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quarta-feira, 22 de abril de 2009

Realismo



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REALISMO
Um conjunto de traços marca as relações humanas e seu olhar sobre o mundo na segunda metade do século XIX. Esses traços estabelecem um novo panorama na cultura ocidental.
Nesse quadro, diluem-se os suportes do Romantismo e desenvolvem-se as raízes do movimento realista. A busca de objetividade dá-se em decorrência do espírito cientificista que domina as décadas finais do século XIX. Na visão cientificista, predomina a concepção materialista do mundo e, segundo ela, o universo, a natureza e os homens estão presos a leis e princípios, dentro dos quais passam por um processo constantemente evolutivo. Não há mais lugar para a transcendência e se impõe o determinismo que explica os fatos da vida como resultantes de circunstâncias exteriores.
Também no Brasil aquele período registra profundas mudanças. Alfredo Bosi ensina: “[...] a partir da extinção do tráfico, em 1850, acelerara-se a decadência da economia açucareira; o deslocar-se do eixo de prestígio para o Sul e os anseios das classes médias urbanas compunham um quadro novo para a nação, propício ao fermento de idéias liberais, abolicionistas e republicanas.” [1]
A literatura da época vincula-se àquelas características. Repudiando os mitos do autor romântico, encontra-se, no plano da poesia e da narrativa “um esforço para acercar-se impessoalmente dos objetos, das pessoas” [2]. O escritor realista, afastando-se do ideário romântico, propõe a aceitação da vida como ela é. Assim, distancia-se do subjetivismo e busca no determinismo a explicação para o mundo real. Em substituição à espiritualidade romântica, vê na religião da forma um sentido para sua arte e sua existência.
Domício Proença Filho lembra que os escritores realistas assumiram as novas concepções e buscavam a verdade “através da observação e na análise da realidade”. Pretendendo desenvolver uma interpretação da vida, o autor realista opta pela narrativa. Os personagens são desenvolvidos como resultado da observação e aparecem “como tipos concretos, vivos”. Enquanto o Romantismo se volta para o passado ou o futuro (idealizados), o Realismo denuncia as desigualdades sociais de sua época. [3]
“O Realismo se tingirá de naturalismo, no romance e no conto, sempre que fizer personagens e enredos submeterem-se ao destino cego das ‘leis naturais’ que a ciência da época julgava ter codificado; ou se dirá parnasiano, na poesia, à medida que se esgotar no lavor do verso tecnicamente perfeito.” [4]

[1] BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. 10 tir. São Paulo: Cultrix, 1987, p. 181.
[2] Idem, ibidem, p.186.
[3] PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de época na literatura. 15 ed. São Paulo: Ática, 1995, p. 240-243.
[4] BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. 10 tir. São Paulo: Cultrix, 1987, p. 187.
REALISMO E NATURALISMO
O Realismo é uma reação contra o Romantismo:
O Romantismo era a apoteose do sentimento; - o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos - para condenar o que houve de mau na nossa sociedade.
(Eça de Queirós)
Em 1857 é publicado na França o romance "Madame Bovary", de Gustave Flaubert, considerado o primeiro romance realista da literatura universal. O primeiro romance naturalista é publicado em 1867, sendo "Thérèse Raquin", de Émile Zola. No Brasil, considera-se 1881 o ano inicial do Realismo brasileiro, com a publicação de "O Mulato", de Aluísio Azevedo (primeiro romance naturalista brasileiro); e "Memórias Póstumas de Brás Cubas"", de Machado de Assis (primeiro romance realista do Brasil).
As características do Realismo estão intimamente ligadas ao momento histórico, refletindo as idéias do Positivismo, do Socialismo e do Evolucionismo. Manifesta o objetivismo, como uma negação do subjetivismo romântico; o personalismo cede terreno ao universalismo; o materialismo leva a negação do sentimentalismo.O Realismo preocupa-se com o presente, o contemporâneo (a volta ao passado histórico do Romantismo é posta de lado).
Os autores do Realismo são adeptos do determinismo, pelo qual a obra de arte seria determinada por três fatores: o meio; o momento; e a raça (esta dizendo respeito à hereditariedade). O avanço das ciências, no século XIX, tem grande influência, principalmente sobre os naturalistas (daí falar-se em cientificismo nas obras desse período). Ideologicamente, os autores desse período são antimonárquicos (defendem o ideal republicano); negam a burguesia (a partir da célula-mãe da sociedade, daí a presença constante dos triângulos amorosos - o pai traído, a mãe adúltera e o amante, este sempre um "amigo da casa"); são anticlericais (destacam-se os padres corruptos e beatas hipócritas).
Romance realista
É uma narrativa mais preocupada com a análise psicológica, fazendo crítica à sociedade a partir do comportamento de determinados personagens. Faz uma análise da sociedade "por cima", visto que seus personagens são capitalistas, pertencentes à classe dominante. Este tipo de romance é documental, sendo retrato de uma época. Foi cultivado no Brasil por Machado de Assis, em obras como "Memórias Póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba" e "Dom Casmurro".
Romance naturalista
Sua narrativa é marcada pela análise social a partir dos grupos humanos marginalizados, valorizando o coletivo. A influência de Darwin é marcante na máxima naturalista segundo a qual o homem é um animal, deixando-se levar pelos instintos naturais, que não podem ser reprimidos pela moral da classe dominante. A constante repressão leva às taras patológicas, bem ao gosto dos naturalistas; esses romances são mais ousados, apresentando descrições minuciosas de atos sexuais, tocando até em temas como o homossexualismo. Foi cultivado no Brasil por Aluísio de Azevedo ("O Mulato") e Júlio Ribeiro. Raul Pompéia é um caso a parte, pois seu romance, "O Ateneu", apresenta características ora naturalistas, ora realistas, ora impressionistas. Existem várias semelhanças entre o romance realista e o naturalista, podendo-se até mesmo afirmar que ambos partem de um ponto comum para chegarem a mesma conclusão, sendo que percorrendo caminhos distintos.
O REAL/NATURALISMO NO BRASIL
ORIGENS
O fim da Guerra do Paraguai (1865-1870) determina o fim da legitimidade da monarquia brasileira junto à parcelas consideráveis da população. Nem a vitória militar revigora o regime. Ao contrário, os oficiais do Exército, em seu retorno, recusam-se a perseguir os escravos fujões e começam a ser atraídos por idéias positivistas e republicanas. Na sociedade civil, especialmente a urbana, um forte sentimento oposicionista toma conta dos setores médios e do público jovem. No Nordeste, arruinado economicamente, surge a geração contestadora dos anos de 1870.
Sílvio Romero, Tobias Barreto e outros agitam um punhado de novas ideologias. De Comte a Taine, tudo que ée anti-monárquico, anti-clerical, anti-escravocrata e anti-romântico encontra eco na rebelde cidade do Recife. Já no início da década, Sílvio Romero, influenciado por teorias realistas, passa o atestado de óbito da poesia romântica, acusando-a de "lirismo retumbante e indianismo decrépito".
As mortes de Castro Alves, em 1871, e a de José de Alencar, em 1877, representam o fim de um ciclo literário, ainda que tanto o poeta baiano como o romancista cearense já se aproximassem, no fim de suas vidas, de uma expressão mais objetiva e menos idealista da realidade. De qualquer forma, o Romantismo e o II Império tinham estado muito próximos e agora ambos iriam passar por uma longa agonia, à espera do último suspiro.
A sociedade, no entanto, continua se movendo, exigindo mudanças. Em São Paulo, uma nova elite cafeicultora se distingue dos velhos barões do café, do Vale do Paraíba, por seu ideário modernizador: preferem imigrantes a escravos em suas lavouras e não são totalmente hostis à nascente atividade industrial. Levas de imigrantes chegam, ora para o trabalho assalariado nas fazendas, ora para a ocupação de pequenas propriedades, no sul do país. Graças a seus hábitos de poupança e a seus conhecimentos técnicos, muitos deles migrarão para as cidades, constituindo pequenas indústrias semi-artesanais.
Em 1884. a província do Ceará decreta a liberdade dos escravos, pondo-se a frente do processo abolicionista. No Rio Grande do Sul, um grupo de jovens bacharéis cria um partido republicano de forte tendência autoritário-positivista, cuja culminância política seria atingida, quarenta anos depois, com Getúlio Vargas. Os cadetes e os jovens oficiais do Exército ouvem cada vez mais as pregações ardentemente republicanas de Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. Tudo se move, menos a pesada estrutura política do Império.
Isolado do vozerio das ruas, o Imperador prefere fazer longas viagens pelo mundo que chegam a durar dois anos. A ordem imperial é mantida apenas por grupos de latifundiários conservadores que luta contra a abolição, e por uma espécie de respeito coletivo pela figura venerável de D. Pedro II. O fim da escravatura, em 1888, elimina o apoio dos senhores rurais e toda a nação parece esperar a morte do monarca para a proclamação da República. Mas esta vem antes, por uma ação quase solitária do marechal monarquista Deodoro da Fonseca, em novembro de 1889.
Ainda que nascesse de um golpe de estado e não tivesse nenhuma proposta radical de alteração do status quo, a República contará com significativo apoio popular e trará progresso para o país, sobremodo a partir da virada do século. Uma grande era de inércia estava se acabando.
(Apostila 0 - zero - de Realismo - Literatura Brasileira)


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A Normalista - Adolfo Caminha - comentários e trecho
A Normalista foi publicado em 1893
Logo no primeiro capítulo, o leitor precisa da ajuda do dicionário para saber o que é um “amanuense”, ou captar o sentido de frases ou expressões como “as insinuações malévolas da alcovitice vilã”. E o “víspora”? Será que todo jovem reconheceria nesse jogo um precursor do bingo atual? E “phaeteon”, “caiporismo”, “redingote”, “coxia” (no sentido de calçada), “botica”? E o tratamento de “vossemecê”?
No caso de A normalista, outro problema de linguagem se coloca: o regionalismo. Além de ter de deslocar a sua imaginação e a sua compreensão no tempo, o leitor se vê diante de expressões restritas ao local em que se desenrola a história do romance. Nesse caso específico de A Normalista, em Fortaleza, no Ceará, mas expressões que também podem ser de uso corrente em todo o Nordeste.
O professor e pesquisador literário M. Cavalcanti Proença escreveu que Adolfo Caminha “teve a preocupação de se não tornar pomposo ou oratório, o que abriu lugar para muito material de linguagem regional de estilização do coloquial”.
Assim, recolhemos os exemplos “bichinha”, “rapariga de família”, “o peru era uma excelente bebida”, e mesmo ditos populares como: “pela cara se conhece quem tem lombrigas”, “sem tugir nem mugir”, e muitos outros.
Na verdade, Adolfo Caminha não insiste em demasiado nas palavras de cunho regional, o que fazem outros escritores, para dar uma “cor local” a histórias ambientadas em lugares de fala bem característica.
Surge, ainda, uma terceira dificuldade para a compreensão imediata do texto, pela utilização de palavras eruditas, pouco usadas na comunicação quotidiana das conversas, do jornal, da televisão. Por exemplo: “seródia”, “rótula”, “tabernáculo”, “estiolando”, “almiscarado”.
Mas tudo isso, vocabulário em parte antiquado, regional ou erudito, não deve desestimular o jovem a prosseguir na leitura começada. Literatura também é este enriquecedor contato com o que ainda não sabemos, mundos distantes do nosso, aberturas para o desconhecido.
E a história? O enredo? Também deve o leitor fazer um esforço para entender a problemática, a tensão e o drama que se desenrola dentro do contexto da época e do local onde foi situado o romance.
As reações dos personagens às situações por eles vividas há 100 anos são, certamente, retratadas de forma diferente caso fossem escritas nos dias de hoje.
No entanto, o leitor deve deixar-se envolver por essa atmosfera regional do passado, que Adolfo Caminha descreve com minúcia realista. Josué Montello, em seu ensaio A ficção naturalista, afirma que A normalista “sobressaía pela transplantação fiel e natural da vida da província e vigor na fixação dos temperamentos e dos caracteres”.
O romance relata as muitas tristezas e poucas alegrias de uma jovem que é entregue por seu pai ao padrinho, para criá-la. Ela é uma menina normal, que estuda, que tem uma amiga confidente, um pretenso namorado de nível muito superior ao seu e, desgraçadamente, é engravidada pelo padrinho e acaba casando-se com um alferes da polícia.
O pano de fundo é uma cidade provinciana do século passado, cheia de preconceitos e maledicências. A jovem Maria do Carmo, personagem principal, que dá nome ao romance, sofre as conseqüências desse meio mesquinho, que não oferece oportunidades de um crescimento interior nem alternativas de vida.
Uma história vulgar, passada numa cidade atrasada e vivida por personagens medíocres, sem horizontes nem futuro.
Mas, graças ao talento do escritor Adolfo Caminha, acontece o milagre da criação literária: o texto se ilumina de uma aura de beleza e continua atraindo, ao longo dos anos, a atenção e o interesse de gerações e gerações de novos leitores.
Neste romance de 1893, a normalista Maria do Carmo é o pretexto para Adolfo Caminha apresentar aos leitores sua visão da Fortaleza de finzinho do século XIX. De um lado, o povinho miúdo: o pequeno funcionário público, a mulher que vendia rendas, o barbeiro, o guarda-livros, o lenhador e o alferes. Na outra banda, o governador da província, o coronel Souza Nunes, seu filho Zuza - estudante de direito - o jornalista José Pereira, o diretor e os professores da escola normal. A fraqueza do nexo lógico sentimental ou de qualquer natureza entre as várias peripécias da vida de Maria do Carmo sugere que Adolfo Caminha não conta simplesmente a história dela para distrair seus leitores: é a propósito da vida da normalista que ele vai delineando quadros da vida da capital cearense: uma aula na escola normal, o footing no passeio público, uma festa de casamento, um serão familiar, etc...
Nesta espécie de painel de costumes, o autor parece querer demonstrar ao leitor toda a mesquinha sordidez da vida social na Fortaleza de seu tempo.
O mau humor para com a cidade é transparente, e costuma ser apontado pelos críticos e biógrafos de Adolfo Caminha como uma espécie de vingança: o autor jamais teria perdoado seus conterrâneos por estes lhe terem criticado os amores adúlteros e escancarados com a mulher de um colega.
Trecho:
A luzinha da vela de carnaúba agonizava numa poça de cera derretida.
E essa! Era a segunda vez que sonhava com o Romão, sem quê nem p’ra quê... Com certeza estava para lhe suceder alguma desgraça. Que esquisitice! hum, hum,...
A porta do quarto, que se conservava entreaberta, rangeu nas dobradiças, como se alguém a empurrasse de manso. Apoderou-se de Maria um pavor terrível; arrepiaram-se-lhe os cabelos, e uma extraordinária sensação de frio percorreu-lhe o sangue. Ficou assombrada, sem se mexer, com o ouvido alerta e os olhos fechados, numa prostração de quem está sem sentido. Pareceu-lhe ouvir chamar pelo seu nome e então subiu um ponto o terror que lhe tapava a boca como uma mordaça de ferro. Abriu os olhos para verificar se com efeito estava acordada e tornou a fechá-los mais que depressa. Instintivamente fez um esforço supremo para gritar, para chamar alguém, mas não podia abrir a boca, estarrecida.
Maria? repetiu a mesma voz, que ela julgava ouvir, uma voz fina, mas abafada, como se saísse das entranhas da terra.
E logo:
— Sou eu, Maria. É o padrinho...
De feito, João da Mata vinha-se chegando, pé ante pé, subtilmente, segurando-se à parede, equilibrando-se na ponta dos pés, como um ladrão, sem o menor ruído, com estalinhos de juntas.
Maria encolheu-se toda debaixo do lençol duvidando. Tremia como um doente de sezões, embiocada que nem caracol.
— Não grites, Maria, olha sou eu, teu padrinho, tornou João da Mata, agora quase ao ouvido da afilhada, agarrando-se ao punho da rede.
A rapariga respirou forte, como se saísse de dentro de um buraco, e pôde abrir os olhos, meio aliviada, presa ainda de uma grande comoção. Ao medo sucedera-lhe uma apreensão dolorosa, que o seu espírito repelia como impossível. Não teve tempo de associar idéias, porque o amanuense foi se sentando na rede, a seu lado. — O padrinho por ali, no quarto d’ela, àquelas horas?... Estaria sonhando?...
— Padrinho...
— Sou eu mesmo, minha flor... Olha, queres saber uma coisa?... Deixe-me descansar um bocadinho e eu te direi, ouviste?... Espera...
— Mas, padrinho!...
— Olha, não fales alto... Sou eu, estás ouvindo? eu, teu padrinho mesmo... Bico...
Maria do Carmo não compreendeu logo a presença de João da Mata ali
no seu quarto, àquela hora.
Fez-se uma confusão inextricável, caótica, no seu espírito subitamente assaltado por um turbilhão de idéias sem nexo, disparatadas; o coração pulsava-lhe forte, como se tivesse acabado de fazer um grande esforço; operava-se em seu duplo ser moral e físico um desses abalos extraordinários, que deixam a gente numa prostração invencível. Pela primeira vez na sua vida achava-se frente a frente com um homem, alta noite, no silêncio de um quarto escuro. Mal acordada do terrível pesadelo que acabava de ter, vendo ainda, esboçada na sua imaginação, a figura hedionda do negro com os bugalhos injetados, a boca abrindo-se num riso nervoso e alvar, o peito à mostra, a venta chata, ela permanecia imóvel, olhando para o escuro como uma idiota.
A luz tinha se apagado completamente. Ouvia-se a respiração asmática da criada no quarto pegado à sala de jantar. Longe, nalgum quintal, ladrava um cão. Ao calor insuportável sucedia o friozinho bom da madrugada.
João estava em ceroula, nu da cintura para cima. Desde que chegara da festa do Loureiro não fechara os olhos, a fumar no seu cachimbo curto, que preferia às vezes aos cigarros, andava-lhe na cabeça o plano há muito formado, de ir ao quarto da afilhada uma noite. Nada mais fácil: da sala de jantar, onde dormia agora, ao quarto eram dois passos; o diabo era se a menina abrisse a goela a chamar por gente, isto é que era o diabo!... Qual! ela não tinha coragem para tanto, mormente sabendo logo que era ele, o padrinho. — Mãos à obra, João; nada de pensar em asneiras. Isso a gente inventa uma história de embalar crianças, diz que a vida é esta, e ... foi um dia uma donzela. Oh! pois ela não é tua afilhada! demais, meu besta, já lhe pegaste umas tantas vezes no bico dos seios, sem que ela reagisse, a Maria, naturalmente porque sabes encampar a tua autoridade de padrinho. E depois, que diabo! Quem arrisca... Um, dois...
E, com um salto, o amanuense levantou-se, dirigindo-se ao quarto da rapariga, cosendo-se às paredes, macio, cauteloso, todo agachado, pisando devagar, no bico dos pés descalços.
A fresca da madrugada arrepiava-lhe o tronco magro e cabeludo.
Ah! como se sentia bem agora, sentado na mesma rede em que ela dormia, sozinho com ela, adivinhando, no escuro, toda a incomparável perfeição de suas formas rechonchudinhas de rapariga nova! O calor brando do corpo dela comunicava-se agora a seu corpo, infiltrando-lhe no sangue um fluído bom e vigoroso.
Sentia-se forte como um touro, ali assim a seu lado, ele, um pobre homem sem força, um magricela sem carnes.
E Maria esperava, numa aflição, o desenlace daquela trapalhada que ela não compreendia bem.
Estiveram ambos calados alguns minutos até que o amanuense, escorregando para o fundo da rede, pousou a mão sobre o ombro da afilhada, segredando-lhe — se ela estava com frio?
— Frio? ... não ...
— Pois olha, na sala de jantar, faz um frio dos demônios. Por isso eu vem para junto de ti...
Maria não disse nada.
Então o amanuense começou com uma lengalenga, um despropósito de palavras murmuradas como uma oração, numa voz que mal se ouvia, inclinado sobre a afilhada, sufocando-a com seu hálito nauseabundo, roçando-lhe no rosto a ponta da barba.
— Olha, Maria, dizia-lhe, tu não sabes quanto eu abomino o Zuza... Há muito tempo que estava para te dizer umas certas coisas, mas era preciso segredo, muito segredo... Agora, que estamos sós, deixe que te fale com franqueza... Tu amas o rapaz, não é assim? Não mintas... sei que gostas muito dele, e até já se fala, na rua, em casamento. Ainda hoje alguém afirmou-me que vocês se beijam na Escola Normal. Eu sei de tudo, minha afilhada, eu sei de tudo. Mas, olha bem o que te digo, tudo depende de ti, só de ti...
Maria estremeceu no fundo da rede, debaixo do lençol, e sentiu-se irressistivelmente presa às palavras de João da Mata. Se ele a quisesse deixar, nesse momento, ela não consentiria, tão viva era a sua curiosidade, agora que o padrinho lhe falara do Zuza; e o movimento quase imperceptível da rapariga não passou despercebido a João da Mata.
— Sim, minha cabocla, tudo depende de ti, porque eu também te quero muito bem e não consentiria nunca nesse casamento, se... Olha, deixa dizer-te ao ouvido...
E, colando a boca ao ouvido de Maria:
— ... se não fosses boa para teu padrinho.
Pouco a pouco o amanuense ia deitando ao lado da rapariga, acotovelando-a, machucando-a com o seu corpo ossudo, devagar, cautelosamente.
“—Estava bem armada a rede? Era preciso comprar outra mais larga, mais rica...”
Um grilo entrou a cantar monotonamente num canto do quarto — testemunha oculta daquela cena inacreditável.
Entretanto Maria não dava palavra, com as pálpebras pesadas de sono, respirando a custo, numa espécie de inconsciência muda, como hipnotizada. Este estado porém durou pouco; espreguiçou-se, puxando o lençol para se cobrir melhor e começou a achar certo encanto naquela intimidade secreta, ombro a ombro com o padrinho. Seu instinto de mulher nova acordara agora obscurecendo-lhe todas as outras faculdades, ao cheiro almiscarado que transudava dos sovacos de João da Mata. Coisa extraordinária! aquele fartum de suor e sarro de cachimbo produzia-lhe um efeito singular nos sentidos, como uma mistura de essências sutis e deliciosas, desconcertando-lhe as idéias. Uma coisa impelia-o para o padrinho, sem que ela compreendesse exatamente essa força oculta e misteriosa.
E quando ele, num tom paternal e amoroso, lhe falou no Zuza, Maria teve um frêmito bom, como se tivesse caído por terra o paredeiro que mediava entre ela e o estudante. Tudo dependia dela, somente dela... Ficou a pensar nestas palavras, sem atinar com o seu verdadeiro sentido, alheada, os olhos fitos, quase sem pestanejar, na telha de vidro, por onde escoava agora uma claridade tênue de alvorada;
João respirou, e, passando-lhe o braço por trás do pescoço:
— Então?...
— É quase dia, padrinho, podem nos ver assim...
— E que tem? já nos têm visto tantas vezes? Agora espera, só me vou se me deres uma boquinha...
E, sem esperar resposta, o amanuense beijou-a na face, apertando-a contra si, numa impaciência de quem não tempo a perder.
Maria repeliu-o brandamente.
— Juro-te, continuou ele, juro-te que casarás com o Zuza, mas por amor de Deus, deixa... ou não contes comigo para coisíssima alguma. Por alma de tua mãe que está no céu. Olha, sou eu quem te pede... Ninguém saberá, o próprio Zuza não poderá saber nunca... É como se não tivesse havido nada, são segredos que não aparecem, sabes? Eu te peço...
Tinha-se feito a verdade aos olhos da normalista, como um clarão que de repente iluminasse todo o quarto. ao mesmo tempo que uma luta medonha travava-se dentro de si, sem lhe dar tempo a pensar. Estava justamente em vésperas de ter o incomodo. Toda ela vibrava como uma lâmina de aço ao contato daquele homem que comunicava-lhe ao corpo um fluido misterioso, transformando-a numa criatura inconsciente atraída por um poder extraordinário como o de uma cobra sobre um rato.
As palavras do padrinho, embebidas de voluptuosidade e o nome do Zuza pronunciado naquele instante e, mais que tudo isso, a invocação feita à alma de sua mãe, confundiam-lhe os sentidos, acordando no coração de donzela o que tinha de mais delicado. teve piedade de João, como se ele fosse na verdade o mais desgraçado dos homens. Sentiu-o a seu lado, humilde como um ser desprezível que reconhece a sua baixeza, com uma tremura na voz, rendido, suplicante, e não teve coragem de o enxotar, de dar-lhe com a mão na cara e de desaparecer para sempre d’aquela casa imoral, onde ela vivia tristemente com as doces recordações de seu passado, como uma flor que vegeta num montão de ruínas. Ao contrário d’isto, a visível submissão do padrinho, doera-lhe n’alma como a ponta d’uma lanceta. Sem o saber, João da Mata encontrou a afilhada numa dessas extraordinárias predisposições de corpo e alma. em que, por mais forte que seja, a mulher não tem forças para resistir às seduções de um homem astuto e audacioso. Conhecia suficientemente o gênio de Maria — nada mais, e isto lhe bastava para que a vitória fosse certa, infalível.
De resto, algumas palavras a toa murmuradas à surdina, o contato morno de um corpo viril... e Maria do Carmo aumentava o número de suas dores.
A madrugada veio encontrá-la de joelhos, mãos juntas, duas grandes lágrimas no olhar, como um anjo de sepultura, defronte da oleografia de Cristo abrindo o coração à humanidade. Nunca o doce e meigo olhar de Jesus pareceu-lhe tão meigo.
Era domingo. Cantavam galos de campina nas ateiras do quintal. E enquanto, lá fora, a cidade acordava e a vida recomeçava seu eterno poema de alegrias e dores, Maria procurava no coração de Jesus um conforto para seu doloroso arrependimento.
(Apostila 2 de Realismo - Literatura Brasileira)





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O Bom Crioulo - Adolfo Caminha (resumo)
A narrativa concisa, além da elaboração da linguagem, são elementos que conferem a Bom-Crioulo um lugar de destaque em nossa literatura. No entanto, seu maior mérito é conseguir alargar nosso campo de visão, primeiro por mostrar que o Naturalismo não está só nas mãos de Aluísio Azevedo. Em segundo lugar, por possibilitar uma discussão interessante no que se refere ao Determinismo e como o homem age em relação ao seu destino.
À primeira vista, esse debate poderia ser inspirado pelo que mais chama a atenção em sua história: o homossexualismo. No entanto, o autor não resvala por dois dos aspectos mais comuns desse assunto. Não há a questão de se levantar ou se esconder a bandeira da condição sexual. Além disso, não há a crise de identidade tão comum em tantas obras de mesma temática. Muito pelo contrário – a descoberta da preferência sexual deu ao protagonista mais força de viver.
Cabe aqui uma observação. Constantemente se diz que o homossexualismo é tratado nessa obra de forma crua e imparcial. De fato, o primeiro adjetivo pode estar correto, pois o sexo, na obra, faz-se de forma carnal, não havendo sublimação, o que é típico do Naturalismo, escola que apresenta o homem como animalizado, prisioneiro dos próprios instintos. No entanto, imparcialidade é um conceito questionável, pois a maneira como o narrador se refere aos atos íntimos de suas personagens – “atentado contra a natureza” – por si constitui um juízo negativo de valor.
No entanto, o homossexualismo não é a pedra de toque do romance, mas uma ponte para que se reflita sobre algo maior: até que ponto somos livres para decidir sobre nossa vida? Praticamente tudo na narrativa inspira essa questão.
De início, deve-se lembrar que Amaro, personagem principal, é escravo fugido. Quer ser dono de seu próprio destino. Até que num golpe de sorte (nem lhe perguntam sua procedência) é aceito como marinheiro, o que ampliará os horizontes. A possibilidade de viajar, conhecer mundo, faz com que alcance sua bem-aventurança, tanto que recebe o apelido de “Bom-Crioulo”, graças à sua benevolência que contrasta com seu porte físico – sempre descrito, é importante notar, como algo olímpico, superior ao físico dos brancos.
No entanto, a disciplina a que está submetido é outra prisão, que só vai ser percebida quando o protagonista conhece Aleixo, adolescente que trabalha como grumete na mesma corveta em que está Amaro.
Interessante é ter em mente que o protagonista ganha identidade graças ao outro. Entende por que suas duas experiências com mulheres foram fracassadas. Entende o que é ao descobrir do que gosta, o que o faz desencantar-se do meio em que está. Deixa de ser o marinheiro submisso. Tanto que o livro inicia-se com o relato das chibatadas que Amaro recebeu, justo por ter arranjado briga em defesa do menino. Detalhe: com essa técnica de sedução, o que Amaro consegue é mais gratidão do que amor.
Com a necessidade de reforma da corveta em que trabalham, os dois marinheiros são autorizados a descer no Rio de Janeiro. Amaro arranja um quarto na pensão de D. Carolina, antiga prostituta e que também colhe pelo protagonista uma enorme gratidão – ele a havia salvado de uma tentativa de assalto. Revela-se, mais uma vez, o espírito bondoso do Bom-Crioulo.
Aqui cabe mais uma observação. Não há reprovação nenhuma por parte da mulher quanto ao relacionamento que vê diante de si, ainda mais por Amaro ter mais de 30 e Aleixo pouco mais de 15. Ela entra no mesmo esquema do livro: não faz julgamentos nítidos. Tudo se passa meio torto, pela observação tangencial, indireta, do narrador sobre o que outras personagens falam. As questões morais não estão no cerne da obra. Esse mesmo toque tangente é visto no que se refere a sexo. Tem-se a coragem – pelo menos para os padrões da época – de se citar o que está ocorrendo, mas na hora de relatar, descrever, narrar o que de fato acontece, corre-se uma cortina de reticências.
Enfim, é criada uma estabilidade matrimonial efêmera. É digno de nota o que acontece entre os dois, quando se fecham no sujo quartinho de pensão. Amaro mais se delicia em admira o corpo do seu amado do que com o prazer sexual. Parece que o menino, além de dar ao protagonista identidade, dá também um sublime senso estético, ou algo próximo disso. É uma evolução, de certa forma.
Como já se disse, o equilíbrio da união é temporário. Em primeiro lugar, já se notam indícios de que não há amor, ou mesmo atração, mas gratidão de Aleixo por Amaro. Talvez isso justifique a impaciência do menino com a rotina do Bom-Crioulo admirar seu corpinho branco. Além disso, Amaro é transferido de navio, cujo capitão, extremamente rígido, só lhe dá folga uma vez por semana, ocasionando horários desencontrados entre os amantes – não se vêem mais, pois. E, para piorar, D. Carolina determina, como último capricho de senhora, seduzir o rapazinho, no que é vitoriosa. Estabelece-se, dessa forma, o mais estranho triângulo amoroso de nossa literatura, pois o elemento desestabilizador é uma mulher, que rompe justo a união de dois homens.
Insatisfeito, Amaro chega a beber, o que altera sua personalidade – é o único ingrediente que o faz radicalmente deixar de ser o Bom-Crioulo. Desequilibrado, arranja confusão e por causa disso recebe uma quantidade inominável de chibatadas. Baixa, portanto, a um hospital-prisão, em que mergulha no tédio da recuperação e do abandono. Chega a mandar um bilhete, pedindo a visita de seu amado, mas D.Carolina inutiliza-o.
Solitário e frustrado, Amaro começa a ficar inquieto quando sabe, por meio de um companheiro que passa pelo hospital, que Aleixo estava de caso novo. Realiza, pois, mais uma fuga – sempre o tema da busca da liberdade – em direção da pensão. No caminho, a verdade é completada, o que o deixa mais furibundo, aspecto que se agrava pelo fato de já estar bebendo.
Então, o desfecho. De forma extremamente rápida, em meio à multidão, Amaro encontra Aleixo, mata-o e acaba sendo levado preso. O interessante é observar, neste momento, a movimentação da coletividade, acompanhando com curiosidade sórdida a cena para depois cair na apatia. Uma tragédia que mergulhava na anestesia do esquecimento.
(Apostila 1 de Realismo - Literatura Brasileira)



