioso no quarto, apenas na expectativa do meu costume. Mas, sabeis quão mais fácil é comprar pombos e galos que um cavalo, e, por isso, também temia que um presente tão grande tornasse minha humanidade suspeita. Assim, tendo passeado por algumas horas, retornei à hospedaria não presenteando ao garoto senão um beijo. Ele, porém, olhando em torno enlaçou meu pescoço com um abraço e disse: “ Rogo-te, senhor, onde está meu cavalo?”
Embora eu tivesse, com esta decepção, impossibilitado qualquer tipo de reaproximação, pouco tempo depois voltei à licenciosidade. Passados, pois, alguns dias, e tendo-nos brindado idêntica sorte uma ocasião similar, ao ouvir o pai roncando, comecei a rogar ao efebo que se reconciliasse comigo, isto é, que consentisse em deixar-se satisfazer plenamente, e outras coisas que o desejo inflamado prescreve. Mas ele, completamente irado, não dizia outra coisa que não fosse: “Dorme, ou contarei agora mesmo ao meu pai”. Nada é tão difícil que a audácia não consiga. Enquanto dizia: “Chamarei meu pai”, acerquei-me sorrateiramente ao pouco resistente e com ele alcancei o prazer. Ele, porém, não desagradado com minha maldade, depois de queixar-se por muito tempo de ter sido enganado, e escarnecido e ridicularizado entre seus companheiros, aos quais elogiara minha classe, disse: “Verás, pois, como não sou igual a ti. Se queres, podes fazê-lo de novo”.
Eu, na verdade, uma vez dirimida toda decepção, congracei-me com o garoto, e, em virtude da relação sexual com ele, caí no sono. Mas o efebo, em idade de pleno desenvolvimento e com ardentes desejos de experimentar, não ficou contente com a repetição. Por isso, despertando-me entorpecido, disse-me: “Não queres mais?”. E sua oferta já não era em nada penosa. De algum modo, pois, entre respirações ofegantes e suores conhecidos, encontrou o que buscava, e eu, fatigado, caí novamente no sono com satisfação. Tendo passado menos de uma hora, começou a pungir-me com sua mão e a dizer: “Por que não repetimos?”. Então, eu, tantas vezes despertado, irritei-me enormemente e lhe respondi com suas palavras: “Dorme, ou contarei agora mesmo ao teu pai”.
Fonte: http://www.latim.ufsc.br/Puer%20Pergami.html




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Apuleio
A crise ideológica de Roma no século dos Antoninos, quando o ceticismo cortesão se entrelaçou ao crescente influxo dos cultos orientais, serviu de pano de fundo à elaboração da obra de Apuleio, notável figura da literatura, da retórica e da filosofia platônica de sua época.
Lúcio Apuleio nasceu em Madaura, na Numídia (moderna Argélia), por volta do ano 124. Educado em Cartago e Atenas, viajou pelo Mediterrâneo, interessando-se por ritos de iniciação como os associados ao culto da deusa egípcia Ísis. Versátil e familiarizado com os autores gregos e latinos, ensinou retórica em Roma antes de regressar à África para casar-se com uma rica viúva, cuja família o acusou de ter recorrido à magia a fim de conquistar seu afeto. Para defender-se de tal acusação escreveu a Apologia (173), obra da qual emanam as informações disponíveis sobre sua vida.
Escreveu ainda diversos poemas e tratados, entre os quais Florida, coletânea de trabalhos de eloqüência, mas a obra que lhe deu fama foi a narrativa em prosa em 11 livros a que chamou Metamorfoses e se tornou conhecida como O asno de ouro. São aí relatadas as aventuras do jovem Lúcio, que é transformado por magia em burro e só recupera a forma humana graças à intervenção de Ísis, a cujo serviço se consagra. O episódio mais destacado dessa obra-prima de Apuleio -- o único romance da antiguidade a chegar completo aos nossos dias -- é a bela fábula de "Amor e Psiquê", que pode ser interpretada como narração puramente estética ou, então, como alegoria da união mística. O episódio, aliás, destoa do estilo do romance em geral, pois este relaciona cenas grotescas, terrificantes, obscenas e, em parte, deliberadamente absurdas.
O tema de "Amor e Psiquê" foi retomado por muitos escritores, entre os quais, no século XIX, os poetas ingleses William Morris e Robert Bridges. Outras passagens de O asno de ouro reapareceram no Decameron, de Giovanni Boccaccio, no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, e no Gil Blas de Alain Le Sage. Apuleio morreu em Cartago, provavelmente após o ano 170.
Fonte: http://encfil.goldeye.info/apuleio.htm

Estudo acerca de fragmentos de Amor e Psiquê em PDF:
Artigo sem assinatura de autoria da Revista CienteFico, ano III, vol. 1, Salvador, Janeiro-Junho, 2003. - download pdf
Estudo acerca da narrativa de Apuleio em O Asno de Ouro em PDF:
A Festa e o Riso na Narrativa Apuleiana, de prof.ª dr.ª Luciana Munhoz de Omena, revista Fatos e Versões, fac. católica de Uberlandia - downsload pdf

O Asno de Ouro: Conto de Amor e Psique
por: Andre Gazola,
fonte: http://www.lendo.org/o-asno-de-ouro-conto-de-amor-e-psique/
O conto de Amor e Psique faz parte do livro de Apuleio publicado no séc. II a.C. que narra a história de um homem transformado em asno que perambula pelo mundo, ouvindo as histórias transcritas no livro, em forma de contos.
Psique é uma jovem belíssima, que encanta homens de todos os lugares, que ofusca a beleza de suas irmãs e que é considerada a encarnação de Vênus na terra, por ser tão bonita.
Esse título desperta a ira e a inveja da verdadeira Vênus, que não adimite ser superada por uma simples mortal.
Assim ela manda seu filho Cupido, deus do Amor, punir a jovem:
Meu filho, eu te imploro, em nome de minha ternura, pelas leves injúrias que tu fazes, pelo fogo penetrante com que consomes os corações, vinga tua mãe. Mas vinga plenamente! Que essa beleza audaciosa seja punida. É a graça que te peço e tu precisas me conceder: antes de tudo, que ela se inflame de uma paixão sem limites por alguém da escória; um miserável sem honra, saúde, chama ou casa, e que a fatalidade rebaixou ao último degrau de abjeção possível sobre a terra.
Psique passou anos sem conseguir um marido, até que seu pai, temendo intervenção divina, foi consultar o oráculo para saber o que acontecia. A resposta foi categórica:
Que com seus belos adornos a virgem abandonada
Espere sobre uma rocha um casamento fúnebre.
O esposo não recebeu o dia de um mortal:
Ele tem a crueldade, as asas do abutre;
Ele destroça corações, e tudo que respira
Sucumbe, gemendo, sob tirânico império.
Os deuses, no Olimpo, arrastam seus grilhões.
E o Estige contra ele defende mal os infernos.
Com muita tristeza foi seguida a prescrição do oráculo, Psique foi levada a uma rocha no cume de escarpadas montanhas e lá deixada, para que a lúgubre união ocorresse.
Logo, pelo sopro de Zéfiro, ela foi levada a um vale florido, onde encontrou um palácio maravilhoso, onde magicamente foi lhe servida uma refeição soberba e preparado um banho revigorante. Todas as riquezas e tesouros do mundo estavam ali para ela.
No entanto, ela estava só. Onde estaria o esperado marido?
À noite então, ao deitar-se em sua cama de princesa, sente que não está só. Seu marido, aquele que ela não pode ver em meio a penumbra, surge para acompanhá-la.
Daquele dia em diante sua vida seria assim, em meio a todas as riquezas mundanas ela receberia seu prometido, sem poder vê-lo.
No início tudo era um mar de rosas, mas com o tempo ela sentia-se sozinha, tinha saudades de suas irmãs e pais, que também não aguentavam a perda de Psique.
O tempo passou e finalmente as irmãs, levadas por Zéfiro, puderam visitar Psique. Ela lhes mostrou como era sua vida agora, falou sobre seu marido e fez invejar toda a opulência em que vivia. Isso fez com que, assim que voltassem para casa, começassem a traçar um plano com objetivo de arruinar a vida daquela que, segundo elas, não merecia tamanhos privilégios. A inveja havia tomado suas mentes.
O misterioso marido alertava-a todas as noites, para que ela não ouvisse suas irmãs, pois assim seu casamento e o amor que sentiam um pelo outro acabaria.
Sem ouvi-lo, Psique, durante a noite, tenta assassinar o esposo com um punhal. Mas ao vê-lo, estremece ao saber que aquele a quem amava era nada menos do que Cupido, o deus do Amor, a mais bela das criaturas.
Agora seu casamento estava acabado e os dois seriam punidos com a ira de Vênus.
No entanto, Psique estava motivada a desafiar até mesmo a ira de sua rival para ser feliz com seu amado. Mas como ela poderia suplantar o poder de uma deusa da magnitude de Vênus?
Como terminará a história de Psique?





