tag:blogger.com,1999:blog-557501049219500162024-02-18T19:09:08.399-08:00PROF:FLÚVIO SANTOSEste blog é para todos que seguem a evolução do homem,desde a religião,o tempo TEOCÊNTRICO,passando pela LITERATURA e analogando com a FILOSOFIAPROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.comBlogger50125truetag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-85616285774473715122022-12-05T07:13:00.001-08:002022-12-05T07:13:49.036-08:00ENTENDA O QUE DEVE MUDAR NO NOVO ENSINO MÉDIO A PARTIR DE 2022O que são os itinerários formativos? E como fica a carga horária? O que vai ser obrigatório? Tire suas dúvidas.
O novo ensino médio, previsto numa lei aprovada em 2017, começa a ser implementado nas escolas públicas e privadas em 2022 em todo o país. As mudanças vão começar pelo 1º ano dessa etapa de ensino.
A principal mudança é que os alunos vão ter que cumprir os chamados itinerários formativos, que podem começar a ser ofertados ainda em 2022, mas só serão obrigatórios a partir de 2023.
Além disso, os estudantes de ensino médio terão que dedicar mais horas ao ensino escolar: as quatro horas atuais passam para no mínimo cinco, e isso já começa a valer em 2022.
Entenda todas as mudanças a seguir.
Disciplinas viram áreas do conhecimento
A grade curricular das escolas públicas e privadas de ensino médio não terão mais o formato utilizado até então em que as disciplinas eram individuais, graças à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Agora, os conteúdos serão divididos em áreas do conhecimento de maneira similar à que acontece no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Serão elas:
Linguagens e suas Tecnologias;
Matemática e suas Tecnologias;
Ciências da Natureza e suas Tecnologias;
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
Estas divisões vão abranger Língua Portuguesa, Arte, Educação Física, Língua Inglesa, Matemática, Biologia, Física, Química, Filosofia, Geografia, História e Sociologia. Ou seja, nenhuma disciplina será excluída do currículo atual, elas somente serão trabalhadas de maneira diferente do que era feito até então.
No entanto, das disciplinas atuais, somente Língua Portuguesa e Matemática vão ser obrigatórias nos três anos de ensino médio.
O objetivo da nova organização curricular é integrar as disciplinas, fortalecendo as relações entre elas e melhorando seu entendimento e aplicação na vida real.
Esta grade não deve ultrapassar o limite de 1.800 horas ao longo dos três anos de ensino médio.
Itinerários formativos
Os itinerários formativos são a maior novidade no novo ensino médio. Eles serão optativos, escolhidos de acordo com a vontade do estudante e da oferta da instituição e serão compostos para se aprofundar nos conhecimentos das seguintes áreas:
Linguagens e suas Tecnologias;
Matemática e suas Tecnologias;
Ciências da Natureza e suas Tecnologias;
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas;
Formação técnica e profissional.
Na prática, vai funcionar assim: o aluno terá em sua grade as quatro áreas do conhecimento divididas por ano ou por semestre, a depender da escola, e poderá escolher uma disciplina extra para se aprofundar em uma das áreas ou na formação técnica e profissional.
O objetivo desta implementação é fazer com que o aluno saia do ensino médio com uma formação ou conhecimentos específicos que o ajude a adentrar o mercado de trabalho sem precisar de um diploma de formação superior.
Esta parte da grade curricular ocupará 1.200 horas do ensino médio, divididas nos três anos da fase escolar. O aluno poderá iniciar o itinerário escolhido no 1º ano caso esteja disponível em sua escola. Mas a instituição tem até 2023 para disponibilizar os itinerários.
Vale ressaltar que as redes públicas e particulares terão autonomia para definir quantos e quais itinerários formativos irão ofertar. Uma rede pode decidir ofertar apenas dois itinerários, enquanto outra pode oferecer 15, por exemplo.
Também é importante saber que não é garantido que o aluno terá vaga assegurada no itinerário que escolher, especialmente na formação profissionalizante, já que o número de vagas será limitado em cada oferta disponibilizada. Portanto, o estudante terá liberdade para pleitear vaga em outra instituição de ensino que ofereça um itinerário que mais lhe interesse.
O jovem poderá mudar de itinerário ao longo dos três anos caso deseje e caso a escola ofereça outra opção com vagas disponíveis.
Ao final do ensino médio, ele receberá o certificado de conclusão e certificado do curso técnico escolhido.
Projeto de vida
Outra novidade do modelo de ensino médio que deve ser implantado em 2022 é o chamado “projeto de vida”. Este componente transversal será oferecido nas escolas para ajudar os jovens a entender suas aspirações, num estilo de orientação.
O objetivo é ajudar o aluno a compreender o que ele quer para seu futuro, ao mesmo tempo que endente como a escola pode ajudá-lo a alcançar este objetivo.
Não é especificado se esta orientação deve ser feita por um profissional especializado, como um psicólogo, ou se um professor ou profissional da unidade de ensino será responsabilizado pela função.
Carga horária anual
Até 2024, o novo ensino médio passará de 800 para de 1.000 horas anuais, atingindo 3.000 horas ao final dos três anos. Para atingir o total de horas, cada ano letivo deve ter 200 dias, com, em média, cinco horas por dia.
As áreas do conhecimento ocuparão 60% do tempo de grade do ensino médio, não podendo ultrapassar o limite de 1.800 horas totais ao final dos três anos. Já os itinerários formativos devem ocupar os 40% restante, totalizando 1.200 horas.
A lei não determina, no entanto, se o cumprimento da carga horária vai ser presencial ou à distância, mas a legislação já permite que 30% do ensino médio noturno e 20% do diurno seja ministrado remotamente.
Posteriormente, é previsto que a carga horária cresça progressivamente até atingir a média de 7 horas diárias, em um modelo de ensino em tempo integral. A lei não prevê prazo para implantação deste novo sistema no país.
<div class="separator" style="clear: both;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKe6XBfh7zIbGuwUsexR9B_cIuT5q65OKp7V4-3BszZ36UyPPCWmpe--Yr_LrfwXOBZejjH1Wn6PxOt8VFoH6zw9rU0Z_Xe4wmrIbc7KvE3JJSAU3pLQWiUYp4uWMCtWJLXraXYtpFq2PnGU_AoPT-dmRwC_pfGiXklLx-O6ww77eQ2JhDqOtMJe_W/s700/23755071_1975044995844679_5654215720880637106_n.png" style="display: block; padding: 1em 0; text-align: center; "><img alt="" border="0" height="320" data-original-height="700" data-original-width="650" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhKe6XBfh7zIbGuwUsexR9B_cIuT5q65OKp7V4-3BszZ36UyPPCWmpe--Yr_LrfwXOBZejjH1Wn6PxOt8VFoH6zw9rU0Z_Xe4wmrIbc7KvE3JJSAU3pLQWiUYp4uWMCtWJLXraXYtpFq2PnGU_AoPT-dmRwC_pfGiXklLx-O6ww77eQ2JhDqOtMJe_W/s320/23755071_1975044995844679_5654215720880637106_n.png"/></a></div><div class="separator" style="clear: both;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtckRz2HgyimJtOtyL4sgFqMMNgGbEeKP_wX8GvJHZfmAYN3lcgsmTevKTptt7UuTLWzNaj1-YRq6Qk7_jd4Mho0pbn56Xw8tRahGAWGW1Bxnl4qd9YOPb5UQSk8UrEByiIOP3fo5poGOtqP_e2lYRV6SrEohvIZwxGQOc1xXSoLtt38WlqPc9fQd1/s803/Sem_titulo_VBGcXYJ.jpg" style="display: block; padding: 1em 0; text-align: center; "><img alt="" border="0" height="320" data-original-height="803" data-original-width="750" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgtckRz2HgyimJtOtyL4sgFqMMNgGbEeKP_wX8GvJHZfmAYN3lcgsmTevKTptt7UuTLWzNaj1-YRq6Qk7_jd4Mho0pbn56Xw8tRahGAWGW1Bxnl4qd9YOPb5UQSk8UrEByiIOP3fo5poGOtqP_e2lYRV6SrEohvIZwxGQOc1xXSoLtt38WlqPc9fQd1/s320/Sem_titulo_VBGcXYJ.jpg"/></a></div><div class="separator" style="clear: both;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgUSt6VYPhlnyD2zm8eOW-xhOsccoTXmrm9sxz-N80KpogGgG5JIShZkYyekdgrFgf-ZLeKD0CZuZZsbY3ORVqIuTPUc0v3witGOMmFT8px5BUtB093loHJ7vTtbj8-2OLkM_QND1_YO5eEwwvuBuLVq-bbiv1xGEShO0AkUe1NEfVi4E4q6U25sRvA/s700/novo%20em.jpg" style="display: block; padding: 1em 0; text-align: center; "><img alt="" border="0" width="320" data-original-height="525" data-original-width="700" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgUSt6VYPhlnyD2zm8eOW-xhOsccoTXmrm9sxz-N80KpogGgG5JIShZkYyekdgrFgf-ZLeKD0CZuZZsbY3ORVqIuTPUc0v3witGOMmFT8px5BUtB093loHJ7vTtbj8-2OLkM_QND1_YO5eEwwvuBuLVq-bbiv1xGEShO0AkUe1NEfVi4E4q6U25sRvA/s320/novo%20em.jpg"/></a></div><div class="separator" style="clear: both;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhRs_U-nQ1lOVvspAiZY6ZhPir3PVoZldafCQHxlI43fiufFlkTrh6Ir_K5gYqsPF9ri707oBnjnYHmn4cHeKp2Ogsz2ahLt_o6J9iyVLyNancn9dnPH3yWuAI1NchZjzCE1EwCUrxr7D7PZ_GgvQw3vQzUpF04KJrAocHf6gDt4UhsrKPWfC1kb4oH/s289/download.png" style="display: block; padding: 1em 0; text-align: center; "><img alt="" border="0" width="320" data-original-height="174" data-original-width="289" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhRs_U-nQ1lOVvspAiZY6ZhPir3PVoZldafCQHxlI43fiufFlkTrh6Ir_K5gYqsPF9ri707oBnjnYHmn4cHeKp2Ogsz2ahLt_o6J9iyVLyNancn9dnPH3yWuAI1NchZjzCE1EwCUrxr7D7PZ_GgvQw3vQzUpF04KJrAocHf6gDt4UhsrKPWfC1kb4oH/s320/download.png"/></a></div>PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-42468364538371996582013-12-23T17:09:00.000-08:002020-05-17T04:23:43.436-07:00O que é LinguísticaLinguagem. A pesquisa linguística é feita por filósofos e cientistas da linguagem que se preocupam em investigar quais são os desdobramentos e nuances envolvidos na linguagem humana.O jornalista norte-americano Russ Rymer certa vez a definiu ironicamente da seguinte maneira:2
Cquote1.svg A Linguística é a parte do conhecimento mais fortemente debatida no mundo acadêmico. Ela está encharcada com o sangue de poetas, teólogos, filósofos, filólogos, psicólogos, biólogos e neurologistas além de, não importa o quão pouco, qualquer sangue possível de ser extraído de gramáticos. Cquote2.svg
Alternativamente, alguns chamam informalmente de linguista a uma pessoa versada ou conhecedora de muitas línguas, embora um termo mais adequado para este fim seja poliglota.
Índice [esconder]
1 Divisões da linguística
2 A linguística histórica
3 Escolas de pensamento
4 Falantes, comunidades linguísticas e universais linguísticos
5 Fala versus escrita
6 Descrição e prescrição
7 Estudos inspirados no cérebro
8 Ver também
9 Referências
10 Bibliografia
11 Ligações externas
Divisões da linguística[editar | editar código-fonte]
Os linguistas dividem o estudo da linguagem em certo número de áreas que são estudadas mais ou menos independentemente. Estas são as divisões mais comuns:
fonética, o estudo dos diferentes sons empregados em linguagem;
fonologia, o estudo dos padrões dos sons básicos de uma língua;
morfologia, o estudo da estrutura interna das palavras;
sintaxe, o estudo de como a linguagem combina palavras para formar frases gramaticais.
semântica, podendo ser, por exemplo, formal ou lexical, o estudo dos sentidos das frases e das palavras que a integram;
lexicologia, o estudo do conjunto das palavras de um idioma, ramo de estudo que contribui para a lexicografia, área de atuação dedicada à elaboração de dicionários, enciclopédias e outras obras que descrevem o uso ou o sentido do léxico;
terminologia, estudo que se dedicada ao conhecimento e análise dos léxicos especializados das ciências e das técnicas;
estilística, o estudo do estilo na linguagem;
pragmática, o estudo de como as oralizações são usadas (literalmente, figurativamente ou de quaisquer outras maneiras) nos atos comunicativos;
filologia é o estudo dos textos e das linguagens antigas.
Nem todos os linguistas concordam que todas essas divisões tenham grande significado. A maior parte dos linguistas cognitivos, por exemplo, acha, provavelmente, que as categorias "semântica" e "pragmática" são arbitrárias e quase todos os linguistas concordariam que essas divisões se sobrepõem consideravelmente. Por exemplo, a divisão gramática usualmente cobre fonologia, morfologia e sintaxe.
Ainda existem campos como os da linguística teórica e da linguística histórica. A linguística teórica procura estudar questões tão diferentes sobre como as pessoas, usando suas particulares linguagens, conseguem realizar comunicação; quais propriedades todas as linguagens têm em comum, qual conhecimento uma pessoa deve possuir para ser capaz de usar uma linguagem e como a habilidade linguística é adquirida pelas crianças.
A linguística histórica[editar | editar código-fonte]
A linguística histórica, dominante no século XIX, tem por objetivo classificar as línguas do mundo de acordo com suas afiliações e descrever o seu desenvolvimento histórico. Na Europa do século XIX, a linguística privilegiava o estudo comparativo histórico das línguas indo-europeias, preocupando-se especialmente em encontrar suas raízes comuns e em traçar seu desenvolvimento.
A preocupação com a descrição das línguas espalhou-se pelo mundo e milhares dessas foram analisadas em vários graus de profundidade. Quando esse trabalho esteve em desenvolvimento no início do século XX na América do Norte, os linguistas se confrontaram com línguas cujas estruturas diferiam fortemente do paradigma europeu, mais familiar. Percebeu-se, assim, a necessidade de se desenvolver uma teoria e métodos de análise da estrutura das línguas.
Para a linguística histórico-comparativa ser aplicada a línguas desconhecidas, o trabalho inicial do linguista era fazer sua descrição completa. A linguagem verbal era, geralmente, vista como consistindo de vários níveis, ou camadas, e, supostamente, todas as línguas naturais humanas tinham o mesmo número desses níveis.
O primeiro nível é a fonética, que se preocupa com os sons da língua sem considerar o sentido. Na descrição de uma língua desconhecida esse era o primeiro aspecto estrutural a ser estudado. A fonética divide-se em três: articulatória, que estuda as posições e os movimentos dos lábios, da língua e dos outros órgãos relacionados com a produção da fala (como as cordas vocais); acústica, que lida com as propriedades das ondas de som; e auditiva, que lida com a percepção da fala.
O segundo nível é a fonologia, que identifica e estuda os menores elementos distintos (chamados de fonemas) que podem diferenciar o significado das palavras. A fonologia também inclui o estudo de unidades maiores como sílabas, palavras e frases fonológicas e de sua acentuação e entonação.
O terceiro nível é a morfologia, que analisa as unidades com as quais as palavras são montadas, os morfemas. Esses são as menores unidades da gramática: raízes, prefixos e sufixos. Os falantes nativos reconhecem os morfemas como gramaticalmente significantes ou significativos. Eles podem frequentemente ser determinados por uma série de substituições. Um falante de inglês reconhece que make é uma palavra diferente de makes, pois o sufixo -s é um morfema distinto. Em inglês, a palavra morfeme consiste de dois morfemas, a raiz morph- e o sufixo -eme, nenhum dos quais tinha ocorrência isolada na língua inglesa por séculos, até morph ser adotado em linguística para a realização fonológica de um morfema e o verbo to morph ter sido cunhado para descrever um tipo de efeito visual feito em computadores. Um morfema pode ter diferentes realizações (morphs) em diferentes contextos. Por exemplo, o morfema verbal do do inglês tem três pronúncias bem distintas nas palavras do, does (com o sufixo -es) e don't (com a aposição do advérbio not em forma contracta -n't). Tais diferentes formas de um morfema são chamados de alomorfos.
Os padrões de combinações de palavras de uma linguagem são conhecidos como sintaxe. O termo gramática usualmente cobre sintaxe e morfologia. O estudo dos significados das palavras e das construções sintáticas é chamado de semântica.
Escolas de pensamento[editar | editar código-fonte]
Question book.svg
Esta página ou secção não cita nenhuma fonte ou referência, o que compromete sua credibilidade (desde junho de 2009).
Por favor, melhore este artigo providenciando fontes fiáveis e independentes, inserindo-as no corpo do texto por meio de notas de rodapé. Encontre fontes: Google — notícias, livros, acadêmico — Scirus — Bing. Veja como referenciar e citar as fontes.
Na Europa houve um desenvolvimento paralelo da linguística estrutural, influenciada muito fortemente por Ferdinand de Saussure, um estudioso suíço de indo-europeu cujas aulas de linguística geral, publicadas postumamente por seus alunos, deram a direção da análise linguística europeia da década de 1920 em diante; esse enfoque foi amplamente adotado em outros campos sob o termo "estruturalismo" ou análise estruturalista. Ferdinand de Saussure também é considerado o fundador da semiologia.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Leonard Bloomfield e vários de seus alunos e colegas desenvolveram material de ensino para uma variedade de línguas cujo conhecimento era necessário para o esforço de guerra. Este trabalho levou ao aumento da proeminência do campo da linguística, que se tornou uma disciplina reconhecida na maioria das universidades americanas somente após a guerra.
Noam Chomsky desenvolveu seu modelo formal de linguagem, conhecido como gramática transformacional, sob a influência de seu professor Zellig Harris, que por sua vez foi fortemente influenciado por Bloomfield. O modelo de Chomsky foi reconhecidamente dominante desde a década de 1960 até a de 1980 e desfruta ainda de elevada consideração em alguns círculos de linguistas. Steven Pinker tem se ocupado em clarificar e simplificar as ideias de Chomsky com muito mais significância para o estudo da linguagem em geral. Outro aluno de Zellig Harris, Maurice Gross, desenvolveu o léxico-gramática, método de descrição formal que dá enfoque ao léxico.
A linguística de corpus, voltada ao uso de coleções de textos ou corpora, se desenvolveu nos anos 1960 e se popularizou nos anos 1980.
Da década de 1980 em diante, os enfoques pragmáticos, funcionais e cognitivos vêm ganhando terreno nos Estados Unidos e na Europa. Umas poucas figuras importantes nesse movimento são Michael Halliday, cuja gramática sistêmica-funcional é muito estudada no Reino Unido, Canadá, Austrália, China e Japão; Dell Hymes, que desenvolveu o enfoque pragmático "A Etnografia do Falar"; George Lakoff, Leonard Talmy, e Ronald Langacker, que foram os pioneiros da linguística cognitiva; Charles Fillmore e Adele Eva Goldberg, que estão associados com a gramática da construção; e entre os linguistas que desenvolvem vários tipos da chamada gramática funcional estão Simon Dik, Talmy Givon e Robert Van Valin, Jr.
Merece também destacar, nos finais do século XX, a partir de 1995, os trabalhos do linguista Jairo Galindo com a criação das Línguas Experimentais Umonani (Brasil) e Uiraka (Colômbia), que deu origem à Linguística Experimental. Já no começo do século XXI, os trabalhos são aprofundados através de línguas dinâmicas naturais. O que vai concluir com as linguagens dinâmicas reais: Umonani e Uiraka. Esses trabalhos vão dar origem a teoria da Linguística diversificada, Lindi. Sendo que os estudos nesta área vão remontar a mais de 12007 anos, e os estudiosos em linguagens dinâmicas reais vão se denominar, linguistas diversificados.
Falantes, comunidades linguísticas e universais linguísticos[editar | editar código-fonte]
Os linguistas também diferem em quão grande é o grupo de usuários das linguagens que eles estudam. Alguns analisam detalhadamente a linguagem ou o desenvolvimento da linguagem de um dado indivíduo. Outros estudam a linguagem de toda uma comunidade, como por exemplo a linguagem de todos os que falam o Black English Vernacular. Outros ainda tentam encontrar conceitos linguísticos universais que se apliquem, em algum nível abstrato, a todos os usuários de qualquer linguagem humana. Esse último projeto tem sido defendido por Noam Chomsky e interessa a muitas pessoas que trabalham nas áreas de psicolinguística e de Ciência da Cognição. A pressuposição é que existem propriedades universais na linguagem humana que permitiriam a obtenção de importantes e profundos entendimentos sobre a mente humana.
Fala versus escrita[editar | editar código-fonte]
Alguns linguistas contemporâneos acham que a fala é um objeto de estudo mais importante do que a escrita. Talvez porque ela seja uma característica universal dos seres humanos, e a escrita não (pois existem muitas culturas que não possuem a escrita). O fato de as pessoas aprenderem a falar e a processar a linguagem oral mais facilmente e mais precocemente do que a linguagem escrita também é outro fator. Alguns (veja cientistas da cognição) acham que o cérebro tem um "módulo de linguagem" inato e que podemos obter conhecimento sobre ele estudando mais a fala que a escrita.
A escrita também é muito estudada e novos meios de estudá-la são constantemente criados. Por exemplo, na intersecção do corpus linguístico e da linguística computacional, os modelos computadorizados são usados para estudar milhares de exemplos da língua escrita do Wall Street Journal, por exemplo. Bases de dados semelhantes sobre a fala já existem, um dos destaques é o Child Language Data Exchange System3 ou, em tradução livre, "Sistema de Intercâmbio de Dados da Linguagem Infantil".
Descrição e prescrição[editar | editar código-fonte]
Provavelmente, a maior parte do trabalho feito atualmente sob o nome de linguística é puramente descritivo. Há, também, alguns profissionais (e mesmo amadores) que procuram estabelecer regras para a linguagem, sustentando um padrão particular que todos devem seguir.
As pessoas atuantes nesses esforços de descrição e regulamentação têm sérias desavenças sobre como e por que razão a linguagem deve ser estudada. Esses dois grupos podem descrever o mesmo fenômeno de modos diferentes, em linguagens diferentes. Aquilo que, para um grupo é uso incorreto, para o outro é uso idiossincrático, ou apenas simplesmente o uso de um subgrupo particular (geralmente menos poderoso socialmente do que o subgrupo social principal, que usa a mesma linguagem).
Em alguns contextos, as melhores definições de linguística e linguista podem ser: aquilo estudado em um típico departamento de linguística de uma universidade e a pessoa que ensina em tal departamento. A linguística, nesse sentido estrito, geralmente não se refere à aprendizagem de outras línguas que não a nativa do estudioso (exceto quando ajuda a criar modelos formais de linguagem).
Especialistas em linguística não realizam análise literária e não se aplicam a esforços para regulamentar como aqueles encontrados em livros como The Elements of Style (Os Elementos de Estilo, em tradução livre), de Strunk e White. Os linguistas procuram estudar o que as pessoas efetivamente fazem, nos seus esforços para comunicar usando a linguagem, e não o que elas deveriam fazer.
Estudos inspirados no cérebro[editar | editar código-fonte]
Psicolinguística e neurociência fazem pesquisa linguística centrada no cérebro.
Ver também[editar | editar código-fonte]
Portal A Wikipédia possui o portal:
Linguística
Charles Sanders Peirce
Sir William Jones
Jacob Grimm
Franz Bopp
Franz Boas
Leonard Bloomfield
Marcos Bagno, linguista brasileiro atuante na UnB
Edward Sapir
Roman Jakobson
Benjamin Lee Whorf
Samuel Ichiye Hayakawa
Charles F. Hockett
Joseph H. Greenberg
Kenneth L. Pike
Sydney M. Lamb
Umberto Eco
Oswald Ducrot
John Grinder
Ferdinand de Saussure
Curso de Linguística Geral
Variação linguística
Noam Chomsky
Referências
Ir para cima ↑ Irenilde Pereira dos Santos. (Setembro/Dezembro 1994). "Lingüística". Estudos Avançados 8 (22). ISSN 0103-4014. Página visitada em 31 de julho de 2012.
Ir para cima ↑ Rymer, p. 48, citado em Fauconnier & Turner, p. 353
Ir para cima ↑ Child Language Data Exchange System
Bibliografia[editar | editar código-fonte]
Aldo Bizzocchi. Fantástico Mundo da Linguagem. Ciência Hoje, Vol. 28, no. 164 (Setembro de 2000). p. 38-45
Marie-Anne PAVEAU e Elia Sarfati (2006). As Grandes Teorias da Linguística: da gramática comparada à pragmática. Tradução Editora Claraluz.
Gilles Fauconnier e Mark Turner (2002). The Way We Think: Conceptual Blending and the Mind's Hidden Complexities. Basic Books.
R. H., Robins. (1983). Pequena História da Linguística. Editora Ao Livro Técnico.
Rymer, Russ (1992). "Annals of Science: A Silent Childhood-I". New Yorker, April 13.