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O Cortiço de Aluísio de Azevedo - resumo e trechos
João Romão, um homem qualquer, trabalhador e muito sovina adquire fortuna, amiga-se a uma negra de um cego -Bertoleza - e sente cada vez mais sede de riqueza. Arranja confusões com um novo vizinho (Miranda) ao disputar palmos de terra. Chega a roubar para construir o que tanto almejava: um cortiço com casinhas e tinas para lavadeiras. Prosperou em seu projeto. João invejava seu vizinho.
Veio morar na casa de Miranda, Henrique, acadêmico de medicina, a fim de terminar os estudos. Nessa casa, além de escravos e sua família morava um senhor parasita (Botelho, ex-empregado). D. Estela (esposa de Miranda) andava se "escovando" com o Henrique, porém acabaram sendo flagrados pelo velho Botelho.
O cotidiano da vida no cortiço ia de acordo com a rotina e a realidade de seus moradores, onde lavadeiras era o tipo mais comum.
Jerônimo (português, alto, 35 a 40 anos), foi conversar com João oferecendo-lhe serviços para a sua pedreira. Com custo, depois de prosearem bastante, João aceitou a proposta, com a condição dele morar no cortiço e comprar em sua venda. A mudança de Jerônimo e Piedade se sucedeu sob comentários e cochichos das lavadeiras. Após alguns meses eles foram conquistando a total confiança de todos, por serem sinceros , sérios e respeitáveis. Tinham vida simples e sua filhinha estudava num internato.
No domingo todos vestem a melhor roupa e se reúnem para jantar, dançar, festejar, tudo muito a vontade. Depois de três meses Rita Baiana volta. Nessas reuniões sobressaia o "Choro", muito bem representado pela Baiana e seu amante Firmo. Toda aquela agilidade na dança deixara Jerônimo admirado ao ponto de perder a noite em claro pensando na mulata. Pombinha tirava esses dias para escrever cartas.
Henrique entretia-se a olhar Leocádia, que em troca de um coelho satisfez sua vontade física, quando foram pegos por Bruno, seu marido, que bateu na mesma e despejou-a de sua casa depois de fazer um baita escândalo.
Jerônimo mudou seus costumes, brigava com sua e a cada dia mais se afeiçoava pela mulata Rita. Firmo sentia-se enciumado.
Florinda engravidou de Domingos (caixeiro da venda de João Romão), o mesmo foi obrigado a casar-se ou fornecer dotes. Foi aquele rebuliço em todo cortiço, nada mais falavam além disso, Florinda viu-se obrigada a fugir de casa.
Léonie, prostituta alto nível, aparece emperiquitada com sua afilhada Juju, todos admiravam quanta riqueza, mas nem por isso deixaram sua amizade de lado. Léonie era muito amiga de Pombinha.
Na casa de Miranda era uma festa só! Ele havia sido agraciado com o título de Barão do Freixal pelo governo português. João indagava-se, por não ter desfrutado os prazeres da vida, ficando só a economizar. Diante de tal injúria, com muito mau humor implicava com tudo e todos do cortiço. Fez despejar na rua todos os pertences de Marciana. Acusou-a de vagabunda, acabando ela na cadeia.
A festa do Miranda esquentava e João recebeu convite para ir lá, o que o deixou ainda mais injuriado.
O forró no cortiço começou, porém briga feia se travou entre Jerônimo e Firmo. Barricada impedia a polícia entrar, o incêndio no 12 fez subir grande desespero, era um corre-corre, polícia, acidentados (Jerônimo levou uma navalhada) e para finalizar caiu uma baita chuva.
João foi chamado a depor, muitos do cortiço o seguiram até a delegacia, como em mutirão.
Rita incansavelmente cuidava do enfermo Jerônimo dia e noite. No cortiço nada se dizia a respeito dos culpados e vítimas. Piedade não se agüentava chorando muito descontente e desesperada por seu marido acidentado. Firmo não mais entrava por lá, ameaçado por João Romão de ser entregue a polícia.
Pombinha amanheceu indisposta decorrente da visita feita no dia anterior à Léonie. Esta, como era de seu costume, atracou Pombinha em beijos e afagos, pois era além de prostituta, lésbica. Isso deixara a menina traumatizada, que por força e insistência de sua mãe, saiu a dar voltas atrás do cortiço, onde cochilou, sonhou e ao acordar virou mulher. A festa se fez por D. Isabel, ao saber de tão esperada notícia.
Estava Pombinha a preparar seu enxoval quando Bruno chegou e lhe pediu que escrevesse uma carta a Leocádia. Ele chorava... Ela, ao ver a reação de submissão dele, desfrutava sua nova sensação de posse do domínio feminino. Imaginava furtivamente a vida de todos, pois sua escrivaninha servia de confessionário. Via em seu viver que tudo aquilo continuaria, pois não haviam homens dignos que merecessem seu amor e respeito.
Pombinha, mesmo incerta, casa-se com o Costa, foi grande a comoção no cortiço.
Surgiu um novo cortiço ali perto, o "Cabeça de Gato". A rivalidade com o cortiço de João Romão foi criada. Firmo hospedou-se lá, tendo ainda mais motivos contra Jerônimo.
João, satisfeito com sua segurança sobre os hóspedes, investia agora em seu visual e cultura, com roupas, danças, leituras e uma amizade com Miranda e o velho Botelho. Ele e o velho estavam tramando coisa com a filha do Barão. Fez-se um jantar no qual João foi todo emperiquitado.
João naquele momento de auge em sua vida, via-se numa situação em que necessitava livrar-se da negra, chegou a pensar em sua morte.
Sem nem mesmo repousar após sua alta do hospital, Jerônimo foi conversar com Zé Carlos e Pataca a respeito do extermínio do Firmo.
O dia corria, João proseava com Zulmira na janela da casa de Miranda, sentindo-se familiarizado. Jerônimo foi realizar seu plano encontrando-se com os outros dois no Garnisé (bar em frente ao cemitério).
Pataca entrou no bar, encontrou por acaso com Florinda, que se ajeitara na vida e dera-lhe notícia que sua mãe parara num hospício. Firmo aparece e Pataca o faz sair até a praia com pretexto de Rita estar lá. Muito chapado seguiu-o. Lá os três treteiros espancaram-lhe e lançaram-lhe ao mar.
Chovia muito e ao ir para casa, Jerônimo desiste e se dirige à casa da Rita. O encontro foi efervescente por ambas as partes. Tudo estava resolvido, fugiriam no dia seguinte.
Piedade, ao passar das horas, mais desesperada ficava. Ao amanhecer do dia chorava aos prantos e no cortiço nada mais se ouvia senão comentários sobre o sumiço do Jerônimo. A morte de Firmo já rolava solta no cortiço.
Rita encontrava-se com Jerônimo. Ele, sonhando começar vida nova, escreve logo ao vendeiro despedindo-se do emprego, e à mulher constando-lhe do acontecido e prometendo-lhe somente pagar o colégio da garota. Piedade e Rita se atracaram no momento em que a mulata saía de mudança, o cortiço todo e mais pessoas que surgiram, entraram na briga. Foi um tremendo alvoroço, acabara sendo uma disputa nacional (Portugueses x Brasileiros). Nem a polícia teve coragem de entrar sem reforço. Os Cabeças de Gato também entraram na briga. Travou-se a guerra, a luta dos capoeiristas rivais aumentava progressivamente quando o incêndio no 88 desatou, ensangüentando o ar.
A causa foi a mesma anterior, por um desejo maquiavélico, a velha considerada bruxa incendiou sua casa, onde morreu queimada e soterrada, rindo ébria de satisfação. Com todo alvoroço, surgia água de todos os lados e só se pôs fim na situação quando os bombeiros, vistos como heróis, chegaram.
O velho Libório (mendigo hospedado num canto do cortiço) ia fugindo em meio a confusão, mas João o seguiu. Estava o velho com oito garrafas cheias de notas de vários valores, essas que João roubou e fugiu, deixando-o arder em brasas.
Morrera naquele incêndio a Bruxa, o Libório e a filhinha da Augusta além de muitos feridos. Para João o incêndio era visto como lucro, pois o cortiço estava no seguro, fazendo ele planos de expansão baseado no dinheiro do velho mendigo. Por conseqüências do incêndio Bruno foi parar no hospital, onde Leocádia foi visitá-lo ocorrendo assim a reconciliação de ambos.
As reformas expandiram-se até o armazém e as mudanças no estilo de João também alcançavam um nível social cada vez mais alto. Com amizade fortificada junto ao Miranda e sua família, pediu a mão de Zulmira em casamento. Bertoleza, arrasada e acabada daquela vida, esperava dele somente abrigo em sua velhice, nada mais.
Jerônimo abrasileirou-se de vez. Com todos costumes baianos deleitava-se a viver feliz com a mulata Rita. Piedade desolada de tristeza habituara-se a beber e começou a receber visitas aos domingos de sua filhinha (9 anos), que logo cativou todo o cortiço, crismada por todos como "Senhorinha".
Acabados por desgraças da vida, Jerônimo e Piedade não mais guardavam rancor um do outro, ambos se estimavam e em comum possuíam somente a filha a cuidar.
Jerônimo arrependia-se , mas não voltaria atrás. Deu-se a beber também.O cortiço não parecia mais o mesmo, agora calçado, iluminado e arrumado todo por igual. O sobrado do vendeiro também não ficara para trás nas reformas. Quem se destacou foi Albino (lavadeiro homossexual) com a arrumação de sua casa.
A vida transcorria, novos moradores chegavam. Já não se lia sob a luz vermelha na porta do cortiço "Estalagem de São Romão", mas sim "Avenida São Romão". Já não se fazia o "Choradinho" e a "Cana-verde", a moda agora era o forrobodó em casa, e justo num desses em casa de das Dores, Piedade enchera a cara e Pataca é que lhe fizera companhia querendo agarrá-la depois de ouvir seus lamentos, mas a caninha surtiu efeito (vômito) e nada se sucedeu.
João Romão não pregara os olhos a pensar no que fazer para dar um fim na crioula Bertoleza.
Agostinho (filho da Augusta) sofrera acidente na pedreira, ficara totalmente estraçalhado. Foi aquele desespero no cortiço.
Botelho foi falar a João logo cedo. Bertoleza ao ouvir, pôs-se respeito diante da situação e exigiu seus direitos, discutiram o assunto e nada resolveram. João se irritara e tivera a idéia de mandá-la de volta ao dono propondo esse serviço ao velho Botelho, que aliás recebia dele remuneração por tudo que lhe prestava. Em volta do desassossego e mau estar de João e Bertoleza o armazém prosperava de vento em poupa aumentando o nível dos clientes e das mercadorias. Sua Avenida agora era freqüentada por gente de porte mais fino como alfaiates, operários, artistas, etc.
Florinda ainda de luto por sua mãe Marciana, estava envolvida agora com um despachante.
A Machona (Augusta) quebrara o gênio depois da morte de Agostinho. Neném arrumara pretendente.
Alexandre fora promovido à sargento. Pombinha juntara-se à Léonie e atirara-se ao mundo. De tanto desgosto, D. Isabel (mãe de Pombinha) morrera em uma casa de saúde. Piedade recebia ajuda da Pombinha para sobreviver, pois estimava Senhorinha, apesar de saber que o fim da pobre garotinha seria como o seu. Mesmo assim Piedade foi despejada indo refugiar-se no Cabeça de Gato, que tornara-se claramente um verdadeiro cortiço fluminense.
Ocorreu um encontro em uma confeitaria na Rua do Ouvidor, entre a família do Miranda, o Botelho e o João Romão que puseram-se a prosear. Na volta, seguindo em direção ao Largo São Francisco, João e Botelho optaram em ficar na cidade a conversar sobre o fim que se daria a crioula. Estava tudo certo, seu dono iria buscá-la junto á polícia. Quando isso sucedeu-se, ao ver-se sem saída, impetuosa a fugir, com a mesma faca que descamava e limpava peixes para o João, Bertoleza rasgou seu ventre de fora a fora.
Naquele mesmo instante João Romão recebera um diploma de sócio benemérito da comissão abolicionista.
TRECHOS DE O CORTIÇO, ALUÍSIO AZEVEDO
III
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.
Da porta da venda que dava para o cortiço iam e vinham como formigas; fazendo compras.
VIII(parte do cap.)
Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, tirilando.
Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer coisas fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão, a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo os calcanhares, os braços a querer fugirem-lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar-lhe. E depois, surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave e circunspecto Alexandre.
O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.
E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados.
Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.
Isto era o que Jerônimo sentia, mas o que o tonto não podia conceber. De todas as impressões daquele resto de domingo só lhe ficou no espírito o entorpecimento de uma desconhecida embriaguez, não de vinho, mas de mel chuchurreado no cálice de flores americanas, dessas muito alvas, cheirosas e úmidas, que ele na fazenda via debruçadas confidencialmente sobre os limosos pântanos sombrios, onde as oiticicas trescalam um aroma que entristece de saudade.
E deixava-se ficar, olhando. Outras raparigas dançaram, mas o português só via a mulata, mesmo quando, prostrada, fora cair nos braços do amigo. Piedade, a cabecear de sono, chamara-o várias vezes para se recolherem; ele respondeu com um resmungo e não deu pela retirada da mulher.
Passaram-se horas, e ele também não deu pelas horas que fugiram.
O circulo do pagode aumentou: vieram de lá defronte a Isaura e a Leonor, o João Romão e a Bertoleza, desembaraçados da sua faina, quiseram dar fé da patuscada um instante antes de caírem na cama; a família do Miranda pusera-se à janela, divertindo-se com a gentalha da estalagem; reunira povo lá fora na rua; mas Jerônimo nada vira de tudo isso; nada vira senão uma coisa, que lhe persistia no espírito: a mulata ofegante a resvalar voluptuosamente nos braços do Firmo.
Só deu por si, quando, já pela madrugada, se calaram de todo os instrumentos e cada um dos folgadores se recolheu à casa.
E viu a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela cintura.
Jerônimo ficou sozinho no meio da estalagem. A lua, agora inteiramente livre das nuvens que a perseguiam, lá ia caminhando em silêncio na sua viagem misteriosa. As janelas do Miranda fecharam-se. A pedreira, ao longe, por detrás da última parede do cortiço, erguia-se como um monstro iluminado na sua paz. Uma quietação densa pairava já sobre tudo; só se distinguiam o bruxulear dos pirilampos na sombra das hortas e dos jardins, e os murmúrios das árvores que sonhavam.
Mas Jerônimo nada mais sentia, nem ouvia, do que aquela música embalsamada de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos, da mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe iam devorar o coração.
E, erguendo a cabeça, notou no mesmo céu, que ele nunca vira senão depois de sete horas de sono, que era já quase ocasião de entrar para o seu serviço, e resolveu não dormir, porque valia a pena esperar de pé.
XVII
Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que a desordem cessasse. Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do ferro, do pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso os impelia a todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que ia ser atacado pelo partido contrário; os que se batiam ainda há pouco emprestavam armas uns aos outros, limpando com as costas das mãos o sangue das feridas. Agostinho, encostado ao lampião do meio do cortiço, cantava em altos berros uma coisa que lhe parecia responder à música bárbara que entoavam lá fora os inimigos; a mãe dera-lhe licença, a pedido dele, para pôr um cinto de Nenen, em que o pequeno enfiou a faca da cozinha. Um mulatinho franzino, que até ai não fora notado por ninguém no São Romão, postou-se defronte da entrada, de mãos limpas, à espera dos invasores; e todos tiveram confiança nele porque o ladrão, além de tudo, estava rindo.
Os cabeças-de-gato assomaram afinal ao portão. Uns cem homens, em que se não via a arma que traziam. Porfiro vinha na frente, a dançar, de braços abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras para que ninguém lhe estorvasse a entrada. Trazia o chapéu à ré, com um laço de fita amarela flutuando na copa.
— Agüenta! Agüenta! Faz frente! clamavam de dentro os carapicus.
E os outros, cantando o seu hino de guerra, entraram e aproximaram-se lentamente, a dançar como selvagens.
As navalhas traziam-nas abertas e escondidas na palma da mão.
Os carapicus enchiam a metade do cortiço. Um silêncio arquejado sucedia à estrepitosa vozeria do rolo que findara. Sentia-se o hausto impaciente da ferocidade que atirava aqueles dois bandos de capoeiras um contra o outro. E, no entanto, o sol, único causador de tudo aquilo, desaparecia de todo nos limbos do horizonte, indiferente, deixando atrás de si as melancolias do crepúsculo, que é a saudade da terra quando ele se ausenta, levando consigo a alegria da luz e do calor.
Lá na janela do Barão, o Botelho, entusiasmado como sempre por tudo que lhe cheirava a guerra, soltava gritos de aplauso e dava brados de comando militar.
E os cabeças-de-gato aproximavam-se cantando, a dançar, rastejando alguns de costas para o chão, firmados nos pulsos e nos calcanhares.
Dez carapicus saíram em frente; dez cabeças-de-gato se alinharam defronte deles.
E a batalha principiou, não mais desordenada e cega, porém com método, sob o comando de Porfiro que, sempre a cantar ou assoviar, saltava em todas as direções, sem nunca ser alcançado por ninguém.
Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os voa-pés. Par a par, todos os capoeiras tinham pela frente um adversário de igual destreza que respondia a cada investida com um salto de gato ou uma queda repentina que anulava o golpe. De parte a parte esperavam que o cansaço desequilibrasse as forças, abrindo furo à vitória; mas um fato veio neutralizar inda uma vez a campanha: imenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma das casas do fundo, o número 88. E agora o incêndio era a valer.
Houve nas duas maltas um súbito espasmo de terror. Abaixaram-se os ferros e calou-se o hino de morte. Um clarão tremendo ensangüentou o ar, que se fechou logo de fumaça fulva.
A Bruxa conseguira afinal realizar o seu sonho de louca: o cortiço ia arder; não haveria meio de reprimir aquele cruento devorar de labaredas. Os cabeças-de-gato, leais nas suas justas de partido, abandonaram o campo, sem voltar o rosto, desdenhosos de aceitar o auxilio de um sinistro e dispostos até a socorrer o inimigo, se assim fosse preciso. E nenhum dos carapicus os feriu pelas costas. A luta ficava para outra ocasião. E a cena transformou-se num relance; os mesmos que barateavam tão facilmente a vida, apressavam-se agora a salvar os miseráveis bens que possuíam sobre a terra. Fechou-se um entra-e-sai de maribondos defronte daquelas cem casinhas ameaçadas pelo fogo. Homens e mulheres corriam de cá para lá com os tarecos ao ombro, numa balbúrdia de doidos. O pátio e a rua enchiam-se agora de camas velhas e colchões espocados. Ninguém se conhecia naquela zumba de gritos sem nexo, e choro de crianças esmagadas, e pragas arrancadas pela dor e pelo desespero. Da casa do Barão saiam clamores apopléticos; ouviam-se os guinchos de Zulmira que se espolinhava com um ataque. E começou a aparecer água. Quem a trouxe? Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes e baldes que se despejavam sobre as chamas.
Os sinos da vizinhança começaram a badalar.
E tudo era um clamor.
A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. Estava horrível; nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenhada, escorrida e abundante como as das éguas selvagens, dava-lhe um caráter fantástico de fúria saída do inferno. E ela ria-se, ébria de satisfação, sem sentir as queimaduras e as feridas, vitoriosa no meio daquela orgia de fogo, com que ultimamente vivia a sonhar em segredo a sua alma extravagante de maluca.
Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu estalar o madeiramento da casa incendiada, que abateu rapidamente, sepultando a louca num montão de brasas.
Os sinos continuavam a badalar aflitos. Surgiam aguadeiros com as suas pipas em carroça, alvoroçados, fazendo cada qual maior empenho em chegar antes dos outros e apanhar os dez mil-réis da gratificação. A polícia defendia a passagem ao povo que queria entrar. A rua lá fora estava já atravancada com o despojo de quase toda a estalagem. E as labaredas iam galopando desembestadas para a direita e para a esquerda do número 88. Um papagaio, esquecido à parede de uma das casinhas e preso à gaiola, gritava furioso, como se pedisse socorro.
Dentro de meia hora o cortiço tinha de ficar em cinzas. Mas um fragor de repiques de campainhas e estridente silvar de válvulas encheu de súbito todo o quarteirão, anunciando que chegava o corpo dos bombeiros.
E logo em seguida apontaram carros à desfilada, e um bando de demônios de blusa clara, armados uns de archotes e outros de escadilhas de ferro, apoderaram-se do sinistro, dominando-o incontinenti, como uma expedição mágica, sem uma palavra, sem hesitações e sem atropelos. A um só tempo viram-se fartas mangas d’água chicoteando o fogo por todos os lados; enquanto, sem se saber como, homens, mais ágeis que macacos, escalavam os telhados abrasados por escadas que mal se distinguiam; e outros invadiam o coração vermelho do incêndio, a dardejar duchas em torno de si, rodando, saltando, piruetando, até estrangularem as chamas que se atiravam ferozes para cima deles, como dentro de um inferno; ao passo que outros, cá de fora, imperturbáveis, com uma limpeza de máquina moderna, fuzilavam de água toda a estalagem, número por número, resolvidos a não deixar uma só telha enxuta.
O povo aplaudia-os entusiasmado, já esquecido do desastre e só atenção para aquele duelo contra o incêndio. Quando um bombeiro, de cima do telhado, conseguiu sufocar uma ninhada de labaredas, que surgia defronte dele, rebentou cá debaixo uma roda de palmas, e o herói voltou-se para a multidão, sorrindo e agradecendo.
Algumas mulheres atiravam-lhe beijos, entre brados de ovação.
(Apostila 3 de Realismo - Literatura Brasileira)



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Resumo de Casa de Pensão - Aluísio Azevedo
Amâncio de Vasconcelos, um jovem maranhense, vem para o Rio de Janeiro, com o propósito de realizar o curso de Medicina. De início hospeda-se em casa de um conhecido da família, Luís Campos, que vivia com sua mulher Dona Maria Hortência e uma cunhada, Dona Cadotinha. Entretanto, Amâncio encontrara-se com um amigo e co-provinciano, Paiva Rocha, e passa a viver uma vida desvairada e boêmia. As extravagâncias de chegar altas horas da noite, faltar às aulas, embebedar-se, não lhe eram permitidas em casa de Campos. Por outro lado, o jovem estudante começara a despertar um certo interesse no coração de Hortência. Amâncio começa a flertar com a reticente Hortênsia. Levado por esses motivos, Amâncio resolve mudar-se para a pensão de João Coqueiro, que lhe fora apresentado por Paiva Rocha. João Coqueiro era também estudante da Escola Politécnica. Acaba envolvido por Amélia, irmã de João Coqueiro, que finge ignorar o romance e explora-a, exigindo dinheiro do rapaz (Amâncio).
No entanto, Mme. Brizard e o marido não contavam com a ameaça de uma sua hóspede - Lúcia - que, apesar de viver com o palerma Pereira (ou, por isso mesmo), se interessa também por Amâncio. Estabelece-se um choque de interesses naquela casa, que se resolve com a expulsão da intrusa. Em meio a tudo isso, Amâncio continua cercando Hortênsia e cercado por Nini, a filha doente de Mme. Brizard. A essa altura dos acontecimentos, o grupo original já se fragmentara e o núcleo principal ocupa outro imóvel, menor, na periferia do Rio
Enredado no ambiente asfixiante e corrupto da pensão de João Coqueiro e de Mme. Brizard, sua mulher, envolvido em uma série de tramas, Amâncio resolve viajar para São Luís, para rever a mãe, agora viúva. João Coqueiro suspeita da viagem, e consegue que a polícia prenda Amâncio sob acusação de defloramento, da qual o estudante é absolvido, em rumoroso julgamento.
Inconformado com a absolvição, João Coqueiro assassina Amâncio com um tiro.
Casa de Pensão é uma espécie de narrativa intermediária entre o romance de personagem (O Mulato) e o romance de espaço (O Cortiço). Como em O Mulato, todas as ações ainda estão vinculadas à trajetória do herói, nesse caso, Amâncio de Vasconcelos. Mas, como em O Cortiço, a conquista, ordenação e manutenção de um espaço é que impulsiona, motiva e ordena a ação. Espaço e personagem lutam, lado a lado, para evitar a degradação.
O romance foi inspirado em um caso verídico, a Questão Capistrano, crime que sensibilizou o Rio de Janeiro em 1876/77, envolvendo dois estudantes, em situação muito próxima à da narração de Aluísio Azevedo.
As teses naturalistas, especialmente o Determinismo, alicerçam a construção das personagens e das tramas. No texto que transcrevemos a seguir, Aluísio Azevedo, ao descrever a formação de Amâncio Vasconcelos, mostra os fatores que determinaram o seu comportamento e o seu destino: a educação severa do pai e do mestre-escola, a superproteção da mãe, a sífilis contraída da ama-de-leite, que são as geratrizes de uma personalidade reprimida e hipócrita:
"... esses pequenos episódios de infância, tão insignificantes na aparência,decretaram a diluição que devia tomar o caráter de Amâncio. Desde logo habituou-se a fazer uma falsa idéia de seus semelhantes; julgou os homens por seu pai, seu professor e seus condiscípulos. - E abominou-os. Principiou a aborrecê-los secretamente, por uma fatalidade do ressentimento, principiou a desconfiar de todos, a prevenir-se contra tudo, a disfarçar, a fingir que era o que exigiam brutalmente que ele fosse. "
Inseguro, necessitado de proteção materna, Amâncio procura na pensão carioca o substitutivo da família, incapaz de perceber as ciladas que lhe são armadas pela proprietária, Mme. Brizard e pela sensual Amélia. O dinheiro é a mola dessa sociedade corrupta e hipócrita. Observe o cinismo dos pensamentos de João Coqueiro, refletindo sobre o comportamento que sua irmã, Amélia, deveria simular, para envolver Amâncio:
"Amélia, desde que se convertesse numa necessidade para a vida de Amâncio, este, com certeza, seria o mais interessado em fazer dela sua esposa; por conseguinte, agora o que convinha era que a rapariga também ajudasse de sua parte, empregando todo o jeito e boa vontade de que pudesse dispor.- devia mostrar-se cordata, simples nos seus gostos, bem arranjadinha, amiga do asseio, honesta, digna,
enfim, de um marido!"
(Apostila 5 de Realismo - Literatura Brasileira



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O Mulato - Aluísio Azevedo
Saindo criança de São Luís para Lisboa, Raimundo viajava órfão de pai, um ex-comerciante português, e afastado da mãe, Domingas, uma ex-escrava do pai. Depois de anos na Europa, Raimundo volta formado para o Brasil. Passa um ano no Rio e decide regressar a São Luís para rever seu tutor e tio, Manuel Pescada.Bem recebido pela família do tio, Raimundo desperta logo as atenções de sua prima Ana Rosa que, em dado momento, lhe declara seu amor.
Essa paixão correspondida encontra, todavia, três obstáculos: o do pai, que queria a filha casada com um dos caixeiros da loja; o da avó Maria Bárbara, mulher racista e de maus bofes; o do Cônego Diogo, comensal da casa e adversário natural de Raimundo.
Todos três conheciam as origens negróides de Raimundo. E o Cônego Diogo era o mais empenhado em impedir a ligação, uma vez que fora responsável pela morte do pai do jovem.
Foi assim: depois que Raimundo nasceu, seu pai, José Pedro da Silva, casou-se com Quitéria Inocência de Freitas Santiago, mulher branca. Suspeitando da atenção particular que José Pedro dedicava ao pequeno Raimundo e à escrava Domingas, Quitéria ordena que açoitem a negra e lhe queimem as partes genitais. Desesperado, José Pedro carrega o filho e leva-o para a casa do irmão, em São Luís. De volta à fazenda, imaginando Quitéria ainda refugiada na casa da mãe, José Pedro ouve vozes em seu quarto. Invadindo-o, o fazendeiro surpreende Quitéria e o então Padre Diogo em pleno adultério. Desonrado, o pai de Raimundo mata Quitéria, tendo Diogo como testemunha. Graças à culpa do adultério e à culpa do homicídio, forma-se um pacto de cumplicidade entre ambos. Diante de mais essa desgraça, José Pedro abandona a fazenda, retira-se para a casa do irmão e adoece. Algum tempo depois, já restabelecido, José Pedro resolve voltar à fazenda, mas, no meio do caminho, é tocaiado e morto. Por outro lado, devagarzinho, o Padre Diogo começara a insinuar-se também na casa de Manuel Pescada.
Raimundo ignorava tudo isso. Em São Luís, já adulto, sua preocupação básica é a de desvendar suas origens e, por isso, insiste com o tio em visitar a fazenda onde nascera. Durante o percurso a São Brás, Raimundo começa a descobrir os primeiros dados sobre suas origens e insiste com o tio para que lhe conceda a mão de Ana Rosa. Depois de várias recusas, Raimundo fica sabendo que o motivo da proibição devia-se à cor de sua pele.
De volta a São Luís, Raimundo muda-se da casa do tio, decide voltar para o Rio, confessa em carta a Ana Rosa seu amor, mas acaba não viajando. Apesar das proibições, Ana Rosa e ele concertam um plano de fuga. No entanto, a carta principal fora interceptada por um cúmplice do Cônego Diogo, o caixeiro Dias, empregado de Manuel Pescada e forte pretendente, sempre repelido, à mão de Ana Rosa.
Na hora da fuga, os namorados são surpreendidos. Arma-se o escândalo, do qual o cônego é o grande regente. Raimundo retira-se desolado e, ao abrir a porta de casa, um tiro acerta-o pelas costas. Com uma arma que lhe emprestara o Cônego Diogo, o caixeiro Dias assassina o rival.
Ana Rosa aborta. Entretanto, seis anos depois, vemo-la saindo de uma recepção oficial, de braço com o Sr. Dias e preocupada com os "três filhinhos que ficaram em casa, a dormir".
Trechos:
1
"Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro, se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos,, tez morena e amulatada, mas fina,- dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode, estatura alta e elegante, pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica de sua fisionomia era os olhos grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis, pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido,- as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz.
Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pretensão, falava em voz baixa, distintamente, sem armar ao efeito, vestia-se com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciências, a literatura e, um pouco menos, a política."
2
"- Ele não é feio... a senhora não ache, D. Bibina ?... segredava Lindoca à outra sobrinha de D. Maria do Carmo, olhando furtivamente para o lado de Raimundo.
- Quem? O primo d'Ana Rosa?
- Primo? Eu creio que ele não é primo, dona !
- É! sustentou Bibina, quase com arrelie. É primo sim, por parte de pai !...
Por outro lado, María do Carmo segredava a Amâncla Souselas:
- Pois é o que lhe digo, D. Amáncía: muito boa preta!... negra como este vestido! Cá está quem a conheceu!...
E batia no seu peito sem seios. - Muita vez a vi no relho. Iche !
- Ora quem houvera de dizer!... resmungou a outro, fingindo ignorar da existência de Domingas, para ouvir mais. Uma coisa assim só no Maranhão! Credo!"
3
"Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam, os vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes tinham reverberações de prata polida; os folhas das árvores nem se mexiam; os carroças d'água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios, e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçados, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontra vã viva alma no rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho."



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O Coruja - Aluísio Azevedo (resumo)
O Coruja começou a aparecer em 1885, no rodapé do jornal carioca O Paiz. Cinco anos depois, essa tentativa pouco feliz de análise psicológica ganha o formato de livro, saindo junto com O Cortiço.
Com o Coruja, Aluísio tenta a análise psicológica, mas seu esforço redunda em maniqueísmo romântico tardio, uma vez que suas duas personagens encarnam comportamentos opostos e imutáveis.
Coruja é o apelido de André Miranda de Melo e Costa, menino feio, órfão, criado por um padre que não fazia questão de dissimular a contrariedade que o menino lhe causava. Aso 12 anos, o Coruja é enviado à escola, onde logo se impõe pela força física e pela presteza intelectual.
Para compensar seu retraimento, Coruja cataloga livros na biblioteca, estuda com afinco, inicia-se em flauta e faz horticultura. Suas férias, sempre sozinho na escola, só melhoram depois que fica conhecendo Teobaldo Henrique de Albuquerque, menino rico e viajado, bonito e elegante, filho de um credor da escola.
A amizade entre ambos desenvolve-se rapidamente, tornando-se o Coruja uma espécie de sombra do amigo.
Anos depois, consolidada essa amizade, Teobaldo e Coruja estão no Rio para prosseguir os estudos. Teobaldo envolve-se logo com proprietária do quarto que aluga e também com uma prostituta de alto nível. Enquanto isso, Coruja fracassa nos exames preparatórios e torna-se professor particular. Um haverá de preferir a boêmia sistemática e irresponsável; o outro transforma-se numa sombra silenciosa, persistente e incansável, sempre disposto a se sacrificar pelo amigo bonito e rico.
Mas, com a morte de seus pais, chegam as reais dificuldades para Teobaldo, que se salva, no entanto, graças a um casamento de conveniência com Branca, filha única do comendador Rodrigues, comerciante de posses. Teobaldo conhecera-a por intermédio de Aguiar, primo da moça e seu pretendente, obviamente, rejeitado.
O casamento não altera em nada a vida de Teobaldo, exceto na revelação gradual de sua personalidade autêntica, que só Branca consegue apreender.
Teobaldo e Coruja seguem caminhos paralelos, mas em sentido contrário.
De sucesso em sucesso, Teobaldo chega a ministro do governo, mas desiludido consigo mesmo e fracassado no casamento. Dele fica uma imagem pública de sucesso pessoal e profissional, depois da morte. Para o Coruja sobra a solidão que desde criança o acompanhava.
(Apostila 4 de Realismo - Literatura Brasileira)




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FONTOURA XAVIER, CARVALHO JR. E AUGUSTO DE LIMA
Fontoura Xavier
Flor da Decadência
Sou como o guardião dos tempos do mosteiro!
Na tumular mudez dum povo que descansa,
As criações do Sonho, os fetos da Esperança
Repousam no meu seio o sono derradeiro.
De quando em vez eu ouço os dobres do sineiro:
É mais uma ilusão, um féretro que avança...
Dizem-me — Deus... Jesus... outra palavra mansa
Depois um som cavado — a enxada do coveiro!
Minh'alma, como o monge à sombra das clausuras,
Passa na solidão do pó das sepulturas
A desfiar a dor no pranto da demência.
— E é de cogitar insano nessas cousas,
É da supuração medonha dessas lousas
Que medra em nós o tédio — a flor da decadência!
Pomo do Mal
Dimanam do teu corpo as grandes digitales,
Os filtros da lascívia e o sensualismo bruto!
Tudo que em ti revive é torpe e dissoluto,
Tu és a encarnação da síntese dos males.
No entanto, toda a vez que o seio te perscruto,
A transbordar de amor como o prazer de um cálix
Assalta-me um desejo, ó glória das Onfales!
— Morder-te o coração como se morde um fruto!
Então, se dentro dele um mal que à dor excite
Conténs de mais que o pomo estéril do Asfaltite,
Eu beberia a dor nos estos do delírio!...
E podias-me ouvir, excêntrico, medonho,
Como um canto de morte ao ritmo dum sonho,
O poema da carne a dobres de martírio!...
CARVALHO JÚNIOR
Profissão de Fé
Odeio as virgens pálidas, cloróticas,
Beleza de missal que o romantismo
Hidrófobo apregoa em peças góticas,
Escritas nuns acessos de histerismo.
Sofismas de mulher, ilusões óticas,
Raquíticos abortos de lirismo,
Sonhos de carne, compleições exóticas,
Desfazem-se perante o p realismo.
Não servem-me esses vagos ideais
Da fina transparência dos cristais,
Almas de santa e corpo de alfenim.
Prefiro a exuberância dos contornos,
As belezas da forma, seus adornos,
A saúde, a matéria, a vida enfim.

AUGUSTO DE LIMA
O CÉTICO
“Percorro da ciência o labirinto,
e em tudo encontro um eco duvidoso:
matéria vã, espírito enganoso,
mentis, tudo é mentira, eu só não minto.
Vejo, é verdade, a vida e a vida sinto,
o calórico, a luz, a dor e o gozo,
a natureza em flor, o sol formoso
e o céu das cores da Aliança tinto.
Mas quem, senão eu mesmo, vê tudo isto?
e quem pode afirmar-me que eu existo,
visões celestes, velhas nebulosas?”
E em seu crânio a razão desponta e morre,
como o santelmo fátuo, que discorre
na solidão das minas tenebrosas.
(Contemporâneas, 1887.)
FLOR CARNÍVORA
A Lucindo Filho.
Há uma flor de lindo aspecto
e colorido brilhante,
cujo perfume fragrante
atrai ao cálix o inseto.
As asas fechando e abrindo,
este o mel nectáreo bebe,
no entanto a flor o recebe,
as pétalas contraindo.
Contrai-se e se abotoa,
e tanto os nervos constringe
que a corola o suor tinge
da seiva fecunda e boa.
E na rescendente cela
o aventureiro encerrado,
depois de a flor ter sugado,
ei-lo sugado por ela.
Tal a sorte da alma louca,
que atraída pelo gozo,
o doce filtro amoroso
vai beber em tua boca.
Pois és a imagem exata
da bela flor assassina,
que melifica e fascina,
perfuma, seduz e mata.
(Contemporâneas, 1887.)