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Sêneca - Lucius Aneus Seneca (4a.C. - 65d.C.)
Lucius Aneus Sêneca nasceu em Córdoba, na Espanha, no ano de 4 a.C. Conhecido como Sêneca o Jovem, era filho de Sêneca filho de Lúcio Aneu Sêneca o Velho, célebre orador. Devido a sua origem ilustre foi enviado a Roma para estudar oratória e filosofia.

Por problemas de saúde viajou para o Egito, onde ficou até se curar (31). Quando regressou a Roma iniciou sua carreira como orador e advogado, participando ativamente da vida política e logo chegou ao Senado.

Envolvido em um processo por causa de uma ligação com Júlia Livila, sobrinha do imperador Cláudio, foi exilado na Córsega durante os anos de 41 a 49. No exílio dedicou-se aos estudos e redigiu vários de seus principais tratados filosóficos, entre eles Consolationes, em que expôs os ideais estóicos clássicos de renúncia aos bens materiais e busca da tranqüilidade da alma mediante o conhecimento e a contemplação.
Perdoado por interferência de Agripina, sobrinha do imperador, voltou para Roma no ano de 49 e, no ano seguinte, foi nomeado pretor. Com a morte de Cláudio em 54 escreveu a obra-prima das sátiras romanas, Apocolocyntosis divi Claudii, contra o ex-imperador. Com Nero, filho de Agripina, nomeado imperador, tornou-se seu principal conselheiro e orientador político.
Com o avanço dos delírios de Nero e a execução de Agripina no 59, Sêneca, depois de condescender um pouco com os maus instintos de Nero, retirou-se da vida pública em 62, passando a se dedicar exclusivamente a escrever e defender sua filosofia. No ano de 65 foi acusado de participar na conjuração de Pisão, recebendo de Nero a ordem de suicídio, que executou em Roma, no mesmo ano.
Sêneca escreveu oito tragédias, que foram uma espécie de modelo no Renascimento e inspirou o desenvolvimento da tragédia na Europa. No entanto, seu maior sucesso foram os seguintes tratados de moral:
• Da Brevidade da Vida;
• Da Vida feliz;
• Da Clemência;
• Dos Benefícios; etc.
Essas obras, desenvolvidas de maneira agradável, são consideradas as máximas da filosofia estóica (filosofia caracterizada, sobretudo, pela consideração do problema moral, constituindo a ataraxia o ideal do sábio).
Fonte: http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundocultural.com.br/literatura1/latina/seneca.htm

Estudo acerca da obra de Sêneca em PDF:
Os Preceitos Morais de Sêneca na Formação do Homem Virtuoso, por Miriam Maria Bernardi Miguel - UEL - download pdf

A MEDICINA DA ALMA

Por G. J.Ballone

Em 41 dC foi desterrado para a Córsega, sob acusação de adultério, supostamente praticado com Júlia Livila, sobrinha do novo imperador Cláudio César Germânico. Na Córsega, Sêneca passaria quase dez anos em grande privação material.
Em 49 d.C., Messalina, primeira esposa do imperador Cláudio e responsável pelo exílio de Sêneca, caiu em desgraça e foi condenada à morte. O imperador Cláudio casou-se com Agripina e esta mandou chamar Sêneca para educar seu filho Nero. Em 54 d.C., quando Nero se torna imperador, Sêneca passa a ser seu principal conselbeiro. Esse período estende-se até 62 d.C., ano em que sua estrela começa a perder o brilho junto ao despótico soberano. Sêneca deixa a vida pública e sofre a perseguição de Nero, que acaba por condená-lo ao suicídio, em 65 d.C.
Não foi a lógica dos estóicos gregos, nem mesmo sua teoria do mundo físico que, sobretudo, atraiu o interesse dos estóicos romanos. Foi antes sua moral da resignação, principalmente nos aspectos religiosos que ela permitia desenvolver.
O primeiro representante do estoicismo romano, sem contar as idéias estóicas que se encontram no ecletismo de Cícero, foi Lucius Annaeus Seneca, nascido em Córdoba (Espanha), aproximadamente quatro anos antes da era cristã. Era filho de Annaeus Seneca (55 a.C.-,39 a.D.) - conhecido como Sêneca, o Velho -, que teve renome como retórico e do qual restou uma obra escrita (Declamações). O futuro filósofo Sêneca foi educado em Roma, onde estudou a retórica ligada à filosofia. Em pouco tempo tornou-se famoso como advogado e ascendeu politicamente, passando a ser membro do senado romano e depois nomeado questor.
O triunfo político, no entanto, não se fazia sem conflitos e o renome de Sêneca suscitou a inveja do imperador Calígula, o qual pretendeu desfazer-se dele pelo assassinato. Sêneca, contudo, foi salvo por sua frágil saúde; julgava-se que ele morreria muito cedo, de morte natural. O próprio Calígula foi quem faleceu logo depois e Sêneca pôde continuar vivendo em relativa tranqüilidade.
Não duraria esse período muito tempo. Em 41 dC foi desterrado para a Córsega, sob acusação de adultério, supostamente praticado com Júlia Livila, sobrinha do novo imperador Cláudio César Germânico. Na Córsega, Sêneca passaria quase dez anos em grande privação material.
Em 49 d.C., Messalina, primeira esposa do imperador Cláudio e responsável pelo exílio de Sêneca, caiu em desgraça e foi condenada à morte. O imperador Cláudio casou-se com Agripina e esta mandou chamar Sêneca para educar seu filho Nero. Em 54 d.C., quando Nero se torna imperador, Sêneca passa a ser seu principal conselbeiro. Esse período estende-se até 62 d.C., ano em que sua estrela começa a perder o brilho junto ao despótico soberano. Sêneca deixa a vida pública e sofre a perseguição de Nero, que acaba por condená-lo ao suicídio, em 65 d.C.
As Cartas Morais de Sêneca, escritas entre os anos 63 e 65 e dirigidas a Lucílio, misturam elementos epicuristas com idéias estóicas e contêm observações pessoais, reflexões sobre a literatura e crítica satírica dos vícios comuns na época. Entre os seus doze Ensaios Morais, destacam-se Sobre a Clemência, cautelosa advertência a Nero sobre os perigos da tirania, Da Brevidade da Vida, análise das frivolidades nas sociedades corruptas, e Sobre a Tranqüilidade da Alma, que tem como assunto 0 problema da participação na vida pública. As Questões Naturais expõem a física estóica enquanto vinculada aos problemas éticos. Além dessas obras propriamente filosóficas, Sêneca escreveu ainda nove tragédias e uma obra-prima da sátira latina, Apolokocintosis, que ridiculariza Nero e suas pretensões à divindade.
Todas essas obras revelam que Sêneca foi, sobretudo, um moralista. A filosofia é para ele uma arte da ação humana, uma medicina dos males da alma e uma pedagogia que forma os homens para o exercício da virtude. O centro da reflexão filosófica deve ser, portanto, a ética: e a fisica e a lógica devem ser consideradas como seus prelúdios.
Sua concepção do mundo repete as idéias dos estóicos gregos sobre a estrutura puramente material da natureza. Contudo, a razão universal dos gregos Cleanto e Zenão transforma-se em Sêneca num deus pessoal, que é sabedoria, previsão e vigilância, sempre em ação para governar o mundo e realizar uma ordem maravilhosa.