Yves Cortez "Le français ne vient pas du latin" Paris 2007 Editions L'harmattan
Ligações externas[editar | editar código-fonte]
Wikcionário
O Wikcionário possui o verbete Linguística
Associação Brasileira de Linguística
Associação Portuguesa de Linguística
Forum on Linguistics (em inglês)
Applied Linguistics (em inglês)
Fórum Franco-Dousha
Antropologia Linguística - Instituto Grupo Veritas de Pesquisa em História e Antropologia
Códigos e nome das línguas
Sobre língua, linguagem e Linguística: uma entrevista com Mario Perini. ReVEL, vol. 8, n. 14, 2010PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-13989443266047417882013-06-02T18:44:00.000-07:002013-06-02T18:44:25.119-07:00http://www.recantodasletras.com.br/poesiasevangelicas/1696818
NOVA ESCOLA LITERÁRIA,POIS PUBLICAR LIVROS ESTÁ MUITO CARO. ASSIM OS POETAS UTILIZAM ESSE RECURSO PARA SE EXPRESSAREM NO SÉCULO XXI<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjbdv35ve2AMr2_raAP4nIAadPJ1VaFJLSiA3hq0mctC1KLvwAyDfVS82ABCe682zjcRjpXxkMYMdA250XdKFiT7pa9GAd_FT1EE4pgaTTSHztg2SigF9uB_x5-NAn-oYS1YTwX3KvOMEk/s1600/e-book-sony.jpg" imageanchor="1" ><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjbdv35ve2AMr2_raAP4nIAadPJ1VaFJLSiA3hq0mctC1KLvwAyDfVS82ABCe682zjcRjpXxkMYMdA250XdKFiT7pa9GAd_FT1EE4pgaTTSHztg2SigF9uB_x5-NAn-oYS1YTwX3KvOMEk/s320/e-book-sony.jpg" /></a>PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-79955866672383501692011-06-23T17:09:00.000-07:002011-07-29T14:44:51.355-07:00SERMÃO DA MONTANHA<!-- Inclua esta tag na seção head ou logo antes da tag de fechamento da seção body --><br />
<script type="text/javascript" src="https://apis.google.com/js/plusone.js">
{lang: 'pt-BR'}
</script><br />
<br />
<!-- Inclua esta tag onde desejar que o botão +1 seja exibido --><br />
<g:plusone></g:plusone><br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhPHzepamklE7tCBAibSTMcnkbqxV52GQKMtfLzSR3PZWpXI9ehZBEmEpl7h3PAWHIUZ0ys7LKGot4VFID6OMce1lYgE-BZ5UbXW9fTk4ZrUQq1N1uWzxTWFKWDvBpOu_JHHscigQ-nyHE/s1600/21220o20sermao20da20montanha.jpg" imageanchor="1" style="clear:right; float:right; margin-left:1em; margin-bottom:1em"><img border="0" height="246" width="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhPHzepamklE7tCBAibSTMcnkbqxV52GQKMtfLzSR3PZWpXI9ehZBEmEpl7h3PAWHIUZ0ys7LKGot4VFID6OMce1lYgE-BZ5UbXW9fTk4ZrUQq1N1uWzxTWFKWDvBpOu_JHHscigQ-nyHE/s320/21220o20sermao20da20montanha.jpg" /></a></div><br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
SERMÃO DA MONTANHA - Versão para Professores(as) <br />
Sermão da Montanha - versão para professores<br />
<br />
Naquele tempo, Jesus subiu a um monte seguido pela multidão e, sentado sobre ma grande pedra, deixou que os seus discípulos e seguidores se aproximassem. Ele os preparava para serem os educadores capazes de transmitir a lição da Boa Nova a todos os homens. <br />
Tomando a palavra, disse-lhes:- “Em verdade, em verdade vos digo: Felizes os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Felizes os misericordiosos, porque eles...” <br />
<br />
Pedro o interrompeu:- Mestre, vamos ter que saber isso de cor?<br />
<br />
André disse:- É pra copiar no caderno?<br />
<br />
Filipe lamentou-se:- Esqueci meu papiro!<br />
<br />
Bartolomeu quis saber:- Vai cair na prova?<br />
<br />
João levantou a mão:- Posso ir ao banheiro?<br />
<br />
Judas Iscariotes resmungou:- O que é que a gente vai ganhar com isso?<br />
<br />
Judas Tadeu defendeu-se:- Foi o outro Judas que perguntou!<br />
<br />
Tomé questionou:- Tem uma fórmula pra provar que isso tá certo?<br />
<br />
Tiago Maior indagou:- Vai valer nota?<br />
<br />
Tiago Menor reclamou:- Não ouvi nada, com esse grandão na minha frente.<br />
<br />
Simão Zelote gritou, nervoso:- Mas porque é que não dá logo a resposta e pronto!?<br />
<br />
Mateus queixou-se:- Eu não entendi nada, ninguém entendeu nada!<br />
<br />
Um dos fariseus, que nunca tinha estado diante de uma multidão nem ensinado nada a ninguém, tomou a palavra e dirigiu-se a Jesus, dizendo:- Isso que o senhor está fazendo é uma aula? Onde está o seu plano de curso e a avaliação diagnóstica? Quais são os objetivos gerais e específicos? Quais são as suas estratégias para recuperação dos conhecimentos prévios?<br />
<br />
Caifás emendou:- Fez uma programação que inclua os temas transversais e atividades integradoras com outras disciplinas? E os espaços para incluir os parâmetros curriculares gerais? Elaborou os conteúdos conceituais, processuais e atitudinais?<br />
<br />
Pilatos, sentado lá no fundão, disse a Jesus:- Quero ver as avaliações da primeira, segunda e terceira etapas e reservo-me o direito de, ao final, aumentar as notas dos seus discípulos para que se cumpram as promessas do Imperador de um ensino de qualidade. Nem pensar em números e estatísticas que coloquem em dúvida a eficácia do nosso projeto.- E vê lá se não vai reprovar alguém! Lembre-se que você ainda não é professor titular...<br />
<br />
Jesus deu um suspiro profundo, pensou em ir à sinagoga e pedir aposentadoria proporcional aos trinta e três anos. Mas, tendo em vista o fator previdenciário e a regra dos 95, desistiu.<br />
Pensou em pegar um empréstimo consignado com Zaqueu, voltar pra Nazaré e montar uma padaria...<br />
Mas olhou de novo a multidão. Eram como ovelhas sem pastor... Seu coração de educador se enterneceu e Ele continuou:-“Felizes vocês, se forem desrespeitados e perseguidos, se disserem mentiras contra vocês por causa da Educação. Fiquem alegres e contentes, porque será grande a recompensa no céu. Do mesmo modo perseguiram outros educadores que vieram antes de vocês”.<br />
<br />
Tomé, sempre resmungão, reclamou:- Mas só no céu, Senhor?<br />
<br />
- Tem razão, Tomé - disse Jesus - há quem queira transformar minhas palavras em conformismo e alienação.. Eu lhes digo, NÃO! Não se acomodem. Não fiquem esperando, de braços cruzados, uma recompensa do além. É preciso construir o paraíso aqui e agora, para merecer o que vem depois...<br />
<br />
E Jesus concluiu:- Vocês, meus queridos educadores, são o sal da terra e a luz do mundo...PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-77845079986020639122011-06-10T09:44:00.001-07:002011-06-10T09:44:51.666-07:00FUNDAÇÃO DA CIÊNCIA (OBRAS COMPLETAS)Meus Escritos<br />
<br />
FUNDAÇÃO DA CIÊNCIA<br />
<br />
<br />
No princípio Tu formaste<br />
Os Céus, anjos Terra e mares.<br />
E por ordem Tu colocaste<br />
Tudo para seus lugares <br />
Oh meu Deus fizeste o mundo<br />
E tudo o seu procriar <br />
E sobre o abismo profundo<br />
Tu ficavas a flutuar <br />
Era a Terra tão vazia <br />
E não tinha alguma forma<br />
Fizeste com alegria <br />
Cada qual para a sua norma <br />
Estava, porém escuro. <br />
E Deus disse: Haja luz<br />
Estava muito seguro<br />
O primeiro dia eu propus <br />
As águas também separei<br />
As da Terra e as celestiais<br />
O segundo dia Eu consagrei<br />
Para todos os imortais. <br />
O terceiro dia já começou<br />
Ajuntei as águas num só lugar <br />
A parte seca se mostrou <br />
E de terra vou chamar <br />
As águas chamei de mares <br />
Eu dei ordem Para as terras<br />
Enchas em todos os lugares<br />
De árvores para as serras <br />
Faças todos frutos bons<br />
Frutas boas e deliciosas<br />
Tudo com sublimes dons <br />
Que tu fiques orgulhosa <br />
Eu fiz grandes luminares<br />
Para a Terra clarear<br />
O dia e a noite governares<br />
Para o Céu iluminar <br />
<br />
Também para o firmamento<br />
Eu fiz e não me arrependi<br />
Com grande contentamento<br />
Estrelas Eu pus ali <br />
Eu fiz tudo com cuidado<br />
E foi grande minha alegria<br />
Pois estava inspirado<br />
E acabou assim o quarto dia <br />
Quinto dia Já comecei<br />
Das águas criaram-se seres<br />
Peixes, aves, monstros criei.<br />
Pelos meus imensos poderes <br />
E Deus os abençoou e disse:<br />
Oh seres frutificai-vos<br />
E pelo amor da planície<br />
Enchais e multiplicai-vos <br />
Então me obedeça oh Terra.<br />
Tu faças almas viventes <br />
Domésticos e da serra<br />
Os selvagens e valentes <br />
Então fiz a melhor obra<br />
Não são anjos nem querubim <br />
Não é leão nem a cobra<br />
E Deus expressara assim <br />
O homem Nós o façamos<br />
Nossa imagem semelhança<br />
Feito Nós o modelamos<br />
Ele reine com confiança <br />
Macho e fêmea Eu vos criei<br />
Dominem sobre os animais<br />
Na Terra multipliqueis<br />
Sobre a mesma dominais. <br />
Tudo Eu vos entregareis<br />
Para o vosso mantimento<br />
Ervas verdes vós comereis<br />
Tudo como alimento <br />
E Deus viu que era mui bom<br />
Completou com alegria<br />
Colocou tudo a seu tom<br />
E terminou o sexto dia <br />
Assim enfim terminei<br />
O que havia planejado<br />
Sétimo dia consagrei<br />
Para todo o procriado. <br />
<br />
A MAIOR CRIAÇÃO <br />
<br />
Um boneco Deus formou<br />
O homem feito de pó<br />
Ele em suas narinas soprou<br />
Porém ele estava só <br />
Um jardim ali plantou <br />
Árvores em quantidades<br />
E de Édem Deus chamou<br />
A favor das divindades. <br />
Nesta terra tem muito ouro<br />
Tem diamantes e cristais<br />
Prata e cobre são tesouros<br />
Que no mundo não há iguais. <br />
<br />
Há árvore que dá a vista<br />
Da vida e do bem, do mal.<br />
Mas um grande vigarista<br />
Havia no lar celestial <br />
O Senhor Deus ordenou<br />
Ao homem disse assim <br />
Todas árvores lhe dou<br />
Só não a central do jardim <br />
Seu nome conhecimento<br />
Pois é do bem e do mal<br />
Cumpra o seu mandamento<br />
Se queres ser imortal <br />
Deus o pôs para dormir<br />
Uma costela lhe tirou<br />
A mulher vou produzir<br />
Auxiliadora chamou <br />
Disse: por isso deixará<br />
A sua mão também seu pai<br />
Com sua mulher se unirá<br />
E na terra trabalhai <br />
Assim não serão mais dois<br />
Pois um só corpo serão<br />
Grande perfeição vós sois<br />
Não aceiteis separação <br />
Porém a astuta serpente<br />
Chamou a mulher e a iludiu<br />
Serás angelicalmente<br />
Ao seu coração subiu <br />
A fruta a mulher provou<br />
Chamou também teu marido<br />
Ao provar depois notou<br />
Que eles estavam despidos <br />
Deus ao homem perguntou<br />
Por que vos esconderam?<br />
Pois o homem relatou.<br />
Esconderam-se, pois temeram. <br />
E o homem Deus falou<br />
Nus percebemos que estávamos<br />
E a gente se envergonhou<br />
E com isto nós chorávamos <br />
Quem falou que nus estavam<br />
Acaso a fruta comeste<br />
Calados continuavam<br />
Foi a mulher que tu me deste <br />
Adão para o Senhor disse.<br />
Deus falou para a mulher<br />
Por que fez esta tolice?<br />
A serpente me enganou <br />
Assim relatou a mulher<br />
E Deus disse a serpente:<br />
Porque fizeste o que bem quer<br />
Pagarás por tua tolice. <br />
E Deus disse para Adão<br />
Do trabalho comerá<br />
E a mulher dor de conceição<br />
Toda a vida sentirá <br />
E para a astuta serpente <br />
Comerás o pó da terra<br />
Brigarás eternamente<br />
Contra a mulher terás guerra <br />
E o Senhor os expulsou<br />
Do Édem eternamente<br />
E dois anjos colocou <br />
Guardando o divinalmente. <br />
<br />
DESTINO <br />
Era um menino<br />
Amigo mui fiel<br />
Desprezado na Terra <br />
Mas observado no Céu <br />
Seus irmãos são guerreiros<br />
Ele apenas pastor<br />
Um inimigo festeiro<br />
Contra o teu povo se levantou <br />
O gigante se levantou<br />
E contra o Senhor blasfemava<br />
Mas ele o Invocou<br />
Contra aquele que O insultava <br />
A terra obteve tremenda paz<br />
Quando o gigante caiu<br />
E no cantar veraz<br />
Diziam o povo: Ele matou dez mil <br />
Era um menino<br />
Que foi ungido por Samuel.<br />
De pastor de ovelhas <br />
A Rei de Israel. <br />
<br />
ENCHENTES (um soneto) <br />
<br />
O Senhor Deus muito se entristeceu <br />
Pois sua melhor criação o abandonou<br />
A maldade neste mundo cresceu<br />
À imagem de Deus por eles chorou <br />
Em Noé a aliança veio a florescer<br />
Pois a esperança por ele brilhou<br />
O Senhor lhe explicou o que aconteceu <br />
Pois no mundo só maldade restou <br />
Mandarei chuvas por quarenta dias <br />
E quarenta noites podem durar<br />
Serão dias de tremendas agonias<br />
Mas um dia isto tudo vai findar<br />
Em Noé virá de volta a alegria <br />
Com água o mundo não vai acabar. <br />
<br />
<br />
PAI DE TODOS (um soneto) <br />
<br />
Um homem o Senhor Deus convocou<br />
Tirando o do meio daquela irmandade <br />
De grande amigo o Senhor lhe chamou<br />
Queria que ele conhecesse a verdade <br />
Abrão escutou e nada interrogou<br />
E creu e ganhou credibilidade<br />
Por ter crido Deus seu nome trocou<br />
Chamando-lhe de amigo de verdade <br />
Abraão o primogênito dos patriarcas<br />
E em nele virá a celestial semente<br />
Pois dele sairá o grande monarca <br />
E consolar do mundo toda a gente <br />
E ele será a poderosa arca<br />
Paz haverá na Terra novamente. <br />
<br />
UMA EM CENTENAS (um soneto) <br />
O pecado para os Céus subiu<br />
E Deus para a Terra desceu<br />
A abominação ele enfim conferiu<br />
Uma grande cidade se perdeu <br />
A família justa dali partiu<br />
Pois o anjo lhe protegeu<br />
Uma mulher para trás olhou e viu<br />
E em estátua de sal faleceu <br />
Aquela cidade foi destruída<br />
Pois os anjos queriam conhecer<br />
Por isso pagaram com as suas vidas <br />
E deserto a cidade passou a ser<br />
Pois não há como curar as feridas<br />
Mas tudo tinha que acontecer. <br />
<br />
<br />
GANÂNCIA (um soneto) <br />
A religião sempre fora assim <br />
Enganado quem parte dela fizer<br />
Fazendo do povo o que bem quer<br />
Se disfarçando de querubim <br />
Fazendo se de rosa em jardim<br />
Espetando e machucando a quem puder<br />
Moço moça marido e mulher<br />
Enganando e cegando até o fim <br />
Mas tu pagarás todos os teus pecados <br />
Quando Cristo o nosso Senhor voltar<br />
Cobrarás teus servos escravizados <br />
Assim Jesus o Senhor vai falar <br />
Afastem de mim povos errados<br />
Teus pecados não irei perdoar <br />
<br />
<br />
DESILIUSÃO (um soneto) <br />
O amor pelo próximo acabou<br />
O seu próximo ninguém mais ama<br />
Vendo o fraco sempre o difama<br />
Mas decepção Jesus não deixou <br />
Pois foi ele quem nos amou<br />
Mas se é forte o povo reclama<br />
Virando a costa a quem nos chama<br />
Pois o verdadeiro amor se acabou <br />
É muito fácil falar mal <br />
Mais fácil ainda é a oração<br />
Pois livra do lugar infernal <br />
Por isto tu abras seu coração<br />
Para o lugar o santo e celestial <br />
Para fugires do grande mal, amem o teu irmão. <br />
<br />
<br />
A CARIDADE <br />
Ainda que eu falasse<br />
Dos homens e dos anjos a linguagens<br />
E o meu irmão não perdoasse<br />
Eu seria como selvagem <br />
Se u não tiver a caridade<br />
Seria como um ferro que soa <br />
Pois não amo de verdade<br />
E o meu caminhar será à toa <br />
Mesmo com o dom da profecia<br />
Dos mistérios e da ciência<br />
Muita fé sem paciência<br />
Sem caridade nada seria <br />
Ainda que aos pobres <br />
Entregasse o meu dinheiro <br />
E deixasse de ser nobre<br />
Ou queimassem o corpo inteiro <br />
De nada me adiantaria<br />
Se não tivesse a caridade<br />
Sem o amor de verdade<br />
Nada em mim se aproveitaria <br />
A caridade é sofredora<br />
Porém não é invejosa<br />
É uma grande batalhadora<br />
É benigna não é maldosa <br />
Ela não se porta com indecência<br />
Não se irrita não suspeita o mal<br />
Pois tenhamos paciência<br />
Para entrar no lar celestial <br />
Só folga com a verdade<br />
Tudo sofre crê e espera<br />
A vida assim!ah quem me dera<br />
Pois nunca falha a caridade <br />
Havendo profecias serão aniquiladas<br />
Havendo línguas todas cessarão<br />
As ciências serão anuladas<br />
Pois todas as coisas passarão <br />
Porque parte conhecemos<br />
E em parte é profetizada<br />
Mas quando vier o perfeito saberemos<br />
E o que é em parte será aniquilada <br />
Pois quando eu era menino<br />
Fazia coisa de criança<br />
Falava e pensava como pequenino<br />
Mas cresci e obtive mudança. <br />
Agora vejo como um espelho<br />
Mas logo o veremos como Ele é<br />
E assim ouviremos seus conselhos<br />
Compartilhando a mesma fé <br />
Agora assim tem permanecido<br />
A fé com esperança e caridade<br />
Mais há qual nos tem favorecido<br />
A caridade que é o amor de verdade.PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-44804084668267704802009-12-16T15:22:00.000-08:002009-12-16T15:34:47.113-08:00TRANSDISCIPLINARIDADE<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2s8ghBGDqjx_OAk5rr_wcuCr7NlTKLQ569ilWFTgnt-5z3TQgn9usnQvP5DoKM4BxymZeIjhdAvga8rDoeZcyrrAom0BDKHa-vkJb8f45SmMIRf99qj0-bkIrrBCB1AfPJVyGNwq1VNI/s1600-h/TRANS.jpg"><img style="float:left; margin:0 10px 10px 0;cursor:pointer; cursor:hand;width: 296px; height: 298px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh2s8ghBGDqjx_OAk5rr_wcuCr7NlTKLQ569ilWFTgnt-5z3TQgn9usnQvP5DoKM4BxymZeIjhdAvga8rDoeZcyrrAom0BDKHa-vkJb8f45SmMIRf99qj0-bkIrrBCB1AfPJVyGNwq1VNI/s320/TRANS.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5415980116664445442" /></a><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /> <br /><br /><br /><br />Transdisciplinaridade é uma abordagem científica que visa a unidade do conhecimento. Desta forma, procura articular uma nova compreensão da realidade articulando elementos que passam entre, além e através das disciplinas, numa busca de compreensão da complexidade.<br /><br />Índice <br />1 O que é? <br />2 Diferenças entre transdisciplinaridade e interdisciplinaridade <br />3 Instituções que estudam Transdisciplinaridade <br />4 Fontes Bibliográficas <br />5 Ver também <br />6 Ligações externas <br /> <br /><br /> O que é?<br />Termo originalmente criado por Piaget, que no I seminário Internacional sobre pluri e interdisciplinaridade, realizado na Universidade de Nice, também conhecido com Seminário de Nice, em 1970, divulgou pela primeira vez o termo, dando então início ao estudo sobre o mesmo, pedindo para que os participantes pensassem no assunto.<br /><br />Hoje, tendo o Centre International de Recherches et d`Études transdisciplinaires (CIRET) como um dos principais centros mundiais de estudos sobre os conceitos transdisciplinares, é um dos mais complexos, e por conseqüencia um dos mais estudados conceitos, onde ao mesmo tempo procura uma interação máxima entre as disciplinas porém respeitando suas individualidades, onde cada uma colabora para uma saber comum, o mais completo possível, sem transformá-las em uma única disciplina.<br /><br />E é na Carta da transdisciplinaridade, produzida pela UNESCO no I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade 1994, realizado em Arrábida, Portugal, com fundamental colaboração do CIRET, em que temos uma definição do conceito transdisciplinar:<br /><br />Artigo 3: "(...) a transdisciplinaridade não procura o domínio sobre várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa (...)" <br />Artigo 7: A transdisciplinaridade não constitui nem uma nova religião, nem uma nova filosofia, nem uma nova metafísica, nem uma ciência das ciências." <br />No âmbito acadêmico, já no século XX, com o intuito de unir o mundo " não universitário" ao universitário, cuja separação se dá primordialmente pela hiperespecialização profissional, com grande número de disciplinas que não acompanham todo o desenvolvimento, principalmente na área tecnológica, temos um aprofundamento na utilização deste conceito, visando formar profissionais cada vez mais completos, compatíveis com as exigências do mercado de trabalho que este futuro profissional encontrará.<br /><br />Assim tão complexo quanto os problemas que tenta solucionar, tem-se a transdisciplinaridade, que por ser tão sutil, ser a linha tênue que une e serve de limite entre o comprometimento e o individualismo de cada disciplina, que não possui uma definição exata, e ao mesmo tempo é um dos mais necessários conceitos quando tratamos de formação e educação.<br /><br />[editar] Diferenças entre transdisciplinaridade e interdisciplinaridade<br />A transdisciplinaridade não significa apenas que as disciplinas colaboram entre si, mas significa também que existe um pensamento organizador que ultrapassa as próprias disciplinas. É diferente de interdisciplinaridade, que exemplificando através de uma analogia, é basicamente como as nações unidas, que simplesmente une para discutir os problemas particulares de cada região. Nisto a transdisciplinaridade é mais integradora. Para haver essa dita transdisciplinaridade, é preciso haver um pensamento organizador, chamado pensamento complexo. Pela criação de um meta ponto de vista e não de um ponto de vista. O verdadeiro problema não é fazer uma adição de conhecimento, é organizar todo o conhecimento.<br /><br />[editar] Instituções que estudam Transdisciplinaridade<br />[[CETRANS - Centro de Educação Transdisciplinar [1]] <br />[editar] Fontes Bibliográficas<br />ALTHOFF, F.; FRAGA, D. Transdisciplinaridade em Basarab Nicolescu. In: SOUZA, I. M. L.; * <br />FOLLMANN, J. I. (Org.) Transdisciplinaridade e Universidade. São Leopoldo: UNISINOS, 2003. p.15-20. <br />ANTÔNIO, S. Educação e Transdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, 151p. <br />D’AMBRÓSIO, U. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena, 1997, 174p. <br />DOMINGUES, I. Introdução. In: DOMINGUES, I. (Org.). Conhecimento e Transdisciplinaridade. Belo Horizonte: UFMG/IEAT, 2001, 73p. <br />GALVANI, P. A autoformação, uma perspectiva transpessoal, transdisciplinar e transcultural. In: <br />SOMMERMAN, A.; MELLO, M. F.; BARROS, V. M. (Org.) Educação e Transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 2002. p.95-121. <br />MELLO, M. F.; BARROS, V. M.; SOMMERMAN, A. Introdução. In: SOMMERMAN, A.; MELLO, M. F.; BARROS, V. M. (Org.) Educação e Transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 2002. p.9-26. <br />NICOLESCU, B. Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo: Trion, 1999, 167p. <br />PAUL, P. A imaginação como objeto do conhecimento. In: SOMMERMAN, A.; MELLO, M. F.; BARROS, V. M. (Org.) Educação e Transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 2002. p.123-154. <br />PAULO, M. N. Indagação Sobre a Imortalidade da Alma em Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, 141p. <br />PERRENOUD, P. Dez novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artmed, 2000, 162p. <br />RANDOM, M. O território do olhar. In: SOMMERMAN, A.; MELLO, M. F.; BARROS, V. M. (Org.) Educação e Transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 2002. p.27-42. <br />ROCHA FILHO, JOÃO BERNARDES. Transdisciplinaridade: A Natureza Íntima da Educação Científica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007. <br />SILVA, E. M. P., E. Os caminhos da transdisciplinaridade. In: DOMINGUES, I. (Org.). Conhecimento e Transdisciplinaridade. Belo Horizonte: UFMG/IEAT, 2001, p.35-43. <br />SOETHE, J. R. Transdisciplinaridade e teoria da complexidade. In: SOUZA, I. M. L.; FOLLMANN, J. I. (Org.) Transdisciplinaridade e Universidade. São Leopoldo: UNISINOS, 2003. p.21-28. <br />SOMMERMAN, A. Inter ou Transdisciplinaridade? São Paulo: Paulus, 2006, 75p. <br />WEIL, P. Rumo à nova transdisciplinaridade. São Paulo: Summus, 1993, 175p.PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-47750509160584207062009-07-28T15:53:00.000-07:002010-02-07T06:03:18.810-08:00meus endereços<strong<a href="http://www.capociencia.blogspot.com">><a href="http://www.professorfluviosantos.blogspot.com/">www.professorfluviosantos.blogspot.com</a>
<br />e
<br />e um blog de filosofia ex religião e literatura e atualidades
<br /><a href="http://sabedoriatual.spaceblog.com.br/">http://sabedoriatual.spaceblog.com.br/</a>
<br />e
<br />sobre literatura e crítica literária
<br /><a href="http://literaturasofia.arteblog.com.br/">http://literaturasofia.arteblog.com.br/</a>
<br />link de literatura muito bom
<br /><a href="http://www.jayrus.art.br/">http://www.jayrus.art.br/</a>
<br />e meu antigo blog
<br /><a href="http://www.literaturateosofia.blogspot.com/">www.literaturateosofia.blogspot.com</a>
<br /><a href="http://www.yahlogia.blogspot.com/">www.yahlogia.blogspot.com</a>
<br />e
<br /><a href="http://www.hawardinglesa.blogspot.com/">www.hawardinglesa.blogspot.com</a>
<br />e
<br /><a href="http://www.befunky.com/">http://www.befunky.com/</a>
<br />para aqueles que querem enviar telemensagem eis um link meu
<br /><a href="http://www.clubesdv.com/fluvioeligia/">http://www.clubesdv.com/fluvioeligia/</a>
<br />
<br /><a href="http://recantodasletras.uol.com.br/autor_textos.php?id=51648">http://recantodasletras.uol.com.br/autor_textos.php?id</strong></a>=51648<a
<br />href="http://</a>www.capociencia.blogspot.com"></a>PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-17171189870252919012009-06-08T05:07:00.000-07:002009-06-11T07:27:10.086-07:00CRITICA LITERÁRIA<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjilivSNVBHgEx1Xiz7OL_O97duse9EELXdETHJRh2tH11_1wgYKtPQCli49J1NI6zrubZ5akiDWFd2OGiWBy0YpV5dDF6oGfSvAAdccQ62866CradeCtmFUcA-ffoQe4qnupGBznoapKk/s1600-h/toravodrimo.jpg"><img style="float:left; margin:0 10px 10px 0;cursor:pointer; cursor:hand;width: 230px; height: 320px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjilivSNVBHgEx1Xiz7OL_O97duse9EELXdETHJRh2tH11_1wgYKtPQCli49J1NI6zrubZ5akiDWFd2OGiWBy0YpV5dDF6oGfSvAAdccQ62866CradeCtmFUcA-ffoQe4qnupGBznoapKk/s320/toravodrimo.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5346073330011756946" /></a><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />TROVADORES MEDIEVAIS - ORIGEM DA TROVA<br /><br /><br /><br />Pesquisa de Clério Borges <br />1 - Introdução <br /><br />2 – Surgimento do Trovadorismo <br /><br />3 – Poetas e Músicos <br /><br />4 – Conceito de Trova <br /><br />5 – Primeiras Manifestações <br /><br />6 – Trovadores Provençais <br /><br />7 – Gêneros Satírico e Lírico <br /><br />8 – Os Cancioneiros Manuscritos. <br /><br />Cantigas de Escárnio <br /><br />Cantigas de Maldizer <br /><br />9 - As Novelas de Cavalaria As Novelas dão origem as Cantorias de Viola dos Dias atuais<br /><br />10 - Expansão do Trovadorismo <br /><br />11 - Primeiros Trovadores <br /><br />12 - Trovismo e Neotrovismo <br /><br />13 - Entidades de Trovadores no Brasil Atual <br /><br />14 -CLUBE DOS TROVADORES CAPIXABAS (CTC) <br /><br />15 - DIRETORIAS DO CTC <br /><br />16 - CTC NA INTERNET E NO BRASIL <br /><br />17 - Bibliografia: <br /><br /><br /><br />1 - Introdução<br /><br />O surgimento da Trova está intimamente ligado à poesia da Idade Média. Durante a Idade Média, Trova era o sinônimo de poema e letra de música. Hoje a Trova possui a sua conceituação própria, diferenciando da Quadra e da Poesia de Cordel, e do Poema musicado da Idade Média. <br /><br />Trovadorismo foi a primeira escola literária portuguesa. Esse movimento literário compreende o período que vai, aproximadamente do século XII ao século XIV. <br /><br /><br />2 – Surgimento do Trovadorismo<br /><br />A partir desse século, Portugal começava a afirmar-se como reino independente, embora ainda mantivesse laços econômicos, sociais e culturais com o restante da Península Ibérica. Desses laços surgiu, próximo à Galícia (região ao norte do rio Douro), uma língua particular, de traços próprios, chamada galego-português. A produção literária dessa época foi feita nesta variação lingüística. <br /><br />A cultura trovadoresca refletia bem o panorama histórico desse período: as Cruzadas, a luta contra os mouros, o feudalismo, o poder espiritual do clero. <br /><br />O período histórico em que surgiu o Trovadorismo foi marcado por um sistema econômico e político chamado Feudalismo, que consistia numa hierarquia rígida entre senhores: um deles, o suserano, fazia a concessão de uma terra (feudo) a outro indivíduo, o vassalo. O suserano, no regime feudal, prometia proteção ao vassalo como recompensa por certos serviços prestados. <br /><br />Essa relação de dependência entre suserano e vassalo era chamada de vassalagem.<br /><br />Assim, o senhor feudal ou suserano era quem detinha o poder, fazendo a concessão de uma porção de terra a um vassalo, encarregado de cultivá-la.<br /><br />Além da nobreza (classe que pertenciam os suseranos) e a classe dos vassalos ou servos, havia ainda uma outra classe social: o clero. Nessa época, o poder da Igreja era bastante forte, visto que o clero possuía grandes extensões de terras, além de dedicar-se também à política. <br /><br />Os conventos eram verdadeiros centros difusores da cultura medieval, pois era neles que se escolhiam os textos filosóficos a serem divulgados, em função da moral cristã. <br /><br />A religiosidade foi um aspecto marcante da cultura medieval portuguesa. A vida do povo lusitano estava voltada para os valores espirituais e a salvação da alma. Nessa época, eram freqüentes as procissões, além das próprias Cruzadas - expedições realizadas durante a Idade Média, que tinham como principal objetivo a libertação dos lugares santos, situados na Palestina e venerados pelos cristãos. Essa época foi caracterizada por uma visão teocêntrica (Deus como o centro do Universo). Até mesmo as artes tiveram como tema motivos religiosos. Tanto a pintura quanto a escultura procuravam retratar cenas da vida de santos ou episódios bíblicos.<br /><br />Quanto à arquitetura, o estilo gótico é o que predominava, através da construção de catedrais enormes e imponentes, projetadas para o alto, à semelhança de mãos em prece tentando tocar o céu. <br /><br /><br />3 – Poetas e Músicos<br /><br />Na literatura, desenvolveu-se em Portugal um movimento poético chamado Trovadorismo. Os poemas produzidos nessa época eram feitos para serem cantados por poetas e músicos. (Trovadores - poetas que compunham a letra e a música de canções. Em geral uma pessoa culta - Menestréis - músicos-poetas sedentários; viviam na casa de um fidalgo, enquanto o jogral andava de terra em terra - , Jograis - cantores e tangedores ambulantes, geralmente de origem plebéia - e Segréis - trovadores profissionais, fidalgos desqualificados que iam de corte em corte, acompanhados por um jogral) Recebiam o nome de cantigas, porque eram acompanhados por instrumentos de corda e sopro. Mais tarde, essas cantigas foram reunidas em Cancioneiros: o da Ajuda, o da Biblioteca Nacional e o da Vaticana. <br /><br /><br />4 – Conceito de Trova<br /><br />Conhece-se Trovas escritas nas línguas derivadas do Latim situadas na Península Ibérica, a saber: Português, Galego, Espanhol e Catalão, nos séculos X e XI. A Trova teria surgido junto com o alvorecer das línguas derivadas do Latim, as chamadas línguas romances. <br /><br />A Trova possui o seu conceito plenamente estabelecido: é o poema de quatro versos setissílabos com rima e sentido completo. Já Quadra é toda estrofe formada por quatro linhas de uma poesia. <br /><br />Assim, não é verdade que Quadra e Trova sejam a mesma coisa e que a Trova evoca mais os Trovadores da Provença Medieval e que a Quadra seria uma forma de se fazer poesia mais moderna. A Quadra pode ser feita sem métrica e com versos brancos, sem rima. Aí então será só uma quadra sem ser a Trova que obrigatoriamente terá que ser metrificada. Trova, nos dias atuais, é cultuada como Obra de Arte, como Literatura. <br /><br />A origem da Poesia Trovadoresca Medieval (que não pode ser confundida com a trova-quadra moderna nem a daqueles tempos recuados) perde-se no tempo, contudo foi a criação literária que mais destaque alcançou entre as formas poéticas medievais, originárias de Provença, Sul da França. <br /><br />Expandiu-se no século XII por grande parte da Europa e floresceu por quase duzentos anos em Portugal, França e Alemanha. <br /><br />O Trovador Medieval representava a glorificação do amor platônico, pois a dama que era a criatura mais nobre e respeitável da criação, a mulher ideal, inacessível para alguns, passava a ser a pessoa a quem o referido Trovador endereçava os seus líricos versos. <br /><br />Os primeiros Trovadores Modernos a fazerem Trovas sistematicamente para publicação, surgiram no século passado em Espanha e Portugal, na esteira dos folcloristas que as recolhiam em meio ao povo. <br /><br /><br />5 – Primeiras Manifestações<br /><br />Sobre a gênese da Trova Medieval, por falta de documentos sobre o folclore na Idade Média, os historiadores consideram a mesma imprecisa. Não há dados concretos que estabeleçam a época certa do surgimento da Trova Medieval. O que se tem registrado é que, entre 1.100 e 1.300, escritos de autores Espanhóis e Portugueses utilizavam, como recurso auxiliar, composições poéticas hoje reconhecidas como formas das primeiras manifestações "trovadorescas (ou seja, da trova medieval -- que é sinônimo, hoje, de poesia metrificada. Não se pode confundir com trovistas -- que trata da trova-quadra, a nossa quadra)" de que se tem conhecimento. <br /><br />No século XI, com o início da reconquista cristã da Península Ibérica, o galego-português consolida-se como língua falada e escrita da Lusitânia. Os árabes são expulsos para o sul da península, onde surgem os dialetos moçárabes, a partir do contato do árabe com o latim. Em galego-português são escritos os primeiros documentos oficiais e textos literários não latinos da região, como os cancioneiros (coletâneas de poemas medievais), surgindo os Trovadores Medievais.