(Apostila 17 de Realismo - Literatura Brasileira


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Inglês de Sousa (Herculano Marcos I. de S.), advogado, professor, jornalista, contista e romancista, nasceu em Óbidos, PA, em 28 de dezembro de 1853, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 6 de setembro de 1918. Compareceu às sessões preparatórias da criação da Academia Brasileira de Letras, onde fundou a Cadeira n. 28, que tem como patrono Manuel Antônio de Almeida. Na sessão de 28 de janeiro de 1897 foi nomeado tesoureiro da recém-criada Academia de Letras.
Fez os primeiros estudos no Pará e no Maranhão. Diplomou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo, em 1876. Nesse ano publicou dois romances, O Cacaulista e História de um pescador, aos quais seguiram-se mais dois, todos publicados sob o pseudônimo Luís Dolzani. Com Antônio Carlos Ribeiro de Andrade e Silva publicou, em 1877, a Revista Nacional, de ciências, artes e letras. Foi presidente das províncias de Sergipe e Espírito Santo. Fixou-se no Rio de Janeiro, como advogado, banqueiro, jornalista e professor de Direito Comercial e Marítimo na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais. Foi presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros.
Foi o introdutor do Naturalismo no Brasil, mas seus primeiros romances não tiveram repercussão. Tornou-se conhecido com O missionário (1891), que, como toda sua obra, revela influência de Zola. Nesse romance, descreve com fidelidade a vida numa pequena cidade do Pará, revelando agudo espírito de observação, amor à natureza, fidelidade a cenas regionais.
Obras: O cacaulista, romance (1876); História de um pescador, romance (1876); O coronel sangrado, romance (1877); O missionário, romance (1891); Contos amazônicos (1893). Escreveu diversas obras jurídicas e colaborou na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro.
O Missionário - Inglês de Souza
Ao publicar, em 1888, O Missionário, Inglês de Sousa (1853-1918) incorpora-se à corrente Naturalista. Estilo algo monótono, por vezes apagado, entremeado, porém, aqui e ali, de expressões coloquiais, que lhe dão sabor nativo e um torneio de frase à brasileira. Bem descrito o meio. Vivas as figuras - a do sacristão Macário e a do capitão Fonseca, por exemplo. Não carece o autor da capacidade de análises psicológicas - os solilóquios do padre António de Moaris, a que não se pode negar veracidade de observação e a que não escasseia força evocativa. Coloridas as descrições da selva amazônica - embora vistas sempre no segundo plano e nelas nunca se demore o autor, voltado de preferência a perscrutar as personagens. (João Pacheco, O Realismo, p. 139-140)
***
O Missionário, obra que goza de melhor conceito junto à crítica, nasceu do desenvolvimento do conto O Sofisma do Vigário. É um romance de tese, propondo o conflito entre a vocação sacerdotal e o instinto sexual, instigado pelo relaxamento dos costumes e pelo sensualismo da mameluca Clarinha, que acabam por vencer a frágil resistência do Pe. Antônio de Morais.
Tomando o hábito o Padre Antônio de Morais vai para Silves, povoado paraense, à entrada da selva amazônica. Malgrado carente de vocação, granjeia prestígio de sacerdote correto e pio; todavia, a rotina da vilazinha, começando a enfastiá-lo, sugere-lhe a procura de um objeto mais valioso para aplicar seu talento. Aumentado o grupo de adversários, o presbítero num audacioso e arrebatado sermão desmancha a oposição e conquista novos admiradores, dentre os quais Chico Fidêncio, jornalista carbonário e anticlerical. O dia-a-dia de Silves, com seus mexericos e intrigas, passa a girar em torno do Padre Morais. Entrando na floresta, mata inóspita, a fim de catequizar os temíveis mundurucus acompanhando-se do sacristão Macário, mas este regressa a Silves antes de chegar ao encontro com os mundurucus. E é doente que o Padre Morais chega ao sítio de João Pimenta, onde os desvelos de Clarinha, neta do agricultor, e prolongado repouso lhe restituem a saúde e lhe acordam o erotismo que a batina dissimulara até então. Clarinha, mameluca de comportamento algo imoral para os padrões religiosos, acaba o Padre por consumar o pecado da carne com a moça. A Natureza da selva e da mestiça venceram a fraca resistência do jovem prelado. Por fim, conduzindo a mameluca, retorna a Silves , e é recebido como um autêntico santo.
Em O Missionário, o propósito de de demonstrar os condicionamentos biológicos, sociais e circunstanciais, sob a ótica Naturalista e Determinista, sugere o esquema e as etapas do processo narrativo. Inicialmente, o autor descreve minuciosamente a localidade de Silves, no Pará, de maneira a dar-lhe corpo e vida, com sua atmosfera parada e sensual e seus tipos característicos: o farmacêutico, o livre-pensador, o sacristão, o coletor, o professor alguns maledicentes e intrigantes. Introduz, a seguir, o idealismo místico e as controvérsias teológicas do Padre Antônio Morais, que se sente inútil, confinado à mediocridade da vida provinciana. A decisão de aventurar-se entre os índios selvagens fundamenta-se mais no desejo de glória, que no zelo missionário. Aventurando-se pelos rios e florestas da Amazônia, o convívio íntimo com a família de mamelucos, o sensualismo da paisagem põem à prova os votos de castidade, que cede. Para explicar a queda final, o autor faz um longo retrospecto da vida do Padre Antônio Morais, repassando a infância, o seminário, a severa disciplina, a repressão da sexualidade na adolescência. Quando a personagem retorna a Silves, o autor, ainda à maneira dos naturalista, extrai a moralidade dos fatos, acomodando-o à nova situação.
Trecho de O Missionário: Tentação
Tentação
Eram monótonos os dias no sítio do furo da Sapucaia. Padre Antônio de Morais acordava ao romper d'alva, quando os japins, no alto da mangueira do terreiro, começavam a executar a ópera-cômica cotidiana, imitando o canto dos outros pássaros e o assovio dos macacos. Erguia-se molemente da macia rede de alvíssimo linho, a que fora outrora do Padre-Santo João da Mata - espreguiçava-se, desarticulava as mandíbulas em lânguidos bocejos, e depois de respirar por algum tempo no copiar a brisa matutina, caminhava para o porto, onde não tardava a chegar a Clarinha, de cabelos soltos e olhos pisados, vestindo uma simples saia de velha chita desmaiada e um cabeção de canículo enxovalhado. Metiam-se ambos no rio, depois de se terem despido pudicamente, ele oculto por uma árvore, ela acocorada ao pé da tosca ponte do porto, resguardando-se da indiscrição do sol com a roupa enrodilhada por sobre a cabeça e o tronco. Depois do banho longo, gostoso, entremeado de apostas alegres, vestiam-se com idênticas precauções de modéstia, e voltavam para a casa, lado a lado, ela falando em mil coisas, ele pensando apenas que o seu colega João da Mata vivera com a Benedita da mesma maneira que ele estava vivendo com a Clarinha. Quando chegavam a casa, ele ficava a passear na varanda, para provocar a reação do calor, preparando um cigarro enquanto ela lhe ia arranjar o café com leite. João Pimenta e Felisberto passavam para o banho, depois de uma volta pelo cacaual e pela malhada, a ver como ia aquilo. Servido o café com leite, auxiliado de grossas bolachas de carregação ou de farinha-d'água, os dois tapuios saíam para a pesca, para a caça ou iam cuidar da sua lavourazinha. A rapariga entretinha-se em ligeiros arranjos de casa, em companhia de Faustina, a preta velha, e ele, para descansar da escandalosa mandriice, atirava o corpo para o fundo duma excelente maqueira de tucum, armada no copiar - para as sestas do defunto Padre-Santo. A Clarinha desembaraçava-se dos afazeres domésticos, e vinha ter com ele, e então o Padre, deitado a fio comprido, e ela sentada na beira da rede passavam longas horas num abandono de si e num esquecimento do mundo, apenas entrecortado de raros monossílabos, como se se contentassem com o prazer de se sentirem viver um junto do outro, e de se amarem livremente à face daquela esplendorosa natureza, que num concerto harmonioso entoava um epitalâmio eterno.
Às vezes saíam a dar um passeio pelo cacaual, primeiro teatro dos seus amores, e entretinham-se a ouvir o canto sensual dos passarinhos ocultos na ramagem, chegando-se bem um para o outro, entrelaçando as mãos. Um dia quiseram experimentar se o leito de folhas secas que recebera o seu primeiro abraço lhes daria a mesma hospitalidade daquela manhã de paixão ardente e louca, mas reconheceram com um fastio súbito que a rede e a marquesa, sobretudo a marquesa do Padre-Santo João da Mata, eram mais cômodas e mais asseadas.
Outras vezes vagavam pelo campo, pisando a relva macia que o gado namorava, e assistiam complacentemente a cenas ordinárias de amores bestiais. Queriam, então, à plena luz do sol, desafiando a discrição dos maçaricos e das colhereiras cor-de-rosa, esquecer entre as hastes do capim crescido, nos braços um do outro, o mundo e a vida universal. A Faustina ficara em casa. João Pimenta e o Felisberto pescavam no furo e estariam bem longe. Na vasta solidão do sítio pitoresco só eles e os animais, oferecendo-lhes a cumplicidade do seu silêncio invencível. A intensa claridade do dia excitava-os. O sol mordia-lhes o dorso, fazendo-lhes uma carícia quente que lhes redobrava o prazer buscado no extravagante requinte.
Mas esses passeios e diversões eram raros. De ordinário quando João Pimenta e o neto voltavam ao cair da tarde, ainda os encontravam na maqueira, embalando-se de leve e entregando-se à doce embriaguês dum isolamento a dois.
Findo o jantar, fechavam-se as janelas e as portas da casa, para que não entrassem os mosquitos. Reuniam-se todos no quarto do Padre, à luz vacilante de um candeia de azeite de andiroba. Ela fazia renda de bico, numa grande almofada, trocando com agilidade os bilros de tucumã com haste de cedro envolvida em linha branca. João Pimenta, sentado sobre a tampa de uma arca velha, mascava silenciosamente o seu tabaco negro. Felisberto, sempre de bom humor, repetia as histórias de Maués e os episódios da vida do Padre-Santo João da Mata dizendo que o seu maior orgulho eram essas recordações dos tempos gloriosos em que ajudara a missa de opa encarnada e turíbulo na mão. Padre Antônio de Morais, deitado na marquesa de peito para o ar, com a cabeça oca e as carnes satisfeitas, nos intervalos da prosa soporífera de Felisberto assoviava ladainhas e cânticos de igreja.
Pouco mais de uma hora durava o serão. A Faustina trazia o café num velho bule de louça azul, e logo depois, com lacônico e anêpetuna - boa-noite, se retirava o velho tapuio. Felisberto ainda se demorava alguma cousa a caçoar com a irmã, jogando-lhe graçolas pesadas que a obrigavam a arregaçar os lábios num aborrecimento desdenhoso. Depois o rapaz saía, puxando a porta e dizendo numa bonomia alegre e complacente:
- Ara Deus dê bás noites pra vuncês.
Isto fora assim dia por dia, noite por noite, durante três meses. Uma tarde, ao pôr-do-sol, o Felisberto voltara de uma das suas costumadas viagens a Maués, trazendo aquela notícia em que jazia. Encontrara em Maués um regatão de Silves, um tal Costa e Silva - talvez o dono do estabelecimento - Modas e Novidades de Paris - que lhe contara que a morte de Padre Antônio de Morais, em missão na Mundurucânia, passara como certa naquela vida, e tanto que se tratava de lhe dar sucessor, acrescentando que a escolha de S. Exa. Revma. já estava feita. Foi quanto bastou ao vigário para o tirar do delicioso torpor em que mergulhara toda a sua energia moral, na saturação de deleites infinitos, despertando-lhe as recordações de um passado digno. E com o olhar perdido, imóvel, sentado junto à mesa de jantar, uma idéia irritante o perseguia. Teria o Felisberto, trocando confidência por confidência, revelado ao Costa e Silva a sua longa permanência na casa de João Pimenta? Esta idéia lhe dava um ciúme áspero da sua vida passada, avivando-lhe o zelo da reputação tão custosamente adquirida; e que agora se evaporaria como fumo tênue, pela indiscrição de um palerma, incapaz de conservar um segredo que tanto importava guardar.
O primeiro movimento do seu espírito, acordado, por aquela brusca evocação do passado, do marasmo em que o haviam sepultado três meses de prazeres, era o cuidado do seu nome. Não podia fugir à admissão daquela dolorosa hipótese que a conhecida loquacidade do rapaz lhe sugeria. A sua vida presente teria sido revelada aos paroquianos, acostumados a venerá-lo como a um santo e a admirar a rara virtude com que resistia a todas as tentações do demônio. A consciência, educada no sofisma, acomodara-se àquela vilegiatura da ininterrompidos prazeres, gozados à sombra das mangueiras do sítio. A rápida degradação dos sentimentos, que o rebaixara de confessor da fé à mesquinha condição de mancebo de uma mameluca bonita, fizera-lhe esquecer os deveres sagrados do sacerdócio, a fé jurada ao altar, a virtude de que tanto se orgulhava. Mas na luta de sentimentos pessoais e egoísticos que lhe moviam e determinavam a conduta, mais poderosas do que o apetite carnal, agora enfraquecido pelo gozo de três meses de volúpias ardentes, punham-se em campo a vaidade do Seminarista, honrado com os elogios do seu Bispo, e a ambição de glória e renome que essa mesma vaidade alimentava. Confessava-o sem vergonha alguma, analisando friamente o seu passado: caíra no momento em que, limitado a um meio que não podia dar teatro à ambição nem aplausos às virtudes, isolado, privado do estímulo da opinião pública, o ardor do seu temperamento de matuto criado à lei da natureza, mas longamente refreado pela disciplina da profissão, ateara um verdadeiro incêndio dos sentidos. A mameluca era bela, admirável, provocadora, a empresa fácil, não exigia o mínimo esforço. E agora que para ele o amor já não tinha o encanto do mistério, agora que sorvera longa e gostosamente o mel da taça tão ardentemente desejada, os sentidos satisfeitos cediam o passo a instintos mais elevados, posto que igualmente pessoais.
Mas vinha o pateta do Felisberto com a sua habitual tagarelice, e desmoronava aquele tão bem arquitetado edifício da reputação do Padre Antônio de Morais, precioso tesouro guardado no meio da abjeção em que caíra. O missionário ia ser abatido do pedestal que erguera sobre as circunstâncias da vida e a credulidade dos homens, e, angústia incomparável que lhe causava o triste clarão da condenação eterna surgindo de novo quando se rasgava o véu da consciência - a inconfidênça de Felisberto vinha até impossibilitar ao Padre o arrependimento, com que sempre contara como o náufrago que não deixa a tábua que o pode levar à praia. Como arrepender-se agora que a falta era conhecida, que o prestígio estava reduzido a fumo? Iria buscar a morte às aldeias Mundurucoas? Ninguém acreditaria que um Padre devasso e preguiçoso pudesse sinceramente fazer-se confessor da Fé e mártir de Cristo, e se viesse a morrer naquelas aldeias, não celebrariam o seu nome como o de um missionário católico que a caridade levara a catequizar selvagens, mas todos atribuiriam a tentativa a uma curiosidade torpe, se não vissem no passo uma mistificação nova, encobrindo a continuação da vida desregrada do sítio da Sapucaia.
(O missionário, 1891.)
(Apostila 7 de Realismo - Literatura Brasileira)




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O CACAULISTA E O CORONEL SANGRADO - CENAS DA VIDA DO AMAZONAS - INGLÊS DE SOUSA.
O Cacaulista, primeiro romance de uma série pensada por Inglês de Sousa, Cenas da Vida do Amazonas, desenvolve seu cenário na floresta amazônica. O autor teve que enfrentar dificuldades de transposição do eixo narrativo para as regiões do interior, destacando o rio-mar (Amazonas). Nas linhas iniciais, lemos: "algumas milhas acima da cidade de Óbidos, à margem do Paranamiri". Regionalista, a narrativa gira em torno da rivalidade entre o jovem Miguel e o Tenente Ribeiro por questões de terra. Complica-se a situação quando Miguel se apaixona pela filha do Tenente Ribeiro, Rita. Porém, Rita pressionada pelo pai, acaba se casando com Moreira, moço da cidade. Miguel, contrapondo-se como personagem ao princípio romântico da solução emocional ou violenta (vingança, suicídio, etc...), opta por embarcar, deixando sua localidade. Termina assim, o romance em aberto, sem a solução da questão do personagem principal. O narrador, por sua vez, utiliza-se por várias vezes da técnica de inserir descrições do cotidiano das populações ribeirinhas e de descrições da beleza e da exuberância misteriosa da natureza.
O segundo romance da série de Cenas da Vida do Amazonas é O Coronel Sangrado.
Em O Coronel Sangrado, Miguel está em Óbidos, e destaca-se na narrativa dos acontecimentos dessa cidade provinciana, a disputa política entre conservadores e liberais. O Tenente-coronel Severino de Paiva Prestes era chamado de o Coronel Sangrado, por seu hábito de receitar sangrias para solucionar problemas de doença, com um certo êxito. Pretendia o Tenente-Coronel Severino eleger Miguel vereador, por quem se afeiçoara e decidira fazer dele seu protegido. No entanto, os planos do Coronel Sangrado malogram, entre outros motivos pelas intrigas paroquiais que se desenvolvem. Morre o Coronel Sangrado e Miguel, que nunca esquecera Rita, acaba tendo a realização de sua paixão, quando Moreira também morre num acidente, casando com ela, não sem antes passar cinco anos em Belém do Pará, de onde volta com um certo ar de moço da cidade e resolvendo o problema do final aberto do primeiro volume.

Resenha: O Romance da Vida Amazônica - Mauro Vianna Barreto (estudo sobre Inglês de Sousa)
O rigor científico na ficção de Inglês de Sousa
Walter Pinto
A literatura de ficção pode expressar uma realidade? Ao responder a questão, o professor Mauro Vianna Barreto, mestre em Antropologia pela UFPA, produziu um importante estudo socioantropológico que traz à tona a obra literária do escritor paraense Herculano Marcos Inglês de Sousa, o introdutor do Naturalismo na literatura brasileira.
Há críticos que atribuem ao maranhense Aloísio de Azevedo, com "O Mulato", livro publicado em 1881, a primazia da introdução da nova escola, que teve em Émile Zola e Eça de Queiróz os principais nomes da literatura universal.
Esses críticos parecem desconhecer os três livros publicados por Inglês de Sousa antes da obra de Azevedo, onde já estão presentes os princípios que iriam nortear a prosa realista-naturalista no Brasil.
Inglês de Sousa publicou cinco livros, todos de temática realista-naturalista, entre 1876 e 1893. Os três primeiros - O Cacaulista (1976), História de um Pescador (1977) e O Coronel Sangrado (1977) - foram publicados quando os meios literatos ainda eram dominados pelo Romantismo. Em 1891, publicaria seu livro mais conhecido, O Missionário, levando ao extremo os princípios da escola de Émile Zola. Sua carreira literária se encerraria com Contos Amazônicos, publicado em 1893.
Ambientados em pequenas e desconhecidas cidades da Amazônia, os romances de Inglês de Sousa não despertaram a atenção dos leitores do Sul, onde foram publicados. "O pessoal lia Iracema, A Moreninha. De repente vem um cara falando sobre exploração de trabalho lá na Amazônia, ninguém queria ver isso, a realidade nua e crua", explica Mauro Vianna Barreto.
Essa descrição nua e crua da realidade, como, por exemplo, o relato de uma disputa política entre conservadores e liberais em Óbidos, um dos momentos mais brilhantes de O Coronel Sangrado, é que despertou o interesse do pesquisador à obra do escritor. Desenvolvido como dissertação de mestrado em Antropologia, o estudo virou o livro O Romance da Vida Amazônica - uma leitura socioantropológica da obra literária de Inglês de Souza, publicado pela Letras a Margem, em edição custeada pelo autor.
Cotejando as informações de Inglês de Sousa com uma extensa bibliografia de quase 120 obras, entre as quais relatos de naturalistas e estudiosos que estiveram na região enfocada pelos romances à época em que foram ambientados, Barreto pode afirmar que "os cinco livros conseguem traçar um retrato fidedigno da sociedade cacaueira da Amazônia das décadas de 60 e 70 do século XIX".
Inglês de Sousa nasceu em Óbidos, em 1952. Viveu 15 anos na região, então dominada pelas grandes fazendas de cacau, no momento em que a navegação a vapor começava a transformar os costumes em algumas pequenas vilas e povoados. Utilizando a memória da infância e adolescência e, muito provavelmente, informações de seus pais, o escritor esquadrinha o cotidiano e retrata os hábitos e costumes populares com precisão.
"Inglês de Sousa é uma fonte preciosa de informações a respeito da vida social em seu tempo, pois revela dados e minúcias que são de inestimáveis valia para uma leitura socioantropológica da literatura", afirma o pesquisador.
Para Barreto, o Realismo de Inglês de Sousa se distingue não tanto pela descrição do ambiente natural, como nos romances clássicos do Naturalismo, mas fundamentalmente pela reconstituição do modo de vida dos habitantes das margens do rio Amazonas.
"A todo instante há passagens pormenorizadas do modo de vida amazônico oitocentista: os costumes, a rotina doméstica, as tarefas de subsistência, a sociabilidade, as relações de conflito e acomodação entre diferentes segmentos sociais, os preconceitos raciais, as manifestações folclóricas, as particularidades do linguajar regional, as crenças e práticas religiosas, as supertições e crendices populares, as regras de etiqueta, os padrões de civilidade, o lazer, as festas", enumera o pesquisador, ressaltando a importância dessas informações para o estudo socioantropológico da vida na Amazônia perlustrada por Inglês de Sousa.

Vilas e povoados amazônicos na segunda metade do século XIX

Das cidades paraenses à margem do Amazonas, Óbidos, terra natal do escritor, está presente em dois livros de Inglês de Souza, O Cacaulista e O Coronel Sangrado, considerados os melhores da sua obra.
Em 1848, o naturalista inglês Henry Bates passou por Óbidos e gostou do que viu. "É uma das cidades mais aprazíveis da beira do rio. As casas são todas cobertas de telha, e em sua maioria de construção sólida. Os habitantes, gente ingênua, cortês e sociável", relatou.
Observou que as classes mais elevadas da população eram compostas de famílias brancas tradicionais, revelando, porém, alguns traços de sangue índio e negro em seus descendentes. A maioria dos moradores era constituída de proprietários de fazenda de cacau.
Ao comparar a descrição do infatigável Bates com o texto de Inglês de Sousa, o professor Mauro Vianna Barreto observa a convergência das versões. Em relação às habitações rurais, por exemplo, o mesmo tipo de casa - com paredes de barro, telhada, chão de terra batida e ampla varanda lateral, escassos utensílios, onde a rede assume local de destaque, servindo para uma série de coisas, entre as quais receber visitas, como observou o casal de naturalistas Elizabeth e Louis Agassiz.
O pesquisador do Departamento de Antropologia da UFPA diz que as anotações sobre Óbidos feitas pelo cientista Ferreira Pena em 1868, se tornaram muito importantes porque datam do intervalo do tempo entre O Caucalista e O Coronel Sangrado.
A cidade era então composta de duas praças e nove ruas, entrecruzadas em ângulos retos, de um modo geral estreitas e sem calçamento. Os prédios públicos resumiam-se as duas igrejas, uma delas em ruína, a câmara, a cadeia e ao forte da época da fundação.
Ferreira Pena conta que a cidade era bem fornida de estabelecimentos comerciais: tabernas, lojas de tecido, alfaiatarias, padarias, drogarias, açougues, oficinas de ferreiro, ourives, olaria e outras casas de pequeno negócio.
Com um movimentado porto, que recebia, além de barcos e canoas a vela, os vapores da Companhia do Amazonas, a cidade era uma das poucas com iluminação pública.
A Óbidos da ficção naturalista de Inglês de Sousa bate perfeitamente com o levantamento científico de Pena, na qual a cidade se destaca na região, principalmente se comparada a Faro, um decadente povoado, composto por duas ruas, três travessas e uma praça, com 78 moradores que habitavam casas em péssimas condições.
Os moradores ansiavam pela chegada da navegação a vapor, que poderia alterar o quadro desolador da cidade. O ar patético apresentado por Faro ao cientista está presente, de forma soturna, no livro Contos Amazônicos, o último que publicou antes de se dedicar inteiramente à bem-sucedida carreira jurídica.
Naquele mesmo 1868, Ferreira Pena aportou em Alenquer, cenário de História de um Pescador. Apesar de acanhada, a vila lhe pareceu uma das mais conservadas do Pará.
Nada mais era que um alinhamento de cerca de cem casas caiadas e telhadas que se distribuíam por duas ruas paralelas, cruzadas por curtas travessas. Tinha cinco casas de comércio bem sortidas, um açougue e uma padaria, Câmara Municipal em bom estado e uma igreja inconclusa.
Mauro Barreto observa que a descrição acima se harmoniza perfeitamente com a de Inglês de Sousa em seu segundo romance: uma vila pequena, situada em uma extensa planície, à beira de um braço do Amazonas, com habitações distantes da margem por causa das enchentes, com duas ou três ruas apenas, onde existem perto de cem casas, pequenas e pobres.
O excelente livro de Mauro Vianna Barreto é um importante documento sobre a sociedade e o meio rural e urbano do Baixo Amazonas na segunda metade do século XIX.
Revela ao leitor a importância de um escritor até hoje pouco conhecido, que ousou escrever prosa com rigor quase científico sobre uma região desconhecida dos brasileiros, em momento literário ainda dominado por antigas idéias românticas. (WP)

Artigo de Walter Pinto sobre o relançamento de O Coronel Sangrado
Edufpa reedita raridade bibliográfica
Walter Pinto
A Edufpa, a editora da UFPA, já definiu a data para o lançamento de uma raridade bibliográfica, o livro "O Coronel Sangrado", de Inglês de Sousa. Será no dia 4 de setembro, na Livraria do Campus. Inglês de Sousa, paraense de Óbidos, foi o introdutor do Realismo/Naturalismo na literatura brasileira. Sua obra ficcional foi toda publicada na segunda metade do século XIX, em ambiente ainda dominado pelo Romantismo. O caráter de documento social que imprimiu aos livros vem possibilitando leituras diferentes e atuais por parte dos que estudam a Amazônia.
Mas encontrar um livro de Inglês de Sousa em livrarias não é tarefa fácil. Com exceção de "O Missionário", o mais conhecido, os demais raramente foram reeditados apesar da importância que os críticos atribuem ao escritor. "O Coronel Sangrado" foi publicado em 1877. Noventa e um anos depois, em 1968, a Universidade Federal do Pará reeditou o livro, revelando para muitos a concisão, a velocidade e a atualidade da narrativa do romancista obidense.
Na apresentação daquela reedição, o reitor José da Silveira Neto saudou a obra como romance que mais vigorosamente revelava os dons excepcionais de prosador e romancista de Inglês de Sousa. Para reeditar o livro em 1968, a reitoria recorreu aos serviços gráficos da Companhia Gráfica Lux, do Rio de Janeiro, a mesma que imprimiu importantes obras à universidade, entre as quais, Compêndio das Eras da Província do Pará, de Antonio Ladislau Monteiro Baena, e os três volumes do célebre Motins Políticos, de Domingos Antonio Raiol.
A brochura de 168 páginas recebeu discreto acabamento editorial, em capa cor de rosa e título em cor vermelha. O importante foi resgatar o escritor Inglês de Sousa e torná-lo acessível aos leitores.
Passados exatos 35 anos daquela primeira reedição, a UFPA volta a reeditar a obra, agora com apoio do Banco da Amazônia. E desta vez, o faz com tratamento editorial especial. O livrou ganhou mais 76 páginas, uma apresentação escrita por Amarílis Tupiassu, orelhas assinadas por José Arthur Bogéa e fotografias, que permitem ao leitor identificar cenários nos quais a narrativa se passa, como, por exemplo, a casa, ainda existente, do Coronel Sangrado e a igreja para qual convergia o tumultuado processo eleitoral de Óbidos, ricamente descrito pelo autor num dos melhores capítulos do livro.
Com 244 páginas, a nova edição foi impressa na Gráfica Universitária da UFPA. Durante a 18ª Bienal Internacional do Livro, no Rio de Janeiro, a Editora Universitária realizou o lançamento nacional da obra. O lançamento em Belém será no dia 4 de setembro, na Livraria do Campus, em meio a um evento que reunirá especialistas em Inglês de Sousa, o literato e o jurista. Será o grande evento editorial universitário do ano, segundo revela Laïs Zumero, diretora da Edufpa.
Na apresentação da segunda reedição, o reitor Alex Fiúza de Mello faz alusão à maestria do escritor em revelar a Amazônia do século XIX. Para ele, a obra de Inglês de Sousa é "um documento social que retrata variados aspectos da região: a Amazônia do cacau, da pesca, da política, a sociedade regional, onde a vida é sempre luta, do homem contra a natureza, do homem contra o homem".
A Editora Universitária da UFPA planeja publicar, em breve, o primeiro livro de Inglês de Sousa, "O Cacaulista", obra de 1876. E sonha entregar ao leitor o segundo livro, "História de um Pescador", também publicado naquele mesmo ano. Esses dois livros e mais "O Coronel Sangrado" integram a rubrica Cenas da Vida do Amazonas.
Especialista acusa descaso da indústria de editoração
No prefácio da nova edição, Amarílis Tupiassu, doutora em Teoria Literária, professora da UFPA e da Universidade da Amazônia, afirma que "O Coronel Sangrado" é um livro que, "se oferecido a circular na esfera benfazeja da busca do prazer estético, glorificará Inglês de Sousa".
"Livro de muitos méritos, anula a impressão de prolixidade e de escrita arrastada advinda de "O Missionário", fraquezas sem dúvida resultantes do acúmulo de descrições ao gosto do Realismo-Naturalismo", ressalta.
Apesar da prolixidade, "O Missionário" se tornou o livro mais conhecido do escritor paraense. Ganhou muitas reedições, algumas no formato de bolso, foi leitura obrigatória em concurso vestibular e ainda pode ser encontrado nas livrarias. Os outros livros de Inglês de Sousa, porém, "são raridades continuamente sonegadas à leitura pelo descaso da indústria da editoração",afirma Tupiassu.
Para ela, é preciso ler e estudar 'O Coronel', deliciar-se com a Óbidos de 1870, o espaço e o tempo da história. "O livro flui, derrama-se, envolve, puxa o leitor pelas franjas da escrita desataviada dos formalismos de um registro erudito. É um livro moderno, vincado pela atualidade da concepção dos 'casos'. Por ele, pode-se constatar as mazelas de ontem persistindo nas mazelas de hoje".
Dentre os livros escritos entre 1875 e 1876, sob a rubrica Cenas da Vida Amazônica, quando Inglês de Sousa concluía, entre Recife e São Paulo, o curso de Direito, "O Coronel Sangrado" é apontado pelo escritor Josué Montello, no prefácio da reedição de 68, como "livro que revela, nessa hora matinal, os pendores de romancista e o que confere a seu autor uma preeminência cronológica, na história do romance naturalista em nosso país". Ou seja, foi Inglês de Sousa quem, indiscutivelmente, primeiro escreveu dentro dos ditames da nova escla Realista no Brasil.

Autor e obra na visão de críticos e escritores
Para José Arthur Bogéa, escritor e professor do curso de Letras da UFPA, Inglês de Sousa se destaca com uma característica particular em toda escritura: o enfoque principal sobre o homem amazônico, acima da paisagem e do exotismo.
Na avaliação crítica de Araripe Júnior "O Coronel Sangrado" é um livro que entontece, embriaga e farta como bebida forte do Amazonas. Por sua vez, Olívio Montenegro considera o romance mais organicamente vivo e completo da escola naturalista.
Lúcia Miguel Pereira, um dos nomes mais respeitados da crítica literária brasileira, julga ser "O Coronel Sangrado" não apenas o melhor livro de Inglês de Sousa como um dos melhores do gênero na literatura nacional.
Para Alfredo Bosi, em sua "História Concisa da Literatura Brasileira", Inglês de Sousa era um hábil narrador regional, dotado de um temperamento frio e inclinado ao exame dos fatos.
O filósofo Benedito Nunes ressalta que "os contos e romances de Inglês de Sousa constituem enorme painel sócio-político do Pará e de toda Amazônia, elaborado por uma narrativa ficcional de extrema acuidade nos detalhes da ação e no caráter dos personagens, cuja escrita, assimilando os termos das línguas indígenas incorporados à linguagem oral dos nortistas, ainda nos seduz com a sua aptidão para criar a imaginária atmosfera de ambiências locais".
Vicente Salles atesta que a obra de Inglês de Sousa permite ao leitor divisar como era a vida numa pequena comunidade interiorana da Amazônia na segunda metade do século XIX, o que a torna um verdadeiro documento sociológico.
Por sua vez, o crítico Wilson Martins afirma que Inglês de Sousa antecipa o enfoque político presente na obra de Jorge Amado ao escrever sobre o ciclo do cacau amazônico em perspectiva balzaquiana e romancear a vida política provinciana.
Algumas dessas considerações estão descritas de forma pormenorizadas no livro "O Romance da Vida Amazônica, uma Leitura Socioantropológica da Obra de Inglês de Sousa", de Mauro Vianna Barreto.

Paulo Maués Corrêa analisa a obra de Inglês de Souza
A obra do escritor paraense Inglês de Sousa é analisada no livro "Inglês de Sousa em todas as letras", de autoria do professor Paulo Maués Corrêa. O lançamento acontece hoje, a partir das 18 horas, no Largo do Boticário. "Inglês de Sousa em todas as letras" é uma espécie de introdução à obra do autor, proporcionando uma visão panorâmica sobre os livros "O cacaulista" (1876), "Histórias de um pescador" (1876), "O coronel sangrado" (1877), "O missionário" (1891) e um livro de contos datado de 1893, que Paulo diz ser o mais difícil de ser encontrado - "O coronel sangrado" foi recentemente reeditado pela Unama, que promete ainda para este ano fazer o mesmo com "O cacaulista". "A intenção é introduzir o leitor à obra do Inglês e depois remetê-lo para a leitura dos originais", explica o professor. Ele conta que o livro está organizado em ordem alfabética de referências às obras, e faz uma revisão acerca do que chama de "fortuna crítica" sobre o autor. Paulo também promove uma série de interpretações dos livros, e destaca aspectos do texto de Inglês de Sousa, como a relação entre literatura e erotismo, literatura e história, literatura e mito. "Esses pontos aparecem nos livros de forma esparsa, e eu agrupei as informações", explica. O professor começou a analisar a obra de Inglês de Sousa por sugestão do também escritor José Arthur Bogéa, em 1997. Ele partiu de um conto, "Acauã", e foi ampliado para o livro de contos como um todo, até passar para os romances. Com o livro, Paulo pretende jogar mais luz no trabalho do autor. "A distância dos leitores é com grande parte dos autores paraenses em geral, não só com as obras do Inglês, tanto que os estudos sobre eles são poucos. O Dalcídio Jurandir é a bola da vez, com todo mérito, mas pouco se fala do restante dos escritores", lamenta. Como são poucas as informações, Paulo fez questão de destacar no livros as referência mais recentes a estudos sobre o autor que é seu foco, entre eles "Cenas da vida amazônica - Ensaio sobre a narrativa de Inglês de Sousa", de autoria de Marcus Vinícius Leite (2002), "O romance da vida amazônica - Uma leitura socioantropológica da obra literária de Inglês de Sousa", de Mauro Barreto (2001) e uma edição especial da revista "Asas da palavra", editado pela Unama, que faz referência ao autor.