SÊNECA A SERENO (cartas)
Eis que faz muito tempo, por Hércules, que eu me pergunto a mim mesmo sem nada dizer, ó Sereno, com o que poderia comparar uma semelhante disposição de espírito; e o que me parecia assemelhar-lhe mais é o estado daquelas pessoas que convalescem de uma longa e grave enfermidade, e sentem ainda de tempos em tempos alguns calafrios e leves indisposições; e que, uma vez livres dos últimos traços de seu mal, continuam a se inquietar com perturbações imaginárias, a se fazer, ainda que restabelecidas, tomar o pulso pelo médico e consideram como febre a menor impressão de calor. Sua saúde, ó Sereno, não deixa nada mais a desejar, mas aquelas pessoas não estão habituadas novamente à saúde: assim, ainda se vê estremecer e agitar-se a superfície de um mar calmo, quando a tempestade acabou de se aplacar.
Assim também os procedimentos enérgicos nos quais encontramos auxílio anteriormente não são mais próprios: tu não precisas mais nem lutar contra ti nem te censurar nem te atormentar. Estamos na etapa final: tem fé em ti mesmo e convence-te de que segues o bom caminho, sem te deixares desviar pelas inúmeras pegadas dos viajantes extraviados à direita ou à esquerda e dos quais alguns se desgarram nas proximidades da estrada.
O objeto de tuas aspirações é, aliás, uma grande e nobre coisa, e bem próxima de ser divina, pois que é a ausência da inquietação. Os gregos chamam este equilíbrio da alma de "euthymia" e existe sobre este assunto uma muito bela obra de Demócrito. Eu o chamo "tranqüilidade", pois é inútil pedir palavras emprestadas para nosso vocabulário e imitar a forma destas mesmas: é a idéia que se deve exprimir, por meio de um termo que tenha a significação da palavra grega, sem no entanto reproduzir a forma.
Vamos, pois, procurar como é possível à alma caminhar numa conduta sempre igual e firme, sorrindo para si mesma e comprazendo-se com seu próprio espetáculo e prolongando indefinidamente esta agradável sensação, sem se afastar jamais de sua calma, sem se exaltar, nem se deprimir. Isto será tranqüilidade. Procuremos, de um modo geral, como alcançá-la: tu tomarás, como entenderes, tua parte do remédio universal.
5. Mas ponhamos desde logo o mal em evidência, em toda a sua diversidade: cada qual nele reconhecerá o que lhe diz respeito. Ao mesmo tempo, dar-te-ás conta de tudo quanto tens menos a sofrer deste descontentamento de ti, do que aqueles que, estando ligados por uma profissão de fé faustosa e ornando, com nome pomposo, a miséria que os consome, teimam no papel que escolheram por questão de honra, mais que por convicção.

Para todos esses doentes o caso é o mesmo: tanto tratando-se daqueles que se atormentam por uma inconstância de humor, seus desgostos, sua perpétua versatilidade e sempre amam somente aquilo que abandonaram, como aqueles que só sabem suspirar e bocejar. Acrescenta-lhes aqueles que se viram e reviram como as pessoas que não conseguem dormir, e experimentam sucessivamente todas as posições até que a fadiga as faça encontrar o repouso. Depois de terem modificado cem vezes o plano de sua existência, eles acabam por ficar na posição onde os surpreende não a impaciência da variação mas a velhice, cuja indolência rejeita as inovações. Ajunta ainda, aqueles que não mudam nunca, não por obstinação, mas por preguiça, e que vivem não como desejam, mas como sempre viveram.

Há, enfim, inúmeras variedades do mal, mas todas conduzem ao mesma resultado: o descontentamento de si mesmo. Mal-estar que tem por origem uma falta de equilíbrio da alma e das aspirações tímidas ou infelizes, que não se atrevem a tanto quanto desejam, ou que se tenta em vão realizar e pelas quais nos cansamos de esperar. É uma inconstância, uma agitação perpétua, inevitável, que nasce dos caracteres irresolutos. Eles procuram por todos os meios atingir o objeto de seus votos: preparam-se e constrangem-se a práticas indignas e penosas. E, quando seu esforço não é recompensado, sofrem não de ter querido o mal, mas de o ter querido sem sucesso.

Desde então, ei-los presos, ao mesmo tempo, do arrependimento de sua conduta passada e do temor de nela recair, e pouco a pouco se entregam à agitação estéril de uma alma que não encontra para suas dificuldades nenhuma saída, porque ela não é capaz nem de mandar nem de obedecer às suas paixões; entregam-se à aflição de uma vida que não chega a ter expansão e, enfim, a esta indiferença de uma alma paralisada no meio da ruína de seus desejos.
Tudo isto se agrava quando, superada uma tão odiosa angústia, nos refugiamos no ócio e nos estudos solitários, nos quais não se saberá resignar uma alma apaixonada da vida pública, e paciente de atividade, dotada de uma necessidade natural de movimento e que não encontra em si mesma quase nenhum consolo. De sorte que, uma vez atraídos pelas distrações que as pessoas atarefadas devem mesmo às suas ocupações, não mais suportamos nossa casa, nosso isolamento e as paredes de nosso quarto; e nos vemos com amargura abandonados a nós mesmos.
Daí este aborrecimento, este desgosto de si, este redemoinho de uma alma que não se fixa em nada, esta sombria impaciência que nos causa nossa própria inércia, principalmente quando coramos ao confessar as razões, e o respeito humano recalca em nós nossa angústia: estreitamente encerradas numa prisão sem saída, nossas paixões aí se asfixiam. Daí a melancolia, a languidez e as mil hesitações de uma alma indecisa, que a semi-realização de suas esperanças prolonga na ansiedade e seu malogro na desolação; daí esta disposição para amaldiçoar seu próprio repouso, para lamentar-se por não ter nada a fazer e para invejar furiosamente todos os sucessos do próximo (pois nada alimenta a inveja como a preguiça, e se desejaria ver todo o mundo malograr, porque não se soube obter êxito).
Depois deste despeito pelos sucessos dos outros e deste desespero de não ser bem sucedido, começa o homem a se irritar contra a sorte, a se queixar do século, a se recolher cada vez mais em seu canto e aí se abriga sua dor no desânimo e no aborrecimento. A alma humana é, com efeito ou instinto, ativa e inclinada ao movimento. Toda ocasião para se despertar e para se afastar lhe é agradável. Certas feridas provocam a mão que as irritará e se fazem raspar com prazer: o sarnento deseja o que irrita sua sarna. Pode-se dizer o mesmo destas almas, em que as paixões, tanto como as úlceras malignas, consideram um prazer atormentar-se e sofrer.
Não existem igualmente prazeres corporais que se reforçam com uma sensação dolorosa, como quando uma pessoa se vira sobre o lado que ainda não está fatigado e se agita sem cessar procurando uma posição melhor? Deitamos ora de bruços ora de costas, experimentando sucessivamente todas as posições possíveis. E não é isso o natural da doença, nada suportar por muito tempo e tomar a mudança por um remédio?
Dai aquelas viagens que se empreendem sem nenhum intuito, aquelas voltas a esmo ao longo das costas, e esta inconstância sempre inimiga da situação presente que alternativamente experimenta o mar e a terra: "Depressa, vamos a Calábria". Logo se está cansado das doçuras da civilização. "Visitemos as regiões selvagens, exploremos o Brútio (Calábria) e as florestas da Lucânia." Todavia, nestas solidões, suspira-se por qualquer coisa que dê descanso aos olhos fatigados pelo rude aspecto de tantos lugares áridos. "A caminho de Tarento, com seu porto e seu inverno tão doce, e para esta opulenta região que seria capaz de sustentar sua população de outrora! Mas não, retornemos a Roma: faz muito tempo que meus ouvidos estão privados dos aplausos e do barulho do circo e tenho desejo de agora ver correr sangue humano."
Assim como as viagens se sucedem, um espetáculo substitui o outro, e como diz Lucrécio: "Assim cada um foge sempre de si mesmo". Mas para que fugir se não nos podemos evitar? Seguimo-nos sempre, sem nos desembaraçarmos desta intolerável companhia.
Assim, convençamo-nos bem de que o mal do qual sofremos não vem dos lugares, mas de nós mesmos, que não temos força para nada suportar: trabalho, prazer, nós mesmos; qualquer coisa do mundo nos parece uma carga. Isto conduziu muitas pessoas ao suicídio: porque suas perpétuas variações as faziam dar voltas, indefinidamente, no mesmo círculo, e elas consideravam impossível toda novidade. Assim tomaram desgosto pela vida e pelo mundo e sentiram aumentar em si o clamor furioso dos corações: "Mas como, sempre a mesma coisa?"