<br /><br />TROVADORISMO – Foi um movimento poético propulsor de todo o lirismo medieval. Seu grande impulsor foi o duque de Aquitânia e conde de Poitier, Guilherme (1071-1127). Guilherme de Aquitânia gostava de compor cantigas e poemas, até então reservado apenas aos jograis e menestréis.<br /><br />TROVADOR – É uma palavra da língua d’ oc, acusativo singular de "trobaire" (poeta), proveniente do verbo trobar (inventar, achar).<br /><br />Entre 1 200 a 1240 existem cerca de 400 trovadores provençais, cuja obra era reunida em Cancioneiros manuscritos (chansoniers) e cujas biografias foram publicadas por Uc de Saint Circ.<br /><br /><br />6 – Trovadores Provençais<br /><br />Todo o século XII é domínio absoluto do trovadorismo provençal. O nome provençal vem de Provença, cidade da França onde os reis e nobres começaram a cultivar o lirismo, antes apenas reservados aos jograis. Leonor, neta de Guilherme de Aquitânia divulga o gosto pela poesia e em sua corte de Toulouse divulga e incentiva os trovadores, surgindo os troveiros.<br /><br />A influência dos Trovadores Provençais foi bem extensa. Na Itália deu origem aos Trovatori, de onde saíram Dante, autor da Divina Comédia e Petrarca e até o patrono dos modernos trovadores brasileiros, São Francisco de Assis.<br /><br />O grande rei Ricardo Coração de Leão, famoso pela história de Robin Hood, era filho de Leonor de Aquitânia e através de sua mãe aprendeu a ser amigo dos trovadores provençais.<br /><br />Na Península Ibérica (Portugal e Espanha) o reis se orgulhavam da condição de Trovador. Afonso II de Aragão (1126 – 1196), considerava-se o primeiro trovador da Catalunha.<br /><br />No século XIII e parte do século XIV, surgem na Península Ibérica, os trovadores galeco-portugueses. <br /><br />Antes existiam os duelos a cavalos, homens se guerreavam às vezes até a morte, para obterem o amor de uma dama da corte. Para substituir o sangrento espetáculo, os jovens passaram ao duelo poético declamando Trovas. Os que não tivessem o dom poético, simplesmente pagavam um poeta trovador para as disputas que ocorriam e assim o vencedor podia galantear a dama mais bonita da corte.<br /><br /><br />7 – Gêneros Satírico e Lírico<br /><br />A produção poética medieval portuguesa pode ser agrupada em dois gêneros: <br /><br />1 - Gênero satírico: em que o objetivo é criticar alguém, ridicularizando esta pessoa de forma sutil ou grosseira; a este gênero pertencem as cantigas de escárnio e as cantigas de maldizer. <br /><br />São composições que expressam melhor a psicologia do tempo, onde vêm á tona assuntos que despertam grandes comentários na época, nas relações sociais dos trovadores; são sátiras que atingem a vida social e política da época, sempre num tom de irreverência; são sátiras de grande riqueza, uma vez que se apresentam num considerável vocabulário, observando-se, muitas vezes o uso de trocadilhos; fogem às normas rígidas das cantigas de amor e oferecem novos recursos poéticos. <br /><br />Os principais temas das cantigas satíricas são: a fuga dos cavaleiros da guerra, traições, as chacotas e deboches, escândalos das amas e tecedeiras, pederastia (homossexualismo) e pedofilia (relações sexuais com crianças), adultério e amores interesseiros e ilícitos.<br /><br />Obs: Tanto nas cantigas de escárnio quanto nas de maldizer, pode ocorrer diálogo. Quando isso acontece, a cantiga é denominada tensão (ou tenção). Pode mostrar a conversa entre a mãe a moça, uma moça e uma amiga, a moça e a natureza, ou ainda, a discussão entre um trovador e um jogral, ambos tentando provar que são mais competentes em sua arte. <br /><br />2 - Gênero lírico: em que o amor é a temática constante, são as cantigas de amor e as cantigas de amigo.<br /><br />A canção da Ribeirinha, de Paio Soares de Taveirós é considerada o mais antigo texto escrito em galego-português: 1189 ou 1198, portanto fins do século XII. Segundo consta, esta cantiga teria sido inspirada por D. Maria Pais Ribeiro, a Ribeirinha, mulher muito cobiçada e que se tornou amante de D. Sancho, o segundo rei de Portugal. )<br /><br />"No mundo ninguém se assemelha a mim / enquanto a minha vida continuar como vai / porque morro por ti e ai / minha senhora de pele alva e faces rosadas, / quereis que eu vos descreva (retrate) / quanto eu vos vi sem manto (saia : roupa íntima) / Maldito dia! me levantei / que não vos vi feia (ou seja, viu a mais bela)." <br /><br />Cantigas de amor<br /><br />Nesta cantiga o eu-lírico é masculino e o autor é geralmente de boa condição social. É uma cantiga mais "palaciana", desenvolve-se em cortes e palácios. <br /><br />O nome da mulher amada vem oculto por força das regras de mesura (boa educação extrema) ou para não compromete-la (geralmente, nas cantigas de amor o eu-lírico é um amante de uma classe social inferior à da dama). <br /><br />A beleza da dama enlouquece o trovador e a falta de correspondência gera a perda do apetite, a insônia e o tormento de amor. Além disso, a coita amorosa (dor de amor) pode fazer enlouquecer e mesmo matar o enamorado. <br /><br /><br />8 – Os Cancioneiros Manuscritos.<br /><br />a) Cancioneiro da Ajuda <br /><br />Copiado (na época ainda não havia imprensa) em Portugal em fins do século XIII ou princípios do século XIV. Encontra-se na Biblioteca da Ajuda, em Lisboa. Das suas 310 cantigas, quase todas são de amor. <br /><br />b) Cantigas de amigo<br /><br />As cantigas de amigo apresentam eu-lirico feminino, embora o autor seja um homem. Procuram mostrar a mulher dialogando com sua mãe, com uma amiga ou com a natureza, sempre preocupada com seu amigo (namorado). Ou ainda, o amigo é o destinatário do texto, como se a mulher desejasse fazer-lhe confidências de seu amor. (Mas nunca diretamente a ele. O texto é dialogado com a natureza, como se o namorado estivesse por perto, a ouvir as juras de amor). Geralmente destinam-se ao canto e a dança. <br /><br />A linguagem, comparando-se às cantigas de amor é mais simples e menos musical pois as cantigas de amigo não se ambientam em palácios e sim em lugares mais simples e cotidianos. <br /><br />Conforme a maneira como o assunto é tratado, e conforme o cenário onde se dá o encontro amoroso, as cantigas de amigo recebem denominações especiais<br /><br />c) Cancioneiro da Vaticana - Trata-se do códice 4.803 da biblioteca Vaticana, copiado na Itália em fins do século XV ou princípios do século XVI. Entre as suas 1.205 cantigas, há composições de todos os gêneros. <br /><br />d) Cancioneiro Colocci-Brancutti - Copiado na Itália em fins do século XV ou princípios do século XVI. Descoberto em 1878 na biblioteca do conde Paulo Brancutti do Cagli, em Ancona, foi adquirido pela Biblioteca Nacional de Lisboa, onde se encontra desde 1924. Entre as suas 1.664 cantigas, há composições de todos os gêneros.<br /><br />e) Cancioneiros de Escárnio e Maldizer, que são cantigas elaborados como forma de menosprezar e criticar o oponente, muito usados para críticas aos administradores (políticos) da época medieval.<br /><br />Cantigas de Escárnio <br /><br />Apresentam críticas sutis e bem-humoradas sobre uma pessoa que, sem ter nome citado, é facilmente reconhecível pelos demais elementos da sociedade. <br /><br />Cantigas de Maldizer<br /><br />Neste tipo de cantiga é feita uma crítica pesada, com intenção de ofender a pessoa ridicularizada. Há o uso de palavras grosseiras (palavrões, inclusive) e cita-se o nome ou o cargo da pessoa sobre quem se faz a sátira:<br /><br />Maria Peres se mãefestou (confessou) / noutro dia, ca por pecador (pois pecadora) / se sentiu, e log' a Nostro Senhor / prometeu, pelo mal em que andou, / que tevess' um clérig' a seu poder, (um clérigo em seu poder) / polos pecados que lhi faz fazer / o demo, com que x'ela sempr'andou. (O demônio, com quem sempre andou) <br /><br /><br />9 - As novelas de cavalaria <br /><br />Nem só de poesia viveu o Trovadorismo. Também floresceu um tipo de prosa ficcional, as novelas de cavalaria, originárias das canções de gesta francesas (narrativas de assuntos guerreiros), onde havia sempre a presença de heróis cavaleiros que passavam por situações preciosíssimas para defender o bem e vencer o mal. <br /><br />Sobressai nas novelas a presença do cavaleiro medieval, concebido segundo os padrões da Igreja Católica (por quem luta): ele é casto, fiel, dedicado, disposto a qualquer sacrifício para defender a honra cristã. Esta concepção de cavaleiro medieval opunha-se à do cavaleiro da corte, geralmente sedutor e envolvido em amores ilícitos. A origem do cavaleiro-herói das novelas é feudal e nos remete às Cruzadas: ele está diretamente envolvido na luta em defesa da Europa Ocidental contra sarracenos, eslavos, magiares e dinamarqueses, inimigos da cristandade.<br /><br />As novelas de cavalaria estão divididas em três ciclos e se classificam pelo tipo de herói que apresentam. Assim, as que apresentam heróis da mitologia greco-romana são do ciclo Clássico (novelas que narram a guerra de Tróia, as aventuras de Alexandre, o grande); as que apresentam o Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda pertencem ao ciclo Arturiano ou Bretão (A Demanda do Santo Graal); as que apresentam o rei Carlos Magno e os doze pares de França são do ciclo Carolíngeo (a história de Carlos Magno). <br /><br />Geralmente, as novelas de cavalaria não apresentam uma autoria. Elas circulavam pela Europa como verdadeira propaganda das Cruzadas, para estimular a fé cristã e angariar o apoio das populações ao movimento. As novelas eram tidas em alto apreço e foi muito grande a sua influência sobre os hábitos e os costumes da população da época. As novelas Amandis de Gaula e A Demanda do Santo Graal foram as histórias mais populares que circulavam entre os portugueses. <br /><br /><br />10 - Expansão do Trovadorismo<br /><br />À medida em que os cristãos avançam para o sul, os dialetos do norte interagem com os dialetos moçárabes do sul, começando o processo de diferenciação do português em relação ao galego-português. A separação entre o galego e o português se iniciará com a independência de Portugal (1185) e se consolidará com a expulsão dos mouros em 1249 e com a derrota em 1385 dos castelhanos que tentaram anexar o país. No século XIV surge a prosa literária em português, com a Crónica Geral de Espanha (1344) e o Livro de Linhagens, de dom Pedro, conde de Barcelona.<br /><br />Entre os séculos XIV e XVI, com a construção do império português de ultramar, a língua portuguesa faz-se presente em várias regiões da Ásia, África e América, sofrendo influências locais (presentes na língua atual em termos como jangada, de origem malaia, e chá, de origem chinesa). Com o Renascimento, aumenta o número de italianismos e palavras eruditas de derivação grega, tornando o português mais complexo e maleável. O fim desse período de consolidação da língua (ou de utilização do português arcaico) é marcado pela publicação do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, em 1516.<br /><br />A Trova que passou a pontilhar na Literatura de Espanha e Portugal, propagou-se pelos países surgidos das conquistas dessas potências marítimas, chegando pois à América Latina e ao Brasil. <br /><br /><br />11 - Primeiros Trovadores<br /><br />Os primeiros Trovadores, com produção regular para publicação, apareceram em Portugal e Espanha, no Século XIX, criando Trovas "popularizáveis" que muito se assemelham às populares. <br /><br />Segundo os historiadores, o Português Antônio Correia de Oliveira publica, no início do século, dois livros de versos em língua lusitana. <br /><br />Antônio Correia de Oliveira, que pela qualidade de sua obra e pela edição dos dois primeiros livros de Trovas na Língua Portuguesa, é considerado um dos primeiros grandes Trovadores Literários, ou seja, Trovador que organiza e publica suas Trovas. <br /><br />É de sua autoria esta Trova publicada em 1900: <br /><br />Sino, coração da aldeia, <br /><br />coração, sino da gente. <br /><br />Um a sentir quando bate, <br /><br />outro a bater quando sente.<br /><br />A verdade é que o período folclórico da Trova sempre se revitalizará enquanto existirem propagadores do ato do recitar nas festas em família e das brincadeiras de roda. <br /><br />Há de se considerar, também, acontecimentos como a extraordinária popularidade da Trova, que contrariamente ao esperado, constitui-se num fator que alguns consideram negativo para o seu real aproveitamento na Literatura, uma vez que, antigamente, o que vinha do povo era rejeitado pela nobreza, que manipulava a elite intelectual da época. <br /><br />Ainda hoje, alguns homens de letras, que, privados de sensibilidade poética, se recusam a reconhecer o valor da Trova, a consideram coisa "cafona", indigna de um verdadeiro intelectual. Uma ojeriza de uma "pseudo-elite" minoritária. <br /><br />Segundo Elmo Elton, eleito em 1980, Rei dos Trovadores Capixabas não é fácil escrever Trovas, "visto que apenas os inclinados para o exercício desse gênero poético sabem como bem realizá-las dentro das normas exigidas à sua correta feitura, já que, caso contrário, tão somente conseguem o que é comum, enfileirar quatro versos sem aquelas características essenciais que conseguem consagrar uma Trova." <br /><br />Vale aqui lembrar a Trova do Rei dos Trovadores Brasileiros, Adelmar Tavares, que era Acadêmico da Academia Brasileira de Letras: <br /><br />Ó linda trova perfeita, <br /><br />que nos dá tanto prazer, <br /><br />tão fácil, - depois de feita, <br /><br />tão difícil de fazer.<br /><br /><br />12 - Trovismo e Neotrovismo <br /><br />NEOTROVISMO é o Movimento Literário que surge no Brasil, com a criação do Clube dos Trovadores Capixabas, CTC, em Vila Velha, Vitória, Espírito Santo. Hoje são realizados, desde 1980, os famosos Seminários Nacionais, com presenças de Trovadores do Brasil e Exterior. O Neotrovismo é um Movimento Cultural de divulgação da Trova.<br /><br />O Trovismo nasceu em 1950 e segundo os estudiosos, em 1970, começou a decadência, resumindo-se em algumas atividades de algumas seções da UBT e algumas reuniões da Academia Brasileira da Trova.<br /><br />Já o NEOTROVISMO foi fundado em 1980, como forma de dar um novo ânimo ao Movimento dos Trovadores no Brasil.<br /><br />Livros são publicados. Congressos são realizados. São divulgadas Trovas na Internet. Um Movimento nascido no Espírito Santo e cultuado por aqueles que apreciam a TROVA, a boa Trova, aquela cuja definição é : <br /><br />Neotrovismo é novo movimento em torno da Trova no Brasil iniciado com a fundação do Clube dos Trovadores Capixabas - CTC no Estado do Espirito Santo a 1º de Julho de 1980. <br /><br />Trovismo é um movimento genuinamente Brasileiro, segundo o escritor Eno Theodoro Wanke. A partícula NEO, significa NOVO assim NEOTROVISMO é o novo movimento em torno da Trova no Brasil. <br /><br />O Fundador do Neotrovismo é o escritor Capixaba e Canela-Verde, Clério José Borges, Presidente do Clube dos Trovadores Capixabas. <br /><br />A Trova é um composição poética de 4 versos com rima e sentido completo. Trovador é aquele que faz a Trova como obra de arte, como literatura. <br /><br />No Livro "Que é Trova?" de Eno Teodoro Wanke, consta o seguinte: <br /><br />"Em 1980, devido a um conselho meu, mais ou menos casual, Clério José Borges funda no Espirito Santo o Clube dos Trovadores Capixabas (CTC), cuja contribuição fundamental ao Trovismo é a realização anual e regular dos Seminários Nacionais da Trova, o primeiro que aconteceu em 1981, para comemorar o primeiro aniversário do CTC. <br /><br />Muitos resultados benéficos já colhemos dessa troca de idéias. Assuntos importantes têm sido ventilados, debatidos e incorporados ao movimento. Os Trovadores têm trazido suas experiências pessoais em plenário - ensinam e aprendem. <br /><br />Em 1982, por exemplo, foi sugerido por Rodolfo Coelho Cavalcante - e aprovada pelo plenário, a Fundação de uma Federação de Clubes de Trovas. Como resultado, 1983 foi Fundada a Federação Brasileira de Entidades Trovistas - FEBET. Nasceu a FEBET, principalmente, tentando estimular a publicação de Trovas e o ingresso de novos trovadores no movimento. Isso sem prejuízo dos concursos de Trovas - que também considera importantes, claro. <br /><br />Diversas coletâneas têm surgido, graças aos esforços de alguns abnegados organizadores (Laís Costa Velho, Antônio Soares, Santa Ineze da Rocha, Clério Borges, Arthur Francisco Batista, Clodoaldo de Abreu Filho, Maria de Fátima M. Brasil, etc...) <br /><br />13 - Entidades de Trovadores no Brasil Atual<br /><br />1 - CTC<br /><br />O CLUBE DOS TROVADORES CAPIXABAS, CTC, é uma entidade cultural, sem fins lucrativos de divulgação da Trova e da Poesia. Foi fundado a 1º de Julho de 1980, por Clério José Borges, Luiz Carlos Braga Ribeiro e José Borges Ribeiro Filho, no Espírito Santo, com base numa idéia do Escritor Eno Theodoro Wanke. <br /><br />O CTC possui o título de Utilidade Pública Estadual (Lei José Carlos Gratz) e Municipal na Serra, (Lei Márcia Lamas). O CTC possui mais de 300 sócios em atividade, no Estado e mais de 1300 sócios correspondentes no Brasil e Exterior (Portugal; Argentina, Jorge Piñero Marques; Estados Unidos, etc...). É uma das entidades culturais que mais promove no Brasil. <br /><br />Anualmente o CTC, realiza os Seminários Nacionais da Trova no Espírito Santo, desde 1981. O CTC já organizou também eventos em outros Estados. Dois Congressos de Trovadores foram realizados em São Paulo, com Marília Martins e Inês Catelli; Um Congresso, em Salvador, Bahia, com Luciano Jatobá e um Congresso de Trovadores, no Rio de Janeiro, na SUAM, com o Prof. José Maria de Souza Dantas. Mais informações sobre o Clube dos Trovadores Capixabas, CTC, no item 14.<br /><br />2 - FEBET <br /><br />A Federação Brasileira de Entidades Trovistas, FEBET é a maior e mais bem organizada entidade de Poetas Trovadores do Brasil. Congrega Poetas, Editores de Informativos Culturais e muitos, muitos Trovadores. Foi fundada em 1983, em Vila Velha, Espírito Santo e sua Sede Nacional é no Rio de Janeiro. Nos dois primeiros anos de fundação foram Cadastrados mais de 2.000 sócios. A Febet surgiu de uma idéia nascida no 1º (1981) e no 2º (1982) Seminários Nacionais da Trova, realizado no Estado do Espírito Santo, Brasil. Houve uma consulta a mais de 5.000 poetas em todo o Brasil e, em 1983, a FEBET foi oficialmente fundada. A entidade foi organizada pelo Trovólogo, Eno Theodoro Wanke e contou com o apoio imediato de Rodolfo Coelho Cavalcante, da Bahia e Clério José Borges, do Espírito Santo. <br /><br />3 - UBT <br /><br />A União Brasileira de Trovadores é uma entidade cultural que possui seções em vários Estados Brasileiros. Foi fundada por Luiz Otávio, no Rio de Janeiro, em Janeiro de 1967. A UBT surgiu de uma cisão, ou seja, um descontentamento. Luiz Otávio e um grupo de trovadores do Sul e Sudeste do Brasil não concordavam em estarem juntos aos Repentistas e Cordelistas do Nordeste, no Grêmio Brasileiro de Trovadores, o GBT, fundado em Salvador, Bahia, a 8 de Janeiro de 1958, pelo Trovador Rodolfo Coelho Cavalcante. Em Janeiro de 1967, Luiz Otávio desliga-se do GBT e aproveitando as seções do GBT já criadas no Sul e Sudeste, funda a UBT, com sede no Rio de Janeiro e seções em várias cidades brasileiras.<br /><br />Na vida quem se projeta, <br /><br />seja a profissão qual for <br /><br />sempre aparece um pateta <br /><br />para tirar seu valor. <br /><br />Rodolfo Coelho Cavalcante.<br /><br />4 - ABT<br /><br />A Academia Brasileira da Trova é um entidade cultural com sede no Rio de Janeiro. <br /><br />Foi fundada por Álvaro Farias; Symaco da Costa; Félix Aires, Onildo de Campos, entre outros, em 26 de Dezembro de 1960.<br /><br />Há tanto burro mandando <br /><br />em homens de inteligência <br /><br />que, às vezes, fico pensando <br /><br />que burrice é uma ciência. <br /><br />Symaco da Costa. <br /><br />A Academia Brasileira da Trova é uma entidade de destaque e bastante atuante no Rio de Janeiro. <br /><br /><br />14 -CLUBE DOS TROVADORES CAPIXABAS (CTC)<br /><br />Dentre as entidades culturais do Município da Serra, destaca-se o Clube dos Trovadores Capixabas, CTC, entidade de divulgação da Trova e dos Poetas Trovadores, sem fins lucrativos e que funciona com sede provisória na rua dos Pombos, 2 - Eurico Salles - Carapina - Serra - ES.<br /><br />O CTC foi fundado, com base numa idéia do escritor Eno Teodoro Wanke, a 1º de julho de 1980 destacando-se no cenário cultural Brasileiro pela realização anual dos Seminários Nacionais da Trova no mês de Julho, quando convergem para o Espírito Santo poetas trovadores de vários Estados brasileiros.<br /><br />Trova é uma composição literária de quatro versos de sete sílabas poéticas cada com rima e sentido completo.<br /><br />Trovador é aquele que faz a Trova como obra de arte, como literatura.<br /><br />O CTC é uma entidade de Utilidade Pública Municipal na Serra, graças a iniciativa da Vereadora Márcia Lamas. O título foi aprovado por unanimidade e se transformou na Lei Municipal N.º 1.563/91, sancionada pelo Prefeito Adalton Martinelli.<br /><br />O CTC possui também o título de Utilidade Pública Estadual aprovado, por unanimidade, pela Assembléia Legislativa Estadual e lei sancionada pelo Governador do Estado, Albuíno Cunha de Azeredo em 20 de setembro de 1991. Lei N.º 4.554 de autoria do Deputado Estadual José Carlos Gratz.<br /><br />Oficialmente os fundadores do CTC são: Clério José Borges; José Borges Ribeiro Filho e Luiz Carlos Braga Ribeiro.<br /><br />Graças a iniciativa do CTC existem hoje Praças dos Trovadores em Cariacica, Vila Velha e Vitória e o presidente e sócios do CTC são regularmente convidados a participar e realizar palestras nas cidades de Porto Velho, Rondônia; Porto Alegre-RS; Rio de Janeiro; São Paulo; Brasília-DF; Salvador-BA; Recife-PE; Petrópolis-RJ; Campos-RJ; Maringá-PR; Timóteo-MG; Magé-RJ; Olinda-PE e Nova Prata - RS.<br /><br /><br />15 - DIRETORIAS DO CTC <br /><br /><br />DE 1º DE JULHO DE 1996 A 1º DE JULHO DE 1999:<br /><br />Presidente: Clério José Borges de Sant’Anna; <br /><br />Vice-Presidente: Tereza Vitória Monteiro; <br /><br />Secretário-Geral: Zitomar Rosa de Oliveira; <br /><br />1º Secretário: Rosilene Rodrigues de Almeida; <br /><br />Bibliotecária: Zenaide Emília Thomes Borges; <br /><br />Tesoureiro Geral: Valdemir Ribeiro de Azeredo; <br /><br />1º Tesoureiro: Adir Ribeiro.<br /><br /><br />DE 1º DE JULHO DE 1999 A 1º DE JULHO DE 2.002:<br /><br />Presidente: Clério José Borges de Sant’Anna; <br /><br />Vice-Presidente: Kátia Maria Bóbbio Lima; <br /><br />Secretário-Geral: Zitomar Rosa de Oliveira; <br /><br />1º Secretário: Cleusa Lourdes Madureira Vidal; <br /><br />Bibliotecária: Zenaide Emília Thomes Borges; <br /><br />Tesoureiro Geral: Valdemir Ribeiro de Azeredo; <br /><br />1º Tesoureiro: Adir Ribeiro.<br /><br />Diretoria: Moacir Malacarne; Pedro Maciel da Silva e Tereza Vitória Monteiro.<br /><br /><br />16 - CTC NA INTERNET E NO BRASIL<br /><br />O CTC era uma das poucas entidades culturais que em 1997 e início de 1998 possuía uma página (Home Page) na INTERNET a Rede Mundial de Computadores. Os diretores divulgavam o seguinte endereço:<br /><br />http://www.geocities.com/Athens/8455<br /><br /><br />O Clube dos Trovadores Capixabas, CTC, reúne atualmente trovadores e não trovadores, desde que apreciem e gostem da Trova. O CTC realizou de 1980 a 1990 dez Seminários Nacionais da Trova na Grande Vitória, com visitas inclusive na Serra. Em 1983 foi realizada visita a Igreja dos Reis Magos, em Nova Almeida. A TV Gazeta esteve no local e fez entrevistas com os trovadores Clério Borges , Walter Waeny, de Santos, SP e Eno Teodoro Wanke, RJ. <br /><br />O Décimo Seminário por deferência especial do então Governador Max Freitas Mauro, o Seminário foi realizado no interior do Palácio do Governo do Estado, na sede de Vitória. Na solenidade de abertura realizada no Salão térreo do Palácio Anchieta, a Banda de Música "Estrela dos Artistas", por indicação de Naly da Encarnação Miranda fez uma apresentação especial.<br /><br />Em 1991, o Décimo-primeiro foi realizado em Ibiraçu. O evento teve total apoio do Prefeito Marcus Antônio Vicente e do Trovador local, hoje já falecido, Narceu de Paiva Filho, então Vice-Presidente do CTC. <br /><br />Em 1992 o Seminário foi em Afonso Cláudio. O evento foi prestigiado pelo Prefeito Methódio José da Rocha e pelo Sr. José Saleme, representante da Fundação Jônice Tristão, que mantém na cidade o Centro Cultural, uma Biblioteca e uma Casa de Cultura. <br /><br />Em 1993 o Seminário foi em Guarapari. A então Prefeita Morena Espíndula compareceu na solenidade de abertura. <br /><br />Em 1994 o Seminário foi em Linhares, tendo coordenação de Cleusa Vidal e Isabel Taquetti, sendo destacada a participação do Prefeito José Carlos Elias. <br /><br />Em 1995, o Décimo-quinto Seminário foi realizado em Domingos Martins, com total apoio da Secretária Municipal de Turismo, Diomedes Maria Caliman Berger, do Prefeito Alfredo Meyer e do Deputado Estadual, Lourival Berger. No último dia foi realizada a Missa em Trovas na Praça Principal de Domingos Martins e contou com a presença do Exmo. Sr. Governador do Estado, Dr. Vitor Buaiz. <br /><br />Em 1996 o Décimo Sexto Seminário foi realizado no Clube Riviera, na Praia de Jacaraípe. <br /><br />O 17º Seminário em Julho de 1997 foi realizado com sucesso na cidade de Conceição da Barra. O 18º Seminário foi realizado em Vila Velha, o 19º na cidade de Anchieta e o 20º e último Seminário Nacional da Trova foi realizado com sucesso na Cidade de Domingos Martins, onde já havia sido realizada uma edição do evento em 1995. <br /><br />As reuniões do CTC são na casa do Presidente Clério Borges, em Eurico Salles - Serra.<br /><br />Na Internet são fornecidas informações sobre os Seminários e os Trovadores nos seguintes endereços:PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-78596864522638050282009-06-06T12:43:00.000-07:002009-06-07T11:59:54.888-07:00FIGURAS DE LINGUAGENS<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEixQx2aV18RaL8EP4pAwCr0O3E6_s-p9gsP4wgjeI9oc0QnWUPdfSk3jw4CD5eDjpowW1U-cWnL8Jw8ebFpCu1kSpV8SoRpikO96KHZbgLd2kxEeputgD5LaaymgSCzPXxZCu8hkGcnA30/s1600-h/er.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5344303316697388738" style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; WIDTH: 150px; CURSOR: hand; HEIGHT: 112px" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEixQx2aV18RaL8EP4pAwCr0O3E6_s-p9gsP4wgjeI9oc0QnWUPdfSk3jw4CD5eDjpowW1U-cWnL8Jw8ebFpCu1kSpV8SoRpikO96KHZbgLd2kxEeputgD5LaaymgSCzPXxZCu8hkGcnA30/s320/er.jpg" border="0" /></a><br /><p></p><br /><p></p><p></p><p></p><p></p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p> </p><p><br /><br /><br /><br /><br />FIGURAS DE LINGUAGENS<br />Definição: Figuras de linguagem são certos recursos não-convencionais que o falante ou escritor cria para dar maior expressividade à sua mensagem.<br />METÁFORA<br />É o emprego de uma palavra com o significado de outra em vista de uma relação de semelhanças entre ambas. É uma comparação subentendida.<br />Exemplo:<br />Minha boca é um tumulo.<br />Essa rua é um verdadeiro deserto.<br />COMPARAÇÃO<br />Consiste em atribuir características de um ser a outro, em virtude de uma determinada semelhança.<br />Exemplo:<br />O meu coração está igual a um céu cinzento.<br />O carro dele é rápido como um avião.<br />PROSOPOPÉIA<br />É uma figura de linguagem que atribui características humanas a seres inanimados. Também podemos chamá-la de PERSONIFICAÇÃO.<br />Exemplo:<br />O céu está mostrando sua face mais bela.<br />O cão mostrou grande sisudez.<br />SINESTESIA<br />Consiste na fusão de impressões sensoriais diferentes.<br />Exemplo:<br />Raquel tem um olhar frio, desesperador.<br />Aquela criança tem um olhar tão doce.<br />CATACRESE<br />É uma metáfora desgastada, tão usual que já não percebemos. Assim, a catacrese é o emprego de uma palavra no sentido figurado por falta de um termo próprio.<br />Exemplo:<br />O menino quebrou o braço da cadeira.<br />A manga da camisa rasgou.<br />METONÍMIA<br />É a substituição de uma palavra por outra, quando existe uma relação lógica, uma proximidade de sentidos que permite essa troca. Ocorre metonímia quando empregamos:<br />- O autor pela obra.<br />Exemplo:<br />Li Jô Soares dezenas de vezes. (a obra de Jô Soares)<br />- o continente pelo conteúdo.<br />Exemplo:<br />O ginásio aplaudiu a seleção. (ginásio está substituindo os torcedores)<br />- a parte pelo todo.<br />Exemplo:<br />Vários brasileiros vivem sem teto, ao relento. (teto substitui casa)<br />- o efeito pela causa.<br />Exemplo:<br />Suou muito para conseguir a casa própria. (suor substitui o trabalho)<br />PERÍFRASE<br />É a designação de um ser através de alguma de suas características ou atributos, ou de um fato que o celebrizou.<br />Exemplo:<br />A Veneza Brasileira também é palco de grandes espetáculos. (Veneza Brasileira = Recife)<br />A Cidade Maravilhosa está tomada pela violência. (Cidade Maravilhosa = Rio de Janeiro)<br />ANTÍTESE<br />Consiste no uso de palavras de sentidos opostos.<br />Exemplo:<br />Nada com Deus é tudo.<br />Tudo sem Deus é nada.<br />EUFEMISMO<br />Consiste em suavizar palavras ou expressões que são desagradáveis.<br />Exemplo:<br />Ele foi repousar no céu, junto ao Pai. (repousar no céu = morrer)<br />Os homens públicos envergonham o povo. (homens públicos = políticos)<br />HIPÉRBOLE<br />É um exagero intencional com a finalidade de tornar mais expressiva a idéia.<br />Exemplo:<br />Ela chorou rios de lágrimas.<br />Muitas pessoas morriam de medo da perna cabeluda.<br />IRONIA<br />Consiste na inversão dos sentidos, ou seja, afirmamos o contrário do que pensamos.<br />Exemplo:<br />Que alunos inteligentes, não sabem nem somar.<br />Se você gritar mais alto, eu agradeço.<br />ONOMATOPÉIA<br />Consiste na reprodução ou imitação do som ou voz natural dos seres.<br />Exemplo:<br />Com o au-au dos cachorros, os gatos desapareceram.<br />Miau-miau. - Eram os gatos miando no telhado a noite toda.<br />ALITERAÇÃO<br />Consiste na repetição de um determinado som consonantal no início ou interior das palavras.<br />Exemplo:<br />O rato roeu a roupa do rei de Roma.<br />ELIPSE<br />Consiste na omissão de um termo que fica subentendido no contexto, identificado facilmente.<br />Exemplo:<br />Após a queda, nenhuma fratura.<br />ZEUGMA<br />Consiste na omissão de um termo já empregado anteriormente.<br />Exemplo:<br />Ele come carne, eu verduras.<br />PLEONASMO<br />Consiste na intensificação de um termo através da sua repetição, reforçando seu significado.<br />Exemplo:<br />Nós cantamos um canto glorioso.<br />POLISSÍNDETO<br />É a repetição da conjunção entre as orações de um período ou entre os termos da oração.<br />Exemplo:<br />Chegamos de viagem e tomamos banho e saímos para dançar.<br />ASSÍNDETO<br />Ocorre quando há a ausência da conjunção entre duas orações.<br />Exemplo:<br />Chegamos de viagem, tomamos banho, depois saímos para dançar.<br />ANACOLUTO<br />Consiste numa mudança repentina da construção sintática da frase.<br />Exemplo:<br />Ele, nada podia assustá-lo.<br />Nota: o anacoluto ocorre com freqüência na linguagem falada, quando o falante interrompe a frase, abandonando o que havia dito para reconstruí-la novamente.<br />ANAFÓRA<br />Consiste na repetição de uma palavra ou expressão para reforçar o sentido, contribuindo para uma maior expressividade.<br />Exemplo:<br />Cada alma é uma escada para Deus,<br />Cada alma é um corredor-Universo para Deus,<br />Cada alma é um rio correndo por margens de Externo<br />Para Deus e em Deus com um sussurro noturno. (Fernando Pessoa)<br />SILEPSE<br />Ocorre quando a concordância é realizada com a idéia e não sua forma gramatical. Existem três tipos de silepse: gênero, número e pessoa.<br />De gênero.<br />Exemplo:<br />Vossa excelência está preocupado com as notícias. (a palavra vossa excelência é feminina quanto à forma, mas nesse exemplo a concordância se deu com a pessoa a que se refere o pronome de tratamento e não com o sujeito).<br />De número.<br />Exemplo:<br />A boiada ficou furiosa com o peão e derrubaram a cerca. (nesse caso a concordância se deu com a idéia de plural da palavra boiada).<br />De pessoa<br />Exemplo:<br />As mulheres decidimos não votar em determinado partido até prestarem conta ao povo. (nesse tipo de silepse, o falante se inclui mentalmente entre os participantes de um sujeito em 3ª pessoa).<br />SÍNTESE DO TUTORIAL<br />As figuras de linguagem são recursos não-convencionais que o falante ou escritor cria para dar maior expressividade à sua mensagem.<br />Metáfora é o emprego de uma palavra com o significado de outra em vista de uma relação de semelhança.<br />Comparação é uma atribuição de característica de um ser a outro em virtude de uma determinada semelhança.<br />Prosopopéia atribui características humanas a seres inanimados.<br />Sinestesia consiste na fusão de impressões sensoriais diferentes.<br />Catacrese é uma metáfora desgastada, tão usual que já não percebemos, ou seja, é o emprego de uma palavra no sentido figurado por falta de um termo próprio.<br />Metonímia é a substituição de uma palavra por outra, quando existe uma relação lógica, uma proximidade de sentidos que permite essa troca.<br />Perífrase é a designação de um ser através de alguma de suas características ou atributos, ou de um fato que o celebrizou.<br />Antítese consiste no uso de palavras de sentidos opostos.<br />Eufemismo consiste em suavizar palavras ou expressões que são desagradáveis.