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CONTOS AMAZÔNICOS - INGLÊS DE SOUSA
Sinopse:
O escritor, jurista e político paraense Inglês de Sousa introduziu a escola Naturalista no Brasil, mediante uma obra voltada para a natureza e a vida amazônicas. Seus primeiros trabalhos literários foram publicados sob o pseudônimo Luís Dolzani. A partir do primeiro trabalho, O Cacaulista, fez dos problemas humanos da Amazônia a preocupação central de sua obra. Contos Amazônicos (1893) é um dos seus livros mais conhecidos. Neste trabalho — documento fiel da língua do Pará —, aparecem os modismos, o vocabulário e os costumes típicos da região amazônica. No volume estão enfeichados os contos: Voluntário, A Feiticeira, Amor de Maria, Acauã, O Donativo do Capitão Silvestre, O Gado do Valha-me-Deus, O Baile do Judeu, A Quadrilha de Jacó Patacho e O Rebelde
Contos Amazônicos - Comentário
Inglês de Sousa (1853-1918) foi testemunha de uma notável época de transformações políticas, religiosas e literárias no Brasil.
À questão social, vista na chaga vergonhosa da escravidão, segue-se a questão religiosa, abalando os alicerces do catolicismo, até então intocável.
A guerra do Paraguai mostra as deficiências da organização militar e faz a monarquia sofrer os primeiros abalos. O Segundo Império deixava escapar a sua falência, subjugado pelo espírito das campanhas abolicionista e republicana, que se acentuam a partir de 1870.
É nesse contexto que Inglês de Sousa escreve seus Contos amazônicos, publicados em 1893. Os contos são como capítulos seriados de um romance que situa e constrói a região amazônica aos olhos do leitor e em que o exótico é aos poucos transfigurado, transformando-se na coisa como ela é. Nietzsche falava que somente aquilo que é maior — o presente, seria capaz de julgar o passado.
É preciso parâmetro para se lançar ao julgamento do que é, de fato, boa literatura, a ser guardada nos manuais para a posteridade.
“Contos Amazônicos”, do paraense Inglês de Sousa, respeita esses preceitos, destacando-se na literatura nacional pelo que representou no naturalismo de língua portuguesa. As nove histórias que compõem a obra mostram o vigor lingüístico do autor, dosando ficção com o relato descritivo e, portanto real, de uma das regiões do País mais suscetíveis a lendas e estórias — a Amazônia.
Inglês de Sousa enquadra-se no mesmo time de escritores influenciados pelo cientificismo nas últimas décadas do século XIX e através da literatura francesa, sobretudo de Émile Zola. Para esses autores, a ciência seria capaz de justificar todos os fenômenos da natureza, inclusive o modo como o homem se sobressai às forças naturais. Alia-se a isso a série de mudanças que o autor acompanha no país, como a derrocada de crenças e instituições à época em falência. Esses cenários fizeram de Inglês de Sousa um personagem diferenciado entre os demais autores de sua escola literária.
Em “Contos Amazônicos”, o naturalismo aproxima os textos de Sousa, quase crônicas da selva, de um enfoque jornalístico ou histórico. A literatura sai ganhando com as descrições minutas do cenário principal, a floresta,
e com o vocabulário regional, inclusive citado ao final do livro em glossário.
“Contos Amazônicos” recupera a imagem da luta do homem com o meio selvagem, somando-se a isso os embates sociais e políticos do final do século XIX . O compromisso de Inglês de Sousa, que também ocupou cargos públicos, é com a realidade, daí o realismo naturalista pulsante em seus textos, uma homenagem a região em
que nasceu e viveu antes de mudar-se para São Paulo.
Prof. Eustáquio Lagoeiro Castelo Branco
A quadrilha de Jacob Patacho - Inglês de Sousa
Eram sete horas, a noite estava escura, e o céu ameaçava chuva.
Terminara a ceia, composta de cebola cozida e pirarucu assado, o velho Salvaterra dera graças a Deus pelos favores recebidos; a sora Maria dos Prazeres tomava pontos em umas velhas meias de algodão muito remendadas; a Anica enfiava umas contas destinadas a formar um par de braceletes, e os dois rapazes, espreguiçando-se, conversavam em voz baixa sobre a última caçada. Alumiava as paredes negras da sala uma candeia de azeite, reinava um ar tépido de tranqüilidade e sossego, convidativo do sono. Só se ouviam o murmúrio brando do Tapajós e o ciciar do vento nas folhas das pacoveiras. De repente, a Anica inclinou a linda cabeça, e pôs-se a escutar um ruído surdo que se aproximava lentamente.
- Ouvem? - perguntou.
O pai e os irmãos escutaram também por alguns instantes, mas logo concordaram, com a segurança dos habitantes de lugares ermos:
- É uma canoa que sobe o rio.
- Quem há de ser?
- A estas horas, - opinou a sora Maria dos Prazeres, - não pode ser gente de bem.
- E por que não, mulher? - repreendeu o marido, - isto é alguém que segue para Irituia.
- Mas quem viaja a estas horas? - insistiu a timorata mulher.
- Vem pedir-nos agasalho, redargüiu. - A chuva não tarda, e esses cristãos hão de querer abrigar-se.
A sora Maria continuou a mostrar-se apreensiva. Muito se falava então nas façanhas de Jacob Patacho, nos assassinatos que a miúdo cometia; casos estupendos se contavam de um horror indizível: incêndios de casas depois de pregadas as portas e janelas para que não escapassem à morte os moradores. Enchia as narrativas populares a personalidade do terrível Saraiva, o tenente da quadrilha cujo nome não se pronunciava sem fazer arrepiar as carnes aos pacíficos habitantes do Amazonas. Félix Salvaterra tinha fama de rico e era português, duas qualidades perigosas em tempo de cabanagem. O sítio era muito isolado e grande a audácia dos bandidos. E a mulher tinha lágrimas na voz lembrando estes fatos ao marido.
Mas o ruído do bater dos remos n'água cessou, denotando que a canoa abicara ao porto do sítio. Ergueu-se Salvaterra, mas a mulher agarrou-o com ambas as mãos:
- Onde vais, ó Felix?
Os rapazes lançaram vistas cheias de confiança às suas espingardas, penduradas na parede e carregadas com bom chumbo, segundo o hábito de precaução naqueles tempos infelizes; e seguiram o movimento, do pai. A Anica, silenciosa, olhava alternativamente para o pai e para os irmãos.
Ouviram-se passos pesados no terreiro, e o cão ladrou fortemente. Salvaterra desprendeu-se dos braços da mulher e abriu a porta. A escuridão da noite não deixava ver coisa alguma, mas uma voz rústica saiu das trevas.
- Boa-noite, meu branco.
Quem está aí? - indagou o português. - Se é de paz, entre com Deus.
Então dois caboclos apareceram no círculo de luz projetado fora da porta pela candeia de azeite. Trajavam calças e camisa de riscado e traziam na cabeça grande chapéu de palha. O seu aspecto nada oferecia de peculiar e distinto dos habitantes dos sítios do Tapajós.
Tranqüilo, o português afastou-se para dar entrada nos noturnos visitantes. Ofereceu-lhes da sua modesta ceia, perguntou-lhes donde vinham e para onde iam.
Vinham de Santarém, e iam a Irituia, à casa do tenente Prestes levar uma carga de fazendas e molhados por conta do negociante Joaquim Pinto; tinham largado do sítio de Avintes às quatro horas da tarde, contando amanhecer em Irituia, mas o tempo se transtornara à boca da noite, e eles, receando a escuridão e a pouca prática que tinham daquela parte do rio, haviam deliberado parar no sítio de Salvaterra, e pedir-lhe agasalho por uma noite. Se a chuva não desse, ou passasse com saída da lua para a meia-noite, continuariam a sua viagem.
Os dois homens falavam serenamente, arrastando as palavras no compasso preguiçoso do caboclo que parece não ter pressa de acabar de dizer. O seu aspecto nada oferecia de extraordinário. Um, alto e magro, tinha a aparência doentia; o outro reforçado, baixo, e de cara bexigosa, não era simpático à dona da casa, mas afora o olhar de lascívia torpe que dirigia a Anica, quando julgava que o não viam, parecia a criatura mais inofensiva deste mundo.
Depois que a sora Maria mostrou ter perdido os seus receios, e que a Anica serviu aos caboclos os restos da ceia frugal daquela honrada família, Salvaterra disse que eram horas de dormir. O dia seguinte era de trabalho e convinha levantar cedo para ir em busca da pequena e mais da malhada, duas vacas que lhe haviam desaparecido naquele dia. Então um dos tapuios, o alto, a quem o companheiro chamava cerimoniosamente - seu João - levantou-se e declarou que iria dormir na canoa, a qual posto que muito carregada, dava acomodação a uma pessoa, pois era uma galeota grande. Salvaterra e os filhos tentaram dissuadi-lo do projeto, fazendo ver que a noite estava má e que a chuva não tardava, mas o tapuio, apoiado pelo companheiro, insistiu. Nada, que as fazendas não eram dele e seu Pinto era um branco muito rusguento, e sabia lá Deus o que podia acontecer; os tempos não andavam bons, havia muito tapuio ladrão aí por esse, acrescentava como um riso alvar, e de mais ele embirrava com esta história de dormir dentro de uma gaiola. Quanto à chuva pouco se importava, queria segurança e agasalho para as fazendas: ele tinha o couro duro e um excelente japá na tolda da galeota.
No fundo quadrava perfeitamente à sora Maria a resolução do seu João, não só porque pensava que mais vale um hóspede do que dois, como também por lhe ser difícil acomodar os dois viajantes na sua modesta casinha. Assim não duvidou aplaudir a lembrança, dizendo ao marido:
- Deixa lá, homem, cada um sabe de si e Deus de todos.
O caboclo abriu a porta e saiu acompanhado pelo cão de guarda, cuja cabeça amimava, convidando-o para lhe fazer companhia, por via das dúvidas. A noite continuava escura como breu. Lufadas de um vento quente, prenúncio de tempestade, açoutavam nuvens negras que corriam para o sul como fantasmas em disparada. As árvores da beirada soluçavam, vergadas pelo vento, e grossas gotas de águas começavam a cair sobre o chão ressequido, de onde subia um cheiro ativo de barro molhado.
- Agasalhe-se bem, patrício, - gritou o português ao caboclo que saía. E, fechando a porta com a tranca de pau, veio ter com a família.
Logo depois desejavam boa-noite uns aos outros; o hóspede que deu o nome de Manuel, afundou-se numa rede, que lhe armaram na sala, e ainda não havia meia hora que saíra seu João, já a sora Maria, o marido e os filhos dormiam o sono reparador das fadigas do dia, acalentado pela calma de uma consciência honesta.
A Anica depois de rezar à Virgem das Dores, sua padroeira, não pudera fechar os olhos. Impressionara-a muito o desaparecimento da pequena e da malhada, que acreditava filho de um roubo, e sem querer associava na sua mente a esse fato as histórias terríveis que lhe lembrara a mãe pouco antes, sobre os crimes diariamente praticados pela quadrilha de Jacob Patacho. Eram donzelas raptadas para saciar as paixões dos tapuios; pais de família assassinados barbaramente; crianças atiradas ao rio com uma pedra ao pescoço, herdades incendiadas, um quatro interminável de atrocidades inauditas que lhe dançava diante dos olhos, e parecia reproduzido nas sombras fugitivas projetadas nas paredes de barro escuro do seu quartinho pela luz vacilante da candeia de azeite de mamona.
E por uma singularidade, que a rapariga não sabia explicar, em todos aqueles dramas de sangue e de fogo havia uma figura saliente, o chefe, o matador, o incendiário, demônio vivo que tripudiava sobre os cadáveres quentes das vítimas, no meio das chamas dos incêndios, e, produto de um cérebro enfermo, agitado pela vigília, as feições desse monstro eram as do pacífico tapuio que ela ouvia roncar placidamente no fundo da rede na sala vizinha. Mas por maiores esforços que a moça fizesse para apagar da sua imaginação a figura baixa e bexigosa do hóspede, rindo nervosamente da sua loucura, mal fechava os olhos, lá lhe apareciam as cenas de desolação e de morte, no meio das quais progrediam os olhos ardentes, o nariz chato e a boca desdentada do tapuio, cuja figura, entretanto, desenrolava-se inteira na sua mente espavorida, absorvendo-lhe a atenção e resumindo a tragédia feroz que o cérebro imaginava.
Pouco a pouco, procurando provar a si mesma que o hóspede nada tinha de comum com o personagem que sonhara, e que a sua aparência era toda pacífica, de um pobre tapuio honrado e inofensivo, examinando-lhe mentalmente uma a uma as feições, foi-lhe chegando a convicção de que não fora aquela noite a primeira vez que o vira, convicção que se arraigava no seu espírito, à medida que se lhe esclarecia a memória. Sim, era aquele mesmo; não era a primeira vez que via aquele nariz roído de bexigas, aquela boca imunda e servil, a cor azivranhada, a estatura baixa e vigorosa, sobretudo aquele olhar indigno, desaforado, torpe que a incomodara tanto na sala, queimando-lhe os seios. Já uma vez fora insultada por aquele olhar. Onde? Como? Não podia lembrar-se, mas com certeza não era a primeira vez que o sentia. Invocava as suas reminiscências. No Funchal não podia ser; no sítio também não fora; seria no Pará quando chegara com a mãe, ainda menina, e acomodaram-se em uma casinha da rua das Mercês? Não; era mais recente, muito mais recente. Bem; parecia recordar-se agora. Fora em Santarém, havia coisa de dois anos ou três, quando ali estivera com o pai para assistir a uma festa popular, o sahiré. Hospedara-se então na casa do negociante Joaquim Pinto, patrício e protetor de seu pai, e foi ali, em uma noite de festa, quando se achava em companhia de outras raparigas sentada à porta da rua, a ver passar a gente que voltava de igreja, que se sentiu atormentada por aquele olhar lascivo e tenaz, a ponto de retirar-se para a cozinha trêmula e chorosa. Sim, nenhuma dúvida mais podia haver, o homem era um agregado de Joaquim Pinto, um camarada antigo da casa, por sinal que, segundo lhe disseram as mucamas da mulher do Pinto, era de Cametá e se chamava Manuel Saraiva.
Neste ponto de suas reminiscências, a Anica foi assaltada por uma idéia medonha que lhe fez correr um frio glacial pela espinha dorsal, ressecou-lhe a garganta, e inundou-lhe de suor a fronte. Saraiva! Mas era este o nome do famigerado tenente de Jacob Patacho, cuja reputação de malvadez chegara aos recônditos sertões do Amazonas, e cuja atroz e brutal lascívia excedia em horror aos cruéis tormentos que o chefe da quadrilha inflingia às suas vítimas. Seria aquele tapuio de cara bexigosa e ar pacífico o mesmo salteador da baía do Sol e das águas dos Amazonas, o bárbaro violador de virgens indefesas, o bandido, cujo nome mal se pronunciava nos serões das famílias pobres e honradas, tal o medo que incutia? Seria aquele homem de maneiras sossegadas e corteses, de falar arrastado e humilde o herói dos estupros e dos incêndios, a fera em cujo coração de bronze jamais pudera germinar o sentimento da piedade?
A idéia da identidade do tapuio que dormia na sala vizinha com o tenente de Jacob Patacho, gelou-a de terror. Perdeu os movimentos e ficou por algum tempo fria, com a cabeça inclinada para trás, a boca entreaberta e os olhos arregalados, fixos na porta da sala; mas de repente o clarão de um pensamento salvador iluminou-lhe o cérebro; convinha não perder tempo, avisar o pai e os irmãos, dar o grito de alarma; eram todos homens possantes e decididos, tinham boas espingardas; os bandidos eram dois apenas, seriam prevenidos, presos antes de poderem oferecer séria resistência. Em todo o caso, fossem ou não fossem assassinos e ladrões, mais valia estarem os de casa avisados, passarem uma noite em claro do que correrem o risco de serem assassinados a dormir. Saltou da cama, enfiou as saias e correu para a porta, mas a reflexão fê-la estacar cheia de desânimo. Como prevenir o pai, sem correr a eventualidade de acordar o tapuio? A sala em que este se aboletara interpunha-se entre o seu quarto e o de seus pais; para chegar ao dormitório dos velhos era forçoso passar por baixo da rede do caboclo, que não podia deixar de acordar, principalmente ao ruído dos gonzos enferrujados da porta que, por exceção e natural recato da moça, se fechara aquela noite. E se acordasse seria ela talvez a primeira vítima, sem que o sacrifício pudesse aproveitar à sua família.
Um silvo agudo, imitante do canto do urutaí, arrancou-a a estas reflexões, e pondo os ouvidos à escuta, pareceu-lhe que o tapuio da sala vizinha cessara de ressonar. Não havia tempo a perder, se queria salvar os seus. Lembrou-se então de saltar pela janela, rodear a casa e ir bater à janela do quarto do pai. Já ia realizar esse plano quando cogitou de estar o outro tapuio, o seu João, perto da casa para responder ao sinal do companheiro, e entreabriu com toda precaução a janela, espreitando pelo vão.
A noite estava belíssima.
O vento forte afugentara as nuvens para o sul, e a lua subia lentamente no firmamento, prateando as águas do rio e as clareiras da floresta. A chuva cessara inteiramente, e do chão molhado subia uma evaporação de umidade, que, misturada ao cheiro ativo das laranjeiras em flor, dava aos sentidos uma sensação de odorosa frescura.
A princípio a rapariga, deslumbrada pelo luar, nada viu, mas afirmando a vista percebeu umas sombras que se esgueiravam por entre as árvores do porto, e logo depois distinguiu vultos de tapuios cobertos de grandes chapéus de palha, e armados de terçados, que se dirigiam para a casa.
Eram quinze ou vinte, mas à rapariga de susto pareceu uma centena, porque de cada tronco de árvore a sua imaginação fazia um homem.
Não havia que duvidar. Era a quadrilha de Jacob Patacho que assaltava o sítio.
Todo o desespero da situação em que se achava apresentou-se claramente à inteligência da rapariga. Saltar pela janela e fugir, além de impossível, porque a claridade da lua a denunciaria aos bandidos, seria abandonar seus pais e irmãos, cuja existência preciosa seria cortada pelo punhal dos sicários de Patacho durante o sono, e sem que pudessem defender-se ao menos. Ir acordá-los seria entregar-se às mãos do feroz Saraiva, e sucumbir aos seus golpes antes de realizar o intento salvador. Que fazer? A donzela ficou algum tempo indecisa, gelada de terror, com o olhar fixo nas árvores do porto, abrigo dos bandidos, mas de súbito, tomando uma resolução heróica, resumindo todas as forças em um supremo esforço, fechou rapidamente a janela e gritou com todo o vigor dos seus pulmões juvenis:
- Aqui d'el-rei! Os de Jacob Patacho!
A sua voz nervosa repercutiu como um brado de suprema angústia pela modesta casinha, e o eco foi perder-se dolorosamente, ao longe, na outra margem do rio, dominando o ruído da corrente e os murmúrios noturnos da floresta. Súbito rumor fez-se na casa até então silenciosa, rumor de espanto e de sobressalto em que se denunciava a voz rouca e mal segura de pessoas arrancadas violentamente a um sono pacífico; a rapariga voltou-se para o lado da porta da sala, mas sentiu-se presa por braços de ferro, ao passo que um asqueroso beijo, mordedura de réptil antes do que humana carícia, tapou-lhe a boca. O tapuio bexigoso, Saraiva, sem que a moça o pudesse explicar, entrara sorrateiramente no quarto, e se aproximara dela sem ser pressentido.
A indignação do pudor ofendido e a repugnância indizível que se apoderou da moça ao sentir o contato dos lábios e do corpo do bandido, determinaram uma resistência que o seu físico delicado parecia não poder admitir. Uma luta incrível se travou entre aquela branca e rosada criatura seminua e o tapuio que a enlaçava com os braços cor de cobre, dobrando-lhe o talhe flexível sob a ameaça de novo contato de sua boca desdentada e negra, e procurando atirá-la ao chão. Mas a rapariga segurara-se ao pescoço do homem com as mãos crispadas pelo esforço espantoso do pudor e do asco, e o tapuio, que julgara fácil a vitória, e tinha as mãos ocupadas em apertar-lhe a cintura em um círculo de ferro, sentiu faltar-lhe o ar, opresso pelos desejos brutais que tanto o afogavam quanto a pressão dos dedos nervosos e afilados da vítima.
Mas se a sensualidade feroz do Saraiva, unida à audácia que lhe inspirara a consciência de terror causado por sua presença lhe fazia esquecer a prudência que tanto o distinguia antes do ataque, o brado de alarma solto pela rapariga dera aos quadrilheiros de Patacho um momento de indecisão. Ignorando o que se passava na casa, e as circunstâncias em que se achava o tenente comandante da expedição, cederam a um movimento de reserva, da índole do caboclo, e voltaram a esconder-se por detrás dos troncos de árvores que ensombravam a ribanceira. A moça ia cair exausta de forças, mas teve ainda ânimo para gritar com suprema energia:
- Acudam, acudam, que me matam!
Bruscamente o Saraiva largou a mão da Anica, e atirou-se para a janela, naturalmente para abri-la, e chamar os companheiros, percebendo que era tempo de agir com resolução, mas a moça advertindo-se do intento, atravessou-se no caminho, com inaudita coragem, opondo-lhe com o corpo um obstáculo que de fácil remoção seria para o tapuio, se nesse momento, abrindo-se de par em par, a porta da sala não desse entrada a Félix Salvaterra, seguido por dois filhos, todos armados de espingardas. Antes que o tenente de Jacob Patacho tivesse podido defender-se, caía banhado em sangue com uma valente pancada no crânio que lhe deu o velho com a coronha da arma.
O português e os filhos mal despertos do sono, com as roupas em desalinho, não se deixaram tomar do susto e da surpresa, expressa em dolorosos gemidos pela sora Maria dos Prazeres, que abraçada à filha, cobria-a de lágrimas quentes. Pai e filhos compreenderam perfeitamente a gravidade da situação em que se achavam; o silêncio e ausência do cão de guarda, sem dúvida morto à traição, e a audácia do tapuio bexigoso, mais ainda do que o primeiro grito da filha, do qual apenas haviam ouvido ao despertar o nome do terrível pirata paraense, os convenceram de que não haviam vencido o último inimigo, e enquanto um dos moços apontava a espingarda ao peito do tapuio que banhado em sangue tinha gravados na moça os olhos ardentes de volúpia, Salvaterra e o outro filho voltaram à sala, com o fim de guardar a porta de entrada. Esta porta tinha sido aberta, achava-se apenas cerrada apesar de havê-la trancado o dono da casa quando despediu o caboclo alto. Foram os dois homens para pôr-lhe novamente a tranca, mas já era tarde.
Seu João, o companheiro de Saraiva mais afoito do que os outros tapuios, chegara à casa, e percebendo que o seu chefe corria grande perigo, assobiou de um modo peculiar, e em seguida, voltando-se para os homens que se destacavam das árvores do porto, como visões de febre, emitiu na voz cultural do caboclo o brado que depois se tornou o grito de guerra da cabanagem:
- Mata marinheiro! Mata! Mata!
Os bandidos correram e penetraram na casa. Travou-se então uma luta horrível entre aqueles tapuios armados de terçados e de grandes cacetes quinados de massaranduba, e os três portugueses que heroicamente defendiam o seu lar, valendo-se das espingardas de caça, que, depois de descarregados, serviram-lhes de formidáveis maças.
O Saraiva recebeu um tiro à queima-roupa, o primeiro tiro, pois que o rapaz que o ameaçava, sentindo entrarem na sala os tapuios, procurara livrar-se logo do pior deles, ainda que por terra e ferido: mas não foi longo o combate; enquanto mãe e filha, agarradas uma à outra, se lamentavam desesperada e ruidosamente, o pai e os filhos caíam banhados em sangue, e nos seus brancos cadáveres a quadrilha de Jacob Patacho vingava a morte de seu feroz tenente, mutilando-os de um modo selvagem.
Quando passei com meu tio Antônio em junho de 1932 pelo sítio de Félix Salveterra, o lúgubre aspecto da habitação abandonada, sob cuja cumieira um bando de urubus secava as asas ao sol, chamou-me a atenção; uma curiosidade doentia fez-me saltar em terra e entrei na casa. Ainda estavam bem recentes os vestígios da luta. A tranqüila morada do bom português tinha um ar sinistro. Aberta, despida de todos os modestos trastes que a ornavam outrora, denotava que fora vítima do saque unido ao instinto selvagem da destruição. Sobre o chão úmido da sala principal, os restos de cinco ou seis cadáveres, quase totalmente devorados pelos urubus, enchiam a atmosfera de emanações deletérias. Era medonho de ver-se.
Só muito tempo depois conheci os pormenores desta horrível tragédia, tão comum, aliás, naqueles tempos da desgraça.
A sora Maria dos Prazeres e a Anica haviam sido levadas pelos bandidos, depois do saque de sua casa. A Anica tocara em partilha a Jacob Patacho, e ainda o ano passado, a velha Ana, lavadeira de Santarém, contava, estremecendo de horror, os cruéis tormentos que sofrera em sua atribulada existência.
(Contos amazônicos, 1893.)
(Apostila 18 de Realismo - Literatura Brasileira)



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A CARNE, de Júlio Ribeiro (resumo)
A obra A Carne de Júlio Ribeiro é um romance naturalista publicado em 1888 que aborda temas até então ignorados pela literatura da época, como divórcio, amor livre e um novo papel para a mulher na sociedade.
O livro conta a história da garota Lenita, cuja mãe morrera em seu nascimento e o pai educara-a ministrando-lhe instrução acima do comum. Lenita era uma garota especial, inteligente e cheia de vida.
No entanto, aos 22 anos, após a morte de seu pai, tornou-se uma jovem extremamente sensível e teve sua saúde abalada. Com o intuito de sentir-se melhor, Lenita decide ir viver no interior de São Paulo, na fazenda do coronel Barbosa, velho que havia criado seu pai. Lá, conhece Manuel Barbosa, o filho do coronel. Manuel era um homem já maduro e exímio conhecedor das coisas da vida, vivia trancado no quarto com seus livros e periodicamente partia para longas caçadas; vivera por dez anos na Europa, onde se casara com uma francesa de quem separara-se há muito tempo. Lenita firmara uma sólida amizade com Manuel, que, aos poucos, vai se revelando uma tórrida paixão, no início, repelida por ambos, mas depois consolidada com fervor em nome do forte desejo da "carne".
Lenita desde logo revela-se uma moça dominada pelos desejos da carne, o que ela buscava não era propriamente o amor, mas a satisfação de seus desejos sexuais. Num episódio em que assiste a tortura que sofria um escravo, sentiu prazer ao ver a carne açoitada com violência. “... do alto do céu no lodo da terra, sentia-se ferida pelo aguilhão da carne, espoliar-se nas concupiscências do cio, como uma negra boçal, como uma cabra, como um animal qualquer... era a suprema humilhação.”
Lenita diante da presença afetuosa do Coronel Barbosa chega a desejá-lo, e o mesmo Coronel também se remói diante do pensamento de ter Lenita como amante, diante do impasse, resolve viajar a negócios.
Passou a considerar a possibilidade do namoro com o filho do Coronel Barbosa, embora a sua figura, em princípio não correspondia ao ideal de homem que pensava pudesse satisfazer os seus desejos. As impossibilidades do casamento, por ser Manuel um homem que já havia contraído o matrimônio, não afligiam Lenita, visto que, sonhava apenas com a realização dos desejos da carne, descartando a possibilidade de uma mera amizade. O livro narra a ardente trajetória desse romance singular, marcado por encontros e desencontros, prazer e violência, desejo e sadismo, batalha entre mente e carne. A história caminha para um trágico desfecho a partir do momento em que Lenita, encontrando cartas de outras mulheres guardadas por Manuel, sente-se traída e resolve abandoná-lo; estando grávida de três meses, casa-se com outro homem. Manuel, não suportando tamanha traição, suicida-se, o que comprova o resultado final da batalha "mente vs carne". O suicídio de Manuel é dramático e injetando curare nos minutos finais assiste ao desespero dos pais enquanto lhe passam na mente os pensamentos que o levara a tal atitude, chega a querer reverter o quadro, mas não tem como avisar os outros acerca do antídoto, pois o veneno o paralisa completamente triunfam os prazeres da carne, no trágico final, os desenganos da mente.
(Apostila 8 de Realismo - Literatura Brasileira)