DOUTRINA PESSOAL DE SÊNECA
Se não me engano, Cúrio Dentato dizia que ele preferia estar morto a viver morto: o pior dos males não é suprimir-se dos vivos, antes de morrer? Mas façamos assim: se pertencemos a um tempo no qual a vida política é difícil de ser praticada, tornemos mais ampla a parte do ócio e do estudo: como o marinheiro nas travessias perigosas, multipliquemos as escalas; e, sem esperar que os afazeres nos abandonem, desprendemo-nos deles espontaneamente.
Devemos examinar se nossas disposições naturais nos tornam mais aptos a ação ou aos trabalhos sedentários e à contemplação pura; e inclinar-nos do lado para o qual nosso gênio nos conduz. Sócrates arrancou com viva força Éforo do fórum, quando se convenceu de que este era mais indicado para escrever história. Jamais um talento que se força produz o que se esperava: e forçar a natureza é sempre inútil.
Em seguida, devemos avaliar nossas próprias empresas e colocar na balança nossas forças e nossos projetos. Com efeito, devemos sentir-nos sempre superiores à tarefa que realizamos: um fardo desproporcionado só pode esmagar quem o carrega. De outro lado, há ocupações que, sem terem muita importância, estão cheias de mil complicações: deve-se evitá-las por causa dos apuros sem fim, aos quais elas darão origem. Não nos aventuremos jamais a um negócio em que poderíamos correr o risco de ficar sem saída: aceitemos aqueles nos quais estamos seguros, ou que pelo menos temos esperanças de terminar: deixemos aqueles trabalhos que se complicam quanto mais se trabalha neles e que não podem ser interrompidos quando se quer.
Deve-se finalmente escolher com cuidado os homens: ver se eles merecem que lhes consagremos uma parte de nossa existência e se são gratos ao sacrifício de tempo que lhes fazemos; pois há os que chegam a considerar os serviços que lhes prestamos como um benefício para nós mesmos.

OS ESTÓICOS
Depois de Cícero ter iniciado a história da filosofia em língua latina, formulando sua síntese eclética, o movimento de idéias mais importante dentro do pensamento romano foi o desenvolvimento das doutrinas estóicas, também originárias da Grécia, como o epicurismo e o ecletismo. A escola estóica foi fundada por Zenão de Cício (336-264 aC).
O estoicismo grego propõe uma imagem do universo segundo a qual tudo o que é corpóreo é semelhante a um ser vivo, no qual existiria um sopro viral (pneuma), cuja tensão explicaria a junção e interdependência das partes. No seu conjunto, o universo seria igualmente um corpo vivo provido de um sopro ígneo (sua alma), que reteria as partes e garantiria a coesão do todo. Essa alma é identificada por Zenão como sendo a razão e, assim sendo, o mundo seria inteiramente racional. A Razão Universal ou Logos, penetra em tudo e comanda tudo, tendendo a eliminar todo tipo de irracionalidade, tanto na natureza, quanto na conduta humana, não havendo lugar no universo para o acaso ou a desordem.
A racionalidade do processo cósmico se manifesta na idéia de ciclo, que os estóicos adotam e defendem com rigor. Herdeiros do pensamento de Heráclito de Éfeso (séc. VI aC), os estóicos concebem a história do mundo como sendo feita por uma sucessão periódica de fases, culminando na absorção de todas as coisas pelo Logos, que é Fogo e Zeus. Completado um ciclo, começa tudo de novo: após a conflagração universal, o eterno retorno.
Tudo o que existe é corpóreo e a própria razão identifica-se com algo material, o fogo. O incorpóreo reduz-se a meios inativos e impassíveis, como o espaço e o vazio; ou então àquilo que se pode pensar sobre as coisas, a idéia, mas não às próprias coisas.
Nesse universo corpóreo e dirigido pelo fatalismo dos ciclos sempre idênticos, tudo existe e acontece segundo predeterminação rigorosa, porque racional. Governada pelo Logos, a natureza é por isso justa e divina e os estóicos identificam a virtude moral com o acordo profundo do homem consigo mesmo e, através disso, com a própria natureza, a qual é intrinsecamente razão. Esse acordo consigo mesmo é o que Zenão chama "prudência" e dela decorrem todas as demais virtudes, como simples aspectos ou modalidades.
As paixões são consideradas pelos estóicos como desobediências à razão e podem ser explicadas como resultantes de causas externas às raízes do próprio indivíduo; seriam, como já haviam mostrado os cínicos, devidas a hábitos de pensar adquiridos pela influência do meio e da educação. É necessário ao homem desfazer-se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir a Deus e à razão Universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer circunstância, mesmo na dor e na adversidade.

Ballone GJ - Sêneca, in. PsiqWeb - Psiquiatria Geral - Geraldo J. Ballone, Internet, 2001, disponível em http://gballone.sites.uol.com.br/hlp/seneca.html


Resumo de A Vida Feliz, de Sêneca, por : http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo_c_566.html
Em seu texto, Sêneca discorre sobre o problema da felicidade e o que faz uma vida feliz. Apresenta meios para resolver o problema, ou seja, para definir uma vida feliz e chegar à felicidade.
O primeiro preceito é não ir pelo mesmo caminho que todos vão, ou seja, negar a concepção da felicidade do senso comum. Sêneca insiste em dizer que o vulgo sempre erra, pois a massa segue o conformismo e não usa a razão. Portanto, o único caminho a seguir é afastado da multidão.
Então, Sêneca critica a avaliação de alguém pelas aparências, estabelecendo outro critério para julgar: apreciar a alma. Com isso, ele se declara arrependido de seu passado de superficialidade e ostentação, arrependido de tudo o que fez, falou e cobiçou, pois tudo isso só lhe trouxe a inveja dos outros e nenhuma paz interior.
Em seguida, Sêneca apresenta um esclarecimento de caráter metodológico: explica que as opiniões expostas no texto são dele somente, e não se associa a nenhum dos grandes estóicos. Prossegue declarando seu pressuposto teórico que, como todos os estóicos, segue a natureza e defende que é errado afastar-se dela e desobedecer suas leis; pois o humano faz parte da physis, e uma vida feliz é uma vida ajustada com a natureza.
Essa vida adequada à natureza não é propícia à irritação e insatisfação. Sêneca contrapõe a tranquilidade da alma, consequência de se viver de acordo com a natureza, aos prazeres frívolos que são fugazes e não dão equilíbrio nem paz. A natureza, para Sêneca, gera uma disposição, uma racionalidade, que nos permite afirmar que há em todas as coisas uma certa ordenação. Portanto, viver de acordo com a natureza, segundo Sêneca (viver racionalmente, pois a razão está contida na natureza), é contentar-se com a condição em que se nasce, sem cobiçar um lugar ao qual não se pertence, uma aptidão que não se tem. Seguir a ordenação que há na natureza universal é se deixar guiar pela razão, que faz parte dela, e não os impulsos, ansiando por um lugar que não lhe cabe. Então, ao definir mais profundamente o homem feliz, expõe um resumo dos princípios estóicos: o sumo bem é uma virtuosa vontade; o homem não se deve deixar abater por sua sorte, mas aceitá-la, desdenhando os prazeres e tudo o que não se consegue alcançar por si próprio. Exprimindo-se de outra maneira, Sêneca afirma que o único mal é a desonra; com isso ele quer dizer que o único mal é não ser fiel a si mesmo e às suas convicções, ou seja, à virtude. Uma vontade sujeita à virtude, e não ao prazer, deve experimentar uma tranquilidade perene, liberta da escravidão de impulsos e caprichos. A única forma de se libertar de tal escravidão é a indiferença frente à sorte. Para tal, deve-se deixar que a razão subjugue os desejos e receios. Já que a razão é vital para a felicidade, pedras e bestas (e pessoas obtusas) não podem ser consideradas felizes. A felicidade, para Sêneca, decorre da serenidade; logo, a excitação é considerada fonte de distúrbios da alma e deve ser evitada. Os prazeres da alma devem ser ajuizados e puros, deve-se relembrar os prazeres do passado, pois lembrar é viver de novo (sem as pressões e cobranças da época), e com isso organizar as esperanças e tomar consiência dos limites do que se considerava bom e importante (ou seja, evoluir).