<br />Hipérbole é um exagero intencional com a finalidade de tornar mais expressiva à idéia.<br />Ironia consiste na inversão dos sentidos, ou seja, afirmamos o contrário do que pensamos.<br />Onomatopéia consiste na reprodução ou imitação do som ou voz natural dos seres.<br />Aliteração consiste na repetição de um determinado som consonantal no início ou interior das palavras.<br />Elipse consiste na omissão de um termo que fica subentendido no contexto, identificado facilmente.<br />Zeugma consiste na omissão de um termo já empregado anteriormente.<br />Pleonasmo consiste na intensificação de um termo através da sua repetição, reforçando seu significado.<br />Polissíndeto é a repetição da conjunção entre as orações de um período ou entre os termos da oração.<br />Assíndeto ocorre quando há a ausência da conjunção entre duas orações.<br />Anacoluto consiste numa mudança repentina da construção sintática da frase.<br />Anáfora consiste na repetição de uma palavra ou expressão para reforçar o sentido, contribuindo para uma maior expressividade.<br />Silepse ocorre quando a concordância é realizada com a idéia e não sua forma gramatical. Existem três<br />FIGURAS DE LINGUAGEM<br />As figuras de linguagem são empregadas para valorizar o texto, tornando a linguagem mais expressiva. É um recurso lingüístico para expressar experiências comuns de formas diferentes, conferindo originalidade, emotividade ou poeticidade ao discurso.<br />As figuras revelam muito da sensibilidade de quem as produz, traduzindo particularidades estilísticas do autor. A palavra empregada em sentido figurado, não-denotativo, passa a pertencer a outro campo de significação, mais amplo e criativo.<br />As figuras de linguagem classificam-se em:<br />a) figuras de palavras;<br />b) figuras de som;<br />c) figuras de pensamento;<br />d) figuras de sintaxe<br />Figuras de palavra:<br />As figuras de palavra consistem no emprego de um termo com sentido diferente daquele convencionalmente empregado, a fim de se conseguir um efeito mais expressivo na comunicação.<br />São figuras de palavras:<br />Comparação:<br />Ocorre comparação quando se estabelece aproximação entre dois elementos que se identificam, ligados por conectivos comparativos explícitos - feito, assim como, tal, como, tal qual, tal como, qual, que nem - e alguns verbos - parecer, assemelhar-se e outros.<br />Exemplos: "Amou daquela vez como se fosse máquina. / Beijou sua mulher como se fosse lógico." (Chico Buarque);<br />"As solteironas, os longos vestidos negros fechados no pescoço, negros xales nos ombros, pareciam aves noturnas paradas..." (Jorge Amado).<br />Metáfora:<br />Ocorre metáfora quando um termo substitui outro através de uma relação de semelhança resultante da subjetividade de quem a cria. A metáfora também pode ser entendida como uma comparação abreviada, em que o conectivo não está expresso, mas subentendido.<br />Exemplo: "Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair pérolas, que é a razão." (Machado de Assis).<br />Metonímia:<br />Ocorre metonímia quando há substituição de uma palavra por outra, havendo entre ambas algum grau de semelhança, relação, proximidade de sentido ou implicação mútua. Tal substituição fundamenta-se numa relação objetiva, real, realizando-se de inúmeros modos:<br />- o continente pelo conteúdo e vice-versa: Antes de sair, tomamos um cálice (o conteúdo de um cálice) de licor.<br />- a causa pelo efeito e vice-versa: "E assim o operário ia / Com suor e com cimento (com trabalho) / Erguendo uma casa aqui / Adiante um apartamento." (Vinicius de Moraes).<br />- o lugar de origem ou de produção pelo produto: Comprei uma garrafa do legítimo porto (o vinho da cidade do Porto).<br />- o autor pela obra: Ela parecia ler Jorge Amado (a obra de Jorge Amado).<br />- o abstrato pelo concreto e vice-versa: Não devemos contar com o seu coração (sentimento, sensibilidade).<br />- o símbolo pela coisa simbolizada: A coroa (o poder) foi disputada pelos revolucionários.<br />- a matéria pelo produto e vice-versa: Lento, o bronze (o sino) soa.<br />- o inventor pelo invento: Edson (a energia elétrica) ilumina o mundo.<br />- a coisa pelo lugar: Vou à Prefeitura (ao edifício da Prefeitura).<br />- o instrumento pela pessoa que o utiliza: Ele é um bom garfo (guloso, glutão).<br />Sinédoque:<br />Ocorre sinédoque quando há substituição de um termo por outro, havendo ampliação ou redução do sentido usual da palavra numa relação quantitativa. Encontramos sinédoque nos seguintes casos:<br />- o todo pela parte e vice-versa: "A cidade inteira (o povo) viu assombrada, de queixo caído, o pistoleiro sumir de ladrão, fugindo nos cascos (parte das patas) de seu cavalo." (J. Cândido de Carvalho)<br />- o singular pelo plural e vice-versa: O paulista (todos os paulistas) é tímido; o carioca (todos os cariocas), atrevido.<br />- o indivíduo pela espécie (nome próprio pelo nome comum): Para os artistas ele foi um mecenas (protetor).<br />Catacrese:<br />A catacrese é um tipo de especial de metáfora, "é uma espécie de metáfora desgastada, em que já não se sente nenhum vestígio de inovação, de criação individual e pitoresca. É a metáfora tornada hábito lingüístico, já fora do âmbito estilístico." (Othon M. Garcia).<br />São exemplos de catacrese: folhas de livro / pele de tomate / dente de alho / montar em burro / céu da boca / cabeça de prego / mão de direção / ventre da terra / asa da xícara / sacar dinheiro no banco.<br />Sinestesia:<br />A sinestesia consiste na fusão de sensações diferentes numa mesma expressão. Essas sensações podem ser físicas (gustação, audição, visão, olfato e tato) ou psicológicas (subjetivas).<br />Exemplo: "A minha primeira recordação é um muro velho, no quintal de uma casa indefinível. Tinha várias feridas no reboco e veludo de musgo. Milagrosa aquela mancha verde [sensação visual] e úmida, macia [sensações táteis], quase irreal." (Augusto Meyer)<br />Antonomásia:<br />Ocorre antonomásia quando designamos uma pessoa por uma qualidade, característica ou fato que a distingue.<br />Na linguagem coloquial, antonomásia é o mesmo que apelido, alcunha ou cognome, cuja origem é um aposto (descritivo, especificativo etc.) do nome próprio.<br />Exemplos: "E ao rabi simples (Cristo), que a igualdade prega, / Rasga e enlameia a túnica inconsútil; (Raimundo Correia). / Pelé (= Edson Arantes do Nascimento) / O Cisne de Mântua (= Virgílio) / O poeta dos escravos (= Castro Alves) / O Dante Negro (= Cruz e Souza) / O Corso (= Napoleão)<br />Alegoria:<br />A alegoria é uma acumulação de metáforas referindo-se ao mesmo objeto; é uma figura poética que consiste em expressar uma situação global por meio de outra que a evoque e intensifique o seu significado. Na alegoria, todas as palavras estão transladadas para um plano que não lhes é comum e oferecem dois sentidos completos e perfeitos - um referencial e outro metafórico.<br />Exemplo: "A vida é uma ópera, é uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestra é excelente..." (Machado de Assis).<br />Figuras de som:<br />Chamam-se figuras de som os efeitos produzidos na linguagem quando há repetição de sons ou, ainda, quando se procura "imitar" sons produzidos por coisas ou seres.<br />As figuras de som são:<br />Aliteração:<br />Ocorre aliteração quando há repetição da mesma consoante ou de consoantes similares, geralmente em posição inicial da palavra.<br />Exemplo: "Toda gente homenageia Januária na janela." (Chico Buarque).<br />Assonância:<br />Ocorre assonância quando há repetição da mesma vogal ao longo de um verso ou poema.<br />Exemplo: "Sou Ana, da cama / da cana, fulana, bacana / Sou Ana de Amsterdam." (Chico Buarque).<br />Paronomásia:<br />Ocorre paronomásia quando há reprodução de sons semelhantes em palavras de significados diferentes.<br />Exemplo: "Berro pelo aterro pelo desterro / berro por seu berro pelo seu erro / quero que você ganhe que você me apanhe / sou o seu bezerro gritando mamãe." (Caetano Veloso).<br />Onomatopéia:<br />Ocorre quando uma palavra ou conjunto de palavras imita um ruído ou som.<br />Exemplo: "O silêncio fresco despenca das árvores. / Veio de longe, das planícies altas, / Dos cerrados onde o guaxe passe rápido... / Vvvvvvvv... passou." (Mário de Andrade).<br />"Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno." (Fernando Pessoa).<br />Figuras de pensamento:<br />As figuras de pensamento são recursos de linguagem que se referem ao significado das palavras, ao seu aspecto semântico.<br />São figuras de pensamento:<br />Antítese:<br />Ocorre antítese quando há aproximação de palavras ou expressões de sentidos opostos.<br />Exemplo: "Amigos ou inimigos estão, amiúde, em posições trocadas. Uns nos querem mal, e fazem-nos bem. Outros nos almejam o bem, e nos trazem o mal." (Rui Barbosa).<br />Apóstrofe:<br />Ocorre apóstrofe quando há invocação de uma pessoa ou algo, real ou imaginário, que pode estar presente ou ausente. Corresponde ao vocativo na análise sintática e é utilizada para dar ênfase à expressão.<br />Exemplo: "Deus! ó Deus! onde estás, que não respondes?" (Castro Alves).<br />Paradoxo:<br />Ocorre paradoxo não apenas na aproximação de palavras de sentido oposto, mas também na de idéias que se contradizem referindo-se ao mesmo termo. É uma verdade enunciada com aparência de mentira. Oxímoro (ou oximoron) é outra designação para paradoxo.<br />Exemplo: "Amor é fogo que arde sem se ver; / É ferida que dói e não se sente; / É um contentamento descontente; / É dor que desatina sem doer;" (Camões)<br />Eufemismo:<br />Ocorre eufemismo quando uma palavra ou expressão é empregada para atenuar uma verdade tida como penosa, desagradável ou chocante.<br />Exemplo: "E pela paz derradeira (morte) que enfim vai nos redimir Deus lhe pague". (Chico Buarque).<br />Gradação:<br />Ocorre gradação quando há uma seqüência de palavras que intensificam uma mesma idéia.<br />Exemplo: "Aqui... além... mais longe por onde eu movo o passo." (Castro Alves).<br />Hipérbole:<br />Ocorre hipérbole quando há exagero de uma idéia, a fim de proporcionar uma imagem emocionante e de impacto.<br />Exemplo: "Rios te correrão dos olhos, se chorares!" (Olavo Bilac).<br />Ironia:<br />Ocorre ironia quando, pelo contexto, pela entonação, pela contradição de termos, sugere-se o contrário do que as palavras ou orações parecem exprimir. A intenção é depreciativa ou sarcástica.<br />Exemplo: "Moça linda, bem tratada, / três séculos de família, / burra como uma porta: / um amor." (Mário de Andrade).<br />Prosopopéia:<br />Ocorre prosopopéia (ou animização ou personificação) quando se atribui movimento, ação, fala, sentimento, enfim, caracteres próprios de seres animados a seres inanimados ou imaginários.<br />Também a atribuição de características humanas a seres animados constitui prosopopéia o que é comum nas fábulas e nos apólogos, como este exemplo de Mário de Quintana: "O peixinho (...) silencioso e levemente melancólico..."<br />Exemplos: "... os rios vão carregando as queixas do caminho." (Raul Bopp)<br />Um frio inteligente (...) percorria o jardim..." (Clarice Lispector)<br />Perífrase:<br />Ocorre perífrase quando se cria um torneio de palavras para expressar algum objeto, acidente geográfico ou situação que não se quer nomear.<br />Exemplo: "Cidade maravilhosa / Cheia de encantos mil / Cidade maravilhosa / Coração do meu Brasil." (André Filho).<br />Figuras de sintaxe:<br />As figuras de sintaxe ou de construção dizem respeito a desvios em relação à concordância entre os termos da oração, sua ordem, possíveis repetições ou omissões.<br />Elas podem ser construídas por:<br />a) omissão: assíndeto, elipse e zeugma;<br />b) repetição: anáfora, pleonasmo e polissíndeto;<br />c) inversão: anástrofe, hipérbato, sínquise e hipálage;<br />d) ruptura: anacoluto;<br />e) concordância ideológica: silepse.<br />Portanto, são figuras de construção ou sintaxe:<br />Assíndeto:<br />Ocorre assíndeto quando orações ou palavras deveriam vir ligadas por conjunções coordenativas, aparecem justapostas ou separadas por vírgulas.<br />Exigem do leitor atenção maior no exame de cada fato, por exigência das pausas rítmicas (vírgulas).<br />Exemplo: "Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se." (Machado de Assis).<br />Elipse:<br />Ocorre elipse quando omitimos um termo ou oração que facilmente podemos identificar ou subentender no contexto. Pode ocorrer na supressão de pronomes, conjunções, preposições ou verbos. É um poderoso recurso de concisão e dinamismo.<br />Exemplo: "Veio sem pinturas, em vestido leve, sandálias coloridas." (elipse do pronome ela (Ela veio) e da preposição de (de sandálias...).<br />Zeugma:<br />Ocorre zeugma quando um termo já expresso na frase é suprimido, ficando subentendida sua repetição.<br />Exemplo: "Foi saqueada a vida, e assassinados os partidários dos Felipes." (Zeugma do verbo: "e foram assassinados...") (Camilo Castelo Branco).<br />Anáfora:<br />Ocorre anáfora quando há repetição intencional de palavras no início de um período, frase ou verso.<br />Exemplo: "Depois o areal extenso... / Depois o oceano de pó... / Depois no horizonte imenso / Desertos... desertos só..." (Castro Alves).<br />Pleonasmo:<br />Ocorre pleonasmo quando há repetição da mesma idéia, isto é, redundância de significado.<br />a) Pleonasmo literário:<br />É o uso de palavras redundantes para reforçar uma idéia, tanto do ponto de vista semântico quanto do ponto de vista sintático. Usado como um recurso estilístico, enriquece a expressão, dando ênfase à mensagem.<br />Exemplo: "Iam vinte anos desde aquele dia / Quando com os olhos eu quis ver de perto / Quando em visão com os da saudade via." (Alberto de Oliveira).<br />"Morrerás morte vil na mão de um forte." (Gonçalves Dias)<br />"Ó mar salgado, quando do teu sal / São lágrimas de Portugal" (Fernando Pessoa).<br />b) Pleonasmo vicioso:<br />É o desdobramento de idéias que já estavam implícitas em palavras anteriormente expressas. Pleonasmos viciosos devem ser evitados, pois não têm valor de reforço de uma idéia, sendo apenas fruto do descobrimento do sentido real das palavras.<br />Exemplos: subir para cima / entrar para dentro / repetir de novo / ouvir com os ouvidos / hemorragia de sangue / monopólio exclusivo / breve alocução / principal protagonista.<br />Polissíndeto:<br />Ocorre polissíndeto quando há repetição enfática de uma conjunção coordenativa mais vezes do que exige a norma gramatical (geralmente a conjunção e). É um recurso que sugere movimentos ininterruptos ou vertiginosos.<br />Exemplo: "Vão chegando as burguesinhas pobres, / e as criadas das burguesinhas ricas / e as mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza." (Manuel Bandeira).<br />Anástrofe:<br />Ocorre anástrofe quando há uma simples inversão de palavras vizinhas (determinante/determinado).<br />Exemplo: "Tão leve estou (estou tão leve) que nem sombra tenho." (Mário Quintana).<br />Hipérbato:<br />Ocorre hipérbato quando há uma inversão completa de membros da frase.<br />Exemplo: "Passeiam à tarde, as belas na Avenida. " (As belas passeiam na Avenida à tarde.) (Carlos Drummond de Andrade).<br />Sínquise:<br />Ocorre sínquise quando há uma inversão violenta de distantes partes da frase. É um hipérbato exagerado.<br />Exemplo: "A grita se alevanta ao Céu, da gente. " (A grita da gente se alevanta ao Céu ) (Camões).<br />Hipálage:<br />Ocorre hipálage quando há inversão da posição do adjetivo: uma qualidade que pertence a um objeto é atribuída a outro, na mesma frase.<br />Exemplo: "... as lojas loquazes dos barbeiros." (as lojas dos barbeiros loquazes.) (Eça de Queiros).<br />Anacoluto:<br />Ocorre anacoluto quando há interrupção do plano sintático com que se inicia a frase, alterando-lhe a seqüência lógica. A construção do período deixa um ou mais termos - que não apresentam função sintática definida - desprendidos dos demais, geralmente depois de uma pausa sensível.<br />Exemplo: "Essas empregadas de hoje, não se pode confiar nelas." (Alcântara Machado).<br />Silepse:<br />Ocorre silepse quando a concordância não é feita com as palavras, mas com a idéia a elas associada.<br />a) Silepse de gênero:<br />Ocorre quando há discordância entre os gêneros gramaticais (feminino ou masculino).<br />Exemplo: "Quando a gente é novo, gosta de fazer bonito." (Guimarães Rosa).<br />b) Silepse de número:<br />Ocorre quando há discordância envolvendo o número gramatical (singular ou plural).<br />Exemplo: Corria gente de todos lados, e gritavam." (Mário Barreto).<br />c) Silepse de pessoa:<br />Ocorre quando há discordância entre o sujeito expresso e a pessoa verbal: o sujeito que fala ou escreve se inclui no sujeito enunciado.<br />Exemplo: "Na noite seguinte estávamos reunidas algumas pessoas." (Machado de Assis).</p>PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-74357367484986044842009-06-05T03:03:00.001-07:002009-06-06T12:42:40.276-07:00CRÍTICA LITERÁRIA<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjVsOBXx6X6NzsjFs0JFu5xr07xPBfhnxm7EpJ7zcYPnM0CCfkF3BHq0kpdkerDgoJ28OK9f8W52dC5O2oso04607NWtwzvVAqoYxzqex2C_WGLZL3jv1dPWRi1AcNLFwI2njxtkKzoaKg/s1600-h/critica.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5343856487444727138" style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; WIDTH: 226px; CURSOR: hand; HEIGHT: 320px" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjVsOBXx6X6NzsjFs0JFu5xr07xPBfhnxm7EpJ7zcYPnM0CCfkF3BHq0kpdkerDgoJ28OK9f8W52dC5O2oso04607NWtwzvVAqoYxzqex2C_WGLZL3jv1dPWRi1AcNLFwI2njxtkKzoaKg/s320/critica.jpg" border="0" /></a><br /><div> </div><div> </div><div> </div><div> </div><div> </div><div> </div><div> </div><div> </div><div> </div><div> </div><div> </div><div><br />CRÍTICA LITERÁRIA<br />Por "crítica literária" pode-se entender a produção de um discurso acerca de um texto literário individual ou da obra global de um autor, independentemente da situação de comunicação que desencadeia e/ou particulariza esse discurso. Este entendimento da noção de "crítica literária" permite conjugar quatro vectores fundamentais. Em primeiro lugar, e na linha construtivista de autores como René Wellek (veja-se sobretudo R. Wellek, 1963 e 1981) e J. W. Atkins (veja-se Atkins 1934), salvaguarda a possibilidade de se identificar uma narrativa interna da crítica literária que, desde a Antiguidade até aos nossos dias, se orientou para a visibilidade relevante do crítico enquanto protagonista de um comentário acerca de textos considerados artísticos. Em segundo lugar, e na linha de autores como Northrop Frye (veja-se sobretudo N. Frye, 1970), aquele entendimento não desvincula a situação de ensino da literatura do exercício da crítica literária. Em terceiro lugar, afasta a noção de crítica literária da disputa estéril (desconstrucionista vs. Formalista) acerca do seu estatuto de "arte" ou de "ciência". Em quarto lugar, permite contemplar realidades no exercício moderno da crítica literária como as que decorrem do protagonismo assumido pelo crítico nos meios de comunicação, e que, no essencial, assentam em convicções como a de Albert Thibaudet quando assegurava que «a crítica tal como a conhecemos e praticamos é um produto do século XIX» (ª Thibaudet, 1930: 7).<br />A crítica literária tem um papel relevante na dinâmica interna de qualquer cultura nacional, na medida em que é por ela que se articula o diálogo entre as propriedades das obras e as exigências literárias de um determinado período. É através das apreciações críticas que melhor se pode discernir os dispositivos de recepção e as configurações de valor estético em jogo numa determinada situação histórico-literária. Esta irrecusável historicidade da crítica torna-a um dos instrumentos mais vivos de que se pode dispor para compreender as tensões actuantes num tempo político, num lugar social e numa tradição cultural.<br />Dependente como está dos quadros de referência, de conhecimento e de experiência do próprio crítico, a crítica literária está condenada à interpretação e, consequentemente, nunca pode ser neutra nem inocente. Mesmo as pretensas virtudes de uma crítica académica fundada em critérios de cientificidade e/ou articulada por uma linguagem universalizante e objectiva estão hoje em dia despidas de credibilidade, tanto teórica como prática. Porque invariavelmente se confunde o que é científico com algo que é meramente tecnológico, misturando nesse processo rigor com tecnicidade, essas virtudes são meras ilusões que só encontram eco numa outra piedosa ilusão: a de uma epistemologia inocente da investigação universitária.<br />Porque não é inocente o seu olhar, o crítico literário, seja qual for o plano institucional em que se coloque (académico ou jornalístico) relaciona-se com a literatura, sobretudo com aquela que é sua contemporânea, através de um certo grau de cegueira, como bem observou Paul de Man (P. de Man, 1971), ou através de uma espécie de cegueira interessada que leva o crítico a unicamente ver aquilo que quer ou pode ver. No domínio da crítica literária, faz plenamente sentido a afirmação de M. Merlau-Ponty de que "só encontramos nos textos aquilo que colocamos neles" (1962: viii). Esta é uma realidade inexorável, embora de aceitação difícil quando somos (e nos sentimos) actores culturais coetâneos de uma qualquer prática crítica. No entanto, é ela que agencia a heterogeneidade litigante do conhecimento, e com ela o pulsar agonístico por que uma cultura nacional vive internamente cada um dos seus tempos próprios numa intensa conversação entre diferentes comunidades interpretativas, recorrendo ao conceito de Stanley Fish (S. Fish, 1980), isto é, entre diferentes crenças, diferentes interesses ideológicos, políticos, sociais, sexuais, estéticos; em suma, entre diferentes feixes de estratégias e de normas culturalmente institucionalizadas que coexistem numa relação reciprocamente definidora.<br />Ao actuar em sinédoque no interior de um quadro literário nacional, o crítico literário torna-se o protagonista mais visível de uma comunidade interpretativa que nele se reconhece por oposição a outros olhares (outras sinédoques) de outros críticos (outras comunidades). Neste sentido, os discursos de todos esses críticos, quando vistos na sua relação contraditória, tornam-se uma espécie de erros necessários que, por si mesmos, não traçam o perfil de uma época. Contudo, na medida em que não emergem de indivíduos isolados, embora por eles se revelem, mas de um ponto de vista público e convencional, esses erros contribuem decididamente para a configuração do perfil de verdade de uma época, pois, na sua contingência, representam (reforçam) horizontes intersubjectivos de crenças e de valores actuantes no seio de uma sociedade. É por isso que os conflitos mais ou menos apaixonados que ciclicamente surgem no seio da comunidade literária (portuguesa ou qualquer outra) ultrapassam em muito as questões consideradas especificamente artísticas, incorporando no debate, de um modo mais ou menos explícito, argumentos (isto é, crenças e valores) de carácter ideológico, político, filosófico ou religioso.<br />A importância de que a literatura ainda se reveste nos nossos dias decorre do facto de que ela, através da sua capacidade intrínseca de representação, continua a conter em si as possibilidades de um conhecimento insubstituível do homem e do mundo. Nada existe no mundo que a literatura não possa exprimir. Por outro lado, é ainda através da literatura que melhor podemos ter acesso à experiência de vida de uma época ou à interioridade do seu tempo social e cultural.<br />Esta dimensão fascinante do literário impõe a prioridade inescapável da vinculação do texto a uma realidade que, ao lhe preexistir, estabelece as condições de inteligibilidade solidária através da qual o texto literário oferece o seu dizer no seio de uma cultura. E é exactamente por essa mesma dimensão que o gesto crítico também ganha relevo intelectual e significado cultural. Ao se constituir inevitavelmente em interpretação de um texto literário, a crítica outra coisa não faz que reconhecer a construção e a permanência da literatura como interpretação (interpelação) de estratos do conflito humano nela representado. Cada uma nutre-se da interpretação da outra num diálogo intelectual nem sempre pacífico, mas inexoravelmente dinâmico e activo, ou tão dinâmico e tão activo quanto as circunstâncias culturais e históricas o permitem ou exigem. Em suma, pode-se afirmar que é pelo cruzamento da literatura com a crítica, numa representatividade mútua feita de encontros e desencontros com a verdade de cada uma delas, que a vivacidade do rosto de uma época se torna mais nítida nos seus contornos culturais.<br />Á<a href="http:/A/analise.htm" target="_blank">ANÁLISE</a>; EXEGESE; HERMENÊUTICA; POÉTICA<br />BIB.: Albert Thibaudet: Phisiologie de la Critique, Paris: Nouvelle Revue Critique, 1930; J. W. Atkins: Literary Criticism in Antiquity (2 vols.), London, 1934; Maurice Merlau-Ponty: Phenomenology of Perception, London, 1962; Northrop Frye: The Stubborn Structure, London, 1970; Paul de Man: Blindness and Insight. Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism, Minneapolis, 1971; René Wellek: (a) "The Term and Concept of Literary Criticism", in Concepts of Criticism, New Haven, 1963; (b) "Literary Criticism --A Historical Perspective", in What is Criticism, Paul Hernadi (org.), Bloomington, 1981; Stanley Fish: Is There a Text in This Class? The Authority of Interpretative Communities, Cambridge (Mass.), 1980.<br />Manuel Frias Martins</div>PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-16631307773767660052009-05-12T08:44:00.000-07:002022-12-19T15:25:41.373-08:00HISTÓRIA DE LISBOA<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGbq5wM935xqTULf01LwGNMPkT4o59wNHOjH-HCjATV1juXiutQjrtnl-_It1HW8TF3lsORP6XCpKFoSOKlr3PC_octLJZ0GEGwJq7LvA3aPsFPKaNySVb1FxMl7vtP4pfOe7Eu0DLZXU/s1600-h/250px-Belem_tower_002_cc.jpg"><img style="MARGIN: 0px 10px 10px 0px; WIDTH: 240px; FLOAT: left; HEIGHT: 320px; CURSOR: hand" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5335005129262228642" border="0" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhGbq5wM935xqTULf01LwGNMPkT4o59wNHOjH-HCjATV1juXiutQjrtnl-_It1HW8TF3lsORP6XCpKFoSOKlr3PC_octLJZ0GEGwJq7LvA3aPsFPKaNySVb1FxMl7vtP4pfOe7Eu0DLZXU/s320/250px-Belem_tower_002_cc.jpg" /></a>
<div>
</div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div></div><div>
Lisboa é uma das mais antigas cidades da Europa, tendo sido fundada há mais de três milénios। É juntamente com Setúbal, Alcácer do Sal e algumas cidades do Algarve a mais antiga de Portugal e também a segunda mais velha capital da União Europeia, após Atenas, mais antiga por quatro séculos que Roma.
A sua história circula à volta da sua posição estratégica na foz do maior rio da Península Ibérica, o Tejo; do seu porto natural ser o melhor para o reabastecimento dos barcos que fazem o comércio entre o Mar do Norte e o Mediterrâneo; além da sua proximidade no extremo Sul e Ocidente da Europa, com os novos continentes da África Subsahariana e da América.
Índice [esconder]
1 Pré-história
2 Alis Ubbo: A fundação fenícia
3 Olissipo: Lisboa romana
4 As Invasões e os Germanos
5 Al-Ushbuna: Lisboa muçulmana
6 Cruzadas: Portugal conquista Lisboa
7 Revolução
8 Lisboa, a Senhora dos Mares
9 Domínio Filipino
10 O Ouro do Brasil
11 Século das Luzes
12 Guerra Civil: Liberais e Conservadores
13 Lisboa entre a Europa e a África
14 A Revolução de 1910
15 República
16 Lisboa após o 25 de Abril de 1974
17 Referências
18 Ver também
[editar] Pré-história
Existem vestígios de ocupação humana na área que hoje é Lisboa de há muitos milhares de anos, atraídos pela proximidade do rio Tejo. Os primeiros habitantes humanos da região teriam sido os Neandertais, extintos há cerca de 30.000 anos pela chegada à Península do Homem moderno. Durante o período Neolítico, os povos Iberos da região construiram os megalitos de função religiosa, tal como os restantes povos da Europa Atlântica: dólmenes, menires e cromeleques terão sido comuns, e alguns ainda sobrevivem hoje na zona.
[editar] Alis Ubbo: A fundação fenícia
Situação de Lisboa na margem norte do Mar da Palha, à direita. O Atlântico fica para a esquerdaDiz a lenda popular e romântica que a cidade de Lisboa foi fundada pelo herói mítico Ulisses. Recentemente foram feitas descobertas arqueológicas perto do Castelo de São Jorge e da Sé de Lisboa que comprovam que a cidade terá sido fundada pelos Fenícios cerca de 1200 a.C.. Nessa época os fenícios viajavam até às Ilhas Scilly e à Cornualha, na Grã-Bretanha, para comprar estanho aos nativos.
O Mar da Palha ou estuário do Tejo é o melhor porto natural do percurso e o rio uma importante via para as trocas de alimentos e metais com as tribos do interior, tendo sido, talvez precisamente por isso, fundada a colónia chamada Alis Ubbo, que na língua fenícia significa "porto seguro" ou "enseada amena" (sendo provavelmente afilhada da grande cidade de Tiro, actualmente no Líbano). A colónia estendia-se desde a colina onde hoje se situam o Castelo e a Sé, até ao rio, que chamavam Daghi ou Taghi (que significa "boa pescaria" em fenício).[carece de fontes?]
Com o desenvolvimento de Cartago, também ela uma colónia fenícia, o controlo de Alis Ubbo passou para essa cidade. Durante séculos, fenícios e cartagineses terão desenvolvido a cidade a partir do que foi um simples entreposto comercial para o comércio nos mares do Norte, para um importante mercado onde eram trocados os seus produtos manufacturados pelos metais, peixe salgado e sal da região e das tribos contactadas pela via fluvial do Tejo. Os cavalos, antepassados dos actuais cavalos lusitanos, já eram então famosos no Mediterrâneo pela sua velocidade, tendo Plínio afirmado que as éguas do Tejo deveriam ser fecundadas pelo vento.
Os primeiros judeus chegaram sem dúvida com os Fenícios, seus vizinhos. O Hebreu é praticamente idêntico ao Fenício e era raro o barco fenício que não levava mercadores ou sócios da Judeia.[carece de fontes?]
Com a chegada dos Celtas, estes misturaram-se com os Iberos locais, dando origem às tribos de língua Celta da região, os Conni e os Cempsi.[carece de fontes?]
Os antigos Gregos tiveram provavelmente na foz do Tejo um posto de comércio durante algum tempo, mas os seus conflitos com os Cartagineses por todo o Mediterrâneo levaram sem dúvida ao seu abandono devido ao maior poderio de Cartago na região nessa época.
Por outro lado, o sufixo "ippo" (ipo) é caracteristico de áreas de influência tartéssica ou turdetana.[1] [2]
Os deuses Aracus, Carneus, Bandiarbariaicus e Coniumbricenses eram venerados em "Lisboa" na época pré-romana, pelos Túrdulos da região.[3] [4]
[editar] Olissipo: Lisboa romana
Ver artigo principal: Olissipo
Olissipo situava-se na província romana da Lusitânia.Olissipo aliou-se aos Romanos quando estes, liderados por Decimus Junius Brutus, procuraram conquistar os Lusitanos e outros povos do Noroeste Peninsular. Os habitantes da cidade lutaram ao lado das Legiões contra estas tribos célticas. Em troca foi-lhes reconhecido o título de cidadãos romanos e à cidade ampla autonomia como Município Romano. Foi incluida na província da Lusitânia, encabeçada por Emerita Augusta.
A cidade situava-se entre a colina do Castelo e a Baixa, mas as zonas mais ribeirinhas estavam nesse tempo ainda submersas pelo Tejo. Olissipo no tempo romano foi uma importante praça comercial, estabelecendo a ligação entre as províncias do Norte e o Mediterrâneo. Os seus principais produtos eram o garum, um molho de peixe de luxo; o sal e os famosos cavalos lusitanos.
A cidade foi um dos principais centros da introdução e desenvolvimento do Cristianismo na Peninsula Ibérica. O primeiro Bispo foi São Gens de Lisboa.
[editar] As Invasões e os Germanos
Reino dos Visigodos antes da Conquista do Reino dos SuevosA degeneração do Império, e a feudalização da sociedade romana levaram às primeiras invasões dos povos Germanos, Hunos e outros. Inicialmente aceites como colonos nas terras desertificadas pelas epidemias terriveis que mataram grande parte da população da época (provavelmente de Sarampo e Varíola), transformaram-se depressa em expedições militares com objectivos de saque e conquista.
No início do século V os Vândalos (que depois se retiram para o Norte de África) tomam Olissipo, seguidos dos Alanos. Em 419 Olissipo foi saqueada e queimada pelos Godos do Rei tribal Walia, Remismundo conquistou Lisboa em 468 com a ajuda de um hispano-romano de Lisboa chamado Lusidius, e finalmente em 469 é integrada no Reino Suevo cuja capital era Braga. Após a invasão dos Visigodos, estes estabelecem-se em Toledo e após várias guerras durante o século VI, conquistam os Suevos, unificando a Peninsula Ibérica, incluindo a cidade que chamavam Ulishbona.
Durante esta época conturbada, Lisboa perde as ligações políticas com Constantinopla, mas não as comerciais. Mercadores Gregos, Sírios, Judeus e outros, vindos do Oriente, formam comunidades que trocam os produtos locais com os do Império Bizantino, Ásia e Índia.
[editar] Al-Ushbuna: Lisboa muçulmana
Após três séculos de saques, pilhagens e perda de dinâmica comercial, Ulishbuna seria pouco mais que uma vila no início do século VII. É nesta altura que, aproveitando uma guerra civil do Reino Hispânico Visigótico, que os árabes liderados por Tariq invadem a Peninsula Ibérica com as suas tropas mouriscas, em 711. Olishbuna foi conquistada pelas tropas de Abdelaziz ibn Musa, um dos filhos de Tariq, assim como o resto do Ocidente.