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O Alienista - Machado de Assis (resumo, comentários e texto integral)
O Doutor Simão Bacamarte, cientista de nomeada, monta, em Itaguaí, um hospício, a Casa Verde, onde pretende executar seus projetos científicos. Pretende separar o reino da loucura do reino do perfeito juízo, mas a confusão em que ambas se misturam acaba aborrecendo o Doutor, que, para levar a efeito a seleção dos loucos, tem que saber o que é a normalidade. Assim, qualquer desvio do que era o comportamento médio, a aparência pública, qualquer movimento interior, que diferisse da norma da maioria era objeto de internação. O hospício é a Casa do Poder, e Machado de Assis sabia disso muito antes da antipsiquiatria de Lacan e das teses de Foucould.
No início, o projeto do Dr. Simão Bacamarte é bem recebido pela população de Itaguaí, mas a aprovação cessa quando o médico passa a recolher na Casa Verde, pessoas em cuja loucura a população não acredita. O barbeiro Porfírio lidera uma rebelião contra o hospício que é sufocada.
Numa primeira etapa, são internados os que, embora manifestassem hábitos ou atitudes discutíveis, eram tolerados pela sociedade: os politicamente volúveis, os sem opiniões próprias, os mentirosos, os falastrões, os poetas que viviam escrevendo versos empolados, os vaidosos, etc.
Para pasmo geral dos habitantes de ltaguaí, Simão Bacamarte, um dia, solta todos os recolhidos no hospício e adota critérios inversos para a caracterização da loucura: os loucos agora são os leais, os justos, os honestos etc.
A terapêutica para esses casos de loucura consistia em fazer desaparecer de seus pacientes as "virtudes", o que o Dr. Simão Bacamarte consegue com certa facilidade. Declara curados todos os loucos, solta-os todos e, reconhecendo-se como o único louco irremediável,o médico tranca-se na Casa Verde, onde morre alguns meses depois.
Net Literatura - Resumo de obras e biografias de autores brasileiros
http://www.netliteratura.hpg.com.br/
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Joaquim Maria MACHADO DE ASSIS é, sem dúvida, um dos mestres incontestáveis da arte do conto, indiscutivelmente, um dos maiores escritores da literatura universal, de sua grandeza e genialidade. Talvez, com todo o entendimento humano, com uma vasta experiência investigativa e especialista no autor, não seria suficiente para conhecermos e entendermos o mínimo desse seu ilimitado mundo e seu significado, de fantasia e transfiguração do espírito e da realidade, de sua importância e talento excepcional, mas sabemos que em toda nossa cultura moderna, dificilmente encontraríamos um manancial mais rico e mais puro de idéias em favor do homem e de sua elevação intelectual e moral de toda a sua obra, e vale lembrar de um verso do poema “A um bruxo com amor” de Carlos Drummond de Andrade, que diz: “Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro”, onde praticamente resume e podemos ter uma idéia considerável de sua importância e motivo de nosso entusiasmo para ressaltarmos e traçamos observações sobre o conto “O Alienista”.
Publicado pela primeira vez no jornal A ESTAÇÃO, sob a forma de folhetim, entre outubro de 1881 a março de 1882, e, nesse mesmo ano, concluído em Papéis Avulsos (livro de contos), alcançando repercussão imediata, indicando-o ao posto de um dos melhores contos, uma obra-prima de nossa literatura.
Esse é, com certeza, um dos contos mais formidáveis de Machado de Assis, cuja temática central, desenvolvida com uma certa dose de ironia, conduz o leitor numa eterna reflexão sobre os limites entre a insanidade e a razão. Em torno dessa temática, circula uma série de tramas que nos transportam ao nível da reflexão implicando temas variados dentro da trama central: loucura; limite entre razão e loucura; o poder da palavra; a loucura da ciência, e o que se faz em nome dela e outros aspectos que permitem determinar o que é loucura, porém, considerando que todos somos diferentes e extrapolamos, às vezes, o limite em diferentes aspectos da vida.
O autor lembra a relatividade das coisas e, principalmente, da alma humana, através do tema subjacente do homo absurdus, descreve momentos trágicos e analisa o procedimento humano mostrando a impossibilidade do transcorrer normal da vida porque ela é absurda por natureza. O movimento do querer (essência humana) gera a angústia e a dor, que somente serão superados por aqueles que estão além da razão.
Nesse conto, Machado de Assis dá ênfase especial ao questionamento do tema LOUCURA, o que é e o que ela significa, satirizando a filosofia, a atividade mental, por meio de uma personagem que se suicida mentalmente, recolhendo-se ao hospício, ao ver a inutilidade e a falência de seu raciocínio; faz desaparecer os limites entre ela e a razão, porém, não menosprezando, outras subestórias de relevância: CIÊNCIA E PODER, sendo possível todas andarem paralelamente num mundo verbal precioso e a abundância de detalhes.
O herói de “O Alienista” é o médico Simão Bacamarte, apresentado ao leitor com toda solenidade que requer um epíteto grandioso de “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”. Formou-se na Universidade de Coimbra, mas veio para o Brasil, Rio de Janeiro, mais especificamente exilando-se em Itaguaí, um fim de mundo que o doutor chamava de “meu universo”. Entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com a leitura. Homem culto por excelência, releu todos os escritores árabes e outros e até enviava consultas às universidades italianas e alemãs. Utilizava-se de métodos nada convencionais para tratar de seus pacientes, como fez com sua própria esposa, D. Evarista, em uma de suas enfermidades abusando de experiências meio que exageradas, e não duvidando de sua eficácia.
Bacamarte pensa que a ciência é tudo (casa-se com uma mulher insossa, mais jovem e pouco atraente apenas porque ela, cientificamente, lhe daria bons filhos, e isso não acontece). Ao cabo de algum tempo ele decide construir um manicômio, para internar os doentes mentais que andam soltos ou trancados de modo subumano. Mas sua concepção de loucura vai se alargando, e aos poucos, mais e mais pessoas vão sendo internadas, algumas por nada. A cidade vai revoltando-se em silêncio, alguns tentam fugir (alguns são capturados nisso), pensam que Bacamarte o faz por motivos pessoais; mas não, o faz por amor à ciência, tanto que pediu para não mais receber dinheiro para cuidar dos loucos. A revolta vai ganhando voz e a saúde mental do alienista duvidada . O povo em dado momento se revolta, e prestes a marchar contra o hospício (Casa Verde), é impedido pelos Dragões. Mas os Dragões se juntam a eles. Eles derrubam o governo municipal e seu líder, o barbeiro, toma o governo da vila. O outro barbeiro lidera uma revolta e, após uma estranha reviravolta, Bacamarte volta a ter apoio da Câmara. E continua internando os loucos, incluindo a esposa (vaidosa após voltar do Rio de Janeiro) até que percebe que 80% da população está na Casa Verde. Liberta todos e passa a capturar todos aqueles que gozam perfeitamente de suas capacidades mentais, que eram exceção na cidade. Ao fim de um ano e pouco, a Casa Verde encontra-se vazia, todos os são, simples, modestos e bons devidamente enlouquecidos. Bacamarte então faz auto-análise e, após discutir com outros, se recolhe à Casa Verde e morre depois de um ano e meio, sem sucesso em curar-se de sua sanidade.
A Casa Verde seria a instituição, o mundo, onde o povo insano era recolhido e tratado. O psiquiatra Bacamarte, em seus estudos, reformula o conceito de loucura, durante uma palestra com o boticário da cidade e seu confidente, diz-lhe que “A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”. As teorias sucessivas de Simão Bacamarte alargava ou reduzia terrenos da razão e da loucura, expondo definições do que seria patologia e sanidade em termos mentais.
Há, na obra, uma grande preocupação em fixar a problemática do homem universal, buscando inspiração nas ações cotidianas e no homem comum. O autor penetra na consciência das personagens, sondando-lhes o funcionamento e captando os impulsos contraditórios dos seres humanos, desmascarando o jogo das relações sociais, enfatizando o contraste entre a essência e a aparência, em que o sucesso financeiro é o objetivo primordial. O homem deixa de ser o centro, mas passa a ser parte de um sistema. Há algumas características marcantes, no conto, que não podemos deixar passar despercebidas: apreensão da realidade, o não-eu em nível de realidade e descrição, a precisão de detalhes, ocupando o lugar central enquanto técnica narrativa.
Sendo o século XIX “mais real que a própria vida” o autor transmite essa realidade, analisando em profundidade o mundo psicológico, observando o ambiente e, penetrando na alma humana a fim de desvendar “os abismos da consciência e do sentimento”.
A estrutura do conto é baseada numa linguagem hiperbólica que pode ser evidenciada através das tramas em que estão envolvidos as personagens, como D. Evarista e Porfírio, sendo estes levados ora à grandeza, ora à redução. Exemplificando, com o próprio prédio da Casa Verde que, em momentos da narrativa se encontra Superlotado e, no final, se reduz a um único habitante. No caso de D. Evarista, ocorre uma surpreendente transformação, ou seja, com a inauguração da Casa Verde, ela é vista pelo leitor como uma ilustre dama e, após algum tempo, este mesmo leitor adquire uma visão oposta à mesma personagem, pois a situação, se inverte. Em outro momento, Bacamarte e Porfírio debatem a situação deste, que, no momento se encontra no auge de sua ambição política, como chefe do movimento revolucionário. Aparentemente, Simão Bacamarte sai vencedor, utilizando-se de seu discurso convincente.
Machado narra as tramas com a ironia habitual, com malícia e intromissões, envolvendo ainda mais o leitor e personagem no mundo verbal.
A palavra, no conto “O Alienista” tem uma função importante e representativa, observa-se por seu intermédio, os objetivos das personagens centrais Simão Bacamarte, D. Evarista e também de um “louco” da Casa Verde, que têm medo de falar porque as estrelas cairiam; outro sujeito que se chamava João de Deus, acreditava ser Deus João, e prometia o reino dos céus para quem o adorasse.
O jogo de palavra, por vezes, não tem significação concreta, como o termo “Bastilha da razão humana”. O poder da palavra é convincente, com ou sem significação. O efeito é sempre profundo, mobilizador e funcional. O próprio narrador se utiliza da palavra para fugir a determinadas explicações e satisfações devidas ao leitor e ainda, para se manter tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante da narrativa.
Ainda há a considerar o aspecto estilístico. Machado atinge nessa obra o ápice de sua perfeição no que concerne à maneira pessoal de usar a língua, na escolha das palavras adequadas ao tema, nos padrões imagísticos, no ritmo, na linguagem figurada. Determinadas personagens, como os primeiros “loucos” levados à Casa Verde, sofrem o poder da palavra, sendo classificados como tais, isto é, como “loucos”. O poder da palavra nos leva, então, à demência verbal ou a sermos sábios. Em muitas passagens, Simão Bacamarte se utiliza do poder verbal para defender a Casa Verde, diante de Porfírio e do povo de Itaguaí, ilustrando a complexidade da mente humana: “A loucura se exprime pela palavra. A palavra conduz à loucura”. (...)
O universo verbal nesse conto é perfeitamente aplicável ao problema da fixação de fronteiras entre o normal e o anormal da mente humana.
“A loucura de Bacamarte é a loucura da Ciência e a loucura da Ciência consiste em não saber seus limites e suas articulações.” Costa Lima
Partindo do princípio de que a loucura da ciência ignora seus limites e articulações, que estariam envolvidas com critérios sócio-político-econômicos, podemos afirmar que Bacamarte é personagem representativo dessa loucura da ciência, sendo assim, sua loucura a loucura da ciência. Entregando-se de corpo e alma à ciência, ele ignora sua família, o homem enquanto indivíduo, a sociedade; esquece-se de seus limites, interfere na vida individual, familiar e até mesmo na passividade de Itaguaí. Bacamarte esquece que a ciência não é pura nem se cria a partir do nada, mas que ela envolve aspectos comuns a toda uma população.
Porfírio induz Bacamarte a questionar seu compromisso com a ciência. Esta deve estar articulada à política e ambas devem estar voltadas para a sociedade de Itaguaí. Porém, a política legítima, não o propósito da pesquisa de Bacamarte, e sim o que lucraria com ela. Assim, ele deixa de lado, num determinado momento, o povo de Itaguaí reforçando desta maneira, ainda mais a loucura da ciência.
A loucura da ciência consiste em não ter pré-requisitos para decidir onde ela começa e termina a razão e vice-versa. E é na Casa Verde, em Itaguaí, que Simão Bacamarte define limite e fronteira da razão e da demência, pois a Ciência lhe dá esse poder, ficando assim, a conceituação de loucura submetida ao seu arbítrio.
No conto percebemos a existência de vários núcleos temáticos: as subestórias. Na primeira subestória, o autor envolve a relação de Bacamarte e D. Evarista, onde ele questiona o absolutismo da ciência. Em seguida, apresenta uma segunda subestória, onde a relação ocorre entre Porfírio (poder político) e Bacamarte (ciência). Percebemos a ascensão repentina de personagens secundários que, às vezes, se elevam quase a protagonistas em certas tramas, nessas subestórias.
Através da proposta de Simão Bacamarte, de pôr em prática toda a sua teorização da “razão” e da “loucura” , surge a Casa Verde, contracenando com a vida pacata de Itaguaí.
Com todo o movimento causado pela construção desta Casa, surge a insatisfação do povo, tendo como personagem representativo, que sai do plano das personagens secundários e assume papel central desse movimento: Porfírio. Essa insatisfação pode ser observada no capítulo VI, quando o movimento dos Canjicas, liderado por ele, pelo Porfírio, vai à casa de Bacamarte na tentativa de resgatar a legitimidade do “povo” de Itaguaí. Porém, Porfírio e seus seguidores foram sempre surpreendidos pelo poder convincente da linguagem utilizada por Bacamarte, resultando numa dispersão momentânea, havendo uma retomada do povo logo em seguida, se efetivando, desta forma, o poder de Porfírio na Política.
Contudo, vemos surgir o interesse do povo na proposta sugerida por Porfírio, em prol de interesses pessoais de Bacamarte e dele, que não estavam preocupados nem com a “Ciência do futuro” nem com as reivindicações do povo, mas dentro dessa esfera da loucura e sanidade, normal e anormal, na sociedade Itaguaiense, impôs essa ideologia para todos.
"Mas o ilustre médico, com os olhos acesos de convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí; mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova, senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade." O Alienista
O conto deixa-nos várias interrogações a esse respeito, fazendo com que o próprio leitor se volte para si mesmo e, ao menos, tente elaborar um comentário crítico e reflexivo sobre suas atitudes.
É evidente que tudo isso se mostra muito relativo, sendo que até mesmo o extremo da razão pode corresponder à própria loucura.
É um conto que tem uma identidade forte e muito marcante.
Eunice Bernal (Karenina)
Adapt. Do site: http://www.suigeneris.pro.br/literatura_alienista.htm
O ALIENISTA
de Machado de Assis.
I
De como Itaguaí ganhou uma casa de Orates
As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.
— A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isto, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, — únicas dignas de preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
D. Evarista mentiu às esperanças de Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, — explicável, mas inqualificável, — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes.
Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, — o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros imarcescíveis”, — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.
— A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.
— Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.
— Olhe, D. Evarista, disse-lhe o padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isto de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe “que estava com desejos”, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redargüiu-lhe sorrindo que não tivesse medo. Dali foi à câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloqüência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.
— Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo; tinha cinqüenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A idéia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com esta fraude, aliás pia, que o padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestiu-se luxuosamente, cobriu-se de jóias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e três vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e não só a cortejavam como a louvavam; porquanto, — e este fato é um documento altamente honroso para a sociedade do tempo, — porquanto viam nela a feliz esposa de um alto espírito, de um varão ilustre, e, se lhe tinham inveja, era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí tinha finalmente uma casa de Orates.
II
Torrente de loucos
Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o mistério do seu coração.
— A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de São Paulo aos coríntios: “Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada.” O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.
— Um excelente serviço, corrigiu o boticário.
— Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.
— Muito maior, acrescentou o outro.
E tinha razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!
— Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que V. Rev.ma está vendo. Isto é todos os dias.
— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...
— Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica, e disso trato...
— Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!
Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço, achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade. O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos.
A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:
— Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.
Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:
— Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.
Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outros, mil e duzentas e outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despregariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus. Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científico.
Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e, aceitando esta idéia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes deu, aprovado pela câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também da escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício. — A Casa Verde, disse ele ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual. E o padre Lopes ria deste pio trocado, — e acrescentava, — com o único fim de dizer também uma chalaça: — Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.
Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo acurado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regime, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força da sagacidade e paciência. Ora, todo esse trabalho levara-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.
III
Deus sabe o que faz!
A ilustre dama, ao fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco, e foi ao ponto de dizer que se considerava tão viúva como dantes. E acrescentou:
— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos...
Não acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto, — os olhos, que eram a sua feição mais insinuante, — negros, grandes, lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo que empregara no dia em que Simão Bacamarte a pediu em casamento. Não dizem as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de degolar de uma vez a ciência, ou, pelo menos, decepar-lhe as mãos; mas a conjetura é verossímil. Em todo caso, o alienista não lhe atribuiu outra intenção. E não se irritou o grande homem, não ficou sequer consternado. O metal de seus olhos não deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de Botafogo. Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais filtrou esta palavra macia como o óleo do Cântico:
— Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.
D. Evarista sentiu faltar-lhe o chão debaixo dos pés. Nunca dos nuncas vira o Rio de Janeiro, que posto não fosse sequer uma pálida sombra do que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que Itaguaí. Ver o Rio de Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora, principalmente, que o marido assentara de vez naquela povoação interior, agora é que ela perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade; e justamente agora é que ele a convidava a realizar os seus desejos de menina e moça. D. Evarista não pôde dissimular o gosto de semelhante proposta. Simão Bacamarte pegou-lhe na mão e sorriu, — um sorriso tanto ou quanto filosófico, além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento: — “Não há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe parece que a não amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se.” E porque era homem estudioso tomou nota da observação.
Mas um dardo atravessou o coração de D. Evarista. Conteve-se, entretanto; limitou-se a dizer ao marido que, se ele não ia, ela não iria também, porque não havia de meter-se sozinha pelas estradas.
— Irá com sua tia, redargüiu o alienista.
Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas não quisera pedi-lo nem insinuá-lo, em primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao marido, em segundo lugar porque era melhor, mais metódico e racional que a proposta viesse dele.
— Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! suspirou D. Evarista sem convicção.
— Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário prestou-me contas. Queres ver?
E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-láctea de algarismos. E depois levou-a às arcas, onde estava o dinheiro. Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrões sobre dobrões; era a opulência. Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a, e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusões:
— Quem diria que meia dúzia de lunáticos...
D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignação:
— Deus sabe o que faz!
Três meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher do boticário, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí, cinco ou seis pajens, quatro mucamas, tal foi a comitiva que a população viu dali sair em certa manhã do mês de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista. Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, não chegaram a abalá-lo. Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a idéia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo.
— Adeus! soluçaram enfim as damas e o boticário.
E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.
IV
Uma teoria nova
Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro, Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa idéia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heróicos.
Um dia de manhã, — eram passadas três semanas, — estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.
— Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador.
Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se não alguma triste notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas: Crispim amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só dia. Assim se explicavam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos lhe ouviam muita vez: “Anda, bem feito, quem te mandou consentir na viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte. Pois agora agüenta-te; anda, agüenta-te, alma de lacaio, fracalhão, vil, miserável. Dizes amém a tudo, não é? aí tens o lucro, biltre!” — E muitos outros nomes feios, que um homem não deve dizer aos outros, quanto mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tão depressa ele o recebeu como abriu mão das drogas e voou à Casa Verde.
Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspeção até o pescoço.
— Estou muito contente, disse ele.
— Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz trêmula.
O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:
— Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha idéia; nem a ciência é outra coisa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.
Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou compridamente a sua idéia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí; mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí, e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal, que via um abismo à sua esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc., uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas, e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade, o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:
— A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.
— Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares, levantando as mãos ao céu.
Quanto à idéia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, não lhe sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime e verdadeira, e acrescentou que era “caso de matraca”. Esta expressão não tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí, que como as demais vilas, arraiais e povoações da colônia, não dispunha de imprensa, tinha dois modos de divulgar uma notícia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da câmara e da matriz; — ou por meio de matraca. Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão. De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, — um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía. Por exemplo, um dos vereadores, — aquele justamente que mais se opusera à criação da Casa Verde, — desfrutava a reputação de perfeito educador de cobras e macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas, tinha o cuidado de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando ao peito do vereador; afirmação perfeitamente falsa, mas só devida à absoluta confiança no sistema. Verdade, verdade; nem todas as instituições do antigo regime mereciam o desprezo do nosso século.
— Há melhor do que anunciar a minha idéia, é práticá-la, respondeu o alienista à insinuação do boticário.
E o boticário, não divergindo sensivelmente deste modo de ver disse-lhe que sim, que era melhor começar pela execução.
— Sempre haverá tempo de a dar à matraca, concluiu ele.
Simão Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:
— Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia.
O vigário Lopes, a quem se confiou a nova teoria, declarou lisamente que não chegava a entendê-la, que era uma obra absurda, e, se não era absurda, era de tal modo colossal que não merecia princípio de execução.
— Com a definição atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?
Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas. A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, — com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí e o universo ficavam à beira de uma revolução.
V
O terror
Quatro dias depois, a população de Itaguaí ouviu consternada a notícia de que um certo Costa fora recolhido à Casa Verde.
— Impossível!
— Qual impossível! foi recolhido hoje de manhã.
— Mas, na verdade, ele não merecia... Ainda em cima! depois de tanto que ele fez...
Costa era um dos cidadãos mais estimados de Itaguaí. Herdara quatrocentos mil cruzados em boa moeda de el-rei Dom João V, dinheiro cuja renda bastava, segundo lhe declarou o tio no testamento, para viver “até o fim do mundo”. Tão depressa recolheu a herança, como entrou a dividi-la em empréstimos, sem usura, mil cruzados a um, dois mil a outro, trezentos a este, oitocentos àquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos, estava sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí seria enorme; mas veio devagar; ele foi passando da opulência à abastança, da abastança à mediania, da mediania à pobreza, da pobreza à miséria, gradualmente. Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao chão, logo que ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade, davam-lhe piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano, risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos corteses eram justamente os que tinham ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os agasalhava com maior prazer; e mais sublime resignação. Um dia, como um desses incuráveis devedores lhe atirasse uma chalaça grossa, e ele se risse dela, observou um desafeiçoado, com certa perfídia: — “Você suporta esse sujeito para ver se ele lhe paga.” Costa não se deteve um minuto, foi ao devedor e perdoou-lhe a dívida. — “Não admira, retorquiu o outro; o Costa abriu mão de uma estrela, que está no céu.” Costa era perspicaz, entendeu que ele negava todo o merecimento ao ato, atribuindo-lhe a intenção de rejeitar o que não vinham meter-lhe na algibeira. Era também pundonoroso e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe não cabia um tal labéu: pegou de algumas dobras, e mandou-as de empréstimo ao devedor.
— Agora espero que... — pensou ele sem concluir a frase.
Esse último rasgo do Costa persuadiu a crédulos e incrédulos; ninguém mais pôs em dúvida os sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadão. As necessidades mais acanhadas saíram à rua, vieram bater-lhe à porta, com os seus chinelos velhos, com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto, roía a alma do Costa: era o conceito do desafeto. Mas isso mesmo acabou; três meses depois veio este pedir-lhe uns cento e vinte cruzados com promessa de restituir-lhos daí a dois dias; era o resíduo da grande herança, mas era também uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro logo, logo, e sem juros. Infelizmente não teve tempo de ser pago; cinco meses depois era recolhido à Casa Verde.
Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis, — ou mansos, e até engraçados, conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranqüilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe confidencialmente que este digno homem não estava no perfeito equilíbrio das faculdades mentais, à vista de modo como dissipara os cabedais que...
— Isso, não! Isso, não! interrompeu a boa senhora com energia. Se ele gastou tão depressa o que recebeu, a culpa não é dele.
— Não?
— Não, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu tio não era mau homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu que um escravo lhe roubara um boi; imagine como ficou. A cara era um pimentão; todo ele tremia, a boca escumava; lembra-me como se fosse hoje. Então um homem feio, cabeludo, em mangas de camisa, chegou-se a ele e pediu água. Meu tio (Deus lhe fale n’alma!) respondeu que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para ele, abriu a mão em ar de ameaça, e rogou-lhe esta praga: — “Todo o seu dinheiro não há de durar mais de sete anos e um dia, tão certo como isto ser o sino salamão!” E mostrou o sino salamão impresso no braço. Foi isto, meu senhor; foi esta praga daquele maldito.
Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na galeria dos alucinados.
A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queira acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco. E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras coisas, não as dizia, por não ter certeza plena, mas sabia, quase que podia jurar.
— Você, que é íntimo dele, não nos podia dizer o que há, o que houve, que motivo...
Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e curiosa, dos amigos atônitos, era para ele uma consagração pública. Não havia duvidar; toda a povoação sabia enfim que o privado do alienista era ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande homem e das grandes coisas; daí a corrida à botica. Tudo isso dizia o carão jucundo e o riso discreto do boticário, o riso e o silêncio, porque ele não respondia nada; um, dois, três monossílabos, quando muito, soltos, secos, encapados no fiel sorriso, constante e miúdo, cheio de mistérios científicos, que ele não podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana.
— Há coisa, pensavam os mais desconfiados.
Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha negócios pessoais. Acabava de construir uma casa suntuosa. Só a casa bastava para deter e chamar toda gente; mas havia mais, — a mobília, que ele mandara vir da Hungria e da Holanda, segundo contava, e que se podia ver do lado de fora, porque as janelas viviam abertas, — e o jardim, que era uma obra-prima de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera do fabrico de albardas, tinha tido sempre o sonho de uma casa magnífica, jardim pomposo, mobília rara. Não deixou o negócio das albardas, mas repousava dele na contemplação da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que a Casa Verde, mais nobre do que a da câmara. Entre a gente ilustre da povoação havia choro e ranger de dentes, quando se pensava ou se falava ou se louvava a casa do albardeiro, — um simples albardeiro, Deus do céu!
— Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes, de manhã.
De manhã, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do jardim, com os olhos na casa, namorado, durante um longa hora, até que vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos, embora o cumprimentassem com certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um desses chegou a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo, se fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que fazia rir às bandeiras despregadas.
— Agora lá está o Mateus a ser contemplado, diziam à tarde.
A razão deste outro dito era que, de tarde, quando as famílias saíam a passeio (jantavam cedo) usava o Mateus postar-se à janela, bem no centro, vistoso, sobre um fundo escuro, trajado de branco, atitude senhoril, e assim ficava duas e três horas até que anoitecia de todo. Pode crer-se que a intenção do Mateus era ser admirado e invejado, posto que ele não a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao padre Lopes, seus grandes amigos. E entretanto não foi outra a alegação do boticário, quando o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das pedras, mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desse algum tempo. Aquilo de contemplar a casa...
— Não, senhor, acudiu vivamente Crispim Soares.
— Não?
— Há de perdoar-me; mas talvez não saiba que ele de manhã examina a obra, não a admira; de tarde, são os outros que admiram a ele e à obra. — E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde cedo até o cair da noite.
Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte. Ou ele não conhecia todos os costumes do albardeiro, ou nada mais quis, interrogando o Crispim, do que confirmar alguma notícia incerta ou suspeita vaga. A explicação satisfê-lo; mas como tinha as alegrias próprias de um sábio, concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar uma intenção sinistra. Ao contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço para irem a passeio. Deus! era a primeira vez que Simão Bacamarte dava ao seu privado tamanha honra; Crispim ficou trêmulo, atarantado, disse que sim, que estava pronto. Chegaram duas ou três pessoas de fora, Crispim mandou-as mentalmente a todos os diabos; não só atrasavam o passeio, como podia acontecer que Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele. Que impaciência! que aflição! Enfim, saíram. O alienista guiou para os lados da casa do albardeiro, viu-o à janela, passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, examinando as atitudes, a expressão do rosto. O pobre Mateus, apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiração do primeiro vulto de Itaguaí, redobrou a expressão, deu outro relevo às atitudes... Triste! triste, não fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido à Casa Verde.
— A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.
Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí, — a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, — duas ou três de consideração, — foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer germe de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.
Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva, — ou quase toda — que algumas semanas antes partira de Itaguaí. O alienista foi recebê-la, com o boticário, o padre Lopes, os vereadores, e vários outros magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, balbuciou uma palavra e atirou-se ao consorte, de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona, que caiu neles, e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos, D. Evarista recebia os cumprimentos dos amigos, e o préstito punha-se em marcha.
D. Evarista era a esperança de Itaguaí; contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde. Daí as aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e damascos às janelas. Com o braço apoiado no do padre Lopes — porque o eminente Bacamarte confiara a mulher ao vigário, e acompanhava-os a passo meditativo, — D. Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário indagava do Rio de Janeiro, que ele não vira desde o vice-reinado anterior; e D. Evarista respondia, entusiasmada que era a coisa mais bela que podia haver no mundo. O Passeio Público estava acabado, um paraíso, onde ela fora muitas vezes, e a rua das Belas Noites, o chafariz das Marrecas... Ah! o chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas, — feitas de metal e despejando água pela boca fora. Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro devia estar agora muito mais bonito. Se já o era noutro tempo! Não admira, maior do que Itaguaí e de mais a mais sede do governo... Mas não se pode dizer que Itaguaí fosse feio; tinha belas casas, a casa do Mateus, a Casa Verde...
— A propósito de Casa Verde, disse o padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião, a senhora vem achá-la muito cheia de gente.
— Sim?
— É verdade. Lá está o Mateus...
— O albardeiro?
— O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e...
— Tudo isso doido?
— Ou quase doido, obtemperou o padre.
— Mas então?
O vigário derreou os cantos da boca, à maneira de quem não sabe de nada, ou não quer dizer tudo; resposta vaga, que se não pode repetir a outra pessoa, por falta de texto. D. Evarista achou realmente extraordinário que toda aquela gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos? Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio, não recolheria ninguém à Casa Verde sem prova evidente de loucura.
— Sem dúvida... sem dúvida... ia pontuando o vigário.
Três horas depois cerca de cinqüenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas, amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida, consolação; trazia nos olhos duas estrelas, segundo a versão modesta de Crispim Soares, e dois sóis, no conceito de um vereador. O alienista ouvia essas coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito, dizia ao ouvido da mulher, que a retórica permitia tais arrojos sem significação. D. Evarista fazia esforços para aderir a esta opinião do marido; mas, ainda descontando três quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma. Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. “Deus, disse ele, depois de dar ao universo o homem e a mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista.”
D. Evarista baixou os olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice excessiva e audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, o gesto do alienista pareceu-lhe nublado de suspeitas, de ameaças, e, provavelmente, de sangue. O atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a Deus que removesse qualquer episódio trágico, — ou que o adiasse, ao menos, para o dia seguinte. Sim, que o adiasse. Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir, consigo mesma, que D. Evarista não merecia nenhuma desconfiança, tão longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água-morna. Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo? E esta idéia fê-la tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martim Brito, e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que era um improviso brilhante, cheio de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a idéia relativa ao nascimento de D. Evarista, ou tê-la-ia encontrado em algum autor que...? Não, senhor; era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e parecera-lhe adequada a um arroubo oratório. De resto, suas idéias eram antes arrojadas do que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo, compôs uma ode à queda do marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o “dragão aspérrimo do Nada”, esmagado pelas “garras vingadoras do Todo”; e assim outras, mais ou menos fora do comum; gostava das idéias sublimes e raras, das imagens grandes e nobres...
— Pobre moço! pensou o alienista. E continuou consigo: — Trata-se de um caso de lesão cerebral; fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo...
D. Evarista ficou estupefada quando soube, três dias depois, que o Martim Brito fora alojado na Casa Verde. Um moço que tinha idéias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o ato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra coisa; realmente a declaração do moço fora audaciosa demais.
Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico das Cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos saíam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia, emigrava. Um desses fugitivos, chegou a ser preso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distância de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave, a uma senhora, às vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das cortesias. De resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes pessoais, que eram raros, como à nobre tenacidade com que nunca desanimava diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia era que, uma vez entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da casa o deixavam a ele, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil Bernardes, apesar de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de olho; na madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à Casa Verde.
— Devemos acabar com isto!
— Não pode continuar!
— Abaixo a tirania!
— Déspota! violento! Golias!
Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror crescia; avizinhava-se a rebelião. A idéia de uma petição ao governo, para que Simão Bacamarte fosse capturado e deportado, andou por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio a expendesse na loja com grandes gestos de indignação. Note-se, — e essa é uma das laudas mais puras desta sombria história, — note-se que o Porfírio, desde que a Casa Verde começara a povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas que dali lhe pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse público. E acrescentava: — é preciso derrubar o tirano! Note-se mais que ele soltou esse grito justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa Verde um homem que trazia com ele uma demanda, o Coelho.
— Não me dirão em que é que o Coelho é doido? bradou o Porfírio.
E ninguém lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma demanda que ele trazia com o barbeiro, acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de um alvará e não da cobiça ou ódio. Um excelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que tinha eram alguns sujeitos que, dizendo-se taciturnos, ou alegando andar com pressa, mal o viam de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas etc. Na verdade, ele amava a boa palestra, a palestra comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que sabiam dizer duas palavras, mas não desdenhando os outros. O padre Lopes, que cultivava o Dante, e era inimigo do Coelho, nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e emendasse este trecho:
La bocca sollevò dal fiero pasto
Quel seccatore...
mas uns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto era uma oração em latim.
VI
A rebelião
Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à câmara. A câmara recusou-se a aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.
— Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.
A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da rebelião, e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis, algumas distintas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde; que o despotismo científico do alienista complicava-se do espírito da ganância, visto que os loucos, ou supostos tais, não eram tratados de graça: as famílias, e em falta delas a câmara, pagavam ao alienista...
— É falso, interrompeu o presidente.
— Falso?
— Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico, em que nos declara que, tratando de fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela câmara, bem como nada receberá das famílias dos enfermos.
A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia estar em erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para demonstrar o erro era preciso alguma coisa mais do que arruaças e clamores. Isto disse o presidente, com aplauso de toda a câmara. O barbeiro, depois de alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato público, e não restituiria a paz a Itaguaí antes de ver por terra a Casa Verde, — “essa Bastilha da razão humana”, — expressão que ouvira a um poeta local, e que ele repetiu com muita ênfase. Disse, e a um sinal, todos saíram com ele.
Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar ao mal, um dos vereadores que apoiara o presidente, ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde, — “Bastilha da razão humana”, — achou-a tão elegante, que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:
— Nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos juízo, são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?
Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo, com prudência, mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao mesmo, desse o exemplo da ordem e do respeito à lei, não aventasse as suas idéias na rua, para não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um turbilhão de átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião Freitas prometeu suspender qualquer ação, reservando-se ao direito de pedir pelos meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo, namorado: — Bastilha da razão humana!
Entretanto, a arruaça crescia. Já não eram trinta, mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja alcunha familiar deve ser mencionada, porque ela deu o nome à revolta; chamavam-lhe o Canjica, — e o movimento ficou célebre com o nome de revolta dos Canjicas. A ação podia ser restrita, — visto que muita gente, ou por medo, ou por hábitos de educação, não descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos que caminhavam para a Casa Verde, — dada a diferença de Paris a Itaguaí, — podiam ser comparados aos que tomaram a Bastilha.
D. Evarista teve notícia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lhe uma de suas crias. Ela provava nessa ocasião um vestido de seda, — um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro, — e não quis crer.
— Há de ser alguma patuscada, dizia ela mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a barra está boa.
— Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim. Está muito boa.
— Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando: — Morra o Dr. Bacamarte! o tirano! dizia o moleque assustado.
— Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para ficar igualzinho e...
— Morra o Dr. Bacamarte! morra o tirano! uivavam fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na rua Nova.
D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror petrificou-a. A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista não dera crédito, teve um instante de triunfo, um certo movimento súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha jurar por ele.
— Morra o alienista! — bradavam as vozes mais perto.
D. Evarista, se não resistia facilmente às comoções de prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando ela ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis; os olhos dele, empanados pela cogitação, subiam do livro ao teto e baixavam do teto ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os profundos trabalhos mentais. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à terceira, ouviu e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.
— Você não ouve esses gritos? perguntou a digna esposa em lágrimas.
O alienista atendeu então; os gritos aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu tudo. Levantou-se da cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e, a passo firme e tranqüilo, foi depositá-lo na estante. Como a introdução do volume desconcertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou de corrigir este defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.
— Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você...
Simão Bacamarte teimou que não, que não era caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe em nome da vida que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa.
— Abaixo a Casa Verde! bradavam os Canjicas.
O alienista caminhou para a varanda da frente, e chegou ali no momento em que a rebelião também chegava e parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de desespero. — Morra! morra! bradaram de todos os lados, apenas o vulto do alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar; os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então, o barbeiro, agitando o chapéu, a fim de impor silêncio à turba, conseguiu aquietar os amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse da paciência do povo como fizera até então.
— Direi pouco, ou até não direi nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.
— Não pedimos nada, replicou fremente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida, ou pelo menos despojada dos infelizes que lá estão.
— Não entendo.
— Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância...
O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma contração leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu:
— Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós, em comissão dos outros, a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos, nem a rebeldes.
Disse isto o alienista, e a multidão ficou atônita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a multidão com muita gravidade, deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si, e, agitando o chapéu, convidou os amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde, e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos vereadores, mas era recusado por não ter nenhuma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca. Demais, fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca, ou o degredo. Infelizmente, a resposta do alienista diminuíra o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação, e quis bradar-lhes: — Canalhas! covardes! — mas conteve-se, e rompeu deste modo:
— Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heróicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno.
A multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta que tornava a si da ligeira síncope, e ameaçava arrasar a Casa Verde.
— Vamos! bradou Porfírio agitando o chapéu.
— Vamos! repetiram todos.
Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na rua Nova.
VII
O inesperado
Chegados os dragões em frente aos Canjicas, houve um instante de estupefação; os Canjicas não queriam crer que a força pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e esperou. Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu nestes termos alevantados:
— Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí.
Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises. Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos dragões; confiança que o capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Canjicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa; alguns, trepando às janelas das casas, ou correndo pela rua fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou, bufando de cólera, indignada, animada pela exortação do barbeiro. A derrota dos Canjicas estava iminente, quando um terço dos dragões, — qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram, — passou subitamente para o lado da rebelião. Este inesperado reforço deu alma aos Canjicas, ao mesmo tempo que lançou desânimo às fileiras da legalidade. Os soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e, um a um, foram passando para eles, de modo que, ao cabo de alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado, com alguma gente, contra uma massa compacta que o ameaçava de morte. Não teve remédio, declarou-se vencido e entregou a espada ao barbeiro.
A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas, e guiou para a câmara. Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao “ilustre Porfírio”. Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade do governo começava a enrijar-lhe os quadris.
Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão, e sem mais exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que se mandasse dar um mês de soldo aos dragões, “cujo denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes”. Esta frase foi proposta por Sebastião Freitas, o vereador dissidente cuja defesa dos Canjicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista vieram dar-lhes notícia da triste realidade. O presidente não desanimou: — Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos que estamos a serviço de Sua Majestade e do povo. — Sebastião Freitas insinuou que melhor se poderia servir à coroa e à vila saindo pelos fundos e indo conferenciar com o juiz de fora, mas toda a câmara rejeitou esse alvitre.
Daí a nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança e intimava à câmara a sua queda. A câmara não resistiu, entregou-se, e foi dali para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe que assumisse o governo da vila, em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não desconhecesse (acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que eles prontamente anuíram. O barbeiro veio à janela, e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de — “Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo”. Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa ao vice-rei, com muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente, uma proclamação ao povo, curta, mas enérgica:
“Itaguaienses!
“Uma câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Majestade, acaba de a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da vila, foi-me confiado o mando supremo, até que Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda pública, tão desbaratada pela câmara que ora findou às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.
O protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo
Porfírio Caetano das Neves.”
Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo desses graves sucessos, o alienista metera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras, sendo um dos homens aparentado com o Protetor. Não era um repto, um ato intencional; mas todos o interpretaram dessa maneira, e a vila respirou com uma esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros, e destruído o terrível cárcere.
O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação, o povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio. Poucos gritos contra a Casa Verde, prova de confiança na ação do governo. O barbeiro fez expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou negociações com o vigário para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder temporal com o espiritual; mas o padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.
— Em todo o caso, V. Rev.ma não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro, dando à fisionomia um aspecto tenebroso.
Ao que o padre Lopes respondeu, sem responder:
— Como alistar-me, se o novo governo não tem inimigos?
O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda a gente o aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir receber as suas ordens. No geral, as famílias abençoavam o nome daquele que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte.
VIII
As angústias do boticário
Vinte e quatro horas depois dos sucessos narrados no capítulo anterior, o barbeiro saiu do palácio do governo, — foi a denominação dada à casa da câmara, — com dois ajudantes-de-ordens, e dirigiu-se à residência de Simão Bacamarte. Não ignorava ele que era mais decoroso ao governo mandá-lo chamar; o receio, porém, de que o alienista não obedecesse, obrigou-o a parecer tolerante e moderado.
Não descrevo o terror do boticário ao ouvir dizer que o barbeiro ia à casa do alienista. — Vai prendê-lo, pensou ele. E redobraram-se as angústias. Com efeito, a tortura moral do boticário naqueles dias de revolução excede a toda a descrição possível. Nunca um homem se achou em mais apertado lance: — a privança do alienista chamava-o ao lado deste, a vitória do barbeiro atraía-o ao barbeiro. Já a simples notícia de sublevação tinha-lhe sacudido fortemente a alma, porque ele sabia a unanimidade do ódio ao alienista; mas a vitória final foi também o golpe final. A esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e que ninguém, por ato próprio, se amarra a um cadáver. Fê-lo Catão, é verdade, sed victa Catoni, pensava ele, relembrando algumas palestras habituais do padre Lopes; mas Catão não se atou a uma causa vencida, ele era a própria causa vencida, a causa da república; o seu ato, portanto, foi de egoísta, de um miserável egoísta; minha situação é outra. Insistindo, porém, a mulher, não achou Crispim Soares outra saída em tal crise senão adoecer; declarou-se doente e meteu-se na cama.
— Lá vai o Porfírio à casa do Dr. Bacamarte disse-lhe a mulher no dia seguinte à cabeceira da cama; vai acompanhado de gente.
— Vai prendê-lo, pensou o boticário.
Uma idéia traz outra; o boticário imaginou que, uma vez preso o alienista, viriam também buscá-lo a ele, na qualidade de cúmplice. Esta idéia foi o melhor dos vesicatórios. Crispim Soares ergueu-se, disse que estava bom, que ia sair; e, apesar de todos os esforços e protestos da consorte, vestiu-se e saiu. Os velhos cronistas são unânimes em dizer que a certeza de que o marido ia colocar-se nobremente ao lado do alienista consolou grandemente a esposa do boticário; e notam, com muita perspicácia, o imenso poder moral de uma ilusão; porquanto, o boticário caminhou resolutamente ao palácio do governo, não à casa do alienista. Ali chegando, mostrou-se admirado de não ver o barbeiro, a quem ia apresentar os seus protestos de adesão, não o tendo feito desde a véspera por enfermo. E tossia com algum custo. Os altos funcionários que lhe ouviam esta declaração, sabedores da intimidade do boticário com o alienista, compreenderam toda a importância da adesão nova, e trataram a Crispim Soares com apurado carinho; afirmaram-lhe que o barbeiro não tardava; Sua Senhoria tinha ido à Casa Verde, a negócio importante, mas não tardava. Deram-lhe cadeira, refrescos, elogios; disseram-lhe que a causa do ilustre Porfírio era a de todos os patriotas; ao que o boticário ia repetindo que sim, que nunca pensara noutra coisa, que isso mesmo mandaria declarar a Sua Majestade.
IX
Dois lindos casos
Não se demorou o alienista em receber o barbeiro; declarou-lhe que não tinha meios de resistir, e portanto estava prestes a obedecer. Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir pessoalmente a destruição da Casa Verde.
— Engana-se V. S.ª, disse o barbeiro depois de alguma pausa, engana-se em atribuir ao governo intenções vandálicas. Com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos doidos ali metidos está em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é puramente científica e não cogita em resolver com posturas as questões científicas. Demais, a Casa Verde é uma instituição pública; tal a aceitamos das mãos da câmara dissolvida. Há, entretanto, — por força que há de haver um alvitre intermédio que restitua o sossego ao espírito público.
O alienista mal podia dissimular o assombro; confessou que esperava outra coisa, o arrasamento do hospício, a prisão dele, o desterro, tudo, menos...
— O pasmo de V. S.ª, atalhou gravemente o barbeiro, vem de não atender à grave responsabilidade do governo. O povo, tomado de uma cega piedade, que lhe dá em tal caso legítima indignação, pode exigir do governo certa ordem de atos; mas este, com a responsabilidade que lhe incumbe, não os deve praticar, ao menos integralmente, e tal é a nossa situação. A generosa revolução que ontem derrubou uma câmara vilipendiada e corrupta, pediu em altos brados o arrasamento da Casa Verde; mas pode entrar no ânimo do governo eliminar a loucura? Não. E se o governo não a pode eliminar, está ao menos apto para discriminá-la, reconhecê-la? Também não; é matéria de ciência. Logo, em assunto tão melindroso, o governo não pode, não deve, não quer dispensar o concurso de V. S.ª. O que lhe pede é que de certa maneira demos alguma satisfação ao povo. Unamo-nos, e o povo saberá obedecer. Um dos alvitres aceitáveis, se V. S.ª não indicar outro, seria fazer retirar da Casa Verde aqueles enfermos que estiverem quase curados e bem assim os maníacos de pouca monta, etc. Desse modo, sem grande perigo, mostraremos alguma tolerância e benignidade.
— Quantos mortos e feridos houve ontem no conflito? perguntou Simão Bacamarte depois de uns três minutos.
O barbeiro ficou espantado da pergunta, mas respondeu logo que onze mortos e vinte e cinco feridos.
— Onze mortos e vinte e cinco feridos! repetiu duas ou três vezes o alienista.
E em seguida declarou que o alvitre lhe não parecia bom, mas que ele ia catar algum outro, e dentro de poucos dias lhe daria resposta. E fez-lhe várias perguntas acerca dos sucessos da véspera, ataque, defesa, adesão dos dragões, resistência da câmara, etc., ao que o barbeiro ia respondendo com grande abundância, insistindo principalmente no descrédito em que a câmara caíra. O barbeiro confessou que o novo governo não tinha ainda por si a confiança dos principais da vila, mas o alienista podia fazer muito nesse ponto. O governo, concluiu o barbeiro, folgaria se pudesse contar não já com a simpatia, senão com a benevolência do mais alto espírito de Itaguaí, e seguramente do reino. Mas nada disso alterava a nobre e austera fisionomia daquele grande homem, que ouvia calado, sem desvanecimento nem modéstia, mas impassível como um deus de pedra.
— Onze mortos e vinte e cinco feridos, repetiu o alienista depois de acompanhar o barbeiro até à porta. Eis aí dois lindos casos de doença cerebral. Os sintomas de duplicidade e descaramento desse barbeiro são positivos. Quanto à toleima dos que o aclamaram, não é preciso outra prova além dos onze mortos e vinte e cinco feridos. — Dois lindos casos!
— Viva o ilustre Porfírio! bradaram umas trinta pessoas que aguardavam o barbeiro à porta.
O alienista espiou pela janela, e ainda ouviu este resto de pequena fala do barbeiro às trinta pessoas que o aclamavam:
— ... porque eu velo, podeis estar certos disso, eu velo pela execução das vontades do povo. Confiai em mim; e tudo se fará pela melhor maneira. Só vos recomendo ordem. A ordem, meus amigos, é a base do governo.
— Viva o ilustre Porfírio! bradaram as trinta vozes, agitando seus chapéus.
— Dois lindos casos! murmurou o alienista.
X
A restauração
Dentro de cinco dias, o alienista meteu na Casa Verde cerca de cinqüenta aclamadores do novo governo. O povo indignou-se. O governo, atarantado, não sabia reagir. João Pina, outro barbeiro, dizia abertamente nas ruas, que o Porfírio estava “vendido ao ouro de Simão Bacamarte”, frase que congregou em torno de João Pina a gente mais resoluta da vila. Porfírio, vendo o antigo rival da navalha à testa da insurreição, compreendeu que a sua perda era irremediável, se não desse um grande golpe; expediu dois decretos, um abolindo a Casa Verde, outro desterrando o alienista. João Pina mostrou claramente, com grandes frases, que o ato de Porfírio era um simples aparato, um engodo, em que o povo não devia crer. Duas horas depois caía Porfírio ignominiosamente e João Pina assumia a difícil tarefa do governo. Como achasse nas gavetas as minutas da proclamação, da exposição ao vice-rei e de outros atos inaugurais do governo anterior, deu-se pressa em os fazer copiar e expedir; acrescentam os cronistas, e aliás subentende-se, que ele lhes mudou os nomes, e onde outro barbeiro falara de uma câmara corrupta, falou este de “um intruso eivado das más doutrinas francesas e contrário aos sacrossantos interesses de Sua Majestade”, etc.
Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem. O alienista exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio, e bem assim a de uns cinqüenta e tantos indivíduos, que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses, como afiançaram entregar-lhe mais dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam das feridas apanhadas na primeira revolução.
Este ponto da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a seus lugares, consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão de Crispim Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre recebera dele, ainda na véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou o fato, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror, ao ver a rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de nenhum outro ato seu, acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.
Mas a prova mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a câmara lhe entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha declarado, em plena sessão, que não se contentava, para lavá-la da afronta dos Canjicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos do alienista por boca do secretário da câmara, entusiasmado de tamanha energia. Simão Bacamarte começou por meter o secretário na Casa Verde, e foi dali à câmara, à qual declarou que o presidente estava padecendo da “demência dos touros”, um gênero que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os povos. A câmara a princípio hesitou, mas acabou cedendo.
Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. Alguns cronistas crêem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à câmara foi enriquecer um ourives, amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ouvires viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação da Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à toa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo nada há.
— Onde é que este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos apoiado os Canjicas...
Um dia de manhã, — dia em que a câmara devia dar um grande baile, — a vila inteira ficou abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era verdade pura. D. Evarista fora recolhida às duas horas da noite. O padre Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato.
— Já há algum tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela vivera em ambos matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas, veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou logo que voltou do Rio de Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos vestidos das damas; se uma senhora a visitava, na minha ausência, antes de me dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e censurando outras. Um dia, creio que V. Rev.ma há de lembrar-se, propôs-se a fazer anualmente um vestido para a imagem de Nossa Senhora da matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite, porém, declarou-se a total demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao baile da câmara municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de safira. Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta, ao almoço; pouco depois de jantar fui achá-la calada e pensativa. — Que tem? perguntei-lhe. — Queria levar o colar de granada, mas acho o de safira tão bonito! — Pois leve o de safira. — Ah! mas onde fica o de granada? — Enfim, passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um, ora outro. Era evidente a demência: recolhi-a logo.
O padre Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém, percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de “mania suntuária”, não incurável, e em todo caso digno de estudo.
— Conto pô-la boa dentro de seis semanas, concluiu ele.
E a abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjeturas, invenções, desconfianças, tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa Verde a própria mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguém mais tinha o direito de resistir-lhe, — menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios à ciência.
Era um grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.
XI
O assombro de Itaguaí
E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber que um dia os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.
— Todos?
— Todos.
— É impossível; alguns sim, mas todos...
— Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à câmara.
De fato o alienista oficiara à câmara expondo: — 1º, que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde, que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2º, que esta deslocação da população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3º, que desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4º, que, à vista disso, declarava à câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5º, que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da câmara igual dedicação; 6º, que restituía à câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.
O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e prolongadas.
E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.
XII
O final do § 4o.
Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos eixos. Reinava a ordem, a câmara exercia outra vez o governo, sem nenhuma pressão externa; o presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O barbeiro Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo “provado tudo”, como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às calamidades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido, atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu o nosso adágio: — ladrão que furta a ladrão, tem cem anos de perdão; — adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil.
Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos atos que ele praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as crônicas que D. Evarista a princípio tivera idéia de separar-se do consorte, mas a dor de perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de amor-próprio, e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.
Não menos íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução, e apreciou muito a magnanimidade do alienista, que ao dar-lhe a liberdade, estendeu-lhe a mão de amigo velho.
— É um grande homem, disse ele à mulher, referindo aquela circunstância.
Não é preciso falar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros, especialmente nomeados neste escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos anteriores. O próprio Martim Brito, recluso por um dos seus discursos em que louvara enfaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico — “cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra”.
— Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda não me arrependo de o haver restituído à liberdade.
Entretanto, a câmara, que respondera ao ofício de Simão Bacamarte, com a ressalva de que oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4º, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adotada, sem debate, uma postura, autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência da câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a câmara, antes mesmo daquele prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que em nenhum caso fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a câmara, legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas de seus membros das conseqüências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira esta duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega; este, porém, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.
— A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espírito humano.
Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a cláusula porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo que rogava à câmara que lho entregasse. A câmara, sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou o pedido do alienista, e votou unanimemente a entrega.
Compreende-se que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera e declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa notícia, esqueceu os motivos da dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte e participar-lhe o perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde.
— Um caso destes é raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.
Crispim Soares entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as orelhas do alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita atenção; mas antes disso não podia deixá-la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:
— O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá passará as noites, e os domingos e dias santos.
A proposta colocou o pobre boticário na situação de asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista.
Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo, levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia cerebral. Um dia, conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto escrúpulo, que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos os seus atos, e interrogar os principais da vila. Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em que reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais, que era perigoso deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente, desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome da pessoa em questão.
— Então, parece-lhe...?
— Sem dúvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa.
O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento, e acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do réu foi solenemente proclamada pelo juiz, e a herança passou-lhe às mãos. O distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade. Mas nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele agente, reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde; deu-lhe, todavia, um dos melhores cubículos.
Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente, as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a câmara a cassar a licença. A câmara, porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua, e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal.
Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, dinheiro e influência na Corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos, e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.
— O que é que está me dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principais da vila.
Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde. — Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.
Chegou o fim do prazo, a câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem, e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana.
XIII
Plus ultra!
Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos, excedeu-se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista fez curas pasmosas, que excitaram a mais viva admiração em Itaguaí.
Com efeito, era difícil imaginar mais racional sistema terapêutico. Estando os loucos divididos por classes, segundo a perfeição moral que em cada um deles excedia às outras, Simão Bacamarte cuidou de atacar de frente a qualidade predominante. Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto; e não ia logo às doses máximas, — graduava-as, conforme o estado, a idade, o temperamento, a posição social do enfermo. Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente, poeta, que resistiu a tudo. Simão Bacamarte começava a desesperar da cura, quando teve de mandar correr matraca, para o fim de o apregoar como um rival de Garção e de Píndaro.
— Foi um santo remédio, contava a mãe do infeliz a uma comadre; foi um santo remédio.
Outro doente, também modesto, opôs a mesma rebeldia à medicação; mas, não sendo escritor (mal sabia assinar o nome), não se lhe podia aplicar o remédio da matraca. Simão Bacamarte lembrou-se de pedir para ele o lugar de secretário na Academia dos Encobertos estabelecida em Itaguaí. Os lugares de presidente e secretários eram de nomeação régia, por especial graça do finado rei Dom João V, e implicavam o tratamento de Excelência e o uso de uma placa de ouro no chapéu. O governo de Lisboa recusou o diploma; mas representando o alienista que o não pedia como prêmio honorífico ou distinção legítima, e somente como um meio terapêutico para um caso difícil, o governo cedeu excepcionalmente à súplica; e ainda assim não o fez sem extraordinário esforço do ministro da marinha e ultramar, que vinha a ser primo do alienado. Foi outro santo remédio.
— Realmente, é admirável! dizia-se nas ruas, ao ver a expressão sadia e enfunada dos dois ex-dementes.
Tal era o sistema. Imagina-se o resto. Cada beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais sólida; e o efeito era certo. Nem sempre era certo. Casos houve em que a qualidade predominante resistia a tudo; então, o alienista atacava outra parte, aplicando à terapêutica o método da estratégia militar, que toma uma fortaleza por um ponto, se por outro o não pode conseguir.
No fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados! O vereador Galvão, tão cruelmente afligido de moderação e eqüidade, teve a facilidade de perder um tio; digo felicidade, porque o tio deixou um testamento ambíguo, e ele obteve uma boa interpretação, corrompendo os juízes, e embaçando os outros herdeiros. A sinceridade do alienista manifestou-se neste lance; confessou ingenuamente que não teve parte na cura: foi simples vis medicatrix da natureza. Não aconteceu o mesmo com o padre Lopes. Sabendo o alienista que ele ignorava perfeitamente o hebraico e o grego, incumbiu-o de fazer uma análise crítica da versão dos Setenta; o padre aceitou a incumbência, e em boa hora o fez; ao cabo de dois meses possuía um livro e a liberdade. Quanto à senhora do boticário, não ficou muito tempo na célula que lhe coube, e onde aliás lhe não faltaram carinhos.
— Por que é que o Crispim não vem visitar-me? dizia ela todos os dias.
Respondiam-lhe ora uma coisa, oura outra; afinal disseram-lhe a verdade inteira. A digna matrona não pode conter a indignação e a vergonha. Nas explosões da cólera escaparam-lhe expressões soltas e vagas, como estas:
— Tratante!... velhaco!... ingrato!... Um patife que tem feito casas à custa de ungüentos falsificados e podres... Ah! tratante!...
Simão Bacamarte advertiu que, ainda quando não fosse verdadeira a acusação contida nestas palavras, bastavam elas para mostrar que a excelente senhora estava enfim restituída ao perfeito desequilíbrio das faculdades; e prontamente lhe deu alta.
Agora, se imaginais que o alienista ficou radiante ao ver sair o último hóspede da Casa Verde, mostrais com isso que ainda não conheceis o nosso homem. Plus Ultra! era a sua divisa. Não lhe bastava ter descoberto a teoria verdadeira da loucura; não o contentava ter estabelecido em Itaguaí o reinado da razão. Plus ultra! Não ficou alegre, ficou preocupado, cogitativo; alguma coisa lhe dizia que a teoria nova tinha, em si mesma, outra e novíssima teoria.
— Vejamos, pensava ele; vejamos se chego enfim à última verdade.
Dizia isto, passeando ao longo da vasta sala, onde fulgurava a mais rica biblioteca dos domínios ultramarino de Sua Majestade. Um amplo chambre de damasco, preso à cintura por um cordão de seda, com borlas de ouro (presente de uma Universidade) envolvia o corpo majestoso e austero do ilustre alienista. A cabeleira cobria-lhe uma extensa e nobre calva adquirida nas cogitações quotidianas da ciência. Os pés, não delgados e femininos, não graúdos e mariolas, mas proporcionados ao vulto, eram resguardados por um par de sapatos cujas fivelas não passavam de simples e modesto latão. Vede a diferença: — só se lhe notava luxo naquilo que era de origem científica; o que propriamente vinha dele trazia a cor da moderação e da singeleza, virtudes tão ajustadas à pessoa de um sábio.
Era assim que ele ia, o grande alienista, de um cabo a outro da vasta biblioteca, metido em si mesmo, estranho a todas as coisas que não fosse o tenebroso problema da patologia cerebral. Súbito, parou. Em pé, diante de uma janela, com o cotovelo esquerdo apoiado na mão direita, aberta, e o queixo na mão esquerda, fechada, perguntou ele a si:
— Mas deveras estariam ele doidos, e foram curados por mim, — ou o que pareceu cura, não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?
E cavando por aí abaixo, eis o resultado a que chegou: os cérebros bem organizados que ele acabara de curar, eram desequilibrados como os outros. Sim, dizia ele consigo, eu não posso ter a pretensão de haver-lhes incutido um sentimento ou uma faculdade nova; uma e outra coisa existiam no estado latente, mas existiam.
Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade: — não havia loucos em Itaguaí; Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito; foi a idéia da dúvida. Pois quê! Itaguaí não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta, não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica?
A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade.
— Sim, há de ser isso, pensou ele.
Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa.
— Nenhum defeito?
— Nenhum, disse em coro a assembléia.
— Nenhum vício?
— Nada.
— Tudo perfeito?
— Tudo.
— Não, impossível, bradou o alienista. Digo que não sinto em mim esta superioridade que acabo de ver definir com tanta magnificência. A simpatia é que vos faz falar. Estudo-me e nada acho que justifique os excessos da vossa bondade.
A assembléia insistiu; o alienista resistiu; finalmente o padre Lopes explicou tudo com este conceito digno de um observador:
— Sabe a razão por que não vê as suas elevadas qualidades, que aliás todos nós admiramos? É porque tem ainda uma qualidade que realça as outras: — a modéstia.
Era decisivo, Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.
— A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.
— Simão! Simão! meu amor! dizia-lhe a esposa com o rosto lavado em lágrimas.
Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegaram ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí; mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova, senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.