DA VIDA FELIZ, Sêneca (trechos)
A Felicidade e a Opinião da Multidão
Toda a gente, meu irmão Gallion, deseja uma vida feliz; mas quando se trata de ver claramente aquilo que a torna assim, é a confusão total. E não é fácil alcançar a felicidade, mais ainda porque no caso de nos termos enganado no caminho, nos afastamos tanto mais dela quanto para ela nos precipitamos com maior ardor. Quando o caminho conduz em sentido contrário, o nosso próprio impulso aumenta a distância.
É preciso, pois, começar por definir bem o que é o objecto do nosso desejo, e examinar depois com cuidado o modo mais rápido de nos dirigirmos para ele; se a via é correcta, dar-nos-emos conta, durante a própria viagem, dos progressos feitos todos os dias, e da nossa aproximação de um fim para o qual nos impele o desejo natural. Enquanto errarmos por aqui e por ali sem guia, obedecendo aos rumores e aos gritos discordantes de homens que nos chamam em direcções opostas, usaremos uma vida queos nossos enganos tornam breve, mesmo se trabalharmos dia e noite para cultivar o bem.
Determinemos pois o objectivo para que tendemos e os meios de o alcançar; e não o façamos sem o apoio de um homem experimentado, que conheça bem o caminho no qual avançamos; pois nesta viagem, a situação não é exactamente a mesma que sucede nas outras: nestas últimas há um caminho conhecido, interrogamos os habitantes e eles não nos deixam perder; mas aqui o caminho mais bem assinalado e mais frequentado é também o mais enganador. É por isso que a primeira coisa a fazer é não seguir, como uma ovelha, o rebanho das pessoas que nos precedem, pois nesse caso encaminhar-nos-íamos, não para onde é necessário ir, mas para onde vai a multidão.
No entanto, nada nos arrasta mais para grandes males do que a conformação à voz pública, o pensar que o melhor está ligado ao assentimento do grande número, de tal modo que vivemos, não de acordo com a razão, mas por espírito de imitação. Daí resulta esse amontoado de pessoas que desabam umas sobre as outras. Um tal estado de coisas surge quando os homens estão demasiado apinhados e se comprimem mutuamente, e ninguém cai sem arrastar outro na sua queda; os primeiros são a perda daqueles que os seguem. É isso que vemos acontecer na vida: ninguém se engana apenas por si próprio, sendo a causa e o instigador do engano dos outros.
É prejudicial ligarmo-nos àqueles que vão à frente. Como cada um prefere acreditar nos outros, mais do que julgar, não se julga nunca, acredita-se sempre [de acordo com as notas de João Forte sobre este texto existe nesta passagem, no original, uma distinção entre o acto de julgar (judicare) e acreditar (credere) que, apesar de inovadora no contexto romano relacionava-se com a oposição que Platão determinava entre ciência e opinião], e o erro, ao transmitir-se de mão em mão faz-nos rodopiar e depois cair; perecemos seguindo o exemplo dos outros. Curar-nos-emos na condição de nos separarmos da multidão; porque hoje a multidão toma resolutamente posição contra a razão e defende aquilo que causa a sua infelicidade.
Acontece assim aquilo que se vê nos comícios, onde os que designaram os praetores se espantam de os ver eleitos, quando vento da popularidade começa a soprar noutra direcção. As mesmas coisas são objecto da nossa aprovação e da nossa censura: tal é o resultado de todo o juízo em que se segue a opinião da maioria.
No que diz respeito à vida feliz, não se pode responder como no voto por separação: "Este partido parece-me mais numeroso", pois, precisamente por isso, é o pior. As coisas humanas não vão tão bem que as melhores soluções agradem à maioria: a opinião da multidão é indício do pior. Procuremos, pois, aquilo que é o melhor e não o que é mais comum, aquilo que nos colocará na posse de uma felicidade eterna e não o que tem a aprovação do vulgar, que é o pior intérprete da verdade; ora, no vulgar, alinham tanto as pessoas com clâmides [capa curta de origem grega] como as pessoas coroadas, pois não olho a cor das vestes com que os corpos estão cobertos; quando se trata de avaliar um homem, não confio nos meus olhos; tenho, para distinguir o verdadeiro do falso, um melhor e mais seguro critério; o bem da alma tem de ser descoberto pela alma.
Infligir-se-ía a si própria tais torturas que confessaria a verdade declarando: "Tudo o que fiz até agora preferia não o ter feito, quando penso em tudo o que disse, invejo os mudos; considero tudo o que desejei uma maldição dos meus inimigos; tudo o que temi, ó bons deuses, era bem mais suportável do que aquilo que desejei! Tive contas a ajustar com muitas pessoas, mas refiz amizade com elas (se é que é possível um acordo com pessoas malévolas); mas ainda não sou amigo de mim mesmo.
Consagrei todos os meus cuidados a sair da multidão e a fazer-me notar por um mérito qualquer. Que fiz senão expôr-me aos ataques e mostrar à malevolência o local onde pode morder? Vês as pessoas que elogiam a eloquência, que se ligam à riqueza, que louvam o crédito, que exaltam o poder? Todos são inimigos, ou, o que acaba por ser o mesmo, podem sê-lo: os admiradores são outros tantos invejosos.
Definição da Verdadeira Felicidade
Procuro de preferência um bem que possa sentir a um que possa expôr; aquilo que se vê, aquilo que atrai os olhares, aquilo que se aponta ao outro com uma admiração plena de surpresa, isso brilha por fora, mas por dentro é apenas miséria. procuremos um bem que não se afirme pela sua aparência, mas que seja sólido, constante, com uma beleza interna e oculta; desenterremo-lo.
Esse bem não está longe, encontrá-lo-emos, basta saber onde estender as mãos; mas agora estamos como no meio das trevas, passando pelos objectos próximos sem os ver, chocando até com aqueles que desejamos. Mas, para não te demorar com rodeios, deixarei de lado as opiniões dos outros, porque seria demorado enumerá-las e refutá-las. Escuta a nossa; no entanto, quando digo a nossa, não me refiro apenas a um dos mestres estóicos, pois também tenho o direito a ter uma opinião.
Tanto seguirei um deles como convidarei outro a dividir a sua moção, e talvez, convocado a dar a minha opinião, diga, em vez de rejeitar uma das moções: "Proponho outra coisa." De resto, e aqui todos os estóicos estão de acordo, é à natureza que dou a minha concordância [assensio, no original latino. A concordância com a natureza é o ponto principal da filosofia estóica]; a sabedoria reside em não nos afastarmos dela, em nos conformarmos à sua lei e ao seu modelo. A vida feliz é pois uma vida conforme à sua própria natureza; não podendo ser alcançada, a menos que a alma esteja sã, em posse contínua da saúde, e que seja depois corajosa e enérgica, bela e paciente, adaptada às circunstâncias, cuidadosa do seu corpo e daquilo que lhe diz respeito, sem no entanto ficar inquieta, diligente em relação aos outros meios de embelezar a vida sem admirar nenhum deles, pronta a fazer uso dos presentes da sorte, mas não a sujeitar-se a eles.
Compreenderás, mesmo que nada acrescente, que daí resultam a tranquilidade para sempre e a liberdade, pois ficamos livres daquilo que nos agita e assusta. Em vez de prazeres, em vez de alegrias ténues, frágeis e sujeitas a desonra, nasce uma imensa alegria, inabalável e constante; existe então na alma apaziguamento, acordo e grandeza aliada à doçura; pois a crueldade vem sempre da fraqueza.