Mais uma vez Lisboa, conhecida pelos árabes como al-Ushbuna, torna-se um grande centro administrativo e comercial para as terras junto ao Tejo, recolhendo os seus produtos e trocando-os por produtos do Mediterrâneo Árabe, particularmente Marrocos, Tunísia, Egipto, Síria e Iraque. Segundo as estimativas actuais a cidade teria no seu apogeu, no século X, mais de 100.000 habitantes, e com Constantinopla, Salónica, Córdova e Sevilha, seria uma das maiores cidades da Europa, muitas vezes maior que Paris e Londres, que em plena Idade Média teriam apenas 5-10.000 habitantes.
A maioria dos habitantes converte-se à língua árabe e religião muçulmana da minoria invasora que se instala como elite. A população cristã , Moçárabe, com o seu próprio Bispo segue o rito moçárabe de tradições visigoticas, falantes do árabe ou de uma variedade de Latim vulgar,o moçárabe, romance semelhante ao falado na Galiza e províncias do Norte, é tolerada na qualidade de de dhimmi em troca de imposto, o jizyah. Esta comunidade moçárabe que seguia ritos e costumes cristãos visigoticos é muitas vezes rejeitada quando entra em contacto com os católicos. Foram os moçárabes que levaram para Lisboa os restos de São Vicente, que se tornaria o padroeiro da cidade.
A comunidade Judaica, já existente desde a fundação da cidade pelos Fenícios, é grandemente reforçada pelos Judeus que aí se estabelecem como mercadores e financeiros, aproveitando a elevação da cidade a núcleo comercial proeminente. Além do sal, peixe e cavalos, negociavam-se as especiarias vindas do Levante, as plantas medicinais, os frutos secos, mel e peles. Os Saqaliba passam a integrar a população e a ter uma posição de destaque. O eslavo Sabur al-Saqlabi torna-se, durante o que foi conhecido por regulo eslavo, governante da taifa de Badajoz, e os seus filhos Abd al-Aziz ibn Sabur e Abd al-Malik ibn Sabur governantes da taifa de Lisboa.
Al-Ushbuna é renovada e reconstruída de acordo com os padrões do Médio Oriente: uma grande mesquita, um castelo no topo do monte (que de forma modificada se transformou no Castelo de São Jorge), um palácio para o Governador ou (alcáçova), uma almedina ou centro urbano e um alcácer. O bairro de Alfama cresce ao lado do núcleo urbano original. A cidadela de al-Madan, a actual Almada é fundada na margem Sul do rio para proteger a cidade.
Os Árabes e Berberes introduzem nos arredores da cidade a sua agricultura irrigada, que é muito mais produtiva que os métodos de sequeiro anteriores. As águas do Tejo e seus afluentes são usadas para irrigar a terra no Verão, produzindo várias colheitas por ano e vegetais como alfaces e frutos como as laranjas.
Politicamente, de início, a cidade faz parte do Califado Omíada de Damasco, Síria. Consta das crónicas uma grande rebelião dos Berberes ou "Mouros" frente à elite dos Árabes da Arábia em 740, que precisou de reforços do Califado para ser suprimida. A cidade está depois sujeita ao Califado de Córdova, no qual os sobreviventes Omíadas ganham a independência do novo Califado Egípcio dos Abássidas.
Com o início da Reconquista, a opulenta al-Ushbuna é um alvo dos raides cristãos, que saqueiam a cidade primeiramente em 796 e por outras ocasiões nos anos seguintes, liderados pelo Rei Afonso II das Astúrias, mas a fronteira permanece a norte do Douro. Em 844 várias dezenas de barcos dos Vikings surgem no Mar da Palha, e os Escandinavos estabelecem o cerco, conquistam a cidade e os campos à volta,onde ficam durante 13 dias [5] . Mas os Vikings acabariam por partir face à resistência continuada dos habitantes da cidade liderados por Alah ibn Hazme.
No início do Século X surgem em al-Ushbuna várias seitas islmâmicas de conversos da população hispânica. Estas seitas são formas de organização política com que os autoctónes se revoltam contra os obstáculos postos na sua ascensão social por um sistema hierárquico em que primeiro vinha a pequena elite de descendentes do profeta Maomé, depois os Árabes de sangue puro, a seguir Berberes ou Mouros e só depois os Latinos arabizados e muçulmanos. Vários líderes Latinos surgem, como Ali ibn Ashra e outros, que se declaram Profetas ou descendentes de Ali (xiitas) que com aliados em outras cidades iniciam guerras civis com as tropas árabes sunitas. Os moçárabes eram tratados ainda de forma pior, assim como os Judeus, sofrendo por vezes perseguições que, apesar de lamentáveis aos olhos modernos, eram uma pálida imagem do que fariam os católicos contra não só muçulmanos e judeus, mas mesmo contra os próprios cristãos não católicos das terras reconquistadas.
Novo ataque Viking seguir-se-ia sem sucesso em 966. O Rei Ordonho I das Astúrias pilharia a cidade novamente em meados do século IX, assim como Afonso VI de Leão em 1093, que a reteve no seu Reino de Leão por dois anos, após conquistar a cidade de al-Santaryn ou Santarém.
Com a fragmentação do Califado de Córdova por volta do ano 1000 com as lutas intestinas, os notáveis de al-Ushbuna oscilam entre a obediência à Taifa de Badajoz ou à de Sevilha, conseguindo manobrar de forma a obter uma autonomia considerável. No entanto em 1111 um novo Califado pan-hispânico é estabelecido pela invasão a partir dos desertos de Marrocos dos Almorávidas liderados por Ali ibn Yusuf, cujas tropas são travadas apenas na região de Tomar por Gualdim Pais. Este dura pouco tempo até que regressam os tempos da divisão das Taifas e da autonomia e prosperidade de al-Ushbuna.
[editar] Cruzadas: Portugal conquista Lisboa
Ver artigo principal: Cerco de Lisboa (1147)
Enquanto se fragmentavam as Taifas islâmicas do Sul, no Norte secedia o Condado Portucalense do Reino de Leão, já em plena Reconquista da Península Ibérica. Apesar de baseado em Guimarães, a força económica que permitia a autonomia do Condado Portucalense estava na cidade do Porto (Portucale ou porto da cidade de Cale, a actual Gaia). É interessante pensar como foi o novo Reino, centrado no dinamismo comercial da jovem cidade de mercadores do Porto, que usufruía de uma posição e importância semelhantes na foz do segundo maior rio da Península Ibérica, o rio Douro, como Lisboa no rio Tejo, que acabaria por conquistar essa venerável cidade.
Afonso HenriquesFamosa e opulenta, a cidade daria reino bastante prestígio. A primeira tentativa de Afonso de conquistar al-Ushbuna deu-se em 1137 e fracassou frente às muralhas da cidade. Em 1140 aproveita os cruzados que passavam por Portugal para novo ataque que novamente falha.
Só em Junho e Julho de 1147, com a ajuda de uma força mais numerosa de cruzados, cerca de 164 barcos cheios de homens, consegue ser bem sucedido. Enquanto as suas forças portuguesas atacavam pela terra, os cruzados na sua maioria ingleses e normandos, aliciados pelas promessas de pilhagem livre, montaram as suas máquinas de cerco, como catapultas e torres, e atacavam simultaneamente pelo mar e impediam a chegada de reforços vindos do sul. No primeiros encontros os muçulmanos vencem os cristãos matando muitos, e a moral dos cruzados fica afectada, ocorrendo vários conflitos sangrentos entre os vários grupos de cristãos.
Cruzados com Máquinas de GuerraConta a lenda que, após muitas tentativas, uma das portas é arrombada e o português Martim Moniz consegue mantê-la aberta com o próprio corpo permitindo que os seus companheiros entrassem, ainda que morrendo esmagado por ela. Mais provavelmente com a ajuda das máquinas de sítio, as muralhas são ultrapassadas, em 23 de Outubro de 1147. Segundo Osbernus[6], depois de entrarem na cidade, os colonienses e os flamengos não respeitam o juramento nem palavra dada ao rei de Portugal e saqueiam a cidade, actuam sem respeito contra as donzelas e cortam o pescoço ao bispo da cidade. Depois da conquista da cidade, uma epidemia de peste dizima milhares de vidas entre os moçarabes e muçulmanos [7].
Dom Afonso Henriques toma posse oficialmente da cidade no dia 1 de Novembro, quando numa cerimónia religiosa, manda transformar a grande mesquita de sete cúpulas, a Aljama, em Sé Catedral. O Bispo é Gilbert de Hastings, um cruzado inglês, e a muitos dos cruzados mais proeminentes são doadas terras da região e títulos. Santo António nasce em 1195 na cidade com o nome de Fernando de Bulhões.
A Sé Românica de LisboaO Rei daria o Foral em 1179, e tentaria recuperar as ligações comerciais da cidade inaugurando uma grande nova feira ou mercado. O resultado destes esforços é que os mercadores Portugueses Cristãos ou Judeus não só retomam algumas ligações comerciais da antiga al-Ushbuna, como na Andaluzia (Sevilha e Cádiz), e no Mediterrâneo, até Constantinopla, como abrem-se novas vias para os portos da Europa do Norte, que os muçulmanos raramente visitavam devido às diferenças ideológicas. De facto a primeira vocação da Lisboa Medieval Cristã é a mais uma vez a mediação do comércio entre o Mar do Norte e o Mediterrâneo, mas graças aos avanços na navegação oceânica os volumes são cada vez maiores. Casas de mercadores Portugueses abrem em Sevilha, Southampton, Bruges e nas cidades da Hansa, e os Judeus Portugueses continuam a comerciar com os seus primos no Norte de África. Trocam-se as especiarias, sedas e mezinhas mediterrâneas; ouro, marfim, arroz, alúmen, amêndoas e açúcar comprados aos Árabes e Mouros; juntamente com o azeite, sal, vinho, cortiça, mel e cera Portuguesas com os texteis de lã ou linho finos, estanho, ferro, corantes, âmbar, armas, peles e produtos artesanais do Norte. São fundados estaleiros para a construção de mais barcos comerciais e militares, cuja Armada é essencial na protecção do comércio contra os piratas sarracenos. Para responder à crescente demanda pelas populações cada vez maiores da Europa no Século XII e Século XIII, são estimuladas as inovações na construção dos barcos, que da barca forte mas tosca passam, numa síntese de saber cristão, viking e árabe, para a caravela (primeira referência em 1226), o primeiro verdadeiro navio atlântico. Às profissões ligadas à navegação, como carpinteiros e marinheiros, são dados privilégios e protecção, incluindo a criação em Lisboa de um Juiz próprio, o Alcaide do Mar (1242).
Um efeito indirecto de todo este dinamismo de Lisboa é a ruína dos comerciantes germânicos, que faziam o mesmo comércio por ter (uma rota mais dispendiosa mas a única possível quando os navios muçulmanos e os seus piratas controlavam o sul de Espanha e o estreito de Gibraltar) entre os Países Baixos e a Hansa e a Itália e os seus portos. O Sacro Império Romano-Germânico perde influência sobre os seus reinos, ducados e cidades-estado constituintes, e os mercadores alemães, até aí senhores do comércio Europeu, são forçados a procurar novos mercados a oriente.
No seguimento desta prosperidade, e com o aumento de segurança em Lisboa com a conquista definitiva dos Algarves no século XIII, em 1256 Afonso III de Portugal constata o óbvio e escolhe a maior e mais vigorosa cidade do seu Reino para Capital, movendo para aí a Corte, os Arquivos e a Tesouraria (que estavam em Coimbra). Dom Dinis, o primeiro Rei a presidir todo o seu reinado em Lisboa, cria aí a Universidade em 1290, que transfere para Coimbra em 1308 apenas devido aos conflitos crescentes dos estudantes com os lisboetas. É nesta altura que a zona onde hoje está o Terreiro do Paço é reclamada ao mar, através de drenagens do terreno já lamacento (era rio livre até ao tempo da conquista, mas sedimentou devido aos depósitos do rio). Novas ruas são desenhadas, como a Rua Nova, e o Rossio torna-se pela primeira vez centro da cidade, roubando essa distinção à colina do Castelo. Outras construções de Dom Dinis foram uma muralha frente novo Cais da Ribeira contra os piratas, e renovações do Palácio Árabe (a Alcáçova, destruída no Terramoto de 1755) e da Sé.
Além das colónias de Portugueses nas cidades do Norte da Europa, colónias de mercadores do resto da Europa estabelecem-se em Lisboa, uma das mais importantes cidades do comércio internacional. Sem contar com os Judeus (que já existiam como Portugueses), os Genoveses são os mais numerosos, acompanhados de Venezianos e outros Italianos, além de Holandeses e Ingleses. Estes mercadores trazem para Portugal novas técnicas cartográficas e de navegação, além de técnicas bancárias, financeiras e outras conhecidas como o sistema do Mercantilismo, além de conhecimentos das origens Asiáticas dos produtos de luxo como as sedas e especiarias, que trazem do Oriente Bizantino e Islâmico.
Politicamente as tensões com Castela são contrabalançadas com uma Aliança assinada em 1308, que perdurou ininterruptamente até hoje, com o principal parceiro comercial de Lisboa (e também do Porto), a Inglaterra. A aliança forma um dos dois lados da Guerra dos cem anos, no outro lado estão além de Castela a França. No tempo de Fernando de Portugal inicia-se uma guerra com Castela, e os barcos lisboetas com canhões são recrutados assim como os Genoveses num ataque mal-sucedido a Sevilha. Em resposta os castelhanos põem cerco a Lisboa, tomando-a em 1373, mas são pagos para se retirarem. É no seguimento deste desastre que são construídas as Grandes Muralhas Fernandinas de Lisboa.
Socialmente em baixo viviam todo o tipo de jornaleiros e mercadores de rua, além dos pescadores e dos agricultores das hortas de vegetais. São desta época as várias Ruas dos ofícios, nas quais se organizavam as corporações dos mesteriais, dirigidos pelos Mestres: Rua do Ouro (ourives); Rua da Prata (joalheiros de pratas); Rua dos Fanqueiros; Rua dos Sapateiros; Rua dos Retroseiros e Rua dos Correeiros. Estas corporações educavam os aprendizes e tinham sistemas de protecção social e controlo dos preços que beneficiavam os seus membros. A aristocracia, atraída pela corte, estabelecia-se construindo grandes palácios, e desempenhava funções burocráticas. Mas a mais importante classe social de Lisboa, mesmo após o ganho de funções políticas enquanto capital, era a dos mercadores, a burguesia que era a força deste núcleo comercial que era dos mais importantes da Europa. São os magnatas do comércio que controlam a cidade e o seu Concelho oligárquico. É devido às necessidades destes que se organizam na cidade os profissionais: banqueiros para coordenar os riscos; homens das Leis para proteger e manipular os seus direitos legais; especialistas e cientistas para construir os seus barcos e instrumentos de navegação. Com a sua influência, conseguem extrair da Monarquia medidas mercantilistas que os favorecem, e são o grande impulso à exploração de novos mercados. A Companhia das Naus é fundada, uma verdadeira companhia de seguros, que exige pagamento de cotas obrigatórias de todos os armadores em troca da partilha de perdas após naufrágios, organizando os mais de quinhentos grandes navios dos magnatas da cidade. Com os crescentes lucros, os mercadores mais ricos adquirem títulos de nobreza, enquanto os fidalgos mais pobres se dedicam ao comércio.
Entre as minorias, contavam-se as dos Judeus e dos Muçulmanos (não só mouros mas também árabes e latinos islâmizados de língua árabe). Havia uma grande Judiaria que ocupava as freguesias de Santa Maria Madalena, São Julião e São Nicolau, na Rua Nova e dos Mercadores (onde ficava a Grande Sinagoga). Os Judeus (talvez 10% da população, ou mesmo mais) são grandes comerciantes, com ligações aos seus correligionários por toda a Europa, Norte de África e Médio Oriente, e os que não praticam o comércio constituem grande parte dos letrados, como médicos, advogados, cartógrafos e especialistas nas ciências ou artes. A sua actividade é fundamental para a vitalidade da economia da cidade. Entres Judeus Sefarditas de Lisboa contam-se grandes nomes como os Abravanel. No entanto são forçados a viver separadamente, proibidos de sair à noite, obrigados a usar distintivos nas vestes e pagam impostos extra, além de serem sempre as primeiras vítimas em situações de revolta popular.
A Mouraria era o gueto correspondente para os muçulmanos, contendo a Grande Mesquita, situada na Rua do Capelão. Contudo não eram prósperos e educados como os Judeus, já que as elites muçulmanas tinham fugido para o Norte de África, enquanto os Judeus letrados falantes de Português não tinham outra Pátria. A maioria eram trabalhadores de baixo nível de qualificações com salários baixos, e muitos eram escravos de cristãos. Também eles tinham de usar símbolos nas vestes e pagar impostos extra, e sofriam as violências das multidões. O termo saloio provém do imposto especial que pagavam os muçulmanos que cultivavam as hortas nos limites da cidade, o salaio; assim como o termo alfacinha vem do cultivo desses vegetais pelos árabes, então pouco consumidos no Norte.
No entanto a prosperidade da cidade viria a ser interrompida. Em 1290 ocorre o primeiro grande terramoto histórico, morrendo milhares de pessoas e desmoronando-se muitos edifícios. Novos terramotos registam-se em 1318, 1321, 1334, 1337 e um grande em 1344 que destrói parte da Sé e da Alcáçova, em 1346, 1356 (destrói outra porção da Sé), 1366, 1395 e 1404 possivelmente todos resultantes de reajustamentos na mesma falha. A fome surge em 1333 e em 1348 surge pela primeira vez a Peste Negra, que terá morto metade da população, com novos surtos de menor mortandade em cada década, à medida que nasciam mais pessoas susceptíveis. Estas catástrofes destruíram em Lisboa como na restante Europa a Civilização vibrante da Baixa Idade Média, com as suas catedrais e o seu espírito de Cristandade universal, mas prepararam o caminho para o surgimento da nova Civilização dos Descobrimentos e do novo espírito científico.
[editar] Revolução
Ver artigo principal: Cerco de Lisboa (1384)
Na Batalha de Aljubarrota a nova elite burguesa de Lisboa derrotou a velha aristocracia feudal de Portucale e o seu aliado, Castela.O novo capítulo da história de Lisboa nasce com a grande revolução da Crise de 1383-85. Após a morte de Fernando de Portugal, o Reino passaria para o Rei de Castela, João I de Castela. Os grandes aristocratas e clérigos do Norte, possuidores de grandes propriedades no Sul que adquiriram após a Reconquista, tinham interesses e cultura semelhantes às dos Castelhanos com enfâse nas distinções sociais baseadas na possessão da terra, no espírito de cruzada contra os Mouros no Norte de África, e nos benefícios da união de toda a Hispânia. Contudo não são esses os interesses dos mercadores de Lisboa (muitos dos quais pequenos fidalgos). Para Lisboa, a união com Castela significaria uma diluição das ligações comerciais com a Inglaterra e o Norte, e também com o Médio Oriente; além de um desvio de atenções dos privilégios aos mercadores e da contrução de barcos comerciais e de guerra, para os exércitos terrestres e os privilégios aos Nobres. É por isso que os mercadores e pequenos fidalgos mercantes apoiavam inicialmente o Mestre de Avis, D. João. A guerra de 1383 é no fundo uma guerra entre a Aristocracia conservadora católica e medieval, muito semelhante e ligada às suas congéneres Galega e Castelhana, do antigo Condado Portucalense centrado no Minho, e os mercadores ricos e pluralistas de Lisboa. Os nobres do Norte tinham fundado e conquistado o país e para eles o domínio crescente de Lisboa ameaçava a sua supremacia enquanto a aliança com os nobres Castelhanos a restabelecia. Para Lisboa, uma cidade do comércio, as práticas feudais e as guerras terrestres dos Castelhanos eram um risco para os seus negócios. São os burgueses que ganham a luta, com as suas ligações inglesas e capitais avultados: o Mestre de Avis é aclamado João I de Portugal, vencendo o cerco de Lisboa de 1384, e a Batalha de Aljubarrota sob liderança de Nun'Álvares Pereira em 1385 contra as forças de Castela e dos fidalgos do Norte. A nova aristocracia portuguesa é formada a partir dos mercadores Lisboetas, e é só a partir desta data que o centro de Portugal passa realmente do Norte para Lisboa, tornando Portugal numa espécie de cidade-estado, em que quase apenas os seus interesses determinam o rumo e a independência do país.
Os novos nobres burgueses constroem os seus palácios ou paços no bairro de Santos; outros edifícios são os da Universidade em Alfama, que regressa a Lisboa; a Igreja do Carmo; a Alfândega; e alguns dos primeiros edifícios de habitação em toda a Europa com vários andares, até cinco. A cidade é composta de ruas estreitas e tortuosas, a maioria de terra batida, em que as casas alternam com as hortas e os pomares. A cidade continua a crescer, e o largo abandono das técnicas de regadio muito produtivas dos muçulmanos significam que é necessário importar trigo de Castela, França, terras do rio Reno e até de Marrocos. Lisboa é uma cidade que cresce demasiado para o país, e este torna-se num território circundante semelhante aos de outras cidades comerciais. Lisboa, juntamente com Antuérpia no Atlântico servem a mesma função de organização do comércio que Veneza, Génova, Barcelona ou Ragusa no Mediterrâneo; ou Hamburgo, Lubeck e outras no Báltico. Em 1417 proíbe-se que se deite lixo perto do Mosteiro do Carmo e de outras áreas de Lisboa. Em 1426 outra lei proíbe lançar lixo e deixar galinhas soltas nas ruas de Lisboa sob pena de pagar multa.
A política externa segue os interesses de Lisboa: são assinados acordos comerciais e de cooperação com as cidades-estado comerciais de Veneza (acordo de 1392), Génova (1398), Pisa e Florença, cujos mercadores já habitavam na cidade, e muitos dos quais são naturalizados e se tornam nobres Portugueses. Ceuta é conquistada em 1415 para permitir aos mercadores Lisboetas um melhor controlo local (e luta contra os piratas sarracenos) do comércio Mediterrânico que passava para o Norte através das Colunas de Hércules assim como a exportação do trigo marroquino a melhores preços. Além disso, nesse tempo Ceuta recebia as caravanas do ouro e do marfim, comércio que os Lisboetas queriam dominar, e temia-se a tomada da cidade pelos Castelhanos da rival Sevilha ou dos Aragoneses de Barcelona. A Aliança com a Inglaterra, um dos seus maiores clientes, é prosseguida..
[editar] Lisboa, a Senhora dos Mares
A colaboração estreita com os Italianos, que dominavam a navegação no Mediterrâneo desde o tempo do Império Romano, trouxe frutos à cidade de Lisboa. Várias expedições se empreenderam com tripulações italianas e portuguesas, nas quais foram descobertos os arquipélagos dos Açores, Madeira e Canárias. Alguns afirmam que terão mesmo chegado ao Brasil. Estas ilhas permitem o estabelecimento de novas cidades-portos, úteis para a exploração de novos mercados.
A prosperidade de Lisboa fica ameaçada quando o Império Otomano invade e conquista os territórios Árabes do Norte de África, Egipto e Médio Oriente no século XV. Os Turcos são inicialmente hostis aos interesses de Lisboa e das suas aliadas Veneza e Génova, e o comércio das especiarias, ouro, marfim e outros bens sofre fortemente. Os mercadores de Lisboa, muitos descendentes de Muçulmanos ou Judeus com ligações ao Norte de África, reagem procurando negociar directamente com as fontes dessas mercadorias, sem usar os mediadores Muçulmanos. As ligações dos judeus portugueses aos judeus magrebinos, e a conquista de Ceuta, permitem aos mercadores de Lisboa espiar os mercadores árabes, descobrindo que o ouro, os escravos e o marfim vêm para Marrocos em caravanas pelo deserto do Saara, a partir das terras do Sudão (que nesse tempo incluía todas as pradarias a sul do Deserto, o actual Sahel); e que as especiarias como a pimenta são levadas para os portos do Mar Vermelho no Egipto a partir da Índia. A nova estratégia dos mercadores Portugueses, Cristãos e Judeus, e Luso-Italianos é navegar directamente à fonte dos materiais.
O Infante Dom HenriqueO grande impulsionador deste objectivo é o Infante D. Henrique, que se baseia na cidade de Tomar. Sede da Ordem de Cristo (antigos Templários), e de uma grande comunidade de mercadores Judeus, a cidade está também muito ligada a Lisboa pelo comércio dos cereais e frutos secos (uma das principais exportações de Lisboa). Os capitais e conhecimentos do Oriente por parte dos Templários e Judeus foram sem dúvida fundamentais para se conseguirem os propósitos dos mercadores Lisboetas. O Infante Dom Henrique é o impulsionador de um projecto que não foi ele que imaginou, mas sim os mercadores de Lisboa. Estes que sustentavam através dos impostos e taxas alfandegárias a monarquia, tornando-a praticamente independente dos recursos dos nobres territoriais, convertem-na aos seus propósitos mercantilistas. O Infante D. Henrique é o organizador de um certo dirigismo de Estado: os grandes riscos e capitais necessários à abertura das novas rotas precisam da cooperação de todos os mercadores através do Estado (como hoje muitos projectos de grande capital são empreendidos internacionalmente). O Infante Dom Henrique organiza e dirige os esforços dos navios portugueses de atingir as fontes do ouro, marfim e escravos, que estes por si mesmos já empreendiam de forma ineficiente. Com os capitais da Ordem de Cristo, são fundadas escolas de marinheiros e concentrados recursos e conhecimentos, dos mercadores Lisboetas Judeus, Luso-Genoveses ou Luso-Venezianos, para atingir o objectivo. Várias expedições são lançadas sob a forma de contratos com alguns dos mais influentes burgueses de Lisboa, até que o Golfo da Guiné é finalmente atingido por volta de 1460.
Nesta época há nova tentativa dos nobres feudais nortenhos que permaneceram, de retomar o controlo do Reino, assustados com a crescente prosperidade dos mercadores lisboetas contra as suas perdas de rendimento. O propósito é a facilidade da conquista de Ceuta, que abre perspectivas de mais conquistas relativamente fáceis no Norte de África. Esta empresa seria favorável aos nobres, que ganhariam saque e mais terras e arrendatários em Marrocos, mas é contrária aos interesses dos mercadores-fidalgos e judeus de Lisboa, que seriam os pagadores dos impostos extra necessários às expedições e que procuram antes investir as forças e recursos do Reino na descoberta dos novos mercados africanos e asiáticos e não em aumentar ainda mais o poder da hostil e pró-castelhana nobreza Portucalense. Todas as lutas que D. João II manteve contra esses nobres, com a ajuda dos mercadores Lisboetas, exprimem esta realidade subjacente de luta entre Lisboa e o Norte, o antigo Portucale, berço da nação, pela definição do rumo do país. Após várias conspirações e incidentes, nas quais mais uma vez os nobres nortenhos pedem auxílio aos seus congéneres Castelhanos, vence mais uma vez Lisboa e os seus mercadores, e os cabecilhas são executados, entre os quais os Duques de Bragança e Viseu, mortos em 1483 e 1484. Todos os projectos de expansão terrestre em África são abandonados em troca do comércio nas novas terras descobertas mais a sul. Depois da morte do Infante D. Henrique, quando o caminho já estava aberto, inicia-se a iniciativa privada. O mercador lisboeta Fernão Gomes é o primeiro, sendo-lhe reconhecido monopólio sobre o comércio africano em 1469, em troca de descoberta de 500 quilómetros de costa para Sul a cada ano e 200.000 reais.
As ilhas da Madeira e dos Açores são populadas, e programas de cultivo de produtos comerciais para Lisboa são implantados prioritariamente: a cana-de-açúcar e o vinho. Na recém-descoberta Guiné, produtos baratos como potes de metal e tecidos são trocados por ouro, marfim e escravos a partir de feitorias controladas pelos lisboetas: os nativos deslocam a sua actividade económica para trocar com os Europeus, mas não são conquistados, já que seria dispendioso. Fazem-se casamentos dos habitantes das feitorias com as filhas dos chefes locais, facilitando as trocas: o objectivo é o lucro e não a colonização. O resultado é um novo impulso para o comércio de Lisboa. Na capital aparecem o açúcar de cana e o vinho da Madeira, o trigo de Ceuta, o almíscar, o indigo e outros corantes de roupa, algodão do Norte de África e significativas quantidades do ouro da Guiné e da Costa do Ouro, em grande falta na Europa no fim do século XV. Além disso são traficados de forma brutal escravos Berberes das Canárias e depois Africanos. Os primeiros escravos são distribuídos pelo território Português, e aparecem os primeiros Africanos de pele escura mesmo nas terras do interior, comprados pelos senhores das propriedades. Um produto inovador foram as malaguetas. Estes frutos picantes seriam cultivados na Índia (para onde foram levadas pelos mercadores Lisboetas) mas são originárias da Guiné. Rapidamente este bem de monopólio lisboeta ganhou favor na culinária mediterrânica.
Contudo os melhores mercados e produtos viriam de outra descoberta, a Índia e o Oriente. A guerra entre o Império Otomano e Veneza aumenta muito os preços da pimenta e outras especiarias e da seda trazidas pelos venezianos para a Itália, para Lisboa e daí para o resto da Europa a partir do Egipto (que recebia barcos árabes vindos da Índia no Mar Vermelho. Para contornar o "problema turco" é organizada a viagem de Vasco da Gama, mais uma vez por iniciativa dos mercadores Lisboetas mas com capital régio, que chega à Índia em 1498. Daí os mercadores atingem a China onde fundam a colónia comercial de Macau, as ilhas da actual Indonésia, e o Japão antes do fim do século XVI. No caminho estabelecem contractos comerciais e portos de escala com os chefes e Reis em Angola e Moçambique. Um grande Império colonial é consolidado por Afonso de Albuquerque, cuja armada segura o Oceano Índico e portos em localizações convenientes, para os mercadores vindos de Lisboa contra a competição dos turcos e árabes. Não são tomados territórios mas apenas portos e fortes de trocas com os nativos. Do outro lado do mundo, Pedro Álvares Cabral chega ao Brasil em 1500.
O resultado para Lisboa são os novos produtos que trafica com a restante Europa em regime exclusivo durante muitos anos: além dos produtos africanos chega a pimenta, canela, gengibre, noz moscada, plantas medicinais, tecidos de algodão e os diamantes pela Carreira das Naus da Índia; as especiarias da Molucas, as porcelanas Ming e a seda da China, os escravos de Moçambique, o pau-brasil e o açúcar brasileiros. Além disso continua o comércio do peixe (bacalhau salgado pescado na Terra Nova), os frutos secos e o vinho. As outras cidades portuguesas, como o Porto e Lagos, contribuem para o comércio externo apenas de forma marginal, praticamente limitando-se a exportar e importar de Lisboa. Os Lisboetas controlam ainda muito do comércio de Antuérpia, da qual importam tecidos finos para o resto da Europa. Os mercadores alemães e italianos, vendo as suas rotas, terrestres no caso dos primeiros, Mediterrâneas para os segundos, largamente abandonadas, fundam grandes casas comerciais em Lisboa reexportando os produtos de todo o mundo para o Leste da Europa e para o Médio Oriente.
Lisboa é o mercado para os gostos de luxo das elites de toda a Europa: Veneza e Génova arruinam-se e a Inglaterra e Holanda vêem-se obrigadas a imitar os Portugueses para travar as perdas de divisas. Os Lisboetas controlam durante várias décadas todo o comércio desde o Japão até Ceuta. A cidade ganha fama que chega a mito, e no século XVI é sem dúvida a mais rica cidade de todo o Mundo. Para ela migram comerciantes de toda a Europa, que se misturam com as já substanciais minorias Judaicas e Muçulmanas, além dos grandes números escravos Africanos (seriam entre um décimo e um quinto da população) e até alguns Indianos, Chineses e mesmo Japoneses e Índios Brasileiros. No tempo do Rei D. Manuel I, nas ruas de Lisboa as festas são feitas com desfiles de leões, elefantes, rinocerontes, camelos e outros animais não vistos na Europa desde o tempo do Circo Romano. Um rinoceronte e um elefante chegam inclusivamente a ser oferecidos ao Papa Leão X (ver Castelo de If). Na Europa o mito de Lisboa e das suas descobertas é tão grande que quando Thomas More inventa a sua ilha da Utopia, tenta dar-lhe credibilidade dizendo que foram os Portugueses a descobri-la.
Junto à Torre de Belém ancoravam as naus que partiam para o movimento de expansão ultramarina.Para organizar todo o comércio privado e recolher os impostos, são criadas na capital do século XVI as grandes Casas Portuguesas de comércio: a Casa da Mina, a Casa de Arguim, a Casa dos Escravos, a Casa da Flandres (Países Baixos) e a célebre Casa da Índia. Os grandes lucros são usados na construção de outros edifícios: são deste século o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém no novo estilo Manuelino (que evoca o comércio de além-mar), o Forte de São Julião da Barra numa ilha do Tejo, o Terreiro do Paço, o novo e imponente Palácio Real (destruído em 1755) e o Arsenal militar todos construídos junto ao Mar (da Palha); e ainda o Hospital Real de Todos-os-Santos, e inúmeros palácios e solares privados. O impulso à pavimentação das ruas com formas geométricas e desenhos formados por cubos de calcário branco e basalto preto (a calçada portuguesa) foi um luxo iniciado na época, que outras cidades da Europa não podiam pagar. A cidade expandia-se atingindo quase 200.000 habitantes, sendo construído o Bairro Alto, inicialmente conhecido por Vila Nova dos Andrades em honra dos ricos burgueses galegos que aí se estabeleceram, e que rapidamente se torna o bairro mais rico da cidade. É inaugurada em 1552 a Feira da Ladra, que ainda funciona hoje no mesmo local.