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Iaiá Garcia - Machado de Assis
Jorge e Estela amam-se, mas vários empecilhos contrariam esse amor, de que mesmo os dois tentam se resguardar. A mãe de Jorge, Valéria Gomes, viúva rica, não quer para seu filho uma esposa pobre e sem lustro social, a moça era filha de um ex-empregado de seu falecido pai. Estela, por sua vez, conhecendo os preconceitos da sociedade e da mãe do rapaz, sente-se inferiorizada e luta contra a idéia de casar-se com Jorge. O rapaz, impondo seus direitos de moço rico, força um beijo quando com Estela passeava, e isto a jovem jamais perdoa.
Valéria, tentando afastar definitivamente a possibilidade de que seu filho e a moça possam se casar, contando ainda com o auxílio do viúvo Luís Garcia, pretendente à moça, convence Jorge a ir combater na guerra do Paraguai. Na ausência do filho, Valéria Gomes dá um dote a Estela e arranja-lhe um marido, o viúvo Luís Garcia, de gênio pacato, caseiro e arredio, que vive só para cuidar da filha amada: Iaiá Garcia.
Porém, antes mesmo da viagem que fazia ao Paraguai, Jorge confidenciara ao mesmo Luís Garcia, agora marido de Estela, as verdadeiras razões de sua ida para a guerra sem, contudo, revelar-lhe a identidade da mulher com que a mãe não queria o seu casamento.
Valéria Gomes morre, Jorge volta da guerra e reata sua amizade com o amigo da mãe, Luís Garcia. Começa a freqüentar-lhe a casa, surgem várias situações embaraçosas para ele e Estela. Iaiá Garcia, que era muito apegada à madrasta - Estela - desgosta por instinto de Jorge. Procópio, amigo que Jorge conhecera no Paraguai, apaixona-se por Iaiá Garcia e faz de Jorge seu confidente a aliado na tentativa de conquistar o amor da moça.
Luís Garcia remexendo em sua papelada acaba por encontrar uma carta em que Jorge lhe confessava seus amores proibidos, embora não revelasse a identidade da moça. Luís Garcia mostra a carta à Estela, e esta fica a remoer as lembranças da paixão do passado. Iaiá desconfiando da reação emotiva que Estela tem diante da carta, começa a supor que ambos - Jorge e Estela - foram ou ainda são amantes.
Querendo resguardar o pai de uma grande decepção amorosa, Iaiá decide-se casar-se com Jorge e, para isto, tenta conquistá-lo, apesar do sentimento de repulsa que o rapaz lhe causava até então. Iaiá Garcia contando com seus dotes de envolvimento acaba por ficar noiva de Jorge. Porém, antes do casamento, ocorre a morte do pai de Iaiá Garcia, o velho Luís Garcia.
Assim, o plano de Iaiá Garcia perde o seu significado, não mais era necessário evitar o romance entre Jorge e Estela. Iaiá desmancha o noivado, mas revela-se que, de fato, ela sente estar apaixonada por Jorge. Procópio Dias, o pretendente rejeitado, fortalece as suspeitas da moça, insinuando relações amorosas entre Jorge e Estela.
Estela descobrindo o que levou Iaiá a romper o noivado com Jorge, convence Iaiá Garcia de que suas suspeitas não têm fundamento, pois que tudo se resumia às lembranças do passado, consegue reaproximar os noivos e serve-lhes de madrinha no casamento. Após isso, muda-se para São Paulo, onde vai trabalhar na escola de uma amiga.

(Apostila 14 de Realismo - Literatura Brasileira)

RESUMO DE DOM CASMURRO, Machado de Assis.- (resumo)
Dom Casmurro foi publicado em 1900 e é um dos romances mais conhecidos de Machado. Narra em primeira pessoa a história de Bentinho que, por circunstâncias várias, vai se fechando em si mesmo e passa a ser conhecido como Dom Casmurro. Órfão de pai, criado com desvelo pela mãe, Dona Glória, protegido do mundo pelo círculo doméstico e familiar (tia Justina, tio Cosme, José Dias), Bentinho é destinado à vida eclesiástica, em cumprimento a uma antiga promessa da mãe.
A importância da imaginação na sua personalidade influenciou-o por toda vida. Na puberdade chega quase na obsessão sexual. Quando o ciúme começa a abrir em sua alma as primeiras feridas, sua reação é quase histérica.
O Bentinho evocado por Dom Casmurro tem dois sinais: sexualidade tardia e predomínio da fantasia sobre a realidade. A presença dessa neurose foi o terreno onde medraram as flores doentias do ciúme.
Bentinho, fisgado de “puro ciúme” sequer procurava esclarecer as dúvidas quanto as atitudes de Capitu. A imaginação continuava a correr e com ela corre o ciumento.
No capítulo LXXII, retoma-se a tragédia de Shakespeare, Otelo, para a preposição de uma reforma dramática, entretanto, na reconstrução do seu drama memorialista preferia o caminho tradicional.
Dom Casmurro não ousa deixar as coisas “em pratos limpos”, quase a ansiedade chega por vezes ao 1paroxismo de uma crise de nervos, com impulsos agressivos contra Capitu.
No capítulo CXIII, o narrador começa a direcionar suas suspeitas à Capitu, que não quis acompanhar o marido ao teatro em razão de uma indisposição. Bentinho vai só, mas volta para casa no final do primeiro ato e encontra Escobar no corredor de sua casa. O episódio e tratado com fria ironia , levando o leitor as mais variadas interpretações sugeridas pela coincidência entre o mal-estar de Capitu e a visita não anunciada do amigo.
“Dúvida sobre dúvida” (cap. CXV) é o saldo da visita de Escobar . Na conversa que se segue o assunto são as dúvidas e recomenda D. Casmurro que era ele um poço delas , coaxavam dentro dele como verdadeiras rãs.
A necessidade do delírio, associada a perturbação do sono , configura a fase que os psiquiatras chamam de epofenia.
A vida do seminário não o atrai, já de namoro com Capitu, filha dos vizinhos. Apesar de comprometida pela promessa, também D. Glória sofre com a idéia de separar-se do filho único, interno no seminário. Por expediente de José Dias, agregado da família, Bentinho abandona o seminário e, em seu lugar, ordena-se um escravo.
Correm os anos e com eles o amor de Bentinho e Capitu. Entre o namoro e o casamento, Bentinho se forma em Direito e estreita sua amizade com um ex-colega de seminário, Escobar, que acaba se casando com Sancha, amiga de Capitu.
José Dias chama Ezequiel de “filho do homem” e isso irrita Capitu. Essa tenta corrigir o modo de andar do filho que imita José Dias e o modo de olhar que imita Escobar. Bentinho acredita que as imitações de Ezequiel é uma prova de paternidade e não decorrente da convivência.
Os dois casais, Bentinho e Capitu, Escobar e Sancha, planejam uma viagem para Europa, porém tal viagem não ocorre, pois, Escobar morre tragicamente.
Nesse momento da obra, o ciúme se instaura para sempre no coração de Bentinho. O fato determinante surgiu nos momentos que precederam o enterro, quando a viúva é amparada por Capitu, que parecia vencer a si mesma.
O olhar fixo de Capitu para o defunto, leva Bentinho a uma interpretação exorbitante. Suas dúvidas tornam-se agora firmes e certas , já alimentando a sede de vingança.
A partir da morte de Escobar, Bentinho anda aborrecido, mergulha de vez na melancolia. E começa a fazer projetos de suicídio. A paranóia do ciúme se incorpora de tal forma que ele passa a tratar sua mulher com aspereza e toma o filho para transformá-lo em documento de traição.
Ezequiel é afastado para um colégio da Lapa, no entanto, esse afastamento não diminui de Bentinho a idéia do suicídio. Certo dia, quando esperava o café D. Casmurro pensou em matar-se ; chega a derramar o veneno na xícara , tremendo , com “os olhos vagos à memória em Desdêmona inocente”. A presença de Ezequiel corta-lhe o impulso suicida e surge com violência o desejo de liquidar o filho. Dom Casmurro, por um momento acreditou-se vítima de uma grande ilusão, a volta de Ezequiel lança-o novamente ao mundo de seus fantasmas.
Santiago isola Capitu e o filho na Suíça. Capitu morre. O primeiro e único amor estava morto e enterrado, mas o ciúme não: ressurgia na figura do filho que de volta de uma das viagens o visitara inesperadamente. Bentinho constata as semelhanças entre o filho e o antigo colega de seminário. Ezequiel volta a viajar e morre no estrangeiro. Bentinho, cada vez mais fechado em suas dúvidas, passa a ser chamado de D. Casmurro pelos amigos e vizinhos e põe-se a escrever a história de sua vida: o romance em questão.
Estudo e análise:


Depois de um século, "Dom Casmurro"
continua gerando polêmica.
Por: NELSON SOUZA*
Dom Casmurro, de Machado de Assis, é o romance mais famoso da literatura brasileira. Neste livro está o talento de seu autor ao analisar psicologicamente seus personagens bem como a criação do clima de dúvida e ambigüidade quanto ao adultério de Capitu - uma das personagens da obra.

Publicado em 1899 em 148 capítulos (todos titulados e curtos) o romance é narrado em primeira pessoa. O Dr. Bento Santiago, familiarmente chamado Bentinho, relata a sua própria história a partir de um "flashback" da velhice para a infância, com o objetivo de "atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência". Marcado para ser padre, pois sua mãe - Dona Glória tinha feito uma promessa: o filho seguiria a vida sacerdotal, Bentinho - órfão de pai - cresceu num ambiente típico de uma família burguesa: Tio Cosme, prima Justina e o agregado José Dias. Entretanto o garoto não deseja ser padre e já aos quinze anos começa um relacionamento com uma vizinha - Capitu (garota de 14 anos, de origem pobre, que vivia com os pais: Pádua e Fortunata). A convivência e as brincadeiras vão aproximando Bentinho e Capitu que de amigos passam a namorados. Os pais de Capitu posicionam-se favoravelmente ao namoro uma vez que vêem neste relaciona- mento uma forma de ascensão social; já dona Glória, alertada por José Dias, sente a promessa ameaçada; por isso coloca Bentinho no seminário. No seminário, Bentinho conhece Escobar, ficam amigos íntimos (os dois descobrem afinidades - ambos estão no seminário sem vocação sacerdotal). Anos depois, Escobar abandona o seminário e dedica-se ao comércio, posteriormente Bentinho toma a mesma atitude e forma-se em Direito. Escobar casa-se com Sancha, amiga de Capitu, e Bentinho contrai matrimônio com Capitu, ratificando o namoro da adolescência. Assim a amizade dos dois pares solidifica: moram perto e tornam-se muito unidos. O casamento entre Bentinho e Capitu começa a entrar em crise a partir do nascimento do filho Ezequiel que apresenta uma semelhança física com Escobar o que induz Bentinho a imaginar que Capitu o traiu com o seu melhor amigo. Da constatação, Dr. Bento consome-se em ciúme, o tempo vai passando e Ezequiel fica cada vez mais parecido com Escobar o que dá a certeza de que o garoto não é seu filho. Passado algum tempo, Escobar morre afogado no mar. Ao observar no velório a reação de Capitu -"ela olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas". Bentinho chega a uma comprovação: houve o adultério; ele não consegue suportar a" presença da mulher e do filho chegando até a pensar em matá-Io. Passa o casal a ter uma vida conjugal de aparência: estão, de fato separados, porém convivem (observe a sutil crítica machadiana à classe burguesa - relação hipócrita). É tentada uma reconciliação através de uma viagem do casal à Europa, não dá certo, Bentinho volta; Capitu e Ezequiel permanecem na Suíça. Mais tarde Capitu morre sem ter revisto o marido. Já adulto, Ezequiel retoma ao Brasil para visitar o pai que mais uma vez constata a semelhança física entre o filho e Escobar. Pouco depois Ezequiel morre no estrangeiro. Bentinho, cada vez mais Casmurro, fecha-se em sua dúvida. Agora, você decide: Capitu - culpada ou inocente?
Conheça, a seguir, uma amostra da polêmica história da recepção
critica de "Dom Casmurro" o "sobretudo em relação ao ponto
mais discutido do livro, a questão do adultério.
José Veríssimo -"("Dom Casmurro" trata de) um homem inteligente, sem dúvida, mas simples, que desde rapazinho se deixa iludir pela moça que ainda menina amara, que o enfeitiçara com a sua faceirice calculada, com a sua profunda ciência congênita de dissimulação, a quem ele se dera com todo ardor compatível com o seu temperamento pacato." ("História da Literatura Brasileira").
Lucia-Miguel Pereira - "Capitu, se traiu o marido, foi culpada ou obedeceu a impulsos e hereditariedade ingovernáveis? É a pergunta que resume o livro. (...) Há a idéia central de saber se Capitu foi uma hipócrita ou uma vítima de impulsos instintivos. Em outras palavras, se pode ser responsabilizada."("M.de Assis")
Augusto Meyer -"Capitu é o melhor exemplo daquilo que Bentinho afirmava, a propósito de si mesmo: 'Chega afazer suspeitar que a mentira é, uma vez, tão involuntária como a transpiração'. Capitu mente como transpira, por necessidade orgânica." ("Capitu", em "Textos Críticos").
Antonio Cándido -"Dentro do universo machadiano, não importa muito que a convicçao de Bento seja falsa ou verdadeira, porque a conseqüência é exatamente a mesma nos dois casos: imaginária ou real, ela destrói sua casa e a sua vida." ("Esquema de Machado de Assis", em 'Vários Escritos").
Silviano Santiago -"Os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou a impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de Dom Casmurro." ("Retórica da Verossimilhança", em "Uma Literatura nos Trópicos")
Antônio Cândido -"Respeite-nos um dos dogmas da nossa literatura, que é o da maculada conceição do filho de Capitu com Escobar. Cultuemos a sua infidelidade e não afastemos de nós a negra inveja que sentimos de Escobar" (Na Folha, em 12/10/1994).
Dalton Trevisan -"Até você, cara - o enigma de Capitu? Essa, não: Capitu inocente? Começa que enigma não há: o livro, de 1900, foi publicado em vida do autor - e até sua morte, oito anos depois, um único leitor ou critico negou o adultério?" (Na Folha, em 23/5/92).
Otto Lara Resende -"Quem fica tiririca, e com toda a razão, com essa história mal contada, e tão mal contada que desmente o próprio Machado de Assis, é o Dalton Trevisan (...) Dar o Bentinho como o 'nosso Otelo' é pura fantasia. Bestialógico mesmo." (Na Folha. em 08/01/1992).

DOM CASMURRO - MACHADO DE ASSIS
A TEMÁTICA Em rigor o tema abordado por Machado de Assis não é o adultério e sim o ciúme, tão doentio que atinge uma deformação patológica. Capitu é considerada adúltera na ótica de Bentinho que se apresenta como vitima, por isso o romance é uma verdadeira acusação. O ciúme do Dr. Bento Santiago é tão forte que ele não consegue o controle emocional (na morte de Escobar, Bentinho não consegue ler as palavras de despedidas por causa do ódio ao morto e a Capitu).
FOCO NARRATIVO A polêmica do romance: Capitu é ou não é adúltera está concentrada no foco narrativo de primeira pessoa, pois Bentinho é o personagem que narra sua própria história. Dúvidas existirão sobre a culpabilidade de Capitolina uma vez que o narrador não é confiável. A criação mimada, protetora excessivamente que teve, transformou-o num homem inseguro, de personalidade fraca, por isso Bento pode estar distorcendo os fatos. Tudo nos leva a crer que o narrador pretende única e exclu-sivamente incriminar Capitu.
RELATIVIZAÇÃO Em sua narrativa, Bento afirma o adultério, mas é uma acusação inconsistente. A principal prova de que dispõe é a semelhança física entre Escobar, amigo do casal, e Ezequiel, contestada, pois há uma também identidade física entre Capitu e a mãe de Sancha, que nem parentes são. Outro exemplo que põe em dúvida o posicionamento de Bentinho é que ele também é um adultéro. Na véspera da morte de Escobar, Betinho troca inesperados e intensos olhares com Sancha e, na hora da despedida, suas mãos se apertam demoradamente mais do que o normal, levando o narrador a ter um instante de descontrole emocional: é o sentimento de culpa que aflora. E assim o romance segue, cada registro de traição vem à tona o contrário. Num determinado mo-mento, Bentinho condena a esposa, noutro - mais introspectivo - ele se mostra ciumento atingindo uma paranóia.
RETRATO DA SOCIEDADE espaço ocupado pelo enredo corresponde à cidade do Rio de Janeiro ao tempo do II-Império, Bentinho é o típico representante das elites patriarcal, morava em bairros elegantes, a família vivia de rendas, era uma pessoa culta e de hábitos sofisticados; quando adulto, era prepotente, brutal e incapaz de estabelecer diálogo com a mulher amada. A presença do agregado José Dias - personagem plana, caricatural, simbolizada pelo seu parasitismo, é uma prova da condição socioeconômica da família Santiago, pois só as famílias abastadas do Brasil imperial possuiam agregados que, de acordo com o grau de instrução, desempenhavam funções diversas inclusive de conselheiro. Dias cuidava de Bentinho com "extremos de mãe e atenções de servo".
MATERIALISMO Capitu é o avesso social e econômico de Bentinho. Oriunda de família pobre, ela busca a ascensão à custa do casamento, por isto não mede esforços para vencer os empecilhos, o casamento com Bentinho era o seu grande projeto de vida, para alcançá-lo, enfrenta preconceitos, desigualdades financeiras. Ela adorava sair às ruas de braço dado com Bentinho a fim de que a sociedade visse que aquela menina pobre estava casada com um homem rico. É importante ressaltar o comporta-mento interesseiro de Pádua - pai de Capitu - o qual sabia que a filha de quatorze anos andava de namoro com Bentinho, mas era conivente, pois este relacionamento lhe traria benefícios: ele um simples funcionário de uma repartição poderia ter como genro um filho de uma viúva rica. Outro exemplo que comprova o caráter materialista do romance é José Dias - personagem hilari-ante, mesclado de uma dignidade pedante (gostava de usar superlativos) com uma dedicação fiel de criado. Cumpre esclarecer que a dedicação de José Dias - o agregado - garante sua sobrevivência junto à elite, por isso ele enxerga de que lado deve ficar, por isso ele toma partido do jovem Bentinho, menos por simpatia à paixão e mais por se preocupar com o seu futuro (o agregado sugere a Bentinho uma viagem à Europa para que ele pudesse ir junto).
AS DUAS FASES DO ENREDO De acordo com os fatos narrados, o romance apresenta duas fases distintas que correspondem aos momentos básicos na vida dos personagens.
FASE I - Período da adolescência (1857) - Capitu - 14 anos e Bentinho - 15 anos representa a fase mais poética, aqui Capitu se mostra uma pessoa dominadora, tomando toda iniciativa do jogo amoroso ("Como se vê, Capitu, aos catorze anos, tinha já idéias atrevidas")
FASE II - Corresponde ao período que começa com o casamento entre Bentinho e Capitu (1865). É uma fase mais realista e amargurada, cheia de conflitos, gerados pela incompatibilidade de gêneros. Bento desempenha o papel de homem patriarcal, assume o comando do relacionamento afetivo, levando-o à destruição.
ESTILO MACHADIANO
Ironia e ceticismo - Machado de Assis revela uma visão cética e desencantada da realidade. Os indivíduos agem impulsionados apenas por seus interesses pessoais: vaidade, ambição, sede de poder. Diante destes valores, prefere o autor o sorriso crítico, o humor, não aquele humor engraçado, de provocar gargalhadas, e sim, a ironia sutil que conduz o leitor a uma reflexão crítica. (São exemplos de ironia e humor a erudição de José Dias, a gula do Padre Cabral, o biotipo de Tio Cosme, o comportamento de Bentinho em relação ao poeta do trem).
Linguagem - Em "Dom Casmurro," Machado utiliza todas as possibilidades de expressão que a linguagem possibilita. Ora o texto é recheado de termos atualíssimos, ora levemente arcaico. Há repúdio à retórica, à metáfora vazia, ao adjetivo banal e aos pormenores descritivos. Usando a téc-nica dos capítulos curtos e titulados, o narrador-personagem dialoga freqüentemente com o leitor, dando-lhe um cunho de cumplicidade dos fatos, ("Não consultas dicionário. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhes dão" - cap. 1, "O resto deste capítulo é só para pedir que, se alguém tiver de ler o meu livro com alguma atenção mais do que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe de concluir que o diabo não é tão feio como se pinta" - cap. 92).
* NELSON SOUZA é professor de Língua Portuguesa e Literatura pela UFBa, pedagogo pela Feba, professor do 3o ano do UCBA, ISBA e Módulo

(Apostila 12 de Realismo - Literatura Brasileira)

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Resumo de Esaú e Jacó - Machado de Assis
Publicado em 1904, Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis.
O título é extraído da Bíblia, remetendo-nos ao Gênesis: à história de Rebeca, que privilegia o filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, fazendo-os inimigos irreconciliáveis. A inimizade dos gêmeos Pedro e Paulo, do romance de Machado, não tem causa explícita, daí a denominação de romance "Ab Ovo" (desde o ovo).
É o romance da ambigüidade, narrado em 3ª pessoa, pelo Conselheiro Aires. Pedro e Paulo seriam "os dois lados da verdade". Filhos gêmeos de Natividade e Agostinho Santos, à medida que vão crescendo, os irmãos começam a definir seus temperamentos diversos: são rivais em tudo. Paulo é impulsivo, arrebatado, Pedro é dissimulado e conservador - o que vem a ser motivo de brigas entre os dois. Já adultos, a causa principal de suas divergências passa a ser de ordem política - Paulo é republicano e Pedro, monarquista. Estamos em plena época da Proclamação da República, quando decorre a ação do romance.
Para apaziguar a discórdia fraterna, de nada valem os conselhos de Aires, amigo de Natividade, nem as previsões de discórdia e grandeza feitas por uma adivinha (A Cabocla do Castelo), quando os gêmeos tinham ainda um ano.
Até em seus amores, os gêmeos são competitivos. Flora, a moça de quem ambos gostam, se entretém com um e outro, sem se decidir por nenhum dos dois: a moça é retraída, modesta, e seu temperamento avesso a festas e alegrias, isso levou o Conselheiro Aires a dizer que ela era "inexplicável". O conselheiro Aires é mais um grande personagem da galeria machadiana, que reaparecerá como memorialista no próximo e último romance do autor: velho diplomata aposentado, de hábitos discretos e gosto requintado, amante de citações eruditas, muitas vezes interpreta o pensamento do próprio romancista.
As divergências entre os irmãos continuam, muito embora, com a morte de Flora, tenham jurado junto a seu túmulo uma reconciliação perpétua. A morte da moça, porém, une temporariamente os gêmeos, mais tarde, também a morte de Natividade cria uma trégua entre ambos, mas logo se lançam às disputas.
Continuam a se desentender, agora em plena tribuna, depois que ambos se elegeram deputados por dois partidos diferentes, absolutamente irreconciliáveis: cumpre-se, portanto, a previsão da adivinha: ambos seriam grandes, mas inimigos.
Comentário e estudo:
100 ANOS DE ESAÚ E JACÓ
O penúltimo romance de Machado de Assis reflete com maestria sua ambígua posição política

por Fabio Guimenes (guimenes@yahoo.com.br)
Joaquim José Maria Machado de Assis (1839-1908) é unanimemente celebrado como um dos maiores escritores brasileiros. Nenhum outro reuniu um interesse tão generalizado em torno de sua vida e obra. Este prestígio, que outros escritores mais populares não conseguiram alcançar, o situa à parte, representando por si só um momento incomparável na sucessão das escolas literárias. Destoante pelo pensamento e pelo estilo da tradição literária, Machado de Assis marca seu próprio estilo, fazendo crer ao seu leitor que se colocava face aos acontecimentos históricos que presenciou como simples espectador.
“As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX (...)” diz Nicolau Svcenko, em seu livro Literatura como Missão - Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República , “(...) assinalavam mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira. Mudanças que foram registradas pela literatura, mas, sobretudo mudanças que se transformaram em literatura.”
Nos primeiros anos da República, a intranqüilidade social e política abatia a todos os que tinham esperança no novo regime. Numa época em que os Realistas se desdobravam em detalhes grosseiros, Machado preferia sugerir a declarar. Olhando a natureza como um míope, ele, em compensação, devassa e penetra a alma dos homens, para aí sim, exibi-la em opulência de detalhes. O estudo da obra machadiana ainda nos coloca uma série de obstáculos. Como diz José Barreto Filho em seu livro Introdução à obra de Machado de Assis , “Machado nos quis dizer um segredo, mas o fêz com tanta reserva que não pôde formular talvez, nem para si mesmo”.
Definir em que consiste este universo tem sido tema de artigos, livros e pesquisas, cada qual trazendo sua interpretação. O objetivo deste ensaio é mostrar como Machado de Assis tornou-se um excelente retratista de seu tempo. Através de sua literatura, pode-se conhecer o que de mais característico havia no Rio de Janeiro. Machado não escreveu a História dos Subúrbios, prometida em Dom Casmurro através do personagem-narrador, mas, em compensação, compôs, através de sua visão, a história política e social de toda a cidade, quando esta exercia ainda segundo Sevcenko “papel preponderante, senão hegemônico, como capital cultural, além de ser o centro das decisões políticas e administrativas”.
Em sua dissertação de mestrado, defendida em 1985 na UFF intitulada A República do Pica-pau Amarelo , o Professor Doutor André Luiz Vieira de Campos diz que “mais do que simples testemunho da sociedade, a literatura pode revelar seus conflitos dissimulados e desejos não realizados”. Não há produção humana desvinculada da realidade de seu tempo; por isso, a literatura sempre foi um importante instrumento na formação da mentalidade das elites do país.
Esaú e Jacó , escrito em 1904, foi o penúltimo romance de Machado de Assis, trazendo uma particularidade: reflete a posição política de um homem tido como alheio aos movimentos de tal natureza. O escritor retoma, no título, a referência bíblica — típica de sua ficção — remetendo a história de Pedro e Paulo ao episódio do Antigo Testamento ( Gênesis, capítulos 27 a 33) . Os gêmeos nos trazem reflexões políticas que, certamente, ocupavam o imaginário da época, além de Flora, apaixonada pelos irmãos, que caracteriza a indecisão, marca registrada da obra machadiana, que nada afirma sem, logo a seguir, meter a dúvida de permeio. Machado de Assis utiliza as duas personagens — Pedro e Paulo — para, em cada uma, incorporar seu espírito hesitante e em constante luta íntima na grande questão que nos traz esta obra: Monarquia X República.
A grande preocupação dos estudiosos da obra machadiana é situar suas tendências políticas ao lado da República contra o Império. Mas como diz H. Pereira da Silva em seu livro Sobre os Romances de Machado de Assis , “determinar-lhe o comportamento político só mesmo pelo método dedutivo. E deduzi-lo partidário da República implica em sofismar mais do que em deduzir”.
“Há nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se perdem, outros que a imaginação inventa para suprimir os perdidos, e nem por isso a história morre”, prega um trecho de Esaú e Jacó . O livro possui uma particularidade: refletir a posição política de um homem tido como alheio a movimentos de tal natureza. Acusado de indiferente, frio e inteiramente desligado das paixões políticas, Machado de Assis, nesta obra, discute e analisa uma das mais importantes épocas da política brasileira.
Vê-se que a obra se ocupa do período de 1855 a 1890, época cuja importância é fundamental na evolução da sociedade brasileira. Neste período de nossa história, temos a economia do café, extinção do trabalho escravo e o emprego da mão-de-obra livre. Há grandes transformações urbanas e a população cresce a cada dia. O autor procura registrar a transição Império/República, o que dá ao texto o nível histórico.
Uma curiosidade deste livro é que Machado de Assis não se coloca como autor da obra. Logo em seu início, há uma advertência onde diz que os manuscritos que deram origem ao livro foram encontrados após a morte do Conselheiro Aires. Machado, então, monta a sua narrativa a partir dos manuscritos do Conselheiro.
A referência bíblica é típica da ficção machadiana e aparece em todos os livros anteriores a este. Através dela, o autor infunde um caráter de parábola à narrativa, dimensionando-a em curto grau de universalidade. A obra faz menção a um episódio, como já foi dito, do Antigo Testamento: como Rebeca era estéril, Isaac implorou a Jeová que lhe concedesse filhos. Concebendo gêmeos e sentindo-os lutar em seu útero, ela interroga a Deus que responde: “duas nações há no teu ventre, dois povos nascidos de ti, que se dividirão; um povo será mais forte do que o outro e o mais velho servirá ao mais moço”. Esta referência fixa, desde já, o nível mítico do discurso. A ação que transcorrerá opondo Pedro e Paulo reporta-se a uma realidade arquetípica, inerente à própria natureza humana e diz respeito às suas origens.
Também é importante notar como Machado vai localizando objetivamente a ação num cenário específico da vida urbana. O autor, como de costume, faz menção minuciosa de lugares, hábitos, profissões e convenções. Revela-se, assim, uma fotografia bastante nítida do código social da burguesia brasileira na segunda metade do século XIX, sendo possível, até mesmo, reconstituí-la através do texto machadiano.
Retomando a análise de Pedro e Paulo, é através destas duas personagens que nos chegam as pulsações políticas do autor. Para resumir o nível de confronto dos irmãos, digo apenas uma coisa: se perguntados sobre a data de seus aniversários — 7 de abril de 1870 — Paulo diria: “Nasci no aniversário do dia em que Pedr oI caiu do trono”. E Pedro: “Nasci no aniversário do dia em que sua Majestade subiu ao trono”.
Flora, personagem dúbia, seria o amor de ambos. Ela não se decide e eles que sempre divergiam concordam com o fato de que nenhuma outra mulher teria as qualidades de Flora e disputam-na. Pedro, Paulo e Flora habitam esta região do mundo machadiano, que são os mais de cem capítulos desta obra, com o objetivo de contrastarem idéias do autor.
Na realidade, os dois não são mais que um, se temos que distinguí-los simbolicamente como meio de expressão de um conjunto de idéias e não, meramente, como personagens. Machado serve-se, digamos assim, dos irmãos para em cada um incorporar o seu espírito hesitante e em constante luta íntima. A segunda metade do século XIX, como disse, rica historicamente, não o seduziria a ponto de fazê-lo tomar parte ativa nos movimentos que culminaram com a abolição da escravatura e a proclamação da República, entre outros.
Havia em Machado de Assis — consumido lentamente pela epilepsia — uma preocupação maior que todas: a de firmar sua personalidade antes que o “grande mal” o vencesse. Firmou, mas foi vencido por outra doença: o câncer. Esaú e Jacó , por certo, foi interrompido mais de uma vez pelas crises e ataques que o prostravam ao leito por dias seguidos.
A proclamação da República merece, na narrativa, mais do que a habitual atenção de Machado de Assis dispensada a um acontecimento político. Trata-se do episódio da tabuleta; ele, melhor do que ninguém, define a exata posição do autor e do povo diante do fato. Custódio, dono de uma confeitaria no Catete, vê-se em sérios problemas com a queda da monarquia e “se pudesse liquidava a confeitaria, afinal que tinha ele com política? Era um simples fabricante e vendedor de doces, estimado, afreguesado, respeitado e principalmente respeitador da ordem pública…”.
Este episódio inicia-se no capítulo 49 e só se completa no capítulo 63. Talvez em nenhuma outra passagem da obra de Machado de Assis a questão das relações entre credos políticos e o individualismo burguês tenha recebido tratamento tão irônico. O temor e a avareza qualificam o conceito de propriedade, expressando-se na busca de um título “simultaneamente definitivo, popular e imparcial” que o defenda em qualquer circunstância. Este diálogo se dá entre Custódio e o Conselheiro Aires. Tudo começa quando Custódio, dias antes da proclamação da República, manda pintar uma tabuleta que dizia “Confeitaria do Império”. Passo, então, após este introdutório que, certamente, despertou a curiosidade dos que não o conhecem, a transcrevê-lo.
“— Mas o que é que há? Perguntou Aires.
— A república está proclamada.
— Já há governo?
— Penso que já; mas diga-me V.Ex.ª: ouviu alguém acusar-me jamais de atacar o governo? Ninguém. Entretanto, uma fatalidade! Venha em meu socorro, Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. —‘Confeitaria do Império', à tinta é viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de título, por mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V.Ex.ª crê que, se ficar ‘Império', venham quebrar-me as vidraças?
— Isso não sei.
— Pessoalmente, não há motivo; é o nome da casa, nome de trinta anos, ninguém a conhece de outro modo…
— Mas pode por ‘Confeitaria da República'…
— Lembrou-me isso a caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dois meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje e perco outra vez o dinheiro.
— Tem razão… sente-se.
— Estou bem.
— Sente-se e fume um charuto.
Custódio recusou o charuto, não fumava. Aceitou a cadeira. Estava no gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamariam a atenção, se não fosse o atordoamento do espírito. Continuou a implorar o socorro do vizinho. S. Exª. com a grande inteligência que Deus lhe dera, podia salvá-lo. Aires propôs-lhe um meio-termo, um título que iria com ambas as hipóteses — ‘Confeitaria do Governo'.
— Tanto serve para um regímen como para outro.
— Não digo que não, e, a não ser a despesa perdida… Há, porém, uma razão contra. V.Exª. sabe que nenhum governo deixa de ter oposição. As oposições, quando descerem à rua, podem implicar comigo, imaginar que as desafio, e quebrarem a tabuleta; entretanto o que eu procuro é o respeito de todos.
Aires compreendeu bem que o terror ia com a avareza. Certo, o vizinho não queria barulhos à porta, nem malquerenças gratuitas, nem ódios de quem quer que fosse; mas, não o afligia menos a despesa que teria de fazer de quando em quando, se não achasse um título definitivo, popular e imparcial. Perdendo o que tinha, já perdia a celebridade, além de perder a pintura e pagar mais dinheiro. Ninguém lhe compraria uma tabuleta condenada. Já era muito ter o nome e o título no Almanaque de Laemmert, onde podia lê-lo algum abelhudo e ir com ou outros, puni-lo do que estava impresso desde o princípio do ano…
— Isso não, interrompeu Aires; o senhor não há de recolher a edição de um almanaque.
E depois de alguns instantes:
— Olhe, dou-lhe uma idéia, que pode ser aproveitada, e, se não a achar boa, tenho outra à mão, e será a última. Mas eu creio que qualquer delas serve. Deixe a tabuleta pintada como está, e à direita, na ponta, por baixo do título, mande escrever estas palavras que explicam o título: ‘Fundada em 1860'. Não foi em 1860 que abriu a casa?
— Foi, respondeu Custódio.
— Pois…
Custódio refletia. Não se lhe podia ler sim nem não; atônito, a boca entreaberta, não olhava para o diplomata, nem para o chão, nem para as paredes ou móveis, mas para o ar. Como Aires insistisse, ele acordou e confessou que a idéia era boa. Realmente, mantinha o título e tirava-lhe o sedicioso, que crescia com o fresco da pintura. Entretanto, a outra idéia podia ser igual ou melhor, e quisera comparar as duas.
— A outra idéia não tem a vantagem de pôr a data à fundação da casa, tem só a de definir título, que fica sendo o mesmo, de uma maneira alheia ao regímen. Deixe-lhe estar a palavra império e acrescente-lhe embaixo, ao centro estas duas, que não precisam ser graúdas: das leis. Olhe, assim, concluiu Aires, sentando-se à secretária, e escrevendo em uma tira de papel que dizia.
Custódio leu, releu e achou que idéia era útil; sim, não lhe parecia má. Só lhe viu um defeito: sendo as letras debaixo menores, podiam não ser lidas tão depressa e claramente como as de cima, e estas é que se meteriam pelos olhos ao que passasse. Daí a que algum político ou sequer inimigo pessoal não entende logo, e… A primeira idéia, bem considerada, tinha o mesmo mal, e ainda este outro: pareceria que o confeiteiro, marcando a data da fundação fazia timbre em ser antigo. Quem sabe que não era pior que nada?
— Tudo é pior que nada.
— Procuremos.
Aires achou outro título, o nome da rua, ‘Confeitaria do Catete', sem advertir que havendo outra confeitaria na mesma rua, era atribuir exclusivamente a Custódio a designação local. Quando o vizinho lhe fez tal ponderação, Aires achou-a justa, e gostou de ver a delicadeza de sentimentos do homem; mas logo depois que o que fez falar o Custódio foi a idéia de que este título ficava comum às duas casas. Muita gente não atinaria com o título e compraria na primeira que lhe ficasse à mão, de maneira que só ele faria as despesas da pintura, e ainda por cima perdia a freguesia. Ao perceber isso, Aires não admirou menos a sagacidade de um homem que, em meio a tantas tribulações, contava os maus frutos de um equívoco. Disse-lhe então que o melhor seria pagar a despesa feita e não por nada, a não ser que preferisse seu próprio nome: ‘Confeitaria do Custódio'. Muita gente certamente lhe não conhecia a casa por outra designação. Um nome, o próprio nome do dono, não tinha significação política ou figuração histórica, ódio nem amor, nada que chamasse a atenção dos dois regimens, e conseguintemente que pusesse em perigo os seus pastéis de Santa Clara, menos ainda a vida do proprietário e dos empregados. Por que é que não adotava esse alvitre? Gastava alguma coisa com a troca de uma palavra por outra, ‘Custódio' em vez de ‘Império', mas as revoluções trazem sempre despesas.
— Sim, vou pensar, excelentíssimo. Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver em que param as modas, disse Custódio agradecendo.
Curvou-se, recuou e saiu. Aires foi à janela para vê-lo atravessar a rua. Imaginou que ele levaria da casa do ministro aposentado em lustre particular que faria esquecer por instantes a crise da tabuleta. Nem tudo são despesas na vida, e a glória das relações podia amaciar as agruras deste mundo. Não acertou desta vez. Custódio atravessou a rua, sem parar nem olhar para trás, e enfiou pela confeitaria dentro com todo sem desespero”.
Não entram aí, por transferência, certos elementos da biografia do autor? Como o “fabricante e vendedor de doces”, “afinal, o que tinha ele a ver com política?” “Respeitado” e “respeitador da ordem pública”; quem o foi mais Machado de Assis?
Situar as tendências de Machado de Assis relativas à política, colocando-o ao lado da República e contra o Império, tem sido, como dissemos, a maior preocupação dos machadianos. A verdade, porém, é que o romancista nutria por D.Pedro II e a Família Imperial grande estima. Ainda jovem, dedicou nas colunas de A Marmota , um soneto ao Imperador.
“Nesse trono, Senhor, que foi erguido
por um povo já livre, e sustentado
por ti, que alimentando as leis, o estado
hás na história teu nome engrandecido.
Neste trono, Senhor, onde esculpido
tem a destra do eterno um nome amado
vês nascer este dia abrilhantado
sorrindo a ti, monarca esclarecido!
Eu te saúdo neste dia imenso!
Da clemência, justiça sã, verdade
queimando as piras perfumoso incenso!
Elevando aos umbraes da imensidade
terá fama, respeito e amor intenso!
Um nome transmitido à eternidade!”
Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 1855
Machado de Assis
Depois disso, por diversas vezes se reporta com incontida admiração ao Monarca retratado pelos adeptos do novo regime. A crença de que os monarquistas eram retrógrados desapareceu com os reacionários da república. Sem fazer afirmações, ou melhor, fazendo-as para, ao mesmo tempo, invalidá-las com um ponto de interrogação, Machado de Assis não se deixa apanhar facilmente.
Voltemos a Flora. Ela oscila como um pêndulo entre o amor de Pedro e Paulo e, até a morte, hesita. Chega a ter alucinações. Ouve vozes. E, fundindo-as em apenas uma, de tão iguais que eram, transforma os gêmeos em uma única pessoa.
O drama de Flora consiste em não se decidir, tal era a atração pelos gêmeos. Machado de Assis resume os anseios da moça assim: “Era um espetáculo misterioso, vago, obscuro em que as figuras visíveis se faziam impalpáveis, o dobrado ficava único, o único dobrado, uma fusão, uma confusão, uma difusão”.
A complexidade dos sentimentos que fazem de Flora um símbolo da indecisão de Machado de Assis põe a descoberto uma constante no espírito titubeante do seu criador. Tomar uma decisão constituiu, sem a menor dúvida, algo penoso, quase uma transgressão consigo mesma, para quem, de preferência, acreditava nas coisas boas e más, sem revoltas violentas ou medidas drásticas. A rebeldia machadiana, como a de Voltaire, se manifesta sutilmente nos ditos satíricos, na ironizante e particular maneira de mostrar, nos lábios, um sorriso de desdém e, nos olhos, ocultar as lágrimas de compaixão pelas aspirações humanas. Interrogações seguidas de resposta cética e imediata como esta: “Vives? Não quero outro flagelo”. Expõe feridas e cicatrizes íntimas. Em Machado de Assis, tão introvertido, o humor seria uma válvula de escape em textos carregados de impressões refinadas pela sua sensibilidade.
Esaú e Jacó , pelos motivos expostos, poderia intitular-se Indecisão . As personagens, mesmo as secundárias, não possuem caracteres positivos estáveis; atravessam a obra como criaturas que dão a impressão de incerteza ao primeiro olhar. A figura de Flora não se fixa na memória do leitor sem deixar um rastro de dúvidas quanto à sua preferência por um dos gêmeos. Termina sem chegar a separar Pedro e Paulo, fundindo-os num só, tal como acontecia em suas alucinações.
Na forma, Esaú e Jacó , como expressão literária, é uma obra-prima pouco lembrada pelos críticos. Machado de Assis atinge uma superioridade estilística só mesmo inferior à que conquista em Memorial de Aires . As idéias de Machado são como as moedas: possuem duas faces — cara e coroa —; o seu valor, porém, torna-as únicas
(Apostila 12 de Realismo - Literatura Brasileira)