É possível dar uma outra definição do nosso bem, seguindo a mesma ideia em termos diferentes. Um mesmo exército tanto se desdobra numa larga frente como se concentra, pode adoptar uma formação em semicírculo ou estender-se numa frente rectilínea. Mas a sua força, seja qual fôr a formação adoptada, permanece a mesma, assim como a sua vontade de lutar em defesa da mesma causa; de igual modo, a definição do soberano bem pode, por vezes, estender-se e alongar-se ou fechar-se e condensar-se.
Será sempre o mesmo dizer: "o soberano bem é a alma que desdenha os golpes da sorte e encontra o seu contentamento na virtude", ou ainda, "o soberano bem é a alma invencível, possuindo a experiência das coisas, calma na acção, com muita benevolência e gentileza para com aqueles que a rodeiam."
Agrada-me também a seguinte definição: o homem feliz é aquele para quem nada é bom ou mau à margem de uma alma boa ou má; esse homem pratica aquilo que é honesto e contenta-se com a virtude; os acidentes da sortenão podem nem exaltá-lo, nem quebrá-lo, não conhece bem maior do que aquele que pode dar a si próprio; o seu verdadeiro prazer está no desprezo dos prazeres.
É possível, se quisermos desenvolver ainda mais este tema, apresentar a mesma ideia sobre tal ou tal aspecto, matendo intacto o seu sentido. Quemnos impede de dizer que a vida feliz é uma alma livre, elevada, sem medo, constante, inacessível ao receio e ao desejo; para quem só existe um bem, a belezamoral, e um único mal, a indignidade?
Tudo o resto é uma algazarra confusa que não retira nem acrescenta nada à vida feliz, que vem e que vai sem aumentar nem diminuir o soberano bem. Uma vez estabelecido assim o bem, a consequência necessária será, quer se queira ou não, uma satisfação contínua, uma alegria profunda que vem do fundo do ser, porque a alma satisfaz-se com as suas riquezas e nada deseja que lhe seja estranho.
O que valem a seu lado as emoções corporais ténues, fúteis e sem duração? No dia em que se fôr vencido pelo prazer, ser-se-á também vencido pela dôr.
Vês que triste e funesta servidão sofrerá o homem que fôr possuído, alternadamente, pelos mais caprichosos e tirânicos dos senhores, os prazeres e as dores. É pois necessário encontrar uma saída para a liberdade, e nada no-la poderá dar a não ser a indiferença aos golpes da sorte.
Nascerá então esse bem sem preço, o repouso de uma alma que encontrou a segurança, a sua elevação, a alegria grande e estável que, uma vez os medos afastados, resultado do conhecimento do verdadeiro, a bondade de um coração satisfeito, todas as qualidades que nos encantam não a título de bens, mas porque nascem de um bem que está em nós.
Já que empreendi abordar a questão com desenvolvimento, podemos ainda chamar feliz àquele que não conhece, nem deseja, nem receia, graças à razão, pois as pedras ignoram o receio e a tristeza, o mesmo acontecendo com o gado, sem que ninguém se lembre de chamar felizes aos seres desprovidos da inteligência da bem-aventurança. Coloco no mesmo lugar os homens cuja própria estupidez e ignorância, reduziu à condição de animais e seres inanimados. Nenhuma diferença existe entre uns e outros, pois que nuns a razão está ausente, enquanto nos outros é falseada, hábil no mal e pervertida; ninguém pode dizer, feliz aquele que se colocou fora da verdade.
Em consequência, a vida feliz tem por fundamento imutável um juízo recto e firme. A alma é então purificada e libertada de todos os males, pois escapa não apenas aos dilaceramentos, mas às feridas ligeiras das paixões; resistirá onde se estabeleceu e defenderá a sua posição, mesmo contra os furores e assaltos da sorte.
Quanto ao prazer, bem pode espalhar-se por todo o lado e insinuar-se por todas as vias, afagar a alma com carícias e dela aproximar muitos objectos para seduzir todo o nosso ser ou uma das suas partes: que mortal, se nele permanece algum traço da natureza humana, desejaria sentir-se estimulado de dia e de noite e, abandonando a sua alma, conceder todas as atenções ao corpo?
O Soberano Bem e o Prazer
A própria alma, diz-se, tem os seus prazeres.
- Pois bem, que os tenha! Que seja a sede de delícias e prazeres! Que se encha de tudo o que em geral encanta os sentidos! Já que é capaz de rever o seu passado e se lembra dos prazeres de outrora com trasnporte, que se debruce sobre aqueles que hão-de vir, regule sobre isso as suas esperanças e, enquanto o seu corpo se abandona à boa vida, incida os seus pensamentos nos prazeres futuros! [esta passagem é uma crítica à escola de Epicuro para quem o prazer da alma deveria estar em recordar os prazeres passados de modo a ocultar o sofrimento presente] .
Tudo isso me parece tanto mais miserável, quanto é uma loucura tomar os males por bens. Sem a saúde de espírito ninguém é feliz, e não é são aquele que procura como sendo o melhor aquilo que lhe causa prejuízo.
Por isso, é feliz o homem que tem umjulgamento recto; é feliz aquele que se contenta com o presente, seja ele qual fôr, e que ama aquilo que tem; é feliz aquele que confia à razão a organização dos seus assuntos.
Aqueles que fazem do prazer o soberano bem, sabem muito bem o lugar vergonhoso em que o colocaram. Dizem também que o prazer não pode ser separado da virtude e afirmam que ninguém pode viver honestamente sem viver agradavelmente, nem viver agradavelmente sem viver honestamente.
Não vejo como estes elementos tão diversos podem caber no mesmo saco. Qual é, pois, pergunto-vos, a razão pela qual o prazer não poderia ser separado da virtude? Aparentemente o princípio de todo o bem está na virtude. Não será, pois, ela a origem dos objectos do vosso amor e do vosso desejo? mas, se eles fossem inseparáveis, não veríamos prazeres desonestos, nem acções perfeitamente honestas mas penosas, e que, para se concretizarem exigem sofrimentos.
Acrescente-se ainda a isso que o prazer pode conciliar-se com a mais vergonhosa das existências, mas que a virtude não consente uma vida má e que há infelizes, não por falta de prazeres, mas precisamente devido a eles, o que não aconteceria se o prazer estivesse combinado com a virtude.
A virtude existe muitas vezes sem o prazer e nunca tem necessidade dele. Porquê fundir coisas tão diferentes e mesmo opostas? A virtude é coisa elevada, sublime, real, invencível, inesgotável; o prazer é coisa baixa, servil, fraca, frágil, que se estabelece e permanece nos lupanares e nas tabernas. Encontrareis a virtude no templo, no fórum, no Senado. Ela resiste diante das muralhas, coberta de poeira, a tez crestada e as mãos calosas; habitualmente o prazer oculta-se e procura as trevas, está no acesso aos banhos, nas estufas e nos locais que receiam a polícia; amolecido, sem força, húmido de vinho e perfumes, pálido ou arrebicado, embalsamado de unguentos como um cadáver.
O soberano bem é imortal, não pode perecer, não conhece nem saciedade nem arrependimento; com efeito, uma alma recta nunca muda, não experimenta ódio por si própria, nada tem a modificar na sua vida que é a melhor.
Mas o prazer desvanece-se ao alcançar o ponto mais elevado; tem um espaço limitado e por isso o ocupa depressa; depois vem o aborrecimento e, após um primeiro impulso, o prazer murcha. Não pode haver constância naquilo que, por sua natureza, está em mudança. Nada pode existir de substancial naquilo que vem e passa tão depressa e está destinado a desaparecer através da sua própria realização; com efeito, o prazer conduz a um ponto em que cessa, e desde o início conhece o seu fim.
Fonte: http://adlocutio.conquerwindows.com/Historia/AntiguidadeClassica/Roma/senecaDaVidaFeliz07.htm