Aspecto do Bairro Alto, com um Palácio ao fundo.Culturalmente vive no século XVI em Lisboa a geração de ouro das Ciências e Letras portuguesas: entre os cientistas o humanista Damião de Góis (amigo de Erasmo e Lutero), o matemático Pedro Nunes, o médico e botânico Garcia da Orta e Duarte Pacheco Pereira; entre os escritores Luís de Camões, Bernardim Ribeiro, Gil Vicente e outros. Isaac Abravanel, um dos maiores filósofos hebreus, é nomeado Tesoureiro do Rei.
Socialmente todas as classes beneficiam. Os fidalgos urbanos da administração Real e os burgueses são os mais beneficiados, mas mesmo o povo vive com luxos inatingíveis para os ingleses, franceses ou alemães seus contemporâneos. Os trabalhos pesados necessários são feitos pelos escravos africanos e pelos galegos. Os primeiros são vendidos na Praça do Pelourinho, sendo separadas as famílias, e trabalham todo o dia sem salário, alguns sujeitos a tratamento brutal. Aos segundos certamente compensava a viagem face às condições miseráveis da Espanha rural, e a língua praticamente idêntica facilitava a integração.
O Mosteiro dos Jerónimos, terminado em 1572.Os Judeus incluem como sempre alguns pobres e outros que se contam entre os mais educados e ricos comerciantes, financeiros e letrados da cidade. O primeiro livro impresso em Lisboa foi o Comentários sobre o Pentateuco de Moisés ben Nahman, um livro em hebraico, publicado por Eliezer Toledano em 1489. Em 1496 os espanhóis expulsam os Judeus do seu território, animados pelo espírito fundamentalista de uma Monarquia exclusivamente cristã. Muitos vêm para Lisboa, tendo provavelmente a sua população duplicado (seriam depois da expulsão um quinto dos Lisboetas, ou mesmo mais). Em troca de um casamento real, os Reis Católicos de Castela e Aragão pedem a Manuel I de Portugal que faça o mesmo. Reconhecendo a importância central dos Judeus na prosperidade da cidade, Dom Manuel decreta antes que todos os Judeus são Cristãos e não os deixa sair do País. Durante muitos anos estes cristãos-novos praticam o Judaísmo em segredo ou abertamente e apesar de motins e violências contra eles (como muitas crianças que são arrancadas dos pais e dadas a famílias cristãs que as tratam como escravos) são tolerados até à implantação da Inquisição em Portugal, muitos anos depois. O resultado é a ascensão social dos cristãos-novos. Temporariamente sem as limitações dos Judeus, progridem até aos mais elevados cargos da corte. Novamente são as antigas elites descendentes da antiga aristocracia das Astúrias e da Galiza (os nobres de Portucale) que criam problemas à ascensão social dos Judeus, frequentemente melhor educados e mais hábeis que eles. O mal-dizer dos Cristãos-Velhos culmina em massacres dos Cristãos-Novos em 1506 incitados pelos Priores menores das Igrejas. Vários milhares terão sido assassinados antes de serem impedidos pelas tropas do Rei. Como resultado dos conflitos, o Rei é persuadido pelos nobres territoriais a introduzir a Inquisição (em 1531) e as limitações legais a todos os descendentes de cristãos-novos (semelhantes às antigas contra os Judeus), que os impedem de ameaçar os cargos superiores do Estado à Aristocracia dos cristãos-velhos. O primeiro auto-de-fé (morte de heréticos na fogueira) é realizado no Terreiro do Paço em 1540. Além da Inquisição surgem outros problemas. Em 1569 há a grande Peste de Lisboa, em que terá morrido um terço da população.
A inquisição mata na fogueira muitos Cristãos-novos, mas expropria a propriedade e as riquezas de muitos outros. Muitos mercadores cristão-velhos são expropriados também após uma denúncia anónima falsa, que os inquisidores aceitam como válida já que as riquezas dos condenados para eles revertem. Por outro lado poucos mercadores não teriam ascendência cristã-nova, devido aos casamentos comuns entre filhos de burgueses que eram sócios em empresas importantes. A Inquisição torna-se assim um instrumento de controlo social na posse dos antigos cristãos-velhos contra quase todos os mercadores Lisboetas, restituindo-lhes finalmente a supremacia há muito perdida.
Auto-de-fé, Quadro de Pedro BerrugueteÉ neste clima de intolerância e perseguição, em que os lucros obtidos pelos riscos e o génio dos mercadores bem sucedidos é desfeito pela inveja dos grandes proprietários de terras (que rendem muito menos), que a prosperidade de Lisboa é destruída. O antigo clima liberal propício ao comércio desaparece e é substituído por um fanatismo católico e conservadorismo absolutos. Às elites do país exige-se o sangue puro antigo e cristão-velho, ou seja, do Norte. Muitos dos mercadores fogem para a Inglaterra ou Países Baixos onde se estabelecem difundindo os conhecimentos navais e cartográficos dos Portugueses. Lisboa é tomada pelas mentalidades feudais dos grandes nobres, e os mercadores Portugueses, sem condições de estabilidade, segurança, apoio e crédito devido às perseguições da Inquisição, são incapazes de competir com os mercadores Ingleses e Holandeses (muitos deles de origem Portuguesa) que lhes roubam os mercados da Índia, Índias Orientais e China. Em sua substituição as elites de Portucale convencem o débil Rei, D. Sebastião a virar-se para a conquista de um Império territorial, com mais terras e rendimentos para os Nobres, no Norte de África, que lhes permitiria manter a supremacia económica frente aos mercadores. Após o desastre militar de Alcácer-Quibir em 1578, os Aristocratas recolhem-se mais uma vez aos braços dos seus congéneres Castelhanos de mentalidade semelhante. Desta vez bem sucedidos, em 1580 o Castelhano Filipe II de Espanha é declarado Rei Dom Filipe I de Portugal, depois de derrotar o candidato dos enfraquecidos mercadores, o Prior do Crato, Dom António (o qual era cristão novo e mais liberal, filho de mãe Judia). Filipe I completa assim a ambição do seu pai o Habsburgo Rei Carlos I de Espanha também Imperador Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico (Alemanha), e Senhor da maior parte da Itália e Holanda que afirmara famosamente Se fosse Rei de Lisboa, seria em breve Rei do Mundo.
O Rei Habsburgo Filipe I de Portugal, II de Espanha.
[editar] Domínio Filipino
Filipe I de Portugal, o primeiro dos Habsburgos portugueses, é assim o primeiro rei da Hispânia. Apesar de desde 1492 os Reis Católicos Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão terem dominado o que hoje é a Espanha, o título de Rei das Espanhas foi inicialmente usado para Filipe II quando conquistou Portugal e portanto, de facto, todas as Espanhas.
Filipe I tenta inicialmente conciliar os interesses da nobreza na aquisição de mais territórios na Europa, do Clero em derrotar os Protestantes e da burguesia em eliminar a concorrência e pirataria dos Ingleses e Holandeses. Todos os barcos capazes de acção militar de Lisboa, Sevilha e Barcelona são reunidos numa Invencível Armada que é enviada contra a Inglaterra. Devido a uma grande tempestade e à perícia dos Almirantes Ingleses, a armada é destruída. Esta derrota converte finalmente o Rei aos interesses da Nobreza territorial. Grandes exércitos (os Terços) de mercenários, pagos pelos mercadores e comandados pelos grandes Aristocratas de sangre puro Cristão-Velho, como o Duque de Alba,são formados e atravessam a Europa para tomar as cidades e terrenos férteis dos Países Baixos Calvinistas para o benefício dessa mesma Nobreza.
Enquanto isso os holandeses e ingleses dominam os mares, e incapazes de conquistar os impérios territoriais espanhóis do México e Peru, concentram-se em tomar as feitorias, portos e colónias costeiras dos portugueses, que traficam com Lisboa. São tomados os portos nordestinos do Brasil, Luanda em Angola, portos da África Oriental, o Cabo da Boa Esperança, Ceilão, Malaca e as Ilhas Molucas, a ilha de Formosa, a licença de comércio no Japão e outros portos.
A Armada Invencível, Quadro de Philippe-Jacques de Loutherbourg, 1796Lisboa, com os seus mercadores já sob perseguição da Inquisição (que expropriava os cripto-judeus e mesmo os cristãos genuínos), perdera grande parte da sua frota no desastre da Invencível Armada e que pagava impostos altíssimos para sustentar os exércitos dos nobres espanhóis na Europa, perde agora a maioria dos seus portos e produtos e é finalmente e irreversivelmente arruinada, rapidamente perdendo importância. Em 1598 a catástrofe é aprofundada por um terramoto e pela peste. Finalmente Filipe II de Portugal torna-se exclusivamente Filipe III de Espanha e depois o seu filho apenas Filipe IV de Espanha quando, sob conselho da Nobreza Castelhana e com a aquisciência dos Nobres territoriais Portugueses, absorve o Reino de Portugal no Reino de Espanha. Lisboa, a grande cidade cosmopolita é agora uma cidade de província sem qualquer influência junto dos grandes espanhóis de sangue puro, que governam da então conservadora e fundamentalista católica Madrid. Nesta época a cidade perde actividade económica e habitantes, diminuindo a população até menos de 150.000.
As construções deste período cabem em duas categorias: as defesas contra os piratas do norte, e os edifícios religiosos que apelam para a lealdade à monarquia universal católica pretendida pelo Rei. Foram construídos o Torreão um maciço edifício junto ao Terreiro do Paço, que não sobreviveu ao terramoto de 1755; o Convento de São Vicente de Fora; novas muralhas com novas disposições de acordo com a engenharia militar da época, como a Torre do Bugio numa ilha no meio do Mar da Prata; e fortificações em Cascais, Setúbal e na margem Sul. Os piratas ingleses e holandeses, como Francis Drake, fazem diversos ataques a algumas praças Portuguesas, mas não se atrevem a atacar Lisboa.
Com o declínio económico e o desemprego, aumenta muito a miséria e a criminalidade. As autoridades Espanholas são obrigadas a introduzir uma espécie de corpo policial, os quadrilheiros que patrulham as ruas da cidade e controlam o crime de rua, as lutas, a bruxaria e o jogo. Segundo algumas crónicas do tempo, a taxa de assassinatos no início do século XVII seria mesmo superior, numa cidade de 150.000 pessoas, à de hoje em Lisboa com 2.500.000.
Os problemas para o comércio na cidade aumentam quando os Catalães, um povo mercador como o de Lisboa, também oprimidos pelas taxas castelhanas, se revoltam em 1636. É a Portugal que Madrid vem exigir os homens e os fundos para derrotar os catalães, numa tentativa de usar os de Portugal contra os da Catalunha.
É então que os mercadores da cidade se aliam à pequena e média nobreza. Tentam convencer o Duque de Bragança, Dom João, a aceitar o trono, mas este, como o resto alta Nobreza, é beneficiado por Madrid e só o prospecto de se tornar Rei o convence finalmente. Os conspiradores assaltam o Palácio do Governador, aclamando o novo Rei D. João IV, com o apoio inicialmente do Cardeal Richelieu de França, e depois a velha aliança retomada com a Inglaterra.
[editar] O Ouro do Brasil
A Lisboa pós-Restauração é uma cidade cada vez mais dominada pelas ordens religiosas Católicas. Mais de 40 conventos são fundados na cidade em adição aos 30 já existentes, e os religiosos ociosos cuja sustentação é assegurada pelas esmolas e expropriações contam-se aos muitos milhares, constituindo mais de 5% da população da cidade. O clima político é cada vez mais conservador e autoritário e a Inquisição, depois de destruída a classe mercadora, concentra-se no controlo das mentalidades, vigiando as ideias e a creatividade, que suprime em nome da pureza da Religião. Os segundos e terceiros filhos, que não recebem a herança do pai, e que antes se dedicavam ao comércio e às empresas além-mar, agora simplesmente se refugiam nas ordens religiosas e vivem à conta de outrem, a maioria das vezes de forma apenas superficialmente religiosa.
A situação de ruína económica é finalmente resolvida não pelos projectos bem sucedidos dos mais capazes empreendedores, mas pela exploração colonial pura e pelos subsídios do Estado: é descoberto Ouro no Brasil, no actual Estado de Minas Gerais. O Estado Português cobra como imposto um quinto do ouro extraído, que começa a chegar a Lisboa em 1699 e cujas receitas Reais rapidamente chegam às várias toneladas anuais (mais de 15 toneladas após 1730) representando quase todo o orçamento do Estado. A desligação do empreendimento económico e da riqueza, devido ao ouro que é extraido por uma fracção do custo, permite a manutenção do novo clima conservador autoritário na Capital. Em Portugal o Poder é de quem tem o Ouro, que não deseja reformas e pretende manter o Antigo Regime.
O Palácio de Mafra: um edifício construído com o Ouro do Brasil, nunca teve qualquer utilidade excepto proclamar o Poder da Igreja em PortugalCom o ouro, obras simbólicas da finalmente atingida supremacia absoluta das forças socias conservadoras Portuguesas, o Clero Católico e a Aristocracia Territorial, são construídas no novo estilo da Contra-Reforma, o Barroco. O mais significativo é o Convento de Mafra (acabado em 1730 por mais de 50.000 trabalhadores, mas nunca usado), nos arredores da cidade; o Panteão Nacional (ou Igreja de Santa Engrácia) em Lisboa; grandiosas modificações do Palácio Real; juntamente com inúmeros Palácios Aristocráticos e algumas obras úteis mas construídas com desperdício, como o Aqueduto das Águas Livres (1720).
Contrastando com a enorme riqueza corrupta das altas elites, o povo vive na miséria. A cidade cresce com a necessidade de mão-de-obra para as contruções faraónicas, para 185.000, mas após as obras não há emprego. São deste período as primeiras descrições de Lisboa como uma cidade suja, degradada e não europeia: apenas dois séculos depois de sob governo dos mercadores liberais, ter sido conhecida como a mais prospera e cosmopolita da Europa.
terramoto de 1755Termina este período em 1 de Novembro 1755, dia de Todos os Santos, em que ocorre o grande terramoto de Lisboa. Às nove horas e quarenta minutos a terra começa a tremer com uma intensidade que provavelmente não foi ultrapassada até hoje em todo o Mundo. Após cerca de um minuto, regressa a calma, seguida de novo tremor. A população acorre às praças com espaço junto ao rio Tejo, para morrerem afogadas pelo enorme Tsunami que vem do Atlântico. Depois do sismo, Lisboa está em ruínas. O grande Torreão Real, a Casa das Índias, o Convento do Carmo, o Tribunal da Inquisição, o Hospital de Todos-os-Santos são destruídos. Das 20.000 casas das classes mais baixas, de construção menos sólida, 17.000 são destruídas. Sobrevive o rico Bairro Alto, alguns edifícios de pedra sólida e poucas outras áreas. Seguem-se as pilhagens e os grandes incêndios. No fim, dos 180.000 habitantes, mais de 10.000 terão morrido e muitos outros perderam toda a sua propriedade. É esta catástrofe que abala a confiança do Antigo Regime, e dá espaço ao Ministro, o Marquês de Pombal, de tentar por finalmente em prática em Portugal as reformas cientificas e liberais já usadas com sucesso no Norte, da novas teorias políticas e económicas do Iluminismo.
O Marquês de Pombal
[editar] Século das Luzes
O Marquês de Pombal Sebastião José de Carvalho e Melo, Ministro da Guerra e Negócios Estrangeiros e oriundo da Baixa Nobreza, reagindo celebremente às ruínas do terramoto, terá dito que era necessário enterrar os mortos, cuidar dos vivos e construir a cidade. Uma ideia que vai desenvolver de seguida a nível da economia e sociedade. O poder da Igreja é limitado e a sua falange, os Jesuítas, é expulsa do país. O poder da aristocracia territorial conservadora é brutalmente suprimido, numa série de conspirações e contra-conspirações, que acabam com a cruel execução da família que lidera a reacção, os Távora. Estes teriam sido responsáveis por um atentado ao Rei José I de Portugal numa tentativa de proclamar o conservador Duque de Aveiro Rei, e demitir Pombal, embora haja historiadores que defendam que esta acusação não terá passado de uma farsa manipulada pelo próprio Marquês por motivos pessoais. A Inquisição é extinta e os cristãos-novos, ainda então constituindo a maior parte das classes médias educadas e liberais da cidade e do país, são libertados das suas limitações legais e é-lhes finalmente permitido o acesso aos altos cargos governamentais, anteriormente monopólio legal da aristocracia de "sangue-puro". A indústria é apoiada de forma algo dirigista mas vigorosa, sendo estabelecidas várias fábricas reais em Lisboa e noutras cidades, que prosperam. Após o período Pombalino há 20 novas fábricas para cada uma que existia anteriormente. Finalmente os vários impostos e direitos alfandegários dentro de Portugal, prejudiciais ao comércio, são abolidos. Em todoss estes propósitos, Pombal apoia-se nas doações e empréstimos dos mercadores e industriais Lisboetas.
Estátua a D. José no Terreiro do Paço.Em Lisboa, o Marquês, recusando os conselhos de alguns que pretendem mover a capital para outra cidade, ordena a reconstrução de acordo com as novas teorias de organização urbana, após ordenar uma avaliação da situação real através de um inédito inquérito à população. É ainda o Brasil colônia que paga quase toda a reconstrução, com mais de 20 milhões de cruzados. A cidade recebe ainda ajudas de países como a Inglaterra, a Espanha e a Hansa alemã, enchendo-se de estaleiros de construção. A maior parte da nobreza e aristocracia portuguesa refugia-se nas suas quintas nos arredores de Lisboa. O Rei instala-se num palácio improvisado de madeira ,a Tenda Real, enquanto o novo em pedra começava a ser erigido em Belém então ainda uma região fora da cidade de Lisboa. O grande volume de obras acontece, no entanto, no centro da antiga cidade, com o desenho de um novo projecto para a Baixa, o bairro mais atingido pelo terramoto. Este é projectado por Eugénio dos Santos e Carlos Mardel e aprovado pelo Marquês, enquadrando-se no espírito iluminista e pragmático da época: as ruas estreitas são substituídas por largas ruas rectilíneas dispostas ortogonalmente. Estas permitiriam não só a devida iluminação e ventilação das ruas (arejamento), como aufeririam mais segurança (patrulhamento, acesso aos edifícios em caso de incêncio e evitar a propagação de incêndios transversalmente à rua, etc.). Os edifícios a construir também foram alvo de uma política consistente, tendo a equipa projectista definido o desenho das fachadas, as regras de construção da estrutura dos edifícios e elaborado um conjunto de outra regulamentação com vista à produção de um conjunto habitacional capaz de enfrentar melhor um eventual terramoto, assim como redesenhar a estrutura social da cidade de Lisboa, atribuindo-lhe um novo pendor comercial à cidade. A estrutura inovadora escolhida consistia num esqueleto de madeira (a gaiola pombalina), uma malha rectangular com travamentos das suas diagonais (em cruz de Sto. André) onde se procurava que a flexibilidade da madeira se adaptasse à sobrecarga provocado pelo terramoto sem que a estrutura quebrasse. Esta estrutura em madeira assentaria num embasamento em alvenaria (que corresponderia ao primeiro piso das habitações, destinado a lojas, oficinas e armazéns) com arcos em abóbada de berço, que conferiria peso ao conjunto. Todos os edifícios da zona da Baixa assentariam numa estacaria em pinho que permitiria dar mais resistência ao solo arenoso da Baixa e garantir a transferência eficaz do peso dos edifícios para o solo sem que este cedesse. Os novos edifícios eram de arrendamento horizontal, estando hierarquizados em importância e qualidade pela sua proximidade à rua (geralmente o último piso possui pé direito mais baixo, varandas comuns, janelas mais pequenas, divisões menores, etc. e seria destinado à famílias com menos posses). Todos os edifícios teriam paredes corta-fogos de alvenaria a separá-los uns dos outros. A estandartização das fachadas, das janelas, das portas, dos azulejos de padrões geométricos simples no hall, etc. permitiria a aceleração do processo de construção através da produção em série destes elementos fora do local da obra. Todo o conjunto possui proporções e regras de composição clássicas, com recurso à proporção áurea. O centro estruturante da nova cidade seria a Rua Augusta que ligaria o limite Norte da cidade, o Rossio, e o limite Sul, o Terreiro do Paço, onde uma disposição monumental dos edifícios, o arco da Rua Augusta, um monumento ao rei e o Tejo a fechar a praça, contribuiriam para o desenho daquilo que se pretendia que fosse o novo coração da actividade comercial da reconstruída cidade de Lisboa. Os edifícios do Terreiro do Paço estariam destinados à instalação dos armazéns e grandes casas comerciais que se esperaria que voltassem a surgir e a animar a praça, mas após vários anos de abandono acabaram por ser ocupados por ministérios, tribunais, o Arsenal, a Alfândega e a Bolsa, já no reinado de D. Maria I.
Rua Augusta: as novas ruas mais largas e rectilíneas, com prédios de contrução em gaiola resistentes aos terramotos.Na extremidade Norte, paralela ao Rossio, estaria projectado um novo mercado, que acaba por nunca ser construído, tendo ficado a praça, inicialmente conhecida por Praça Nova ou das Ervas, hoje denominada Praça da Figueira.
A nova Praça da Figueira foi construída como novo mercado no período Pombalino.Ao contrário dos desejos e esperanças do Marquês de Pombal e da sua equipa, a reconstrução da cidade demora muito mais tempo do que esperado, tendo apenas terminado a sua reconstrução em 1806. A isto, deve-se em grande parte a pouca capacidade financeira da burguesia de uma cidade em crise. Apesar de tudo, e dentro da política de renovação da economia portuguesa, começam a surgir lentamente indícios de desenvolvimento. Moderadamente a cidade cresce até aos 250.000 habitantes em todas as direcções geográficas, ocupando os novos bairros da Estrela, Rato, então o novo centro industrial da cidade polarizado em torno da recente fonte de abastecimento da água trazida pelo aqueduto (novas fábricas de cerâmica), Alcântara, Ajuda, Sapadores, e as Amoreiras (onde estavam as novas fábricas da Seda, cujos vermes são alimentados das folhas dessa árvore). O Primeiro-Ministro tenta de todo o modo estimular as classes médias, que via como essenciais ao desenvolvimento do país e ao progresso. São formados os primeiros cafés propriedade de Luso-Italianos: alguns sobrevivem hoje desse tempo, como o Martinho da Arcada no Terreiro do Paço; o Nicola no Rossio, cujo dono Liberal iluminava a fachada após cada vitória política progressista; entre outros. Surge o hábito das soirées sociais entre os burgueses mais ricos, com a participação inédita de mulheres, em que a Nobreza conservadora não participa. É deste modo que surge novamente em Lisboa a classe média burguesa autoconsciente, composta de cristãos-novos e cristãos-velhos provenientes do Povo, a origem dos movimentos políticos pelo Liberalismo e pela República, que se manifestam nos novos Jornais da capital.
Pombal viria a ser demitido após a morte de Dom José, e a ascensão ao trono da muito religiosa Dona Maria I de Portugal, cuja grande contribuição foi a Basílica da Estrela. Aconselhada pelo Clero e pelos Nobres conservadores, além de demitir o primeiro-ministro procurou limitar e até reverter algumas das suas reformas progressistas, num movimento denominado a Viradeira. Segue-se a deterioração das condições económicas que muito tinham melhorado no tempo Pombalino, e os problemas orçamentais. Para lidar com a miséria e criminalidade novamente crescentes, é criada a Polícia sob liderança de Diogo Pina Manique em 1780. Renova-se a perseguição política desta vez sob forma secular: a Polícia persegue, prende, tortura e expulsa todos os progressistas: maçons, jacobinos e liberais; os jornais são submetidos à censura; muitas obras de filósofos liberais ou Protestantes proibidas e os cafés vigiados por polícias à paisana. A cultura é controlada e todas as manifestações menos Católicas são ilegalizadas, incluindo o antiquíssimo Carnaval. Só o Teatro é estimulado, com a construção em 1793 do Teatro de São Carlos no Chiado, que vem substituir a Ópera destruída durante o terramoto. É, no entanto, financiado pela iniciativa privada.
[editar] Guerra Civil: Liberais e Conservadores
No fim do Século XVIII, com a Revolução Americana de 1776, ganham peso as ideias liberais por toda a Europa. Na França estala a Revolução em 1789. Em Lisboa os liberais jubilam com a derrota da Aristocracia Francesa. Rapidamente se radicaliza a Revolução em Paris, caíndo nas mãos da extrema-esquerda, e o centrista Napoleão Bonaparte é chamado ao Poder pela Burguesia assustada, acabando por autonomear-se Imperador. A sua política na Europa é o Bloqueio continental, ou seja a proibição do comércio com a Inglaterra. Aliado deste país, Portugal recusa e Napoleão envia Junot à frente de um grande exército para conquistar o país.
Napoleão BonaparteJunot entra em Lisboa no dia 30 de Novembro de 1807. A Família Real portuguesa, alta Aristocracia e Clero haviam fugido no dia anterior. Junot é a princípio bem recebido pelos lisboetas e estabelece-se no Palácio de Queluz. As novas ideias liberais são discutidas pela burguesia Lisboeta com os oficiais franceses nos cafés da cidade, em especial no Nicola do Rossio, onde se estabelece o Quartel General Francês. Todos esperam a continuação das reformas do Marquês de Pombal, mas Junot não quer estimular ideias radicais e nada faz. Portugal é antes considerado um país a dividir: Lisboa seria directamente incorporada no Império Francês, enquanto o antigo Portucale seria ressuscitado no Reino da Lusitânia Setentrional.
A falta de reformas e o comportamento violento dos soldados franceses leva finalmente à Junta do Supremo Governo a pedir o auxílio da Inglaterra. É enviado um corpo expedicionário liderado por Wellesley e Beresford, e os franceses em menor número, são obrigados a retirar-se em finais de 1808 entrando simultaneamente, seguindo um acordo de retirada, os Ingleses na cidade onde se estabelecem em Arroios. Lisboa sofre economicamente com a abertura dos portos do Brasil à Inglaterra. Os Ingleses recebem de D. João VI, residente no Rio de Janeiro, o controlo do governo da cidade e país, que administram como uma colónia. Os burgueses partidários da França são executados. São então construídas defesas nos acessos à capital em Torres Vedras, onde desde o tempo dos Romanos acabava o território de Lisboa. Aí é vencida e forçada a retirar a nova força de invasão francesa liderada por André Masséna, em 1811. Daí partiriam os ingleses e alguns portugueses sob o General Wellington para libertar a Espanha. Napoleão será finalmente derrotado em 1815.
Com os burgueses de Lisboa sob opressão dos ingleses, são os burgueses do Porto que tomam controlo da cidade e se rebelam contra o colonialismo inglês e pelo Liberalismo em 1820, seguidos pelos de Lisboa a que se juntam expulsando os governadores ingleses num Golpe de Estado. As Cortes são convocadas pelos Liberais e é promulgada uma Constituição de 1822, uma Carta dos Direitos do Homem, e o fim dos privilégios do Clero e da Nobreza. O filho do rei, D. Miguel de Portugal encabeça os Reaccionários Conservadores Absolutistas, e inicia a Guerra Civil, contra as forças Revolucionárias Constitucionalistas Liberais do seu irmão o Imperador Pedro I do Brasil, depois Pedro IV de Portugal. É Dom Pedro que vence a guerra em 1834, mas a Constituição promulgada é mais conservadora que o esperado. No entanto são feitas algumas (poucas) reformas liberais, como a extinção das Ordens Religiosas, e a expropriação de muitos bens da Igreja Católica, que havia apoiado os Miguelistas. Desiludidos com Dom Pedro, há nova conspiração em Lisboa no ano de 1836, dos Setembristas (pequenos burgueses e letrados) que exigem a Constituição de 1822; e depois do sentido contrário, dois golpes de Estado dos Absolutistas, em 1836 e 1837. O País divide-se em dois grupos radicais que recusam dialogar um com o outro. Neste ambiente de caos, as grandes potências do norte planeiam a divisão das colónias e províncias do país.
No período de Governo Liberal (1820-1842) é marcado pelas guerras e guerrilhas mas ainda assim são introduzidas diversas reformas e empreendimentos. É finalmente implantado o velho projecto da iluminação pública da cidade, já existente em muitas propriedades privadas da burguesia, entre os anos de 1823 e de 1837. Inicialmente com lamparinas de azeite, mas mais tarde com óleo de peixe, serão substituídos pelas lâmpadas de gás em 1848. Além disso é contruida uma nova rede de estradas; e são introduzidos os barcos a vapor ligando Lisboa ao Porto pelo mar. São feitos planos para lançar os caminhos de ferro, mas a guerra com os Conservadores não o permite, e o primeiro troço, entre Lisboa e o Carregado só será inaugurado em 1856.
Este período é marcado pela perda de alguma viabilidade económica da cidade de Lisboa. O Brasil torna-se independente e os seus produtos e ouro já não escoam para a Capital. No período do Cabralismo são atribuídos títulos nobiliárquicos a muitos grandes burgueses, para os compremeter, com algum sucesso, com o partido conservador. Após a sua perda de rendimentos do Brasil a dependência do Estado torna-se atractiva e a classe ociosa teme a competição e apoia as divisões sociais artificiais e rígidas. É nesta época que se multiplicam os Barões e Viscondes desligados de propriedades territoriais, muitos hereditários mas muitos outros limitados à vida do beneficiário, que recebem rendas do Estado ou se dedicam à política corrupta do tempo. A grande aristocracia territorial ganha o hábito de passar o Inverno em Lisboa, seguindo para os seus solares apenas no Verão. No entanto é o povo que mais sofre com as guerras e a perda do Brasil: a cidade estagna e perde importância e de quinta mais populosa da Europa passa para décima e continua a descer. Os empregos tornam-se mais precários e a miséria aumenta novamente.
[editar] Lisboa entre a Europa e a África
A Estação do Rossio.
O Elevador de Santa Justa, de 1902
Um americano eléctrico moderno
Mapa da cidade em 1885.Após terminarem as guerras e conflitos entre os conservadores e liberais, Lisboa, tendo perdido o ouro e monopólio dos produtos do Brasil, a fonte de toda a sua riqueza desde o fim do século XVI encontrava-se numa situação económica desesperada. No Norte da Europa, as nações iniciavam a industrialização, e enriqueciam com o comércio das Américas (a Inglaterra viria a dominar o comércio brasileiro) e da Ásia. O atraso de Portugal parecia irreversível.
Sem conseguir derrotar definitivamente os Liberais, e assustadas com o desastre económico a que as políticas conservadoras tinham conduzido Portugal desde o século XVI, em contraste com o sucesso liberal da Inglaterra, França e Países Baixos, os Conservadores que dominavam o País e a capital cederam parcialmente. Reformas limitadas seriam permitidas em troca de manter o espírito Católico, rural e conservador e do poder político ser mantido nas mãos dos grandes proprietários. Seriam realizadas eleições mas apenas por aqueles qualificados pela propriedade avultada. A patronagem do Estado seria partilhada com a nova classe e foram concedidos títulos aos grandes burgueses e capitalistas. No entanto mantiveram-se os privilégios e subsídios do Estado às classes dirigentes, e a industrialização seria limitada aos interesses destas.
Neste período Lisboa é uma cidade pobre e suja quando comparada às cidades do Norte da Europa. Quase toda a sua importância comercial se resume ao monopólio que mantém sobre os produtos das colónias portuguesas, especialmente Angola e Moçambique. O próprio país é descrito em Londres, Paris e Berlim como uma extensão do Norte de África, ou seja, um território incapaz de se governar a si mesmo. Iniciam-se as primeiras emigrações já não para governar e dirigir outras terras, mas antes para trabalhar a partir da mais baixa escala social: partem para o Brasil muitos milhares de pobres lisboetas. Face à miséria e atraso de quase todo o país surge em Lisboa uma classe alta muito rica que, como se cega, gasta e comporta-se como se pertencesse às elites do Norte da Europa, enquanto governa um país rural e atrasado, vergado pelo proteccionismo económico, falta de educação e cuidados de Saúde providos pelo Estado. Com a diminuição de importância da terra como factor de riqueza, nobreza territorial e alta burguesia orbitam a Corte Real, vivendo luxuosamente dos subsídios e salários distribuídos por esta com os impostos recolhidos aos pobres. Estabelece-se um regime "de brandos costumes", onde cessam as perseguições, mas também as reformas, e a corrupção é rotina e quase sempre impune.