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RESUMO DE HELENA, Machado de Assis.
Dividido em 28 capítulos, a ação de Helena avança de modo linear: começa com a morte do Conselheiro Vale a abertura de seu testamento e conclui com a morte da protagonista, o desespero de Estácio e o beijo de Camargo em Eugênia, sua filha. Entre um ponto e outro transcorrem os dez meses vividos por Helena no Andaraí, em companhia do irmão, da tia, D. Úrsula, e dos amigos que os visitam, entre os mais íntimos contando-se Camargo e família, Mendonça, por um tempo noivo da heroína, e o Padre Melchior, o conselheiro religioso e sentimental da maioria das personagens.
No espaço do Rio de Janeiro colonial, um homem importante e rico mantém caso amoroso com uma mulher que havia migrado do Rio Grande do Sul e se separara do marido, devido a dificuldades financeiras. A mulher já possuía uma filha, que, mais tarde, foi perfilhada pelo amante rico. Esta filha é Helena. Mesmo sabendo de tudo, ela é recebida no seio da família do amante de sua mãe, já morto, e entra em posse de uma herança considerável. A convivência termina por gerar uma paixão recíproca entre Helena e seu suposto irmão Estácio. O drama de incesto abala as estruturas da família de Estácio e tudo caminha para um final surpreendente.
Conselheiro vale era um homem rico, e tinha um caso amoroso com Ângela, uma mulher que havia migrado do RS, ela tinha uma filha, Helena. Conselheiro Vale morre, e em seu testamento ele alegava que Helena era sua filha e que ela devia tomar seu lugar na família, todos acreditam nisso, porém Helena sabe que não é verdadeiramente sua filha, mas na sua ânsia de ascender socialmente acaba aceitando isso.
À princípio, D. Úrsula reage com um certo preconceito à chegada de Helena, mas no decorrer da narrativa ela vai ganhando o amor de D. Úrsula, Estácio porém, era um bom filho, e faz a vontade do pai sem indagar nada. Dr. Camargo acha aquilo um absurdo, pois ele queria casar sua filha, Eugênia, com Estácio para que eles se tornassem ricos às custas do dinheiro de Estácio, e mais um familiar só iria diminuir a parte da herança de Estácio.
Helena toma seu lugar na família como uma mulher de fibra, uma verdadeira dona de casa, cuida muito bem de sua nova família, dirige a casa melhor do que D. Úrsula o fazia, e impressiona não só a família como toda a sociedade em geral, porque além de ser uma mulher equilibrada como poucas que existiam, era linda, sensível e rica.
Ao decorrer da narrativa, Helena vai impressionando mais e mais Estácio, e nisso acaba se apaixonando por ela, e ela por ele. Eis aqui o problema central do conflito no livro, de um lado Estácio, se martirizando por se apaixonar por sua suposta irmã, o que era um pecado, e do outro Helena, também apaixonada por Estácio, esta sabia de toda verdade, mas não podia jogar tudo para o alto e ficar com ele, porém, pressionada por Camargo que ameaçava tornar público seus misteriosos passeios matutinos, se ela não empurrar Estácio na direção do enlace com Eugênia. Neste ponto então surge Mendonça, que se apaixona pela heroína e então pede Eugênia em casamento também para tentar esquecer Helena. O Padre Melchior é quem induz Helena a casar-se com Mendonça, cujo cerco à moça era evidente a todos.
A família possuía uma chácara, e perto dessa chácara tinha uma casa simples, pobre, e Helena costuma a visitar sempre essa chácara, um dia Estácio resolveu seguí-la, e lá conheceu Salvador, e foi tirar satisfações sobre as visitas de Helena, Salvador começou a lhe contar uma grande história, e surpreendeu Estácio ao lhe revelar que Helena era sua filha, não de Conselheiro vale, e toda a História da vida de Helena até ali. Nesse mesmo dia Helena após uma forte chuva fica debilitada, à beira da morte, Estácio, tomado por seu forte amor vai cuidar de Helena e lhe faz essa declaração. Helena, muito doente, morre. Estácio casa-se depois com Eugênia, porém, após a nova releitura do testamento e o casamento, o fato é que os personagens não serão mais os mesmos. Estácio desacreditando do amor e Eugênia casada mais por conveniência. O falecimento de Helena reconduz a ação ao estado inicial: não apenas porque o enredo começa com uma morte, mas também porque, com o desaparecimento dela, tudo retorna à situação anterior à abertura do testamento do Conselheiro. Estácio é de novo o filho único e pode casar com a prometida de infância, Eugênia.
(Apostila 13 de Realismo - Literatura Brasileira


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Memórias Póstumas de Brás Cubas - Machado de Assis - (resumo)
Com Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, Machado de Assis inaugura o realismo nas letras brasileiras. A partir dessa obra ele se revela um arguto observador e analista psicológico dos personagens.
O ritmo da obra é lento, com várias digressões e narrado de maneira irreverente e irônica por um "defunto autor" (e não um "autor defunto", como podem pensar). Brás Cubas, por estar morto, se exime de qualquer compromisso com a sociedade, estando livre para critica-la e revelar as hipocrisias e vaidades das pessoas com quem conviveu.
Essa condição de autor defunto permite ao narrador suspender a narrativa ou o tempo, dialogar com o leitor no momento e que sugere estar escrevendo algum capítulo e até mesmo propor ao leitor a supressão de algum capítulo. O tempo para o narrador é suspenso e ele vai visitando seu passado, conhecedor que é dos segredos após a morte, sem revelar ao leitor tais mistérios, vai se mostrando um narrador irônico acerca das paixões humanas.
Brás Cubas vai contando a sua vida e contando os vários episódios que viveu. Conta sobre a prostituta de luxo espanhola Marcela, que o amou "durante quinze meses e onze contos de réis". Para livrar-se dela, os pais de Brás Cubas decidem mandá-lo para a Europa. Volta doutor, em tempo de ver a mãe antes de morrer. Mesmo na Europa, embora tivesse concluído os estudos e se diplomado, de fato, a boêmia e os amores fugazes direcionam sua vida.
Depois de um namoro breve e inconseqüente com Eugênia, uma moça simples e pobre, defeituosa de uma perna, Brás Cubas, por interferência de seu pai, começa um namoro com Virgília. Cujo pai poderia favorecer uma almejada carreira política.
Numa certa ocasião, no passeio público, Brás reencontra Quincas Borba, um amigo de escola. Quincas é um mendigo, e num abraço rouba-lhe um relógio.
Pouco depois Quincas Borba aparece rico e filósofo, herdeiro de uma grande fortuna e propagador do Humanitismo.
A filosofia do Humanitismo consumirá grande parte da vida do personagem Quincas Borba, fundada numa espécie de Humanismo com elementos deterministas contraditoriamente ligados a elementos de caráter orientalista, tal filosofia é uma paródia das crenças filosóficas da época, baseando-se em máximas, dentre as quais a mais importante era: “Ao Vencedor, às batatas”, moral de uma parábola que tentava justificar a competição e a guerra na sociedade burguesa.
Noutro reencontro, Brás Cubas vê Marcela, velha e arruinada num subúrbio do Rio de Janeiro.
Virgília lhe é roubada por Lobo Neves, jovem mais decidido e confiante.
O pai de Brás Cubas morre, deixando porém, claro o desgosto que tinha com o destino que as coisas tinham tomado para seu filho: nem casamento e nem carreira política.
Anos depois, Brás Cubas - um solteirão - e Virgília - esposa de Lobo Neves tornam-se amantes.
Lobo Neves é nomeado para presidente de uma província do norte do Brasil, Brás teme pela separação com Virgília. O próprio Lobo Neves, confiando no amigo, chega a convidar Brás Cubas para ser seu secretário na província. Porém, quando da publicação do edital de nomeação no diário oficial, o Lobo Neves declina do cargo, pois fora publicado no dia 13, e ele tinha uma superstição com esse número.
Virgília fica grávida de Brás Cubas, o desejo de ter um filho enche de esperanças Brás Cubas quanto ao desfecho de sua situação amorosa, porém, a criança morre antes de nascer, e os amantes se separam. O Lobo Neves é novamente nomeado para presidente de outra província e desta feita os amantes se separam.
Sabina, a irmã de Brás, arranja-lhe uma noiva, Eulália, que no entanto, morre vítima de uma epidemia. Sem conseguir ser político, Cubas em busca da celebridade tenta lançar o emplastro Brás Cubas, tal emplastro traria a glória buscada pelo personagem, seria uma espécie de remédio para todos os males. Porém, Brás Cubas vêm a falecer de pneumonia antes de realizar o seu intento.
"Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a
celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não
conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas,
coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do
meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a
semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e
outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem
sobra, e conseguintemente que sai quite com a vida. E imagi-
nará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério,
achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa
deste capítulo de negativas: Não tive filhos, não transmiti
a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."
O romance é constituído de 160 capítulos, em geral, curtos, e alguns de grande inventividade formal, como o que sugere a relação sexual entre os amantes, constituído basicamente de sinais de pontuação (cap. LV) ou o que nos mostra o epitáfio de Eugênia (cap. CXXV) e o que explica o seu insucesso na carreira política (cap. CXXXIX). Outro elemento importante da obra é a grande quantidade de citações e referências intertextuais, principalmente da literatura inglesa e francesa.
Memórias Póstumas - Filme
Adaptação fiel da obra de Machado de Assis. Além de contar a história de Brás Cubas, que após morrer, decide aproveitar a eternidade para escrever suas memórias, o filme ainda traz como pano de fundo a paisagem do Rio antigo e episódios importantes como a ida de Brás Cubas para a Europa. Com Reginaldo Farias, Petrônio Gontijo, Stepan Nercessian, Walmor Chagas e Sonia Braga.

ELENCO:
Reginaldo Faria (Brás Cubas e Seu Fantasma)
Petrônio Gontijo (Brás Cubas)
Viétia Rocha (Virgília)
Sonia Braga (Marcela)
Otávio Müller (Lobo Neves)
Marcos Caruzo (Quincas Borba)
Stepan Nercessian (Bento Cubas)
Débora Duboc (Dona Euzébia)
Walmor Chagas (Dr. Vilaça)
Nilda Spencer (Dona Plácida)

PREMIAÇÕES:
Ganhou 5 Kikitos de Ouro, no Festival de Gramado, nas seguintes categorias: Melhor Filme Pelo Júri, Melhor Filme Pela Crítica, Melhor Direção, Melhor Roteiro e Melhor Atriz Coadjuvante (Sônia Braga).
Filme: Brás Cubas (1985)
Direção: Julio Bressane
Baseado no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas
Adaptação: Antonio Medina e Julio Bressane
Elenco: Luiz Fernando Guimarães, Renato Borghi, Bia Nunes, Regina Casé.
(Apostila 16 de Realismo - Literatura Brasileira)






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Quincas Borba - Machado de Assis - resumo
A História gira em torno da vida de Rubião, amigo e enfermeiro particular do filósofo Quincas Borba (personagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas -1881). Quincas Borba vivia em Barbacena e era muito rico, e ao morrer deixa ao amigo toda a sua fortuna herdada de seu último parente.Trocando a pacata vida provinciana pela agitação da corte, Rubião muda-se para o Rio de Janeiro, após a morte de seu amigo, causado por infecção pulmonar.Leva consigo o cão, também chamado de Quincas Borba, que pertencera ao filósofo e do qual deveria cuidar sob a pena de perder a herança.
Durante a viagem de trem para o Rio de Janeiro, Rubião conhece o casal Sofia e Cristiano Palha, que logo percebem estar diante de um rico e ingênuo provinciano.Atraído pela amabilidade do casal e, sobretudo, pela beleza de Sofia, Rubião passa freqüentar a casa deles, confiando cegamente no novo amigo.
O casal acaba envolvendo Rubião, este apaixona-se por Sofia. Cristiano Palha ao saber da corte de Rubião à mulher, sente-se dividido entre dois sentimentos: o ciúme que tem da mulher que chega a fazê-lo pensar em atitudes radicais, e, por outro lado, sua dependência econômica de Rubião. Sofia astuciosamente consegue manter intactos, tanto o interesse de Rubião, quanto a fidelidade conjugal.
Cristiano Palha se destaca como um esperto comerciante e administra a fortuna de Rubião, tirando parte de seus lucros.
Por outro lado, a ingenuidade de Rubião torna-o presa fácil de várias outras pessoas interessadas e oportunistas, que se aproximam dele para explorá-lo financeiramente.
Aos poucos, acompanhando a trajetória de Rubião, percebe-se como funciona a engrenagem social da época. Como ocorre a disputa entre as pessoas, as lutas pelo poder político e pela ascensão econômica da época, dessa maneira, o romance projeta um quadro também bastante crítico das relações sociais da época. A Corte era a capital, o Rio de Janeiro, cuja a moda era ditada pela tendência Francesa.
Depois de algum tempo, Rubião começa a manifestar sintomas de loucura, que o levará à morte, a mesma loucura de que fora vítima o seu amigo, o filósofo Quincas Borba, de quem herdara a fortuna.
Arruinado, Rubião deixa de ser útil e é abandonado pela roda de parasitas que o cercava. Rubião acredita ser Napoleão III, num dado momento pede a um barbeiro que faça sua barba para que fique parecido com o busto de Napoleão III que tem na sua sala. Fantasia a realidade, fala sozinho na rua e, pouco a pouco, perde toda sua fortuna e também a razão. Palha e Sofia afastam-se cada vez mais e ele acaba sendo internado num asilo de onde foge para voltar à Minas, Barbacena. Morre lá em pleno delírio de grandeza, acompanhado de seu cão Quincas Borba e repetindo a máxima do humanitismo. O relacionamento de Rubião com o cachorro Quincas Borba é ambíguo, ás vezes, o cão aparece para ele como a encarnação do próprio filósofo, outras vezes, simboliza a vida simples da qual Rubião se afastara cada vez mais em sua nova situação social. Por outro lado, a variedade de tratamento a que Rubião submete o animal - do carinho ao aborrecimento - é também um símbolo da ambigüidade com que Rubião se move no mundo urbano.
Louco e explorado até ficar reduzido à miséria, o destino trágico de Rubião exemplifica a tese do Humanitismo. Seguindo a trajetória do Humanitismo, a filosofia inventada por Quincas Borba, de que a vida é um campo de batalha onde só os mais fortes sobrevivem. Os fracos e ingênuos, como Rubião, são manipulados e aniquilados pelos mais fortes e mais espertos, como Palha e Sofia, que no final, estão vivos e ricos, tal como dizia a teoria do Humanitismo. Esse Principio de Quincas Borba: nunca há morte, há encontro de duas expansões, ou expansão de duas formas.
"Ao vencedor às Batatas!", principio este, que marcou e é o enfoque principal do enredo.
- "Supõe-se em um campo e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentam somente uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutri-se suficientemente e morrerão de inanição. A paz, neste caso, é a destruição; a guerra, é a esperança. Uma das tribos extermina a outra recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, as aclamações. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se.
Ao vencido, o ódio ou compaixão... Ao vencedor, as batatas !"
ESTRUTURA NARRATIVA:
Romance constituído de 201 capítulos curtos que apresenta a trajetória geográfica, econômica e social de RUBIÃO, o ingênuo professor de meninos de Barbacena (MG) que passa a capitalista na Corte (RJ).
PONTO DE VISTA:
O romance é narrado em 3a. pessoa por um narrador onisciente que a si próprio se identifica como sendo o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas, isto é, o próprio Machado de Assis.
TEMPO E ESPAÇO:
As ações iniciam em Barbacena a partir de 1867, deslocam-se logo para o Rio de Janeiro e se encerram alguns anos depois no mesmo local em que se haviam iniciado.
PERSONAGENS:
RUBIÃO:
É o personagem central, apesar do título. Rubião é um produto do acaso, do que resultam seu caráter indefinido e obscuro e sua perplexidade diante da realidade. Não tendo noção exata de como funciona o mundo, age por impulsos e sem coordenação, deixando-se levar pelos acontecimentos. Sua passagem fulminante de professor de mínimos em Barbacena a capitalista, como ele próprio se denomina, termina tragicamente, pois não tem as mínimas condições necessárias para enfrentar o salto social tornado possível pela riqueza inesperada. Sua ingenuidade ,adequada em Barbacena, transforma-se em algo como pretensão descabida na Corte, sendo então envolvido e, finalmente, destruído pelo mundo que o cerca.
A incapacidade básica de Rubião entender o mundo transparece muito claramente no fato de nem chegar a perceber exatamente o sentido do aforismo de seu mestre- “Ao vencedor, as batatas; ao vencido, ódio ou compaixão”- e na sua tendência de sonhar com coisas inatingíveis, do que a paixão por Sofia é o melhor exemplo.
QUINCAS BORBA:(Joaquim Borba dos Santos)
Quincas Borba é o filósofo que ocupa reduzido espaço na narrativa, mas sua sombra se projeta continuamente sobre todo o romance. Personagem que oscila entre a grandeza e o ridículo, não é afetado, talvez por já ser rico, é claro, pelo desejo de ascensão social e procura explicar o mundo através de sua filosofia, baseada no princípio da Humanitas, levando-a ao extremo, a ponto de tratar seu cachorro como se fosse uma pessoa e dar-lhe seu próprio nome. Quem recebe a herança é o cachorro e não Rubião, seu depositário. Diante da morte, não entra em pânico, aceitando-a naturalmente, e diante da incapacidade de Rubião compreender suas teorias, também não se aflige, comportando-se como se sua verdade lhe bastasse.
SOFIA
Vista às vezes como uma mulher de grande maldade, capaz de manobrar Rubião e demais pessoas que a cercam, no conjunto da obra Sofia aparece antes como personagem frágil, contraditória e incapaz de manter um comportamento coerente que não seja o de nova rica ansiosa por aparecer socialmente. A idealização de que é alvo por parte de Rubião não tem nada a ver com seu caráter arrivista deslumbrada, ansiosa pelo reconhecimento da opinião pública e pelo prestígio daí decorrente. Rubião sonha com ela, que, por sua vez, sonha com Carlos Maria. Conhecendo instintivamente as leis sociais, contudo, aceita ser guiada por Palha e, renunciando a qualquer comportamento verdadeiramente autônomo em termos pessoais, chega a liderar a “Comissão das Alagoas”, na qual, como “anjo de consolação” ao lado de “estrelas de primeira grandeza”, atinge o ápice de sua trajetória social.
PALHA
É o perfeito homem de negócios. Administra seus bens com inteligência, nunca esquecendo que manter as aparências também é fundamental. Um pequeno capital inicial, um casamento socialmente bem-sucedido e relações influentes são a base a partir da qual opera com sucesso seus negócios mais ou menos honestos. A rigor, não chega a enganar diretamente Rubião. A ingenuidade e a total falta de controle deste é que favorecem inesperadamente seus planos de ascensão social, permitindo que sejam executados muito rapidamente. Um dos traços mais curiosos de seu caráter é o prazer que sente em exibir sua mulher publicamente, talvez como prova de posse, talvez como sinal de um desvio de comportamento sexual, sutil mas claramente insinuado pelo narrador.
CAMACHO
O mais notável dos parasitas que cercam Rubião, cujas ilusões políticas alimenta, explorando-o sem qualquer disfarce e sem piedade. Encarna, como jornalista e aproveitador sem escrúpulos, o papel manipulador da imprensa da época, que aparece no romance como um veículo privilegiado de promoção pessoal de parasitas habilidosos.
CARLOS MARIA
Protótipo do tipo urbano que já sedimentou ao longo das gerações sua posição social, faz de seu pedantismo e afetação armas que lhe conquistam admiração e prestígio. Sem uma personalidade forte, guia-se pelo que é correto socialmente e jamais comete erros, como bem o demonstra seu comportamento em relação a Sofia.
O CACHORRO
Possivelmente o animal mais famoso de toda a ficção brasileira, Quincas Borba está presente ao longo de toda a obra. Para Rubião, ele representa uma espécie de encarnação do filósofo falecido, o que torna sua presença incômoda. Por outro lado, o animal parece representar os valores que os personagens humanos já perderam: a fidelidade e a constância. Do que é prova sua morte, poucos dias após o falecimento de Rubião.
ENREDO:
Debruçado a uma janela de sua casa no bairro do Botafogo no Rio de Janeiro, Rubião medita sobre, que de simples professor em Barbacena, Minas Gerais, elevara-o a capitalista. Uma série de acontecimentos mais ou menos fortuitos preenchera o espaço entre estes dois pontos fundamentais de sua vida.
Quando ainda em Barbacena, Rubião, então professor de uma escola de meninos, possuía uma irmã, Maria da Piedade. Em determinado momento chega à cidade Joaquim Borba dos Santos, mais conhecido como Quincas Borba, estranha figura de “mendigo, herdeiro inopinado e inventor de uma filosofia”. Imediatamente, apaixona-se pela irmã de Rubião mas, apesar do completo apoio deste, é recusado pela viúva, que em seguida morre. Rubião torna-se, então, o único amigo de Quincas Borba, que no passado tivera muitos parentes na cidade, entre os quais um tio, o qual ao morrer deixara-lhe todos os bens. Quando Quincas Borba adoece, seu amigo fecha a escola de meninos para tornar-se seu enfermeiro.
Enquanto cuida do enfermo e ouve deste a exposição dos princípios gerais que norteiam a filosofia da Humanitas, na mente de Rubião vai se insinuando aos poucos a idéias de uma possível herança. Na verdade havia
motivos para tal esperança, já que Quincas Borba possuía, além de Rubião, como único amigo um cachorro, ao qual fora dado o mesmo nome do dono.
A tensão de Rubião aumenta progressivamente a partir do momento em que, depois de fazer seu testamento, sem revelar-lhe o conteúdo, Quincas Borba decide viajar para o RJ, onde finalmente morre na casa de seu amigo Brás Cubas. Aberto o testamento, Rubião aparece como o herdeiro universal dos bens do falecido, sob uma única condição: a de cuidar do cachorro. Como não vê qualquer dificuldade em cumprir a exigência, Rubião empolga-se com a herança e, sentindo-se seguro e rico, escolhe para lema de sua vida a frase “Ao vencedor, as batatas”. Esta frase de seu amigo falecido, que a usava como fecho de uma parábola que, para ele, continha o resumo de todos os princípios básicos da filosofia da Humanitas. Na parábola, duas tribos lutam pôr um campo de batatas, que significa a sobrevivência de quem o ocupar. E Rubião vê na herança recebida o correspondente às batatas da tribo vencedora.
Assim, também vencedor, parte de trem para o RJ, levando em companhia Quincas Borba, o cachorro. Na estação de Vassouras sobem ao mesmo vagão Cristiano de Almeida Palha e sua mulher Sofia, com os quais Rubião imediatamente trava conhecimento. Já instalado no RJ, Palha começa sutilmente a insinuar-se na vida de Rubião e este passa a sentir-se atraído por Sofia, o que o levaria ao desastre final.
No momento, contudo, debruçado à janela de sua casa no Bairro do Botafogo, Rubião deixa de meditar sobre os estranhos caminhos de seu destino e vai ver como está Quincas Borba, ao qual, cumprindo rigorosamente o testamento, dedica cuidados especiais. Isto não impede, contudo que, certa ocasião, prenunciando o descaso a que relegaria aos poucos lhe aplique um pontapé, atitude que é símbolo das transformações que começam a afetar o protagonista.
De fato, à medida que o tempo passa, a cidade vai tecendo em volta do ingênuo professor(ex) a teia da qual não poderá mais livrar-se e que o levará à destruição.
Os abalos que atingem Rubião procedem, especialmente, de dois lados: o amor, personificado na bela Sofia e o poder, representado pôr Camacho.
A atração que Sofia lhe despertara no primeiro encontro, em Vassouras, permanece gravada em sua alma. A tal ponto que, por ocasião de uma festa na casa de Palha, Rubião, sem medir conseqüências, vai com ela para o jardim e, sob o luar da noite, declara-lhe seu amor. Sofia adota uma posição ambígua diante do fato inesperado. De um lado fica satisfeita e, de outro, assusta-se, uma vez que pretende manter intacta a imagem de fidelidade ao marido. Logo que pode conta ao marido o acontecido e propõe o rompimento de relações com Rubião - mas sem muita convicção Palha é invadido por sensações contraditórias. Contudo, seus interesses econômicos acabam prevalecendo. Aos poucos, marido e mulher tornam-se cúmplices com o objetivo comum de explorar Rubião.
Agindo por impulsos, sem qualquer racionalidade, Rubião não tem condições de administrar a grande fortuna que herdara por obra do acaso. Sua casa torna-se um antro de parasitas, entre os quais desponta Camacho, um político fracassado, que edita o jornal Atalaia, veículo de promoção pessoal e manipulação da opinião pública. Rubião se deslumbra e começa a sonhar com o poder. Camacho, habilmente, usa tal deslumbramento para obter vantagens e consegue fazer de Rubião um dos sócios de seu jornal.
O amor e o poder tornam-se miragens que estreitam Rubião à margem de um precipício. Sofia apaixona-se por Carlos Maria, figura típica de galanteador, e Rubião passa a ver nele seu rival. Os sonhos de ascensão política com que acenava Camacho terminam obviamente em nada e Palha, depois de aproveitar-se do dinheiro de Rubião, desfaz a sociedade que com ele montara. Enquanto a fortuna herdada de Quincas Borba se evapora e a insanidade começa a tomar conta da mente do protagonista, em torno deste a vida segue seu ritmo. Indiferente à tragédia, Carlos Maria acaba casando com Maria Benedita, uma prima de Sofia. Tonica, a eterna solteirona, que uma vez tentara aproximar-se de Rubião, consegue encontrar um noivo, mas este morreu três dias antes do casamento. Os negócios de Palha progridem a olhos vistos, e ele passa a formar, com Sofia, um casal rico e elegante, em cuja casa reúne-se a melhor sociedade da época. E os ministérios sobem e caem, alimentando e fraudando sonhos políticos. O mundo segue o seu curso.
Paralelamente, os delírios de Rubião tornam-se cada vez mais graves e prolongados. Certa ocasião, manda vir da França os bustos de Napoleão I e III, passando a identificar-se com o último. Diante da notoriedade adquirida pela loucura do ex-sócio. Palha vê-se obrigado a arranjar-lhe uma casa junto ao mar, na qual Rubião passa a morar em companhia do cachorro e de um empregado. O cachorro - no qual um dia pensara encontrar-se a alma do outro Quincas Borba, o falecido filósofo que legara a herança - permanecera a seu lado, apesar do descaso a que aos poucos fora relegado.
Depois de algum tempo, Rubião é recolhido a uma casa de saúde. Certo dia, manda chamar Palha e lhe comunica, num momento de extrema lucidez, que resolvera deixar o local. Em seguida desaparece, reaparecendo
em Barbacena, acompanhado do cachorro e repetindo incansavelmente: “Ao vencedor, as batatas”. Faminto e febril, é recolhido, juntamente com o cachorro, por uma sua comadre, em cuja casa vem a falecer. Antes, porém, durante a agonia, “pegou em nada, levantou nada e cingiu nada”, para coroar-se imperador e repetir ao meio o aforismo de seu mestre: “Ao vencedor.....”. Logo a seguir o cachorro adoece também e três dias depois amanhece morto no rua.
Enquanto isto, no alto dos céus, as estrelas continuavam indiferentes ao destino dos homens.
COMENTÁRIO CRÍTICO
Unanimamente considerado como uma das obras-primas da ficção brasileira e colocado em destaque entre as cinco principais obras de M. A. ao lado de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e O alienista - Quincas Borba nunca deixou de estar em evidência ao longo de quase um século de sua publicação, enfrentando, assim, as vicissitudes críticas comuns à obra machadiana.
Diante da inegável importância da ficção de M.A. e de sua fluidez, que recusa qualificativos e teorias e, não raro, monta armadilhas para análises que pretendem ser totalizantes, a crítica, ao longo do tempo, reagiu das mais variadas formas. Alguns censuravam em M.Assis a falta de um compromisso mais direto com a realidade, posição que, de pernas para o ar, acabou na visão, muito em voga até recentemente, segundo a qual sua obra possuía tal universalidade que tornava impossível referi-la a um contexto histórico. Outros, numa posição que também fez fortuna, destacaram na obra machadiana a atmosfera do humour, nascido de uma fusão de tristeza e enfado diante da vida. Este seria o Machado de Assis filósofo.
A visão biografista, aplicada a outros romancistas da época, também atingiu o autor de Quincas Borba. Ao tentar explicar a obra a partir da vida do autor, o biografismo, no caso de M.A., chegou ao extremo de considerar seu humour, o já citado desencanto diante da vida que transparece em suas obras, como resultado de sua recusa em assumir a condição de mulato. Neste sentido, a visão de mundo presente na obra machadiana seria o produto de um desejo intenso, frustrado em virtude da barreira representada pela consciência da própria cor, de arianização social e branqueamento ideológico. Como em todos os casos, tal interpretação biografista não vai além de uma observação sobre o autor - que pode até ser verdadeira, mas que é sempre dispensável - e nada diz especificamente sobre a obra.
Nas últimas décadas, a crítica machadiana tendeu a tomar outra direção, orientando-se decididamente no sentido de uma análise profunda da obra em si e dando especial atenção aos elementos históricos e sociais nela contidos. E então não foi difícil perceber que, ao contrário do que faziam supor muitas posições críticas até ali sustentadas, M. A. apresenta com extrema profundidade e de maneira bastante explícita a sociedade carioca das últimas décadas do século XIX, expondo claramente sua estrutura de classes e seus mecanismos de poder.
Nos últimos anos, esta visão histórica da obra Machadiana, acentuou-se ainda mais. Assim, nesta perspectiva, a incapacidade de ação, o pessimismo existencial, a crise de identidade e mesmo a loucura que caracterizam os personagens mais importantes do mundo ficcional de M.A. seriam o símbolo de um país econômica e culturalmente dependente e dirigido por uma elite colonizada e sem perspectivas históricas diante da maré montante do liberalismo industrial/capitalista europeu, que minara, ao longo da segunda metade do século, a última das grandes formações sociais escravistas do planeta.
Como se pode observar, a própria diversidade das interpretações dá bem a medida daquela que talvez possa ser considerada a mais importante das características do mundo ficcional de M.A. e da galeria de seus grandes personagens: o caráter esquivo e ambíguo que parece exigir e, ao mesmo tempo, repelir todos os enquadramentos teóricos.
No que diz respeito a Quincas Borba, as análises mais recentes tendem a centrar sua atenção sobre a trajetória social do personagem central sua atenção sobre a trajetória social do personagem central. Rubião, o que possibilita valorizar adequadamente a minuciosa e profunda, se bem que sutil, descrição que M.A. faz da sociedade brasileira do II Império e, de forma mais específica, da sociedade do RJ da segunda metade do século XIX. Deixando de lado ou reduzindo em importância questões que haviam se tornado verdadeiros lugares-comuns em qualquer discussão sobre o romance - como, por exemplo, o pessimismo do autor/narrador, os princípios filosóficos de Quincas Borba e a maldade de Sofia - modernamente procura-se mostrar que a valorização exacerbada de certos elementos extraídos do contexto geral da obra leva a verdadeiras armadilhas teóricas que se estendem indefinidamente, não dão resultados concretos e, pior, desviam a atenção dos temas verdadeiramente essenciais.
Nesta perspectiva, a descrição da sociedade brasileira - isto é, o RJ - do II Império e a exposição de certos mecanismos que a faziam funcionar não são menos importantes que a história pessoal do protagonista. Pelo contrário, á até possível dizer que a trajetória de Rubião, o professor que, pôr um golpe de sorte, tornara-se capitalista, é uma espécie de argumento utilizado por M.A. para justificar a necessidade de expor o todo social. De fato, a ingenuidade e o despreparo de Rubião se revelam a partir do momento em que, rico por obra do acaso, decide viver na Corte e tornar-se socialmente tão importante quanto era economicamente. Neste confronto, Rubião é destruído pelos mais hábeis, numa comprovação das teorias de seu grande mestre-filósofo, Joaquim Borba dos Santos. Inversamente, contudo, o protagonista pode ser visto como um vencedor à revelia, pois sua loucura e morte desvelam as leis fundamentais que regem a sociedade que o destrói: a mentira e o parasitismo social e econômico. Leis, aliás, das quais ele próprio é produto e possui certa consciência, pois no momento em que se sabe provável herdeiro de uma grande fortuna mostra-se disposto até a trapacear para não perdê-la.
Como na parábola de seu mestre a respeito das tribos em luta pelo campo de batatas, ele é, simplesmente, o menos hábil. Daí resulta sua destruição.
(Apostila 11 de Realismo - Literatur




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A CARTOMANTE - Machado de Assis - (conto)
HAMLET observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras.
Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem , em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar . Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia... " Que perdia ele, se... ?
Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela. curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita. . . Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.