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SUBLIME

Conceito anti-clássico associado à grandiosidade, enlevação e transcendência. Com ele dá-se, por exemplo, a transição do neoclassicismo para o romantismo, ocupando um local central na estética do século XVIII. Foi primeiro usado como um termo retórico, dizendo respeito a determinadas qualidades que uma obra literária possui que possam transmitir ao leitor o êxtase e levar os seus pensamentos a um plano mais elevado. Mais tarde, é Edmund Burke quem teoriza sobre o sublime, contrastando o seu conceito com a ênfase dada pelo Iluminismo, à claridade, precisão, simetria e ordem. O conceito de sublime encontra repercussão nos trabalhos de variados críticos e filósofos. Ao longo de quatro séculos, suscitou diversas interpretações devido à sua complexidade, e estimulou ideias, paixões e controvérsias nos seus leitores e críticos.
O vocábulo sublime entra na língua inglesa por via francesa, derivada do latim. O seu uso inicial diz respeito à linguagem ou estilo exaltado e mais tarde à percepção física. O primeiro registo que se conhece sobre este termo é um tratado, intitulado Do sublime, atribuído erroneamente a Longino. Desse tratado, em grego Peri hupsous , que significa “Das alturas”, o melhor e mais antigo manuscrito existente é o Codex Parisiensis 2036, datado do século X, embora um terço desse manuscrito se encontre irremediavelmente perdido. Este é, provavelmente, a fonte de onde derivam todos os outros. Não se sabe quem é realmente o autor deste tratado. Foi falsamente atribuído a Longino (213–273 d.C.), filósofo grego, discípulo de Amónio Sacas, que estudou na escola Neoplatónica de Alexandria, mas até o nome deste autor é de difícil identificação porque poderia tratar-se de Cassius Longinus, Dionysius Longinus ou até mesmo Dionysius de Halicarnassus. Sabe-se agora que o tratado remonta ao século I d. C.. O erro na atribuição do tratado a Longino fez com que se optasse por identificar o autor como Pseudo-Longino ou Anónimo. O tratado é composto por diversos capítulos, dezassete dos quais sobre figuras de estilo, e é dirigido, em forma de epístola, a Posthumius Terentianus. Estudiosos indicam este tratado como sendo resposta a um trabalho do retórico siciliano Cæcilius de Calacte. O que Pseudo-Longino pretendeu foi completar a doutrina exposta por Cæcilius nesse trabalho, pois julgava-a insuficiente no que diz respeito à essência da arte.
Pseudo-Longino não pretende definir o sublime, porque este é uma qualidade inefável; o que ele pretende é identificar as suas fontes. Assim, o autor identifica como fontes do sublime as seguinte capacidades: certa elevação do espírito para se poder formular elevadas concepções; o afecto veemente e cheio de entusiasmo, capaz de provocar paixões inspiradas; certa disposição das figuras de pensamento e de dicção, que seriam uma espécie de desvios provenientes da imaginação e criatividade; formular de forma nobre; e compor de forma magnífica, dignificante e elevada. As duas primeiras fontes dizem respeito ao génio inato; enquanto que as restantes são o resultado da arte.
Define a sublimidade na literatura como a principal virtude literária. É o «eco da grandeza do espírito», o poder moral e imaginativo do escritor presente no seu trabalho. Esse poder poderia transformar qualquer obra numa obra louvável e digna, quaisquer que fossem os seus defeitos, se ela atingisse o sublime. O termo aqui empregue refere-se a algo extratextual e, dessa forma, independente dos géneros literários e da perfeição que a retórica clássica impunha. Pela primeira vez, a grandeza da literatura é atribuída às qualidades inatas do escritor e não às da sua arte. Esta contribuição é inovadora, sendo uma teoria afectiva da literatura. O mérito da obra de arte está no poder de transportar o leitor ao êxtase e tal só acontece se a obra atingir o sublime. Dessa forma, a identificação da personalidade do autor, qualidades da obra e seus efeitos no leitor são determinantes da sua grandeza literária.
O que o autor concretiza no tratado é o afastamento e reformulação do conceito aristotélico de mimesis, tornando esse mesmo conceito mais amplo e mais criativo. A imitação é presidida por uma inspiração divina, passando a poesia a ser um dom do Poeta. O autor foi demasiado revolucionário na sua forma de interpretar a mimesis e, por essa razão, as ideias contidas no tratado não foram compreendidas no seu tempo, não havendo citações nem sobre o assunto nem sobre a própria obra durante a época clássica e Idade Média.
As emoções são o ponto principal de consideração do sublime, porque segundo Pseudo-Longino não há tom mais elevado do que o da paixão genuína. Isto veio antecipar muitos dos temas e métodos que mais tarde viriam a despertar o interesse do movimento romântico. A originalidade deste tratado encontra-se no facto de ele ser uma nova proposta para o problema da essência da obra literária. Pseudo-Longino preocupa-se com a génese da obra, estados de espírito, pensamentos e emoções do autor e não com a qualidade da obra em si.
O tratado Do sublime foi apenas descoberto no século XVI. A primeira edição da obra é de 1554, sendo publicado por Francisco Robertello. Em 1652, John Hall publica uma versão inglesa deste tratado, mas na altura não teve grande repercussão. É em 1674, com a tradução francesa de Nicolas Boileau-Despréaux, intitulada Du sublime, que o conceito entra em Inglaterra. Publica esta tradução no mesmo volume da sua Arte poétique e nela escreve um longo prefácio, onde inclui uma biografia de Longino, na época suposto autor do tratado. Esta será o ponto de partida para as posteriores traduções, por ser na altura considerada como a mais importante. Hoje sabe-se que a sua tradução é imprecisa e demasiadamente livre na interpretação.
O conceito veio modificar a estética neoclássica do século XVIII, no que diz respeito à criação literária, com o seu culto da grandeza, da sublimidade da concepção e emoção. Estas atribuições substituem o desejo vigente de representar fielmente a realidade, abrindo, deste modo, caminho para o romantismo. Há uma grande elaboração de trabalhos sobre o sublime e a sua discussão passa pela filosofia, pela literatura e outras áreas.
Na época, o trabalho mais lido sobre o sublime foi o tratado de Edmund Burke, A Philosophical Enquiry Into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful (1757), passando por dezassete edições durante a vida do autor. Depois dos ensaios de John Addison, este foi o trabalho mais influente no decurso da estética inglesa do século XVIII. As diversas tentativas de questionar a teoria neoclássica, fazem com que este tratado apareça numa altura crucial.
Burke trás uma nova luz sobre o conceito de sublime, valorizando a imaginação como factor de criação. Burke foi original por se aperceber que o poder da sugestão é um forte estímulo para a imaginação. Distingue o conceito do sublime, com as suas associações ao infinito, à obscuridade, à solidão e ao terror, do conceito do belo, que consiste na relativa pequenez, na delicadeza, na suavidade e na luminosidade das cores.
Um dos elementos que Burke realçou nesse tratado foi o terror e as suas causas: o poder, a obscuridade, o infinito, entre outras. Pseudo-Longino tinha definido terror como uma paixão que não era sublime, enquanto que Boileau não o tinha sequer mencionado. Contudo, John Dennis, em The Grounds of Criticism in Poetry (1704), tinha indicado que o terror seria uma paixão específica produzida por Deus, uma fonte do sublime por excelência. Os poetas da Graveyard School regiam-se, também, pelo conceito de terror.
Isto terá, sem dúvida, influenciado Burke no seu tratado, criando uma relação entre sublime e morte, derivando daí o prazer. Tal acontece porque Burke atribui o terror a uma tensão dos nervos. Sem essa tensão o indivíduo sente apenas indiferença, que é algo pior que a dor. É devido ao terror estimular os nervos, e daí as paixões, que ele é deleitoso. Para Burke o prazer não se obtém apenas na distanciação dos objectos que poderão ser uma ameaça (morte), mas é a excitação masoquista que o indivíduo sente ao aproximar-se deles. Tendo em conta que o terror é o princípio comum a tudo o que é sublime e que o que aterroriza ameaça a existência do indivíduo, cria-se essa relação entre sublime e morte, da qual deriva esse tipo particular de prazer. Esta teoria de Burke viria mais tarde a ser importante para o romance gótico.
Immanuel Kant, na sua Crítica da Faculdade de Julgar (1790), afirma que existe sublime na natureza, pois esta fornece objectos incomensuráveis e o sublime é o que se apresenta como absolutamente grande. Mas esse sublime é limitado pois na verdade ele reside na razão que domina essa natureza. Na filosofia de Kant, o sublime é uma mistura de prazer e dor que se sente quando se está face a algo de grande magnitude. Pode-se ter uma ideia de tal magnitude, mas não se consegue fazer igualar essa ideia com uma intuição sensorial imediata. Isto deve-se ao facto de os objectos sublimes ultrapassarem as capacidades sensoriais. Um exemplo de sublime, para Kant, seria uma montanha. Pode-se ter ideia de uma montanha, mas não intuição sensorial dela como um todo. Sentimos dor pelo facto das nossas faculdades não conseguirem apreender o objecto, mas sentimos prazer também na tentativa de o fazermos. Divide, ainda, o sublime em matemático e dinâmico. O sublime matemático verifica-se quando a nossa capacidade de intuição é dominada pelo tamanho (uma grande montanha); o dinâmico quando a nossa intuição é dominada pela força (uma tempestade).
A sua teoria difere da de Burke, na medida em que Kant não considera o sentimento do terror como próprio de nenhuma experiência estética, logo, como próprio do sublime. Um indivíduo subjugado pelo terror não pode julgar o sublime, da mesma maneira que um indivíduo seduzido por estímulos não pode julgar o belo. Kant utiliza o conceito de sublime para introduzir a problemática da representação do “irrepresentável”. Esta é uma ideia fulcral para a futura arte e pensamento modernista.
A Crítica da Faculdade do Juízo de Kant influenciou Friedrich Schiller. Contudo este afasta-se de Kant, pois alia a teoria do sublime à teoria da tragédia.
No século XX, durante os anos 80, Jean-François Lyotard analisa o lugar do sublime na filosofia crítica de Kant. Na sua filosofia pós-moderna, o sublime aparece como a sensação que especifica os limites da razão e da representação. Lyotard alarga a noção de sublime do absolutamente grandioso, a todas as coisas que confundam a nossa competência de sintetiza-las em conhecimento.
Encontram-se também referências ao tratado e ao conceito de sublime no trabalho de vários críticos como Elder Olson, Neil Hertz, Suzanne Guerlac e Harold Bloom. Este último considera Das Unheimliche (1919) de Freud, como o mais importante contributo do século XX para a estética do sublime.
Bib.: Custódio José de Oliveira, Tratado do Sublime – de Dionísio Longino (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984); Edmund Burke, Philosophical Inquiry Into the Origins of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful, (T. Boulton, 1958); Friedrich Schiller “Do Sublime”, “Sobre o Sublime”, in Friedrich Schiller: Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico, (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997); Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993); Geoffrey Bennington “The Sublime and the Avant-garde” in Paragraph 6 (1985); Michèle Crampe-Casnabet “O Sublime”, in Michèle Crampe-Casnabet: Kant - Uma Revolução Filosófica, (Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1994); Orlando Pires “Longino” in Manual de Teoria e Técnica Literária (1989); Paul Crowther, The Kantian Sublime – From Morality to Art, (1991); Rudolf Eisler, “Erhaben”, in Kant-Lexikon (1977); W. Hamilton Fyfe and W. Rhys Roberts, Aristotle –The Poetics; Longinus – On Sublime; Demetrius – On Style (1991);
Fonte: http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/S/sublime.htm