Entre os governantes inertes e corruptos, existem alguns que melhor compreendem a necessidade de mudanças. Fontes Pereira de Melo é o ministro que mais luta pela liberalização da economia e a industrialização. Vários empreendimentos económicos e industriais são estimulados.
É contruída uma rede de caminhos de ferro ligando Lisboa ao Porto e cidades intervenientes, a partir de duas novas estações de comboios, a Estação de Santa Apolónia e a Estação do Rossio. A luz eléctrica é implantada em 1878, substituindo a iluminação a gás. Em termos urbanísticos, são criados os primeiros planos directores. É necessário mudar a imagem da suja capital que choca os visitantes da Europa do Norte. Os habitantes são então estimulados a usar azulejos ou pintar as fachadas de cor-de-rosa, segundo as directrizes municipais (ainda hoje dominam o centro da cidade os inúmeros prédios rosas com azulejos deste período). Além disso são criados os primeiros sistemas de canalizações, esgotos e tratamento de água, respondendo aos ataques de cólera que matam milhares. Utilizando o novo proletariado miserável, é possível agora recalcetar as novas e velhas vias (incluindo o Rossio) tal como havia sido feito em menor escala no século XVI, com a velha técnica da calçada portuguesa. Outras inovações importantes são os americanos ou carruagens transportadas em carris por cavalos, introduzidos em 1873 (seriam substituídos em 1901 pelos americanos eléctricos, que ainda hoje existem); os elevadores eléctricos que são instalados em muitas das colinas depois de 1880.
O centro cultural e comercial da cidade passa então para o Chiado. Com as velhas ruas da Baixa já ocupadas, os donos de novas lojas e clubes estabelecem-se na colina anexa, que rapidamente se transforma. Aqui são fundados os Clubes, como o Grémio Literário famoso das histórias de Eça de Queiróz, e frequentado por Almeida Garrett, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Oliveira Martins e Alexandre Herculano. Estabelecem-se ainda lojas de roupas das modas de Paris e outros produtos de luxo, grandes armazéns no estilo do Harrods de Londres ou das Galerias Lafayette de Paris e novos cafés de Luso-Italianos, como O Tavares e o Café do Chiado.
Novas construções e vias abrem os novos bairros do norte de Lisboa, estimulados pela Câmara Municipal apoiada pelos burgueses. Em 1878 o Passeio Público é demolido e substituído em 1886 pela nova Avenida da Liberdade, desenhada por Ressano Garcia. A Avenida tem mais de um quilómetro e estende-se pelas terras agrícolas, antecipando a expansão urbana. É criado a partir dela todo o eixo urbano central da cidade (hoje em 2005 novamente em expansão). No cimo da avenida é construída a Praça do Marquês de Pombal, da qual partem as novas vias da Nova Lisboa. Nestas Avenidas Novas constroem palacetes as elites de Lisboa, junto a novos edifícios públicos como o Liceu Camões (1907) e a Maternidade Alfredo da Costa (1909). A mais importante destas é a Avenida Fontes Pereira de Melo, para nordeste, que termina na nova Praça Duque de Saldanha. Daí parte a outra grande Avenida, hoje da República mas inicialmente de Ressano Garcia. Nas imediações deste existe o Campo Grande (então um descampado e não um Jardim) e a nova praça de touros do Campo Pequeno, acabada em 1892 num estilo neomourisco. Novos bairros são construídos nas imediações segundo planos semelhantes aos da Baixa Pombalina: o bairro de Campo de Ourique para oeste, e o da Estefânia para leste. Junto ao bairro da Estefânia é contruída nova grande Avenida Dona Amélia (hoje Avenida Almirante Reis), ligando-a ao Martim Moniz. Todas estas novas construções tranformam a cidade. O novo centro geográfico de Lisboa é o Marquês e a Baixa é apenas a localização das grandes lojas. Para leste estabelecem-se as pequenas classes médias e o povo, enquanto para oeste as altas classes médias e os ricos burgueses.
Culturalmente este é o período em que as touradas e fado se tranformam em verdadeiros entretenimentos populares regulares. A eles se junta o teatro popular ou teatro de revista (inventado em Paris) que, com as velhas e eruditas comédias e dramas, disputa os novos teatros da capital. Um entretenimento típicamente português deste tempo é a Oratória, em que actores corrompem a velha arte do Padre António Vieira em argumentos cantados, floridos e quase sempre superficiais com que disputam prémios. Surgem ainda os primeiros grandes jardins públicos, imitando o Hyde Park de Londres e os jardins das cidades alemãs: o primeiro é o Jardim da Estrela, onde passeiam os burgueses aos fins-de-semana.
Socialmente as classes altas são agora uma mistura de nobres conservadores que são obrigados com relutância a aceitar algumas ideias liberais e burgueses titulados que aderem a muitas ideias conservadoras. A eles juntam-se os brasileiros, os emigrantes pobres e pouco educados que haviam enriquecido no Brasil e voltado para a cidade na ânsia de aceitação nos altos círculos sociais. Lisboa é o centro industrial do país (apesar de a sua industrialização ser mínima comparada à da Inglaterra ou Alemanha). As classes pobres de Lisboa crescem exponencialmente, com a chegada dos primeiros proletários que trabalham nas novas fábricas. Estes vivem muitas vezes em bairros miseráveis e degradados, onde grassa a cólera e outras doenças, trabalhando todo o dia para apenas ter suficiente que comer.
Os liberais das classes médias traídas, cujos impostos pagam os luxos das classes altas sem nada receber em troca, renovam-se num novo movimento liberal mais radical, que ameaça não só os antigos proprietários de terras mas também os novos barões e viscondes capitalistas dependentes do Estado.
Da aliança entre os proletários mais educados e as classes médias nasce o novo Liberalismo Radical, melhor conhecido como Republicanismo devido à sua oposição à aliança de antigos liberais agora dependentes do Estado Monárquico (os burgueses titulados) e Conservadores (velha aristocracia) Monárquicos: os grandes capitalistas, proprietários de terras e dependentes da Corte.
[editar] A Revolução de 1910
A Bandeira do Partido Republicano é hoje a Bandeira de PortugalCom o surgimento do compromisso entre os Liberais mais à direita e os conservadores mais moderados, que se manifestou na Monarquia Constitucional, a falta de desenvolvimento e de reformas ainda notável do País levou a ala mais esquerdista, ou radical dos Liberais,contituida principalmente pelas classes médias, a reformular os seus objectivos políticos. Nasceu assim o Partido Republicano que defendia reformas liberais radicais como o sufrágio universal, o fim dos privilégios à Igreja Católica e das rendas aos nobres, e acima de tudo o derrube de uma elite política cada vez mais desacreditada pela corrupção e incompetência. O País endivida-se e está cada vez mais dependente dos Países do Norte. Um episódio catárquico foi sem dúvida a humilhação frente ao Ultimato Inglês, por uma nação aliada.
As condições que possibilitaram a subida ao poder dos Republicanos foram acima de tudo económicas. No fim do século XIX, houve uma lenta e pouco vigorosa industrialização em Portugal, mas ela concentrou-se bastante na cidade de Lisboa. Apesar de o povo do país continuar rural e católico na sua maioria, e apoiar o Rei e a Igreja, nasce então uma nova classe popular em Lisboa (e em menor grau no Porto e na Beira) que partilha ideias mais progressistas: o proletariado. A grande indústria de Lisboa é então o fabrico de derivados do tabaco, mas também existem fábricas de texteis, vidros, conservas e borracha, entre várias outras. No total, no fim do século XIX haveria muitas dezenas de milhares de trabalhadores nas indústrias numa população total de mais de 300.000 pessoas. As primeiras "zonas industriais" de Lisboa são os bairros de Alcântara, Bom Sucesso e Santo Amaro. As condições em que vive a nova classe popular de Lisboa são miseráveis. Vindos em grandes números do meio rural sem nada, instalam-se em bairros de lata extensos, nos arredores da cidade, e é frequente as crianças trabalharem longas horas nas fábricas. Outros vêm em grupos grandes da mesma aldeia, e instalam-se em terrenos abandonados, em núcleos fechados no interior da cidade, conhecidos por pátios ou quintais (muito comuns na Graça). Surgem os primeiros bairros operários, cujas habitações são contruidas a custo mínimo por empresários para atrair força laboral.
Surgem então os primeiros sindicatos, muitos dos quais se afiliam com os anarquistas. Em vez de se juntarem aos novos partidos Marxistas como noutros países da Europa, outros proletários reúnem-se à volta das classes médias e profissionais (médicos e advogados) do Partido Republicano. Como resultado, o Partido, muito débil no norte do País (com a excepção do Porto), ganha cada vez mais influência na capital. Apesar de defenderem a propriedade e o mercado livre, os republicanos prometem melhoria das condições laborais e medidas sociais. Contudo as classes altas vivem ainda numa sociedade à parte, e não são capazes de reagir às novas exigências excepto com a repressão. O resultado são as acções cada vez mais violentas.
Alarmadas as elites impõem a ditadura em 1907 com João Franco, mas é tarde de mais. Em 1908 a família real sofre um atentato em que morrem o Rei Dom Carlos de Portugal e o Príncipe herdeiro, numa acção provavelmente executada pelos anarquistas (que neste período atacam figuras públicas em toda a Europa). Em 1909 os operários de Lisboa organizam extensas greves. Em 1910 Lisboa revolta-se finalmente. A população da cidade forma barricadas nas ruas e são distribuidas armas. Os exércitos ordenados a reprimir a revolução são desmembrados pelas deserções. O resto do país é obrigado a seguir a capital, apesar de continuar profundamente rural, católico e conservador. É proclamada a Primeira República.
São promulgadas medidas liberais: apoio social aos trabalhadores, com criação do Estado Previdência, direito à greve, fim dos privilégios da Igreja e nobreza, direito ao divórcio. Os impostos são modificados, de um modelo que se baseava nas contribuições dos trabalhadores e classes médias, para outro que tributava mais os mais ricos.
[editar] República
O período da República é marcado pelas disputas e violências políticas. Apesar de a situação ser tensa neste período por toda a Europa, com vários ataques terroristas e tumultos mesmo nos países mais desenvolvidos, em Portugal a situação terá sido mais crítica. Entalado entre as elites monárquicas hostis e os movimentos laborais cada vez mais extremistas, animados pelas novas teorias do anarquismo e marxismo, que apelam à luta nas ruas contra os "regimes burgueses", e herdando uma dívida pública recorde dos últimos anos da Monarquia, a República é um período de convulsões: sucedem-se as greves gerais (agora legais), as manifestações e mesmo os atentados à bomba e bala nas ruas de Lisboa, e a classe política Republicana divide-se sobre o modo de lidar com a situação. Em 1912 os monárquicos aproveitam o descontentamento com as leis liberais dos republicanos no norte do país, e aí tentam o golpe de estado, que falha. Em 1916 Portugal entra do lado aliado na Primeira Guerra Mundial, enviando homens e recursos muito consideráveis num período de crise, e a situação económica e política fica cada vez mais tensa, havendo mesmo episódios de fome.
O resultado são mais golpes de Estado contra a república democrática pelos conservadores e pró-católicos, muitas vezes com o apoio dos líderes dos sindicatos e movimentos de trabalhadores que pretendem criam distúrbios que lhes permitam mais ganhos revolucionários: em 1915, toma pela força o poder o general Joaquim Pimenta de Castro, e em 1917 Sidónio Pais assume o Poder de forma autoritária e inconstitucional. Ambos dissolvem o Parlamento e governam de forma ditatorial. Em 1918 cai sobre a cidade a gripe espanhola, que mata muitos milhares e piora a situação dos operários, que de seguida se revoltam várias vezes, e Sidónio Pais é assassinado.
Neste período é construída grande parte dos edifícios de habitação ao longo do norte da cidade aberto pelas Avenidas Novas. Pintados com as cores tradicionais da cidade, amarelo, cor-de-rosa e azul claro, com fachadas de vários andares encabeçadas por mansardas, formam ainda hoje a mais visível face da cidade. Quase todos são erguidos por pequenos empresários, na sua maioria oriundos da cidade de Tomar, e por isso conhecidos como patos bravos. Alguns dos novos edifícios são construídos à pressa e com poucas preocupações de segurança, que dariam origem a vários acidentes com desmoronamentos e vítimas mortais nos anos seguintes.
O fim da I República ocorre em 1926, quando a direita conservadora antidemocrática (ainda em pleno século XX largamente liderada pelos descendentes da antiga Nobreza do norte de Portugal e pela Igreja Católica) toma finalmente o poder após mais duas tentativas em 1925, alegadamente de forma a por fim à anarquia que ela própria tinha largamente criado. Inicialmente militar, liderado pelo General Gomes da Costa, o novo governo rapidamente adopta uma ideologia semi-fascista sob a liderança de Salazar. O regime de Salazar e Marcello Caetano seria derrubado pela revolução dos cravos num golpe de estado realizado em Lisboa a 25 de Abril de 1974.
[editar] Lisboa após o 25 de Abril de 1974
O Wikimedia Commons possui multimédia sobre: História de Lisboa.
Referências
↑ [1]
↑ [2]
↑ McKenna, Stephen. Paganism and Pagan Survivals in Spain up to the Fall of the Visigothic Kingdom
↑ Povos pré-romanos da península Ibérica (circa 200 BC)
↑ Scheen, Rolf. Viking raids on the spanish peninsula
↑ (em inglês)Osbernus, De expugnatione Lyxbonensi
↑ Da Carta Do Crusado Sobre a Conquista De Lisboa. O Portal da História
[editar] Ver também </div>PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-71774398925177943732009-05-06T06:58:00.000-07:002009-05-12T08:42:41.223-07:00MUDANÇAS NA LINGUA PORTUGUESA<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgQFQqicQMZ8Pld6YXKhd7VSZqgkvqNljwJu-Nr03sahj5PqANAw5FCWBQtiZQeEhGMfLkf39ufF9G70WFebZeLhurUw4gYe6BaAtqj4BYbIeO-buEm7iaRC7-WX0feBi_HaD3x-sl1_FE/s1600-h/CONCRR4.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5332713719360559314" style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; WIDTH: 117px; CURSOR: hand; HEIGHT: 111px" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgQFQqicQMZ8Pld6YXKhd7VSZqgkvqNljwJu-Nr03sahj5PqANAw5FCWBQtiZQeEhGMfLkf39ufF9G70WFebZeLhurUw4gYe6BaAtqj4BYbIeO-buEm7iaRC7-WX0feBi_HaD3x-sl1_FE/s320/CONCRR4.jpg" border="0" /></a><br /><div><br /></div><div></div><div></div><div></div><div>Sumário<br />3 Apresentação<br />4 Linha do tempo das mudanças ortográficas<br />da língua portuguesa<br />8 Objetivos do Acordo Ortográfico<br />9 Principais mudanças do Acordo<br />14 Texto oficial<br />35 Escreva certo pelo Acordo<br />54 Bibliografia<br />Apresentação<br />E ste guia foi feito para auxiliar você, professor, a entender<br />melhor as mudanças que irão ocorrer na escrita da língua<br />com a aprovação do novo Acordo Ortográfico.<br />Ele apresenta uma linha do tempo que mostra como a questão<br />da unificação da escrita do português surge no século XIX e continua<br />até os dias atuais, sempre com muita polêmica e discussão.<br />Em seguida, um quadro sintetiza de modo prático as principais<br />mudanças na ortografia. O texto oficial do acordo vem<br />logo após.<br />No final, apresentamos listas de exemplos, que servirão de<br />consulta rápida para as dúvidas que surgirão.<br />É importante ressaltar, porém, que este guia não substitui o<br />Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (Volp), que deverá<br />ser lançado pela Academia Brasileira de Letras de acordo com<br />as novas regras e irá oficializar a grafia padrão para as palavras<br />em língua portuguesa.<br />Duas capas de Os lusíadas, uma de 1572 e outra de 1584, mostram o nome<br />do poeta grafado de maneiras diferentes: Luis de Camoes e Lvis de Camões.<br />Séculos XII a XV<br />Surgem os primeiros documentos escritos em português. A ortografia portuguesa<br />tenta reproduzir os sons da fala para facilitar a leitura:<br />• a duplicação das vogais indica sílaba tônica: ceeo = céu, dooe = dói;<br />• a nasalização das vogais é representada pelo til (manhãas = manhãs), por dois<br />acentos (mááos = mãos) e por m e n (omde = onde; senpre = sempre).<br />• o i pode ser substituído por y ou j (ay = ai; mjnas = minhas).<br />Mas não há uma padronização e uma mesma palavra aparece grafada de modos<br />diferentes: ygreja, eygreya, eygleyga, eigreia, eygreia (= igreja); home, homee, ome,<br />omee (= homem).<br />reprodução<br />reprodução<br />˜<br />4<br />Linha do tempo das<br />mudanças ortográficas<br />da língua portuguesa<br />Cartão-postal de 1903, em que<br />aparecem palavras com as<br />consoantes dobradas cc e nn.<br />Em 1881, foi publicada a 1a edição em livro de<br />Memorias posthumas de Braz Cubas,<br />de Machado de Assis.<br />reprodução<br />reprodução<br />1904<br />Séculos XVI a XX<br />A partir da segunda metade do século XVI, a língua portuguesa<br />sofre influência do latim e da cultura grega, graças ao<br />Renascimento e à necessidade de valorização do idioma.<br />O critério passa ser o de respeitar as letras originárias das<br />palavras, isto é, sua origem etimológica. Empregam-se:<br />• ph, th, ch, rh e y, que representavam fonemas gregos:<br />philosophia, theatro, chimica (química), rheumatismo,<br />martyr, sepulchro, thesouro, lyrio;<br />• consoantes mudas: septembro, enxucto, maligno;<br />• consoantes duplas: approximar, immundos.<br />No início do século XIX, o escritor Almeida Garrett defende<br />a simplificação da escrita e critica a ausência de normas<br />que regularizem a ortografia.<br />No final do século XIX, cada um escreve da maneira que<br />acha mais adequada.<br />1904 Ortografia nacional, do filólogo<br />Gonçalves Viana (1840-1914), é publicada<br />em Portugal. Nela, o estudioso apresenta<br />proposta de simplificar a ortografia:<br />• eliminação dos fonemas gregos th (theatro),<br />ph (philosofia), ch (com som de k,<br />como em chimica), rh (rheumatismo) e y<br />(lyrio);<br />• eliminação das consoantes dobradas, com<br />exceção de rr e ss: cabello (= cabelo);<br />communicar (= comunicar); ecclesiastico<br />(= ecle-<br />siástico); sâbbado (= sábado).<br />• eliminação das consoantes nulas, quando<br />não influenciam na pronúncia da vogal<br />que as precede: licção (= lição); dacta<br />(= data); posthumo (= póstumo); innundar<br />(= inundar); chrystal (= cristal);<br />• regularização da acentuação gráfica.<br />5<br />1971 1945 1943 1934 1933 1931 1919 1915 1911 1907<br />Cartão-postal de 1908, em que se vê a palavra<br />telephone, grafada com ph, e escriptorio,<br />com p mudo.<br />Capa de partitura do samba Pelo telephone,<br />sucesso do carnaval de 1917. Além<br />do uso do ph, chama a atenção a<br />grafia da palavra successo.<br />1907 A partir de uma proposta do jornalista, professor,<br />político e escritor Medeiros e Albuquerque, a<br />Academia Brasileira de Letras (ABL) elabora projeto de<br />reformulação ortográfica com base nas propostas de<br />Gonçalves Viana.<br />1911 Portugal oficializa, com pequenas modificações,<br />o sistema de Gonçalves Viana.<br />1915 A ABL aprova a proposta do professor, filólogo<br />e poeta Silva Ramos que ajusta a reforma ortográfica<br />brasileira aos padrões da reforma portuguesa de 1911.<br />1919 A ABL volta atrás e revoga o projeto de 1907,<br />ou seja, não há mais reforma.<br />1931 A Academia das Ciências de Lisboa e a Academia<br />Brasileira de Letras assinam acordo para unir<br />as ortografias dos dois países.<br />1933 O governo brasileiro oficializa o acordo<br />de<br />1931.<br />1934 A Constituição Brasileira revoga o acordo de<br />1931 e estabelece a volta das regras ortográficas de<br />1891, ou seja, ortografia voltaria a ser grafada orthographia.<br />Protestos generalizados, porém, fazem com<br />que essa ortografia seja considerada optativa.<br />1943 Convenção Luso-Brasileira retoma, com pequenas<br />modificações, o acordo de 1931.<br />1945 Divergências na interpretação de regras resultam<br />no Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro. Em<br />Portugal, as normas vigoram, mas o Brasil mantém<br />a ortografia de 1943.<br />1971 Decreto do governo altera algumas regras da<br />ortografia de 1943:<br />• abolição do trema nos hiatos átonos: saüdade (=<br />saudade), vaïdade (= vaidade);<br />• supressão do acento circunflexo diferencial nas letras<br />e e o da sílaba tônica das palavras homógrafas,<br />com exceção de pôde em oposição a pode: almôço<br />(= almoço), êle (= ele), enderêço (= endereço),<br />gôsto (= gosto);<br />• eliminação dos acentos circunflexos e graves que<br />marcavam a sílaba subtônica nos vocábulos derivados<br />com o sufixo -mente ou iniciados por -z- : bebêzinho<br />(= bebezinho), vovôzinho (= vovozinho),<br />sòmente (= somente), sòzinho (= sozinho), ùltimamente<br />(= ultimamente).<br />reprodução reprodução<br />6<br />Anúncio de 1932 do sabonete das "estrêlas".<br />1975 1986 1990 1995 1998 2002 2004 2006 2008<br />1975 As colônias portuguesas na África (São<br />Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola<br />e Moçambique) tornam-se independentes.<br />1986 Reunião de representantes dos sete países<br />de língua portuguesa no Rio de Janeiro resulta<br />nas Bases Analíticas da Ortografia Simplificada<br />da Língua Portuguesa de 1945, mas que nunca<br />foram implementadas.<br />1990 Surge o Acordo de Ortografia Simplificada<br />entre Brasil e Portugal para a Lusofonia, nova<br />versão do documento de 1986.<br />1995 Brasil e Portugal aprovam oficialmente o<br />documento de 1990, que passa a ser reconhecido<br />como Acordo Ortográfico de 1995.<br />1998 No Primeiro Protocolo Modificativo<br />ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />fica estabelecido que todos os membros da<br />Comunidade dos Países de Língua Portuguesa<br />(CPLP) devem ratificar as normas propostas no<br />Acordo Ortográfico de 1995 para que este seja<br />implantado.<br />2002 O Timor Leste torna-se independente e<br />passa a fazer parte da CPLP.<br />2004 Com a aprovação do Segundo Protocolo<br />Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua<br />Portuguesa, fica determinado que basta a ratificação<br />de três membros para o acordo entrar em<br />vigor. No mesmo ano, o Brasil ratifica o acordo.<br />2006 Cabo Verde e São Tomé e Príncipe ratificam<br />o documento, possibilitando a vigoração<br />do acordo.<br />2008 Portugal aprova o Acordo Ortográfico.<br />reprodução reprodução Em 1960, as palavras "<br />côr" e<br />"<br />côres" eram grafadas<br />com acento circunflexo.<br />7<br />ATLÂNTICO<br />OCEANO<br />OCEANO<br />BRASIL<br />191,3 milhões<br />PORTUGAL<br />10,6 milhões<br />SÃO TOMÉ E<br />PRÍNCIPE<br />157 mil<br />TIMOR LESTE<br />1,1 milhão<br />MOÇAMBIQUE<br />20,5 milhões<br />ANGOLA<br />16,9 milhões<br />CABO VERDE<br />530 mil<br />GUINÉ-BISSAU<br />1,7 milhão<br />ÍNDICO<br />"Unificar a ortografia da língua portuguesa<br />que, atualmente, é o único idioma<br />do ocidente que tem duas grafias<br />oficiais — a do Brasil e a de Portugal", esse<br />é, segundo o MEC, o principal objetivo do<br />acordo ortográfico elaborado em 1990 e ratificado<br />pelo Brasil em 2004.<br />Ainda segundo o MEC, "com o acordo,<br />as diferenças ortográficas existentes entre o<br />português do Brasil e o de Portugal serão resolvidas<br />em 98%. A unificação da ortografia<br />acarretará alterações na forma de escrita em<br />1,6% do vocabulário usado em Portugal e de<br />0,5%, no Brasil".<br />Oito países (Angola, Brasil, Cabo Verde,<br />Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São<br />Tomé e Príncipe e Timor Leste) têm o português<br />como língua oficial. Juntos, totalizam<br />uma população de cerca de 230 milhões de<br />falantes.<br />A unificação facilitará a circulação de<br />materiais, como documentos oficiais e livros,<br />entre esses países, sem que seja necessário fazer<br />uma "tradução" do material.<br />Além disso, o fato de haver duas grafias<br />oficiais dificulta o estabelecimento do português<br />como um dos idiomas oficiais da Organização<br />das Nações Unidas (ONU).<br />Como diz o texto oficial do acordo, ele<br />"constitui um passo importante para a defesa<br />da unidade essencial da língua portuguesa e<br />para o seu prestígio internacional".<br />Objetivos do<br />Acordo Ortográfico<br />Fonte: Almanaque Abril 2008. São Paulo: Abril, 2008.<br />ALeSSANdro pASSoS dA CoSTA<br />8<br />Principais mudanças do Acordo<br />O que mudou Observações<br />Alfabeto (Base I)<br />As letras k, w e y foram incorporadas ao alfabeto.<br />O alfabeto passa a ter 26 letras: a, b, c, d, e, f, g, h, i, j,<br />k, l, m, n, o, p, q, r, s, t, u, v, w, x, y, z.<br />As letras k, w e y são usadas em casos especiais:<br />em nomes • de pessoas de origem estrangeira<br />e seus derivados: Kant, kantismo; Darwin,<br />darwinismo; Byron, byroniano.<br />• em nomes geográficos próprios de origem<br />estrangeira e seus derivados: Kuwait, kuwaitiano;<br />Malawi, malawiano; Okinawa, okinawano;<br />Seychelles, seychellense.<br />• em siglas, símbolos e palavras adotadas como<br />unidades de medida: www (World Wide Web);<br />K (símbolo químico de potássio); W (de west,<br />oeste); kg (quilograma); km (quilômetro); kW<br />(kilowatt), yd (de yard, jarda).<br />Vogais átonas (Base V)<br />Os adjetivos e os substantivos derivados com terminação<br />-iano e -iense são escritos com i, e não com e,<br />antes da sílaba tônica.<br />Exemplos: acriano (de Acre), açoriano, camiliano,<br />camoniano, ciceroniano, eciano, freudiano, goisiano<br />(relativo a Damião de Góis), sofocliano, torriano (de<br />Torres), zwingliano (Ulrich Zwingli), etc.<br />Acentuação gráfica<br />das palavras paroxítonas (Base IX)<br />• Os ditongos abertos tônicos éi e ói não são mais<br />acentuados graficamente.<br />Exemplos: assembleia, ideia, heroico, jiboia, etc.<br />(Ver mais exemplos na pág. 35)<br />• As formas verbais que contêm eem não são mais<br />assinaladas com acento circunflexo.<br />Exemplos: creem, deem, descreem, desdeem, leem,<br />preveem, redeem, releem, reveem, tresleem, veem,<br />etc.<br />• O penúltimo o do hiato oo(s) perde o acento circunflexo.<br />Exemplos: enjoo (substantivo e flexão do verbo enjoar),<br />povoo (flexão do verbo povoar), voos (substantivo<br />e flexão do verbo voar). (Ver mais exemplos<br />na pág. 36)<br />9<br />O que mudou Observações<br />Acentuação gráfica das palavras paroxítonas (Base IX)<br />Deixam de ser acentuadas • as seguintes palavras homógrafas:<br />–<br />para (flexão do verbo parar), homógrafa de para<br />(preposição);<br />– pela(s) (substantivo e flexão do verbo pelar), homógrafa<br />de pela(s) (combinação de per e la(s));<br />–<br />pelo (flexão do verbo pelar), homógrafa de pelo(s)<br />(substantivo ou combinação de per e lo(s));<br />– polo(s) (substantivo), homógrafa de polo(s), combinação<br />de por e lo(s));<br />–<br />pera (substantivo), homógrafa de pera (preposição).<br />• O verbo pôr continua acentuado.<br />• Continua a ser acentuada a forma pôde (terceira<br />pessoa do pretérito perfeito do indicativo<br />do verbo poder).<br />• É facultativo o uso do acento circunflexo<br />em:<br />– dêmos (primeira pessoa do plural do presente<br />do subjuntivo do verbo dar), homógrafa<br />de demos (primeira pessoa do plural<br />do presente do indicativo do verbo dar);<br />– fôrma (substantivo), homógrafa de forma<br />(substantivo/verbo).<br />Acentuação gráfica das palavras<br />oxítonas e paroxítonas (Base X)<br />• Deixam de ser acentuadas as vogais tônicas i e u das<br />palavras paroxítonas precedidas de ditongo.<br />Exemplo: baiuca. (Ver mais exemplos na pág. 36)<br />Permanecem acentuadas as vogais tônicas i e u<br />precedidas de ditongo de palavras oxítonas.<br />Exemplos: Piauí, teiú, teiús, tuiuiú, tuiuiús.<br />• O u tônico dos verbos arguir e redarguir não é<br />mais assinalado com acento agudo nas formas rizotônicas<br />(quando o acento agudo cai em sílaba do<br />radical) antes de e ou i.<br />Exemplos: arguis (segunda pessoa do singular do<br />presente do indicativo), argui (terceira pessoa do<br />singular do presente do indicativo e segunda pessoa<br />do singular do imperativo), arguem (terceira<br />pessoa do plural do presente do indicativo).<br />• As formas verbais do tipo de aguar, apaniguar, apaziguar,<br />apropinquar, averiguar, desaguar, enxaguar,<br />obliquar, delinquir e afins admitem duas pronúncias<br />diferentes, portanto duas grafias distintas:<br />a) Se o u dessas formas verbais for tônico, ele deixa<br />de ser acentuado graficamente.<br />Exemplo: averiguo.<br />b) Porém, se o a e o i passarem a tônicos, eles devem<br />ser acentuados graficamente.<br />Exemplo: averíguo.<br />a) (Ver as conjugações nas págs. 37 e 38)<br />10<br />O que mudou Observações<br />Trema (Base XIV)<br />O trema foi suprimido, exceto nas palavras derivadas<br />de nomes próprios estrangeiros.<br />Exemplos: hübneriano (de Hübner), mülleriano (de<br />Müller), etc.<br />(Ver exemplos de palavras que perderam o trema nas<br />págs. 38 e 39.)<br />Hífen (Base XV)<br />Palavras compostas • que perderam, em certa medida,<br />a noção de composição são grafadas aglutinadamente.<br />Exemplos: girassol, madressilva, mandachuva, paraquedas,<br />paraquedista, pontapé, etc.<br />• Usa-se o hífen em topônimos compostos iniciados<br />pelos adjetivos grã, grão ou por forma verbal ou<br />cujos elementos estejam ligados por artigos.<br />Exemplos: Grã-Bretanha, Grão-Pará, Passa-<br />-Quatro, Trás-os-Montes, etc.<br />• Usa-se o hífen em palavras compostas que designam<br />espécies botânicas e zoológicas, estejam ou não<br />ligadas por preposição ou qualquer outro elemento.<br />Exemplos: abóbora-menina, couve-flor, erva-doce,<br />feijão-verde; bênção-de-deus, erva-do-chá, ervilha-<br />-de-cheiro, fava-de-santo-inácio; bem-me-quer (tam-bém<br />conhecida como margarida ou malmequer);<br />andorinha-grande, cobra-capelo, formiga-branca;<br />andorinha-do-mar, cobra-d´água, lesma-de-conchinha;<br />bem-te-vi (pássaro).<br />• O advérbio bem, em muitos compostos, aparece<br />aglutinado com o segundo elemento, quer este tenha<br />ou não vida à parte.<br />Exemplos: benfazejo, benfeito, benfeitor, benquerença,<br />etc.<br />• Usa-se o hífen para ligar duas ou mais palavras que<br />ocasionalmente se combinam, formando encadeamentos<br />vocabulares.<br />Exemplos: a divisa Liberdade-Igualdade-Fraternidade,<br />a ponte Rio-Niterói, o percurso Lisboa-Coimbra-<br />Porto, a ligação Angola-Moçambique.