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MACHADO DE ASSIS - Poesias
ERRO
ERRO É TEU. Amei-te um dia
Com esse amor passageiro
Que nasce na fantasia
E não chega ao coração;
Não foi amor, foi apenas
Uma ligeira impressão;
Um querer indiferente,
Em tua presença, vivo,
Morto, se estavas ausente,
E se ora me vês esquivo
Se, como outrora, não vês
Meus incensos de poeta
Ir eu queimar a teus pés,
É que,—como obra de um dia,
Passou-me essa fantasia.
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras.
Tuas frívolas quimeras,
Teu vão amor de ti mesma,
Essa pêndula gelada
Que chamavas coração,
Eram bem fracos liames
Para que a alma enamorada
Me conseguissem prender;
Foram baldados tentames,
Saiu contra ti o azar,
E embora pouca, perdeste
A glória de me arrastar
Ao teu carro... Vãs quimeras!
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras...

ELEGIA
A bondade choremos inocente
Cortada em flor que, pela mão da morte,
Nos foi arrebatada dentre a gente.
CAMÕES

SE, COMO OUTRORA, nas florestas virgens,
Nos fosse dado—o esquife que te encerra
Erguer a um galho de árvore frondosa
Certo, não tinhas um melhor jazigo
Do que ali, ao ar livre, entre os perfumes
Da florente estação, imagem viva
De teus cortados dias, e mais perto
Do clarão das estrelas.
Sobre teus pobres e adorados restos,
Piedosa, a noite ali derramaria
De seus negros cabelos puro orvalho
À beira do teu último jazigo
Os alados cantores da floresta
Iriam sempre modular seus cantos
Nem letra, nem lavor de emblema humano,
Relembraria a mocidade morta;
Bastava só que ao coração materno,
Ao do esposo, ao dos teus, ao dos amigos,
Um aperto, uma dor, um pranto oculto,
Dissesse: —Dorme aqui, perto dos anjos,
A cinza de quem foi gentil transunto
De virtudes e graças.
Mal havia transposto da existência
Os dourados umbrais; a vida agora
Sorria-lhe toucada dessas flores
Que o amor, que o talento e a mocidade
À uma repartiam.
Tudo lhe era presságio alegre e doce;
Uma nuvem sequer não sombreava,
Em sua fronte, o íris da esperança;
Era, enfim, entre os seus a cópia viva
Dessa ventura que os mortais almejam,
E que raro a fortuna, avessa ao homem.
Deixa gozar na terra.
Mas eis que o anjo pálido da morte
A pressentiu feliz e bela e pura
E, abandonando a região do olvido,
Desceu à terra, e sob a asa negra
A fronte lhe escondeu; o frágil corpo
Não pôde resistir; a noite eterna
Veio fechar seus olhos
Enquanto a alma abrindo
As asas rutilantes pelo espaço.
Foi engolfar-se em luz, perpetuamente,
Tal a assustada pomba, que na árvore
O ninho fabricou,—se a mão do homem
Ou a impulsão do vento um dia abate
No seio do infinito
O recatado asilo,—abrindo o vôo,
Deixa os inúteis restos
E, atravessando airosa os leves ares
Vai buscar noutra parte outra guarida.
Hoje, do que era inda lembrança resta
E que lembrança! Os olhos fatigados
Parecem ver passar a sombra dela
O atento ouvido inda lhe escuta os passos
E as teclas do piano, em que seus dedos
Tanta harmonia despertavam antes
Como que soltam essas doces notas
Que outrora ao seu contacto respondiam.
Ah! pesava-lhe este ar da terra impura
Faltava-lhe esse alento de outra esfera,
Onde, noiva dos anjos, a esperavam
As palmas da virtude.
Mas, quando assim a flor da mocidade
Toda se esfolha sobre o chão da morte,
Senhor, em que firmar a segurança
Das venturas da terra? Tudo morre;
A sentença fatal nada se esquiva,
O que é fruto e o que é flor. O homem cego
Cuida haver levantado em chão de bronze
Um edifício resistente aos tempos
Mas lá vem dia, em que, a um leve sopro,
O castelo se abate,
Onde, doce ilusão, fechado havias
Tudo o que de melhor a alma do homem
Encerra de esperanças.
Dorme, dorme tranqüila
Em teu último asilo: e se eu não pude
Ir espargir também algumas flores
Sobre a lájea da tua sepultura;
Se não pude,—eu que há pouco te saudava
Em teu erguer, estrela,—os tristes olhos
Banhar nos melancólicos fulgores,
Na triste luz do teu recente ocaso,
Deixo-te ao menos nesses pobres versos
Um penhor de saudade , e lá na esfera
Aonde aprouve ao Senhor chamar-te cedo
Possas tu ler nas pálidas estrofes
A tristeza do amigo.
A LUZ
Eu sou a luz fecunda, alma da natureza;
Sou o vivo alimento à viva criação.
Deus lançou-me no espaço. A minha realeza
Vai até onde vai meu vívido clarão.
Mas, se derramo vida a Cibele fecunda,
Que sou eu ante a luz dos teus olhos? Melhor,
A tua é mais do céu, mais doce, mais profunda.
Se a vida vem de mim, tu dás a vida e o amor.
AS ÁGUAS
Do lume da beleza o berço celebrado
Foi o mar; Vênus bela entre espumas nasceu.
Veio a idade de ferro, e o nume venerado
Do venerado altar baqueou: —pereceu.
Mas a beleza és tu. Como Vênus marinha
Tens a inefável graça e o inefável ardor.
Se paras, és um nume; andas, uma rainha.
E se quebras um olhar, és tudo isso e és amor.
Chamam-te as águas, vem! tu irás sobre a vaga.
A vaga, a tua mãe que te abre os seios nus,
Buscar adorações de uma plaga a outra plaga.
E das regiões da névoa às regiões da luz!
AS SELVAS
Um silêncio de morte entrou no seio às selvas.
Já não pisa Diana este sagrado chão,
Nem já vem repousar no leito destas relvas
Aguardando saudosa o amor e Endimião.
Da grande caçadora a um solicito aceno
Já não vem, não acode o grupo jovial;
Nem o eco repete a flauta de Sileno,
Após o grande ruído a mudez sepulcral.
Mas Diana aparece. A floresta palpita,
Uma seiva melhor circula mais veloz;
É vida que renasce, é vida que se agita;
À luz do teu olhar, ao som da tua voz!
O POETA
Também eu, sonhador, que vi correr meus dias
Na solene mudez da grande solidão,
E soltei, enterrando as minhas utopias,
O último suspiro e a última oração;
Também eu junto à voz da natureza,
E soltando o meu hino ardente e triunfal,
Beijarei ajoelhado as plantas da beleza,
E banharei minh'alma em tua luz, — Ideal!
Ouviste a natureza? Às súplicas e às mágoas
Tua alma de mulher deve de palpitar;
Mas que te não seduza o cântico das águas,
Não procures, Corina, o caminho do mar!
ÚLTIMA FOLHA
MUSA, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.
Dos teus cabelos de ouro, que beijavam
Na amena tarde as virações perdidas,
Deixa cair ao chão as alvas rosas
E as alvas margaridas.
Vês? Não é noite, não, este ar sombrio
Que nos esconde o céu. Inda no poente
Não quebra os raios pálidos e frios
O sol resplandecente.
Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco
Abre-se, como um leito mortuário;
Espera-te o silêncio da planície,
Como um frio sudário.
Desce. Virá um dia em que mais bela.
Mais alegre, mais cheia de harmonias
Voltes a procurar a voz cadente
Dos teus primeiros dias.
Então coroarás a ingênua fronte
Das flores da manhã,—e ao monte agreste,
Como a noiva fantástica dos ermos
Irás, musa celeste!
Então, nas horas solenes
Em que o místico himeneu
Une em abraço divino
Verde a terra, azul o céu;
Quando, já finda a tormenta
Que a natureza enlutou,
Bafeja a brisa suave
Cedros que o vento abalo;
E o rio, a árvore e o campo,
A areia, a face do mar
Parecem, como um concerto
Palpitar, sorrir, orar;
Então, sim, alma de poeta,
Nos teus sonhos cantarás
A glória da natureza
A ventura, o amor e a paz!
Ah! mas então será mais alto ainda;
Lá onde a alma do vate
Possa escutar os anjos,
E onde não chegue o vão rumor dos homens;
Lá onde, abrindo as asas ambiciosas
Possa adejar no espaço luminoso,
Viver de luz mais viva e de ar mais puro
Fartar-se do infinito!
Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia.
E deixa ao eco dos sagrados ermos
A última harmonia.



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O Positivismo - Comte

Características Gerais do Positivismo
Ao idealismo da primeira metade do século XIX se segue o positivismo, que ocupa, mais ou menos, a segunda metade do mesmo século, espalhado em todo o mundo civilizado. O positivismo representa uma reação contra o apriorismo, o formalismo, o idealismo, exigindo maior respeito para a experiência e os dados positivos. Entretanto, o positivismo fica no mesmo âmbito imanentista do idealismo e do pensamento moderno em geral, defendendo, mais ou menos, o absoluto do fenômeno. "O fato é divino", dizia Ardigò. A diferença fundamental entre idealismo e positivismo é a seguinte: o primeiro procura uma interpretação, uma unificação da experiência mediante a razão; o segundo, ao contrário, quer limitar-se à experiência imediata, pura, sensível, como já fizera o empirismo. Daí a sua pobreza filosófica, mas também o seu maior valor como descrição e análise objetiva da experiência - através da história e da ciência - com respeito ao idealismo, que alterava a experiência, a ciência e a história. Dada essa objetividade da ciência e da história do pensamento positivista, compreende-se porque elas são fecundas no campo prático, técnico, aplicado.
Além de ser uma reação contra o idealismo, o positivismo é ainda devido ao grande progresso das ciências naturais, particularmente das biológicas e fisiológicas, do século XIX. Tenta-se aplicar os princípios e os métodos daquelas ciências à filosofia, como resolvedora do problema do mundo e da vida, com a esperança de conseguir os mesmos fecundos resultados. Enfim, o positivismo teve impulso, graças ao desenvolvimento dos problemas econômico-sociais, que dominaram o mesmo século XIX. Sendo grandemente valorizada a atividade econômica, produtora de bens materiais, é natural se procure uma base filosófica positiva, naturalista, materialista, para as ideologias econômico-sociais.
Gnosiologicamente, o positivismo admite, como fonte única de conhecimento e critério de verdade, a experiência, os fatos positivos, os dados sensíveis. Nenhuma metafísica, portanto, como interpretação, justificação transcendente ou imanente, da experiência. A filosofia é reduzida à metodologia e à sistematização das ciências. A lei única e suprema, que domina o mundo concebido positivisticamente, é a evolução necessária de uma indefectível energia naturalista, como resulta das ciências naturais.
Dessas premissas teóricas decorrem necessariamente as concepções morais hedonistas e utilitárias, que florescem no seio do positivismo. E delas dependem, mais ou menos, também os sistemas político-econômico-sociais, florescidos igualmente no âmbito natural do positivismo. Na democracia moderna - que é a concepção política, em que a soberania é atribuída ao povo, à massa - a vontade popular se manifesta através do número, da quantidade, da enumeração material dos votos (sufrágio universal). O liberalismo, que sustenta a liberdade completa do indivíduo - enquanto não lesar a liberdade alheia - sustenta também a livre concorrência econômica através da lida mecânica, do conflito material das forças econômicas. Para o socialismo, enfim, o centro da vida humana está na atividade econômica, produtora de bens materiais, e a história da humanidade é acionada por interesses materiais, utilitários, econômicos (materialismo histórico), e não por interesses espirituais, morais e religiosos.
O positivismo do século XIX pode semelhar ao empirismo, ao sensismo (e ao naturalismo) dos séculos XVII e XVIII, também pelo país clássico de sua floração (a Inglaterra) e porquanto reduz, substancialmente, o conhecimento humano ao conhecimento sensível, a metafísica à ciência, o espírito à natureza, com as relativas conseqüências práticas. Diferencia-se, porém, desses sistemas por um elemento característico: o conceito de vir-a-ser, de evolução, considerada como lei fundamental dos fenômenos empíricos, isto é, de todos os fatos humanos e naturais. Tal conceito representa um equivalente naturalista do historicismo romântico da primeira metade do século XIX, com esta diferença, entretanto, que o idealismo concebia o vir-a-ser como desenvolvimento racional, teológico, ao passo que o positivismo o concebe como evolução, por causas. Através de um conflito mecânico de seres e de forças, mediante a luta pela existência, determina-se uma seleção natural, uma eliminação do organismo mais imperfeito, sobrevivendo o mais perfeito. Daí acreditar o positivismo firmemente no progresso - como nele já acreditava o idealismo. Trata-se, porém, de um progresso concebido naturalisticamente, quer nos meios quer no fim, para o bem-estar material.
Mas, como no âmbito do idealismo se determinou uma crítica ao idealismo, igualmente, no âmbito do positivismo, a única realidade existente, o cognoscível, é a realidade física, o que se pode atingir cientificamente. Portanto, nada de metafísica e filosofia, nada de espírito e valores espirituais. No entanto, atinge a ciência fielmente a sua realidade, que é a experiência? E a ciência positivista é pura ciência, ou não implica uma metafísica naturalista inconsciente e, involuntariamente, discutível pelo menos tanto quanto a metafísica espiritualista? Nos fins do século passado e nos princípios deste século se determina uma crise interior da ciência mecanicista, ideal e ídolo do positivismo, para dar lugar a outras interpretações do mundo natural no âmbito das próprias ciências positivas. Daí uma revisão e uma crítica da ciência por parte dos mesmos cientistas, que será uma revisão e uma crítica do positivismo.
Nessa crítica e vitória sobre o positivismo, pode-se distinguir duas fases principais: uma negativa, de crítica à ciência e ao positivismo; outra positiva, de reconstrução filosófica, em relação com exigências mais ou menos metafísicas ou espiritualistas.

A Lei dos Três Estados
A filosofia da história, tal como a concebe Comte, é de certa forma tão idealista quanto a de Hegel. Para Comte "as idéias conduzem e transformam o mundo" e é a evolução da inteligência humana que comanda o desenrolar da história. Como Hegel ainda, Comte pensa que nós não podemos conhecer o espírito humano senão através de obras sucessivas - obras de civilização e história dos conhecimentos e das ciências - que a inteligência alternadamente produziu no curso da história. O espírito não poderia conhecer-se interiormente (Comte rejeita a introspecção, porque o sujeito do conhecimento confunde-se com o objeto estudado e porque pode descobrir-se apenas através das obras da cultura e particularmente através da história das ciências. A vida espiritual autêntica não é uma vida interior, é a atividade científica que se desenvolve através do tempo. Assim como diz muito bem Gouhier, a filosofia comtista da história é "uma filosofia da história do espírito através das ciências".
O espírito humano, em seu esforço para explicar o universo, passa sucessivamente por três estados:
a) O estado teológico ou "fictício" explica os fatos por meio de vontades análogas à nossa (a tempestade, por exemplo, será explicada por um capricho do deus dos ventos, Eolo). Este estado evolui do fetichismo ao politeísmo e ao monoteísmo.
b) O estado metafísico substitui os deuses por princípios abstratos como "o horror ao vazio", por longo tempo atribuído à natureza. A tempestade, por exemplo, será explicada pela "virtude dinâmica"do ar (²). Este estado é no fundo tão antropomórfico quanto o primeiro ( a natureza tem "horror" do vazio exatamente como a senhora Baronesa tem horror de chá). O homem projeta espontaneamente sua própria psicologia sobre a natureza. A explicação dita teológica ou metafísica é uma explicação ingenuamente psicológica. A explicação metafísica tem para Comte uma importância sobretudo histórica como crítica e negação da explicação teológica precedente. Desse modo, os revolucionários de 1789 são "metafísicos" quando evocam os "direitos" do homem - reivindicação crítica contra os deveres teológicos anteriores, mas sem conteúdo real.
c) O estado positivo é aquele em que o espírito renuncia a procurar os fins últimos e a responder aos últimos "por quês". A noção de causa (transposição abusiva de nossa experiência interior do querer para a natureza) é por ele substituída pela noção de lei. Contentar-nos-emos em descrever como os fatos se passam, em descobrir as leis (exprimíveis em linguagem matemática) segundo as quais os fenômenos se encadeiam uns nos outros. Tal concepção do saber desemboca diretamente na técnica: o conhecimento das leis positivas da natureza nos permite, com efeito, quando um fenômeno é dado, prever o fenômeno que se seguirá e, eventualmente agindo sobre o primeiro, transformar o segundo. ("Ciência donde previsão, previsão donde ação").
Acrescentemos que para Augusto Comte a lei dos três estados não é somente verdadeira para a história da nossa espécie, ela o é também para o desenvolvimento de cada indivíduo. A criança dá explicações teológicas, o adolescente é metafísico, ao passo que o adulto chega a uma concepção "positivista" das coisas.
(²) São igualmente metafísicas as tentativas de explicação dos fatos biológicos que partem do "princípio vital", assim como as explicações das condutas humanas que partem da noção de "alma".

A Classificação das Ciências
As ciências, no decurso da história, não se tornaram "positivas" na mesma data, mas numa certa ordem de sucessão que corresponde à célebre classificação: matemáticas, astronomia, física, química, biologia, sociologia.
Das matemáticas à sociologia a ordem é a do mais simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais concreto e de uma proximidade crescente em relação ao homem.
Esta ordem corresponde à ordem histórica da aparição das ciências positivas. As matemáticas (que com os pitagóricos eram ainda, em parte, uma metafísica e uma mística do número), constituem-se, entretanto, desde a antiguidade, numa disciplina positiva (elas são, aliás, para Comte, antes um instrumento de todas as ciências do que uma ciência particular). A astronomia descobre bem cedo suas primeiras leis positivas, a física espera o século XVII para, com Galileu e Newton, tornar-se positiva. A oportunidade da química vem no século XVIII (Lavoisier). A biologia se torna uma disciplina positiva no século XIX. O próprio Comte acredita coroar o edifício científico criando a sociologia.
As ciências mais complexas e mais concretas dependem das mais abstratas. De saída, os objetos das ciências dependem uns dos outros. Os seres vivos estão submetidos não só às leis particulares da vida, como também às leis mais gerais, físicas e químicas de todos os corpos (vivos ou inertes). Um ser vivo está submetido, como a matéria inerte, às leis da gravidade. Além disso, os métodos de uma ciência supõem que já sejam conhecidos os das ciências que a precederam na classificação. É preciso ser matemático para saber física. Um biólogo deve conhecer matemática, física e química. Entretanto, se as ciências mais complexas dependem das mais simples, não poderíamos deduzi-las de, nem reduzi-las a estas últimas. Os fenômenos psicoquímicos condicionam os fenômenos biológicos, mas a biologia não é uma química orgânica. Comte afirma energicamente que cada etapa da classificação introduz um campo novo, irredutível aos precedentes. Ele se opõe ao materialismo que é "a explicação do superior pelo inferior".
Nota-se, enfim, que a psicologia não figura nesta classificação. Para Comte o objeto da psicologia pode ser repartido sem prejuízo entre a biologia e a sociologia.

A Humanidade
A última das ciências que Comte chamara primeiramente física social, e para a qual depois inventou o nome de sociologia reveste-se de importância capital. Um dos melhores comentadores de Comte, Levy-Bruhl, tem razão de sublinhar: "A criação da ciência social é o momento decisivo na filosofia de Comte. Dela tudo parte, a ela tudo se reduz". Nela irão se reunir o positivismo religioso, a história do conhecimento e a política positiva. É refletindo sobre a sociologia positiva que compreenderemos que as duas doutrinas de Comte são apenas uma. Enfim, e sobretudo, é a criação da sociologia que, permitindo aquilo que Kant denominava uma "totalização da experiência", nos faz compreender o que é, para Comte, fundamentalmente, a própria filosofia.
Comte, ao criar a sociologia, a sexta ciência fundamental, a mais concreta e complexa, cujo objeto é a "humanidade", encerra as conquistas do espírito positivo: como diz excelentemente Gouhier - em sua admirável introdução ao Textos Escolhidos de Comte, publicados por Aubier - "Quando a última ciência chega ao último estado, isso não significa apenas o aparecimento de uma nova ciência. O nascimento da sociologia tem uma importância que não podia ter o da biologia ou o da física: ele representa o fato de que não mais existe no universo qualquer refúgio para os deuses e suas imagens metafísicas. Como cada ciência depende da precedente sem a ela se reduzir, o sociólogo deve conhecer o essencial de todas as disciplinas que precedem a sua. Sua especialização própria se confunde, pois - diferentemente do que se passa para os outros sábios - com a totalidade do saber. Significa dizer que o sociólogo é idêntico ao próprio filósofo, "especialista em generalidades", que envolve com um olhar enciclopédico toda a evolução da inteligência, desde o estado teológico ao estado positivo, em todas as disciplinas do conhecimento. Comte repudia a metafísica, mas não rejeita a filosofia concebida como interpretação totalizante da história e, por isto, identificação com a sociologia, a ciência última que supõe todas as outras, a ciência da humanidade, a ciência, poder-se-ia dizer em termos hegelianos, do "universal concreto".
O objeto próprio da sociologia é a humanidade e é necessário compreender que a humanidade não se reduz a uma espécie biológica: há na humanidade uma dimensão suplementar - a história - o que faz a originalidade da civilização (da "cultura" diriam os sociólogos do século XIX). O homem, diz-nos Comte, "é um animal que tem uma história". As abelhas não têm história. Aquelas de que fala Virgílio nas Geórgicas comportavam-se exatamente como as de hoje em dia. A espécie das abelhas é apenas a sucessão de gerações que repetem suas condutas instintivas: não há, pois, num sentido estrito, sociedades animais, ou ao menos a essência social dos animais reduz-se à natureza biológica. Somente o homem tem uma história porque é ao mesmo tempo um inventor e um herdeiro. Ele cria línguas, instrumentos que transmitem este patrimônio pela palavra, e, nos últimos milênios, pela escrita às gerações seguintes que, por sua vez, exercem suas faculdades de invenção apenas dentro do quadro do que elas receberam. As duas idéias de tradição e de progresso, longe de se excluírem, se completam. Como diz Comte, Gutemberg ainda imprime todos os livros do mundo, e o inventor do arado trabalha, invisível, ao lado do lavrador. A herança do passado só torna possíveis os progressos do futuro e "a humanidade compõe-se mais de mortos que de vivos".
Comte distingue a sociologia estática da sociologia dinâmica. A primeira estuda as condições gerais de toda a vida social, considerada em si mesma, em qualquer tempo e lugar. Três instituições sempre são necessárias para fazer com que o altruísmo predomine sobre o egoísmo (condição de vida social). A propriedade (que permite ao homem produzir mais do que para as suas necessidades egoístas imediatas, isto é, fazer provisões, acumular um capital que será útil a todos), a família (educadora insubstituível para o sentimento de solidariedade e respeito às tradições), a linguagem (que permite a comunicação entre os indivíduos e, sob a forma de escrita, a constituição de um capital intelectual, exatamente como a propriedade cria um capital material).
A sociologia dinâmica estuda as condições da evolução da sociedade: do estado teológico ao estado positivo na ordem intelectual, do estado militar ao industrial na ordem prática - do estado de egoísmo ao de altruísmo na ordem afetiva. A ciência que prepara a união de todos os espíritos concluirá a obra de unidade (que a Igreja católica havia parcialmente realizado na Idade Média) e tornará o altruísmo universal, "planetário". A sociedade positiva terá, exatamente como a sociedade cristã da Idade Média, seu poder temporal (os industriais e os banqueiros) e seu poder espiritual (³) (os sábios, principalmente os sociólogos, que terão, à sua testa, o papa positivista, o Grão-Sacerdote da Humanidade, isto é, o próprio Augusto Comte).
Vê-se que é sobre a sociologia que vem articular a mudança de perspectiva, a mutação que faz do filósofo um profeta. A sociologia, cuja aparição dependeu de todas as outras ciências tornadas positivas, transforma-se-á na política que guiará as outras ciências, "regenerando, assim, por sua vez, todos os elementos que concorreram para sua própria formação". Assim é que, em nome da "humanidade", a sociologia regerá todas as ciências, proibindo, por exemplo, as pesquisas inúteis. (Para Comte, o astrônomo deve estudar somente o Sol e a Lua, que estão muito próximos de n'so, para ter uma influência sobre a terra e sobre a humanidade e interditar-se aos estudos politicamente estéreis dos corpos celestes mais afastados!!) Compreende-se que esta "síntese subjetiva", integrando-se inteiramente no sistema de Comte, tenha desencorajado os racionalistas que de saída viram no positivismo uma apologia do espírito científico!
A religião positiva substitui o Deus das religiões reveladas pela própria humanidade, considerada como Grande-Ser. Este Ser do qual fazemos parte nos ultrapassa entretanto - pelo gênio de seus grandes homens, de seus sábios aos quais devemos prestar culto após a morte (esta sobrevivência na veneração de nossa memória chama-se "imortalidade subjetiva"). A terra e o ar - meio onde vive a humanidade - podem, por isso mesmo, ser objeto de culto. A terra chamar-se-á o "Grande-Fetiche". A religião da humanidade, pois, transpõe - ainda mais que não as repudia - as idéias e até a linguagem das crenças anteriores. Filósofo do progresso, Comte é também o filósofo da ordem. Herdeiro da Revolução, ele é, ao mesmo tempo, conservador e admirador da bela unidade dos espíritos da Idade Média. Compreende-se que ele tenha encontrado discípulos tanto nos pensadores "de direita" como nos "de esquerda".
(³) Comte rejeita como metafísica a doutrina dos direitos do homem e da liberdade. Assim como "não há liberdade de consciência em astronomia", assim uma política verdadeiramente científica pode impor suas conclusões. Aqueles que não compreenderem terão que se submeter cegamente (esta submissão será o equivalente da fé na religião positivista).
O Surgimento do Positivismo/Determinismo e A ciência moderna (século XIX)
No século XIX a ciência triunfa. No domínio das ciências da natureza, o ritmo e o número das descobertas são enormes, saindo dos laboratórios para as aplicações práticas: ciência e tecnologia encontram-se.
A pesquisa fundamental, cujo objetivo é conhecer pelo próprio conhecimento, é acompanhada pela pesquisa aplicada, a qual visa resolver problemas concretos.
Assim, nesse século, a ciência tem o seu grande avanço com as ciências da natureza, em que quase todos os domínios da atividade humana são atingidos.
Apoiado nos postulados do positivismo, o método experimental ou científico assumiu o mesmo método das ciências da natureza, tido como exemplar na construção de conhecimentos rigorosamente verificados e cientificamente comprovados.
O método experimental consiste em submeter um fato à experimentação em condições de controle e apreciá-lo coerentemente, com critérios de rigor, mensurando a constância das incidências e suas exceções, e admitindo como científicos somente os conhecimentos passíveis de apreensão em condições de controle, legitimados pela experimentação e comprovados pela mensuração.
Dessa forma, o homem começa a produzir o conhecimento, tendo como modelo de acesso à realidade o procedimento do experimento científico, que estipula critérios para julgar quando esse acesso é realmente alcançado e quando não – o positivismo, cujas características principais são:
No domínio do saber sobre o homem e a sociedade, desejava-se que conhecimentos tão confiáveis e práticos quanto os desenvolvidos para se conhecer a natureza física fossem aplicados com sucesso ao ser humano. Por isso, o positivismo também é adotado nas ciências humanas, que se desenvolvem a partir da segunda metade do século XIX.
A pesquisa de espírito positivista aprecia números; pretende tomar a medida exata dos fenômenos humanos e do que os explica. Essa é, para ela, uma das principais chaves da validade dos saberes construídos e da objetividade, entendida como atitude intelectual que visa considerar a realidade do objeto, controlando ao máximo as pré-concepções do pesquisador. Conseqüentemente, deve escolher com precisão o que será medido e apenas conservar o que é mensurável de modo preciso.
O positivismo no Brasil
O positivismo de Auguste Comte exerceu larga influência nos mais variados círculos. Enquanto doutrina sobre o conhecimento e sobre a natureza do pensamento científico, incorporou-se a outras correntes análogas, que procuraram valorizar as ciências naturais e suas aplicações práticas. Junto a essas outras correntes, o positivismo constitui um dos traços característicos do pensa¬mento que se desenvolveu na Europa durante o século XIX.
Entre os mais fiéis seguidores de Comte destaca-se o lexicógrafo Émile Littré que, no entanto, renegou a religião da humanidade. O mesmo não aconteceu com Pierre Laffite (1823 - 1903), que aderiu principalmente à última fase do pensamento do mestre. Na Inglaterra, o positivismo de Comte, excluída a religião da humanidade, teve grande difusão, contando-se entre seus propagadores o filósofo John Stuart M Mill, além de outras figuras menos conhecidas, como G. H. Lewes (1817 – 1878), Harriet Martineau (1802 – 1876) e Richard Congreve (1818 – 1899), fundador da Sociedade Positivista de Londres.
Solo mais fértil foi encontrado pelo positivismo comteano, incluindo-se a religião positivista, em países de menor tradição cultural e carentes de ideologia para seus anseios de desenvolvimento. Esse fenômeno ocorreu na. América do Sul, sobretudo no Brasil.
As primeiras manifestações do positivismo no Brasil datam de 1850, quando Manuel Joaquim Pereira de Sá apresentou tese de doutoramento em ciências físicas e naturais, na Escola Militar do Rio de Janeiro. A esse trabalho viriam juntar-se a tese de Joaquim Pedro Manso Sayão sobre corpos flutuantes e a de Manuel Pinto Peixoto sobre os princípios do cálculo diferencial. Em todos encontram-se inspirações da filosofia comteana.
Passo mais importante, contudo, foi dado por Luís Pereira Barreto (1840 - 1923), com a obra As Três Filosofias, na qual a filosofia positivista era apontada como capaz de substituir vantajosamente a tutela intelectual exercida no país pela Igreja Católica. Pereira Barreto não foi um positivista ortodoxo, como Miguel Lemos (1854 - 1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855 - 1927), que se iniciaram no positivismo através da, matemática e das ciências exatas, quando estudantes na Escola Politécnica. Os dois entreviram na ciência fundada por Auguste Comte as bases de uma política racional e pressentiram, na sua coordenação filosófica, o congraçamento definitivo da ordem e do progresso, como dirá mais tarde o próprio Miguel Lemos.
Em 1876 fundou-se a primeira sociedade positivista do Brasil, tendo a frente Teixeira Mendes, Miguel Lemos e Benjamin Constant (1836 - 1891). No ano seguinte, os dois primeiros viajaram para Paris, onde conheceram Émile Littré e Pierre Laffite. Miguel Lemos decepcionou-se com “o vazio do littreísmo” e tornou-se adepto fervoroso da religião da humanidade, dirigida ida por Laffite. De volta ao Brasil Fundou a Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, que constitui a origem do Apostolado Positivista do Brasil e da Igreja Positivista do Brasil, cuja finalidade era “for¬mar crentes e modificar a opinião por meio de intervenções oportunas nos negócios públicos”.
Entre essas intervenções, sem dúvida, foi importante a participação dos positivistas no movimento republicano, embora seja um exagero dizer-se que foram eles que proclamaram a República, em 1889. Influíram, é verdade, na Constituição de 1891 e a bandeira brasileira passou a ostentar o lema comteano “Ordem e Progresso”. No século XX, o entusiasmo pelo positivismo religioso decresceu consideravelmente, mas continuou a existir a Igreja Positivista do Brasil, no Rio de Janeiro, que permanece atuante ate os dias de hoje.

Bandeira do Brasil e o Positivismo

http://brazil-brasil.com/

Adaptado de Texto Escrito por Patricia Weber, Rubens Heizer Villela
Monday, 11 April 2005
Muito além de uma simples questão de civismo, conhecer bem a bandeira do Brasil e o seu simbolismo é um mergulho na história. O círculo central em azul, que representa a esfera celeste, é herança do culto português pela esfera manuelina, simbolizando as grandes viagens de exploração marítimas.
Quando surgiu: A Bandeira do Brasil foi adotada pelo decreto no 4 de 19 de novembro de 1889. Este decreto foi preparado por Rui Barbosa e assinado pelo Marechal Deodoro da Fonseca (chefe do Governo Provisório).
Os responsáveis pela sua criação: A idéia da nova Bandeira do Brasil deve-se ao professor Raimundo Teixeira Mendes, presidente do Apostolado Positivista do Brasil. Com ele colaboraram o Dr. Miguel Lemos e o professor Manuel Pereira Reis, catedrático de astronomia da Escola Politécnica. O desenho foi executado pelo pintor Décio Vilares.
As cores: As cores verde e amarelo estão associadas à casa real de Bragança, da qual fazia parte o imperador D. Pedro I, e à casa real dos Habsburg, à qual pertencia a imperatriz D. Leopoldina
Círculo interno azul: Corresponde a uma imagem da esfera celeste, inclinada segundo a latitude da cidade do Rio de Janeiro às 12 horas siderais (8 horas e 30 minutos) do dia 15 de novembro de 1889.
As estrelas:
• Cada estrela representa um estado da federação
• Todas as estrelas têm 5 pontas
• As estrelas não têm o mesmo tamanho; elas aparecem em 5 (cinco) dimensões: de primeira, segunda, terceira, quarta e quinta grandezas. Estas dimensões não correspondem diretamente às magnitudes astronômicas mas estão relacionadas com elas. Quanto maior a magnitude da estrela maior é o seu tamanho na Bandeira.
A faixa branca: Embora alguns digam que esta faixa representa a eclíptica, ou o equador celeste ou o zodíaco, na verdade a faixa branca da nossa bandeira é apenas um lugar para a inscrição do lema "Ordem e Progresso". Ela não tem qualquer relação com definições astronômicas.
O lema "Ordem e Progresso": É atribuído ao filósofo positivista francês Augusto Comte, que tinha vários seguidores no Brasil, entre eles o professor Teixeira Mendes.

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