Sublime

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Definição
O termo (do latim sublimis) entra em uso no século XVIII como uma nova categoria estética, distinta do belo e do pitoresco. O termo remete a uma ampla gama de reações estéticas e a uma nova sensibilidade voltada para os aspectos extraordinários e grandiosos da natureza. Para o sublime, a natureza é ambiente hostil e misterioso que desenvolve no indivíduo um sentido de solidão. Empregado primeiro na retórica e na poesia, o conceito obtém aceitação mais ampla com a tradução francesa do Tratado sobre o sublime, atribuído a Longino (século III d.C.), realizada pelo escritor Nicolas Boileau (1636-1711) e editada em 1674. Longino descreve as coisas do mundo natural em termos de imensidão e violência. Em pleno classicismo, a estética do sublime, apoiada na idéia do temor reverencial à natureza, interpela os valores reinantes ligados à ordem, ao equilíbrio e à objetividade. O sublime se dirige ao ilimitado, ao que ultrapassa o homem e todas as medidas ditadas pelos sentidos. A noção conhece desenvolvimento precoce na Inglaterra em função dos escritos de William Shakespeare (1564-1616), Edmund Spenser (ca.1549- 1599) e sobretudo de John Milton (1608-1674). No longo poema bíblico O Paraíso Perdido (1667), Milton constrói uma tragédia de dimensões cósmicas cujo personagem central é Satã, anunciando aí o tópico do satanismo, fortemente explorado pelos românticos. Ainda na literatura, o Canto de Ossiam (lendário bardo e guerreiro gaélico cujos versos conhecem notoriedade na década de 1760 e que na verdade foram escritos por seu "tradutor", Macpherson), o romance gótico - gênero pioneiramente exercitado por Horace Walpole (1717-1797) em O castelo de Otranto (1764) - e o movimento literário alemão do Sturm und Drang [Tempestade e Ímpeto] (1770-1790), alimentam a estética do sublime.
É na Inglaterra que vem à luz o mais importante tratado sobre o conceito, Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo (1757), de Edmund Burke (1729-1797). Burke apresenta o sublime como uma modalidade da experiência estética mais ampla, encontrada não apenas na literatura. Segundo a sua definição, a natureza do sublime relaciona-se ao infinito e, sobretudo, ao sentimento do terror. Para Burke, "tudo aquilo que serve para, de algum modo, excitar as idéias de dor e perigo... ou versa sobre objetos terríveis, ou opera de maneira análoga ao terror, é origem do sublime; ou seja, é causador da mais forte emoção que a mente é capaz de sentir". Uma das primeiras obras a enfatizar o poder de sugestão como elemento fundamental para a imaginação - "as imagens escuras, confusas e incertas, mais do que aquelas claras e determinadas, têm sobre a fantasia um poder maior de formar as grandes paixões" -, o tratado de Burke sinaliza um distanciamento em relação às idéias clássicas e racionalistas do início do século XVIII, anunciando preocupações que viriam a ser exploradas pelo romantismo. O impacto das idéias de Burke na Alemanha se faz sentir através de Kant (1724-1804), sobretudo em suas Observações sobre o sentimento do Belo e do Sublime (1764) e na Crítica do Juízo (1790), onde define o "sublime como aquilo que é absolutamente grande". O pintor e teórico da arte inglês Joshua Reynolds (1723-1792) discute o sublime em seu último Discurso (1790). Tanto as figuras de Deus como a imagem das Sibilas pintadas por Michelangelo Buonarroti (1475-1564) no forro da Capela Sistina, segundo ele, provocam a mesma sensação das "mais sublimes passagens de Homero".
Nas artes visuais, o culto do sublime conhece expressões muito variadas, embora seja possível localizar nele traços dominantes: o caráter visionário do sublime é representado, de modo geral, por cores empalidecidas e sem brilhos, por traços marcados e gestos excessivos. O gosto pelas paisagens selvagens e inóspitas do pintor napolitano Salvator Rosa (1615-1673), de ampla aceitação na Inglaterra, exerce grande influência no desenvolvimento do sublime. Penhascos escarpados e árvores retorcidas criam uma ambiência de desolação que contrasta com a grandeza clássica do paisagismo de Nicolas Poussin (1594-1665). As pinturas visionárias e fantásticas do inglês William Blake (1757-1827) - entre outras, Newton (1795) e O Purgatório (1824-1827) - e as imagens alucinadas de Heinrich Füssli (1751-1829) - por exemplo, O Pesadelo (1781) - colocam em funcionamento a categoria estética do sublime, tipicamente pré-romântica em sua revalorização dos elementos irracionais e fantásticos da arte. Mas os dois artistas que melhor sintetizam o sublime na pintura são Joseph Mallord William Turner (1775-1851) e Caspar David Friedrich (1774-1840). Nas telas do inglês, a natureza se mostra como potência desvastadora, seja como fogo ou como força marítima. Nos quadros de Friedrich, o aspecto sublime se revela sobretudo por uma espacialidade majestosa, que apequena os homens. No entanto as soluções trágicas e expressivas de Michelangelo estão na raiz da poética do sublime. Segundo Blake, ele seria o modelo do artista sublime, um "gênio" inspirado por excelência, localizado nas antípodas da pureza de gosto de Rafael (1483-1520).
Fonte: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3655