<br />O hífen continua a ser empregado nas palavras<br />compostas por justaposição que não contêm<br />formas de ligação e cujos elementos constituem<br />uma unidade sintagmática e semântica.<br />Exemplos: arco-íris, decreto-lei, médico-cirurgião,<br />tenente-coronel, tio-avô, guarda-noturno,<br />mato-grossense, norte-americano, afro-asiático,<br />afro-luso-brasileiro, azul-escuro, primeiro-ministro,<br />conta-gotas, guarda-chuva, etc.<br />Os demais topônimos compostos são escritos<br />com os elementos separados, sem hífen.<br />Exemplos: América do Sul, Belo Horizonte,<br />Cabo Verde, etc.<br />Exceção: Guiné-Bissau, consagrada pelo uso.<br />Bem-vindo continua com hífen.<br />11<br />O que mudou Observações<br />Hífen (Base XVI)<br />• Usa-se o hífen nas formações com aero-, agro-,<br />ante-, anti-, arqui-, auto-, bio-, circum-, co-, contra-,<br />eletro-, entre-, extra-, geo-, hidro-, hiper-,<br />infra-, inter-, intra-, macro-, maxi-, micro-, mini,<br />multi-, neo-, pan-, pluri-, pós-, pré-, pró-, proto-,<br />pseudo-, retro-, semi-, sobre-, sub-, super-, supra-,<br />tele-, ultra-, etc.<br />a) se o segundo elemento começa por h.<br />Exemplos: anti-higiênico, co-herdeiro, extra-humano,<br />pré-história, etc.<br />b) se o primeiro elemento termina na mesma vogal<br />com que se inicia o segundo elemento.<br />Exemplos: anti-ibérico, contra-almirante, auto-<br />-observação, eletro-ótica, micro-onda, semi-<br />-interno, etc.<br />c) nas formações com os prefixos circum- e pan-,<br />quando o segundo elemento começa por vogal,<br />m ou n (além de h, como já visto).<br />Exemplos: circum-escolar, circum-murado,<br />circum-navegação; pan-africano, pan-mágico,<br />pan-negritude.<br />d) nas formações com os prefixos hiper-, intere<br />super-, quando o segundo elemento começa<br />por r.<br />Exemplos: hiper-requintado, inter-resistente,<br />super-revista.<br />e) depois dos prefixos ex- (com o sentido de estado<br />anterior ou cessamento), sota-, soto-, vice- e<br />vizo-.<br />Exemplos: ex-almirante, sota-piloto, soto-mestre,<br />vice-presidente, vizo-rei.<br />f) nas formações com os prefixos pós-, pré- e pró-,<br />sempre tônicos e acentuados, quando o segundo<br />elemento tem vida própria.<br />Exemplos: pós-graduação, pré-escolar, pró-africano.<br />Não se usa o hífen em formações que contêm<br />em geral os prefixos des- e in- e nas quais o segundo<br />elemento perdeu o h inicial.<br />Exemplos: desumano, desumidificar, inábil, inumano,<br />etc.<br />Exceção: Nas formações com o prefixo co-, este<br />aglutina-se em geral com o segundo elemento<br />mesmo quando iniciado por o.<br />Exemplos: cooperar, coobrigação, coocupante,<br />cooperação, coordenar, etc.<br />Não se usa hífen nas formas átonas (pos-, pre- e<br />pro-).<br />Exemplos: pospor, prever, promover.<br />12<br />O que mudou Observações<br />Hífen (Base XVI)<br />• Não se usa hífen nas formações em que o primeiro<br />elemento termina em vogal e o segundo elemento<br />começa por r ou s, sendo que essas consoantes são<br />duplicadas.<br />Exemplos: antirreligioso, contrarregra, cosseno, extrarregular,<br />infrassom, etc.<br />• Não se usa hífen nas formações em que o primeiro<br />elemento termina em vogal, se o segundo elemento<br />começa por vogal diferente.<br />Exemplos: antiaéreo, coeducação, coedição, coautoria,<br />extraescolar, aeroespacial, autoestrada, autoaprendizagem,<br />agroindustrial, hidroelétrico, plurianual,<br />etc.<br />(Ver mais exemplos nas págs. 40 a 53)<br />Divisão silábica (Base XX)<br />Se a palavra for composta ou for uma forma verbal<br />seguida de pronome átono e se a partição no final da<br />linha coincidir com o final de um dos elementos ou<br />membros, deve-se, por clareza gráfica, repetir o hífen<br />no início da linha imediata.<br />Exemplos: ex-<br />-presidente<br />vende-<br />-se<br />13<br />Considerando que o projecto de texto de ortografia unificada de língua<br />portuguesa aprovado em Lisboa, em 12 de outubro de 1990, pela Academia<br />das Ciências de Lisboa, Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola,<br />Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, com a<br />adesão da delegação de observadores da Galiza, constitui um passo importante<br />para a defesa da unidade<br />essencial da língua portuguesa e para o seu<br />prestígio internacional;<br />Considerando que o texto do acordo que ora se aprova resulta de um aprofundado<br />debate nos Países signatários,<br />a República Popular de Angola,<br />a República Federativa do Brasil,<br />a República de Cabo Verde,<br />a República da Guiné-Bissau,<br />a República de Moçambique,<br />a República Portuguesa,<br />e a República Democrática de São Tomé e Príncipe, acordam no seguinte:<br />Artigo 1o - É aprovado o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que consta<br />como anexo I ao presente instrumento de aprovação, sob a designação de<br />Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) e vai acompanhado da respectiva<br />nota explicativa, que consta como anexo II ao mesmo instrumento de<br />aprovação, sob a designação de Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da<br />Língua Portuguesa (1990).<br />Artigo 2o - Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos<br />competentes, as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 de janeiro<br />de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo<br />quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às<br />terminologias científicas e técnicas.<br />texto oficial<br />14<br />Texto oficial<br />Acordo Ortográfico<br />da Língua Portuguesa<br />Artigo 3o - O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor em<br />1 de janeiro de 1994, após depositados os instrumentos de ratificação de todos<br />os Estados junto do Governo da República Portuguesa.<br />Artigo 4o - Os Estados signatários adoptarão as medidas que entenderem<br />adequadas ao efectivo respeito da data da entrada em vigor estabelecida no<br />artigo 3o.<br />Em fé do que, os abaixo assinados, devidamente credenciados para o efeito,<br />aprovam o presente acordo, redigido em língua portuguesa, em sete exemplares,<br />todos<br />igualmente autênticos.<br />Assinado em Lisboa, em 16 de dezembro de 1990.<br />PELA REPÚBLICA POPULAR DE ANGOLA,<br />José Mateus de Adelino Peixoto, Secretário de Estado da Cultura<br />PELA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL,<br />Carlos Alberto Gomes Chiarelli, Ministro da Educação<br />PELA REPÚBLICA DE CABO VERDE,<br />David Hopffer Almada, Ministro da Informação, Cultura e Desportos<br />PELA REPÚBLICA DA GUINÉ-BISSAU,<br />Alexandre Brito Ribeiro Furtado, Secretário de Estado da Cultura<br />PELA REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE,<br />Luis Bernardo Honwana, Ministro da Cultura<br />PELA REPÚBLICA PORTUGUESA,<br />Pedro Miguel de Santana Lopes, Secretário de Estado da Cultura<br />PELA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE,<br />Lígia Silva Graça do Espírito Santo Costa, Ministra da Educação e Cultura<br />Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />15<br />texto oficial<br />16<br />Acordo Ortográfico<br />da Língua Portuguesa (1990)<br />Base I<br />Do alfabeto e dos nomes próprios estrangeiros e seus derivados<br />1o) O alfabeto da língua portuguesa é formado por vinte e seis letras, cada uma delas com uma forma<br />minúscula e outra maiúscula:<br />a A (á)<br />b B (bê)<br />c C (cê)<br />d D (dê)<br />e E (é)<br />f F (efe)<br />g G (gê ou guê)<br />h H (agá)<br />i I (í)<br />j J (jota)<br />k K (capa ou cá)<br />l L (ele)<br />m M (eme)<br />n N (ene)<br />o O (ó)<br />p P (pê)<br />q Q (quê)<br />r R (erre)<br />s S (esse)<br />t T (tê)<br />u U (u)<br />v V (vê)<br />w W (dáblio)<br />x X (xis)<br />y Y (ípsilon)<br />z Z (zê)<br />Obs.: 1. Além destas letras, usam-se o ç (cê cedilhado) e os seguintes dígrafos:<br />rr (erre duplo), ss (esse duplo), ch (cê-agá), lh (ele-agá), nh (ene-agá), gu (guê-u) e qu<br />(quê-u).<br />2. Os nomes das letras acima sugeridos não excluem outras formas de as designar.<br />2o) As letras k, w e y usam-se nos seguintes casos especiais:<br />a) Em antropónimos/antropônimos originários de outras línguas e seus derivados:<br />Franklin,<br />frankliniano; Kant, kantismo; Darwin, darwinismo; Wagner, wagneriano; Byron, byroniano;<br />Taylor, taylorista;<br />b) Em topónimos/topônimos originários de outras línguas e seus derivados: Kwanza; Kuwait,<br />kuwaitiano; Malawi, malawiano;<br />c) Em siglas, símbolos e mesmo em palavras adotadas como unidades de medida de curso<br />internacional: TWA, KLM; K – potássio (de kalium), W – oeste (West); kg – quilograma,<br />km – quilómetro/quilômetro, kW – kilowatt, yd – jarda (yard); Watt.<br />3o) Em congruência com o número anterior, mantêm-se nos vocábulos derivados eruditamente de nomes<br />próprios estrangeiros quaisquer combinações gráficas ou sinais diacríticos não peculiares à nossa<br />escrita que figurem nesses nomes: comtista, de Comte; garrettiano, de Garrett; jeffersónia/ jeffersônia,<br />de Jefferson; mülleriano, de Müller; shakespeariano, de Shakespeare.<br />Os vocábulos autorizados registrarão grafias alternativas admissíveis, em casos de divulgação<br />de certas palavras de tal tipo de origem (a exemplo de fúcsia/ fúchsia e derivados, buganvília/<br />buganvílea/ bougainvíllea).<br />4o) Os dígrafos finais de origem hebraica ch, ph e th podem conservar-se em formas onomásticas da<br />tradição bíblica, como Baruch, Loth, Moloch, Ziph, ou então simplificar-se: Baruc, Lot, Moloc, Zif. Se<br />qualquer um destes dígrafos, em formas do mesmo tipo, é invariavelmente mudo, elimina-se: José,<br />Nazaré, em vez de Joseph, Nazareth; e se algum deles, por força do uso, permite adaptação, substitui-<br />-se, recebendo uma adição vocálica: Judite, em vez de Judith.<br />5o) As consoantes finais grafadas b, c, d, g e t mantêm-se, quer sejam mudas, quer proferidas, nas<br />formas onomásticas em que o uso as consagrou, nomeadamente<br />antropónimos/antropônimos<br />e topónimos/topônimos da tradição bíblica: Jacob, Job, Moab, Isaac; David, Gad; Gog, Magog;<br />Bensabat, Josafat.<br />Integram-se também nesta forma: Cid, em que o d é sempre pronunciado; Madrid e Valhadolid,<br />em que o d ora é pronunciado, ora não; e Calecut ou Calicut, em que o t se encontra nas mesmas<br />condições.<br />Nada impede, entretanto, que dos antropónimos/antropônimos em apreço sejam usados sem a<br />consoante final Jó, Davi e Jacó.<br />6o) Recomenda-se que os topónimos/topônimos de línguas estrangeiras se substituam, tanto quanto<br />possível, por formas vernáculas, quando estas sejam antigas e ainda vivas em português ou quando<br />entrem, ou possam entrar, no uso corrente. Exemplo: Anvers, substituído por Antuérpia; Cherbourg,<br />por Cherburgo; Garonne, por Garona; Genève, por Genebra; Jutland, por Jutlândia; Milano,<br />por Milão; München, por Munique; Torino, por Turim; Zürich, por Zurique, etc.<br />Base II<br />Do h inicial e final<br />1o) O h inicial emprega-se:<br />a) Por força da etimologia: haver, hélice, hera, hoje, hora, homem, humor.<br />b) Em virtude da adoção convencional: hã?, hem?, hum!.<br />2o) O h inicial suprime-se:<br />a) Quando, apesar da etimologia, a sua supressão está inteiramente consagrada pelo uso: erva,<br />em vez de herva; e, portanto, ervaçal, ervanário, ervoso (em contraste com herbáceo, herbanário,<br />herboso, formas de origem erudita);<br />b) Quando, por via de composição, passa a interior e o elemento em que figura se aglutina ao<br />precedente: biebdomadário, desarmonia, desumano, exaurir, inábil, lobisomem, reabilitar,<br />reaver.<br />3o) O h inicial mantém-se, no entanto, quando, numa palavra composta, pertence a um elemento<br />que está ligado ao anterior por meio de hífen: anti-higiénico/ anti-higiênico, contra-haste, pré-<br />-história, sobre-humano.<br />4o) O h final emprega-se em interjeições: ah! oh!.<br />Base III<br />Da homofonia de certos grafemas consonânticos<br />Dada a homofonia existente entre certos grafemas consonânticos, torna-se necessário diferençar<br />os seus empregos, que fundamentalmente se regulam pela história das palavras. É certo que a variedade<br />das condições em que se fixam na escrita os grafemas consonânticos homófonos nem sempre<br />permite fácil diferenciação dos casos em que se deve empregar uma letra e daqueles em que, diversamente,<br />se deve empregar outra, ou outras, a representar o mesmo som.<br />Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />17<br />Nesta conformidade, importa notar, principalmente, os seguintes casos:<br />1o) Distinção gráfica entre ch e x: achar, archote, bucha, capacho, capucho, chamar, chave, Chico,<br />chiste, chorar, colchão, colchete, endecha, estrebucha, facho, ficha, flecha, frincha, gancho,<br />inchar, macho, mancha, murchar, nicho, pachorra, pecha, pechincha, penacho, rachar, sachar,<br />tacho; ameixa, anexim, baixei, baixo, bexiga, bruxa, coaxar, coxia, debuxo, deixar, eixo, elixir,<br />enxofre, faixa, feixe, madeixa, mexer, oxalá, praxe, puxar, rouxinol, vexar, xadrez, xarope, xenofobia,<br />xerife, xícara.<br />2o) Distinção gráfica entre g, com valor de fricativa palatal, e j: adágio, alfageme, Álgebra, algema,<br />algeroz, Algés, algibebe, algibeira, álgido, almargem, Alvorge, Argel, estrangeiro, falange, ferrugem,<br />frigir, gelosia, gengiva, gergelim, geringonça, Gibraltar, ginete, ginja, girafa, gíria, herege, relógio,<br />sege, Tânger, virgem; adjetivo, ajeitar, ajeru (nome de planta indiana e de uma espécie de papagaio),<br />canjerê, canjica, enjeitar, granjear, hoje, intrujice, jecoral, jejum, jeira, jeito, Jeová, jenipapo,<br />jequiri, jequitibá, Jeremias, Jericó, jerimum, Jerónimo, Jesus, jiboia, jiquipanga, jiquiró, jiquitaia,<br />jirau, jiriti, jitirana, laranjeira, lojista, majestade, majestoso, manjerico, manjerona, mucujê, pajé,<br />pegajento, rejeitar, sujeito, trejeito.<br />3o) Distinção gráfica entre as letras s, ss, c, ç e x, que representam sibilantes surdas: ânsia, ascensão,<br />aspersão, cansar, conversão, esconso, farsa, ganso, imenso,<br />mansão, mansarda, manso, pretensão,<br />remanso, seara, seda, Seia, Sertã, Sernancelhe, serralheiro, Singapura, Sintra, sisa, tarso, terso,<br />valsa; abadessa, acossar, amassar, arremessar, Asseiceira, asseio, atravessar, benesse, Cassilda, codesso<br />(identicamente Codessal ou Codassal, Codesseda, Codessoso, etc.), crasso,<br />devassar, dossel,<br />egresso, endossar, escasso, fosso, gesso, molosso, mossa, obsessão, pêssego, possesso, remessa, sossegar;<br />acém, acervo, alicerce, cebola, cereal, Cernache, cetim, Cinfães, Escócia, Macedo, obcecar,<br />percevejo; açafate, açorda, açúcar, almaço, atenção, berço, Buçaco, caçanje, caçula, caraça, dançar,<br />Eça, enguiço, Gonçalves, inserção, linguiça, maçada, Mação, maçar, Moçambique, Monção,<br />muçulmano, murça, negaça, pança, peça, quiçaba, quiçaça, quiçama, quiçamba, Seiça (grafia<br />que pretere as erróneas/errôneas Ceiça e Ceissa), Seiçal, Suíça, terço; auxílio, Maximiliano, Maximino,<br />máximo, próximo, sintaxe.<br />4o) Distinção gráfica entre s de fim de sílaba (inicial ou interior) e x e z com idêntico valor fónico/<br />fônico: adestrar, Calisto, escusar, esdrúxulo, esgotar, esplanada, esplêndido, espontâneo, espremer,<br />esquisito, estender, Estremadura, Estremoz, inesgotável; extensão, explicar, extraordinário, inextricável,<br />inexperto, sextante, têxtil; capazmente, infelizmente, velozmente. De acordo com esta<br />distinção convém notar dois casos:<br />a) Em final de sílaba que não seja final de palavra, o x = s muda para s sempre que está precedido<br />de i ou u: justapor, justalinear, misto, sistino (cf. Capela Sistina), Sisto, em vez de juxtapor,<br />juxtalinear, mixto, sixtina, Sixto.<br />b) Só nos advérbios em -mente se admite z, com valor idêntico ao de s, em final de sílaba seguida<br />de outra consoante (cf. capazmente, etc.); de contrário, o s toma sempre o lugar do z: Biscaia,<br />e não Bizcaia.<br />5o) Distinção gráfica entre s final de palavra e x e z com idêntico valor fónico/ fônico: aguarrás, aliás,<br />anis, após, atrás, através, Avis, Brás, Dinis, Garcês, gás, Gerês, Inês, íris, Jesus, jus, lápis, Luís, país,<br />português, Queirós, quis, retrós, revés, Tomás, Valdês; cálix, Félix, Fénix, flux; assaz, arroz, avestruz,<br />dez, diz, fez (substantivo e forma do verbo fazer), fiz, Forjaz, Galaaz, giz, jaez, matiz, petiz, Queluz,<br />Romariz, [Arcos de] Valdevez, Vaz. A propósito, deve observar-se que é inadmissível z final equivalente<br />a s em palavra não oxítona: Cádis, e não Cádiz.<br />6o) Distinção gráfica entre as letras interiores s, x e z, que representam sibilantes sonoras: aceso, analisar,<br />anestesia, artesão, asa, asilo, Baltasar, besouro, besuntar,<br />blusa, brasa, brasão, Brasil, brisa, [Martexto<br />oficial<br />18<br />co de] Canaveses, coliseu, defesa, duquesa, Elisa, empresa, Ermesinde, Esposende, frenesi ou frenesim,<br />frisar, guisa, improviso, jusante, liso, lousa, Lousã, Luso (nome de lugar, homónimo/homônimo<br />de<br />Luso, nome mitológico), Matosinhos, Meneses, narciso, Nisa, obséquio, ousar, pesquisa, portuguesa,<br />presa, raso, represa, Resende, sacerdotisa, Sesimbra, Sousa, surpresa, tisana, transe, trânsito, vaso;<br />exalar, exemplo, exibir, exorbitar, exuberante, inexato, inexorável; abalizado, alfazema, Arcozelo, autorizar,<br />azar, azedo, azo, azorrague, baliza, bazar, beleza, buzina, búzio, comezinho, deslizar, deslize,<br />Ezequiel, fuzileiro, Galiza, guizo, helenizar, lambuzar, lezíria, Mouzinho, proeza, sazão, urze, vazar,<br />Veneza, Vizela, Vouzela.<br />Base IV<br />Das sequências consonânticas<br />1o) O c, com valor de oclusiva velar, das sequências interiores cc (segundo c com valor de sibilante),<br />cç e ct, e o p das sequências interiores pc (c com valor de sibilante), pç e pt, ora se conservam, ora<br />se eliminam.<br />Assim:<br />a) Conservam-se nos casos em que são invariavelmente proferidos nas pronúncias cultas da<br />língua: compacto, convicção, convicto, ficção, friccionar, pacto, pictural; adepto, apto, díptico,<br />erupção, eucalipto, inepto, núpcias, rapto.<br />b) Eliminam-se nos casos em que são invariavelmente mudos nas pronúncias cultas da língua:<br />ação, acionar, afetivo, aflição, aflito, ato, coleção, coletivo, direção, diretor, exato, objeção; adoção,<br />adotar, batizar, Egito, ótimo.<br />c) Conservam-se ou eliminam-se, facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta,<br />quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: aspecto<br />e aspeto, cacto e cato, caracteres e carateres,<br />dicção e dição; facto e fato, sector e setor, ceptro<br />e cetro, concepção e conceção, corrupto e corruto, recepção e receção.<br />d) Quando, nas sequências interiores mpc, mpç e mpt se eliminar o p de acordo com o determinado<br />nos parágrafos precedentes, o m passa a n, escrevendo-se, respetivamente, nc, nç e nt:<br />assumpcionista e assuncionista; assumpção e assunção; assumptível e assuntível; peremptório e<br />perentório, sumptuoso e suntuoso, sumptuosidade e suntuosidade.<br />2o) Conservam-se ou eliminam-se, facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta,<br />quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: o<br />b da sequência bd, em súbdito; o b da sequência bt, em subtil e seus derivados; o g da sequência<br />gd, em amígdala, amigdalácea, amigdalar, amigdalato, amigdalite, amigdaloide, amigdalopatia,<br />amigdalotomia; o m da sequência mn, em amnistia, amnistiar, indemne, indemnidade, indemnizar,<br />omnímodo, omnipotente, omnisciente, etc.; o t da sequência tm, em aritmética e aritmético.<br />Base V<br />Das vogais átonas<br />1o) O emprego do e e do i, assim como o do o e do u em sílaba átona, regula-se fundamentalmente<br />pela etimologia e por particularidades da história das palavras. Assim, se estabelecem variadíssimas<br />grafias:<br />a) Com e e i: ameaça, amealhar, antecipar, arrepiar, balnear, boreal, campeão, cardeal (prelado,<br />ave, planta; diferente de cardial = "relativo à cárdia"), Ceará, côdea, enseada, enteado, Floreal,<br />janeanes, lêndea, Leonardo, Leonel, Leonor, Leopoldo, Leote, linear, meão, melhor, nomear,<br />Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />19<br />peanha, quase (em vez de quási), real, semear, semelhante, várzea; ameixial, Ameixieira, amial,<br />amieiro, arrieiro, artilharia, capitânia, cordial (adjetivo e substantivo), corriola, crânio, criar,<br />diante, diminuir, Dinis, ferregial, Filinto, Filipe (e identicamente Filipa, Filipinas, etc.), freixial,<br />giesta, Idanha, igual, imiscuir-se, inigualável, lampião, limiar, Lumiar, lumieiro, pátio, pior, tigela,<br />tijolo, Vimieiro, Vimioso.<br />b) Com o e u: abolir, Alpendorada, assolar, borboleta, cobiça, consoada, consoar, costume, díscolo,<br />êmbolo, engolir, epístola, esbaforir-se, esboroar, farândola, femoral, Freixoeira, girândola, goela,<br />jocoso, mágoa, névoa, nódoa, óbolo, Páscoa, Pascoal, Pascoela, polir, Rodolfo, távoa, tavoada,<br />távola, tômbola, veio (substantivo e forma do verbo vir); açular, água, aluvião, arcuense, assumir,<br />bulir, camândulas, curtir, curtume, embutir, entupir, fémur/fêmur, fístula, glândula, ínsua,<br />jucundo, légua, Luanda, lucubração, lugar, mangual, Manuel, míngua, Nicarágua, pontual, régua,<br />tábua, tabuada, tabuleta, trégua, vitualha.<br />2o) Sendo muito variadas as condições etimológicas e histórico-fonéticas em que se fixam graficamente e<br />e i ou o e u em sílaba átona, é evidente que só a consulta dos vocabulários ou dicionários pode indicar,<br />muitas vezes, se deve empregar-se e ou i, se o ou u. Há, todavia, alguns casos em que o uso dessas<br />vogais pode ser facilmente sistematizado. Convém fixar os seguintes:<br />a) Escrevem-se com e, e não com i, antes da sílaba tónica/tônica, os substantivos e adjetivos que<br />procedem de substantivos terminados em -eio e -eia, ou com eles estão em relação direta.<br />Assim se regulam: aldeão, aldeola, aldeota por aldeia; areal, areeiro, areento, Areosa por areia;<br />aveal por aveia; baleal por baleia; cadeado por cadeia; candeeiro por candeia; centeeira e centeeiro<br />por centeio; colmeal e colmeeiro por colmeia; correada e correame por correia.<br />b) Escrevem-se igualmente com e, antes de vogal ou ditongo da sílaba tónica/ tônica, os derivados<br />de palavras que terminam em e acentuado (o qual pode representar um antigo hiato: ea, ee):<br />galeão, galeota, galeote, de galé; coreano, de Coreia; daomeano, de Daomé; guineense, de Guiné;<br />poleame e poleeiro, de polé.<br />c) Escrevem-se com i, e não com e, antes da sílaba tónica/tônica, os adjetivos e substantivos<br />derivados em que entram os sufixos mistos de formação vernácula -iano<br />e -iense, os quais são o resultado da combinação dos sufixos -ano e -ense com um i de origem<br />analógica (baseado em palavras onde -ano e -ense estão precedidos de i pertencente ao tema:<br />horaciano, italiano, duniense, flaviense, etc.): açoriano, acriano (de Acre), camoniano, goisiano<br />(relativo a Damião de Góis), siniense (de Sines), sofocliano, torriano, torriense (de Torre(s)).<br />d) Uniformizam-se com as terminações -io e -ia (átonas), em vez de -eo e -ea, os substantivos que<br />constituem variações, obtidas por ampliação, de outros substantivos terminados em vogal: cúmio<br />(popular), de cume; hástia, de haste; réstia, do antigo reste; véstia, de veste.<br />e) Os verbos em -ear podem distinguir-se praticamente, grande número de vezes, dos verbos<br />em -iar, quer pela formação, quer pela conjugação e formação ao mesmo tempo. Estão no<br />primeiro caso todos os verbos que se prendem a substantivos em -eio ou -eia (sejam formados<br />em português ou venham já do latim); assim se regulam: aldear, por aldeia; alhear, por alheio;<br />cear por ceia; encadear por cadeia; pear, por peia; etc. Estão no segundo caso todos os verbos<br />que têm normalmente flexões rizotónicas/rizotônicas em -eio, -eias, etc.: clarear, delinear,<br />devanear, falsear, granjear, guerrear, hastear, nomear, semear, etc. Existem, no entanto, verbos<br />em -iar, ligados a substantivos com as terminações átonas -ia ou -io, que admitem variantes<br />na conjugação: negoceio ou negocio (cf. negócio); premeio ou premio (cf. prémio/prêmio); etc.<br />f) Não é lícito o emprego do u final átono em palavras de origem latina. Escreve-se, por isso:<br />moto, em vez de mótu (por exemplo, na expressão de moto próprio); tribo, em vez de tríbu.<br />g) Os verbos em -oar distinguem-se praticamente dos verbos em -uar pela sua conjugação nas<br />formas rizotónicas/rizotônicas, que têm sempre o na sílaba acentuada: abençoar com o, como<br />texto oficial<br />20<br />abençoo, abençoas, etc.; destoar, com o, como destoo, destoas, etc.; mas acentuar, com u, como<br />acentuo, acentuas, etc.<br />Base VI<br />Das vogais nasais<br />Na representação das vogais nasais devem observar-se os seguintes preceitos:<br />1o) Quando uma vogal nasal ocorre em fim de palavra, ou em fim de elemento seguido de hífen,<br />representa-se a nasalidade pelo til, se essa vogal é de timbre a; por m, se possui qualquer outro<br />timbre e termina a palavra; e por n, se é de timbre diverso de a e está seguida de s: afã, grã, Grã-<br />-Bretanha, lã, órfã, sã-braseiro (forma dialetal; o mesmo que são-brasense = de S. Brás de Alportel);<br />clarim, tom, vacum; flautins, semitons, zunzuns.<br />2o) Os vocábulos terminados em -ã transmitem esta representação do a nasal aos advérbios em<br />-mente que deles se formem, assim como a derivados em que entrem sufixos iniciados por z:<br />cristãmente, irmãmente, sãmente; lãzudo, maçãzita, manhãzinha, romãzeira.<br />Base VII<br />Dos ditongos<br />1o) Os ditongos orais, que tanto podem ser tónicos/tônicos como átonos, distribuem-se por dois<br />grupos gráficos principais, conforme o segundo elemento do ditongo é representado por i ou<br />u: ai, ei, éi, ui; au, eu, éu, iu, ou: braçais, caixote, deveis, eirado, farnéis (mas farneizinhos), goivo,<br />goivar, lençóis (mas lençoizinhos), tafuis, uivar; cacau, cacaueiro, deu, endeusar, ilhéu (mas ilheuzito),<br />mediu, passou, regougar.<br />Obs.: Admitem-se, todavia, excecionalmente, à parte destes dois grupos, os ditongos grafados ae<br />(= âi ou ai) e ao (âu ou au): o primeiro, representado nos antropónimos/antropônimos Caetano<br />e Caetana, assim como nos respetivos derivados e compostos (caetaninha, são-caetano, etc.); o<br />segundo, representado nas combinações da preposição a com as formas masculinas do artigo ou<br />pronome demonstrativo o, ou seja, ao e aos.<br />2o) Cumpre fixar, a propósito dos ditongos orais, os seguintes preceitos particulares:<br />a) É o ditongo grafado ui, e não a sequência vocálica grafada ue, que se emprega nas formas de<br />2a e 3a pessoas do singular do presente do indicativo e igualmente na da 2a pessoa do singular<br />do imperativo dos verbos em -uir: constituis, influi, retribui. Harmonizam-se, portanto, essas<br />formas com todos os casos de ditongo grafado ui de sílaba final ou fim de palavra (azuis, fui,<br />Guardafui, Rui, etc.); e ficam assim em paralelo gráfico-fonético com as formas de 2a e 3a pessoas<br />do singular do presente do indicativo e de 2a pessoa do singular do imperativo dos verbos<br />em -air e em -oer: atrais, cai, sai; móis, remói, sói.<br />b) É o ditongo grafado ui que representa sempre, em palavras de origem latina, a união de um u<br />a um i átono seguinte. Não divergem, portanto, formas como fluido de formas como gratuito.<br />E isso não impede que nos derivados de formas daquele tipo as vogais grafadas u e i se separem:<br />fluídico, fluidez (u-í).<br />c) Além dos ditongos orais propriamente ditos, os quais são todos decrescentes, admite-se,<br />como é sabido, a existência de ditongos crescentes. Podem considerar-se no número deles<br />as sequências vocálicas pós-tónicas/pós-tônicas, tais as que se representam graficamente<br />Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />21<br />por ea, eo, ia, ie, io, oa, ua, ue, uo: áurea, áureo, calúnia, espécie, exímio, mágoa, míngua,<br />ténue/tênue, tríduo.<br />3o) Os ditongos nasais, que na sua maioria tanto podem ser tónicos/tônicos como átonos, pertencem<br />graficamente a dois tipos fundamentais: ditongos representados<br />por vogal com til e semivogal;<br />ditongos representados por uma vogal seguida da consoante nasal m. Eis a indicação de uns e outros:<br />a) Os ditongos representados por vogal com til e semivogal são quatro, considerando-se apenas<br />a língua padrão contemporânea: ãe (usado em vocábulos oxítonos e derivados), ãi (usado em<br />vocábulos anoxítonos e derivados), ão e õe. Exemplos: cães, Guimarães, mãe, mãezinha; cãibas,<br />cãibeiro, cãibra, zãibo; mão, mãozinha, não, quão, sótão, sotãozinho, tão; Camões, orações,<br />oraçõezinhas, põe, repões.<br />Ao lado de tais ditongos pode, por exemplo, colocar-se o ditongo ũi;<br />mas este, embora se exemplifique numa forma popular como rũi = ruim, representa-se sem o<br />til nas formas muito e mui, por obediência à tradição.<br />b) Os ditongos representados por uma vogal seguida da consoante nasal m são dois: am e em.<br />Divergem, porém, nos seus empregos:<br />i) am (sempre átono) só se emprega em flexões verbais: amam, deviam, escreveram,<br />puseram;<br />ii) em (tónico/tônico ou átono) emprega-se em palavras de categorias morfológicas diversas,<br />incluindo flexões verbais, e pode apresentar variantes gráficas determinadas pela<br />posição, pela acentuação ou, simultaneamente, pela posição e pela acentuação: bem,<br />Bembom, Bemposta, cem, devem, nem, quem, sem, tem, virgem; Bencanta, Benfeito, Benfica,<br />benquisto, bens, enfim, enquanto, homenzarrão, homenzinho, nuvenzinha, tens,<br />virgens, amém (variação do ámen), armazém, convém, mantém, ninguém, porém, Santarém,<br />também; convêm, mantêm, têm (3as pessoas do plural); armazéns, desdéns, convéns,<br />reténs; Belenzada, vintenzinho.<br />Base VIII<br />Da acentuação gráfica das palavras oxítonas<br />1o) Acentuam-se com acento agudo:<br />a) As palavras oxítonas terminadas nas vogais tónicas/tônicas abertas grafadas -a, -e ou<br />-o, seguidas ou não de -s: está, estás, já, olá; até, é, és, olé, pontapé(s); avó(s), dominó(s),<br />paletó(s), só(s).<br />Obs.: Em algumas (poucas) palavras oxítonas terminadas em -e tónico/tônico, geralmente<br />provenientes do francês, esta vogal, por ser articulada nas pronúncias cultas ora como aberta<br />ora como fechada, admite tanto o acento agudo como o acento circunflexo: bebé ou bebê,<br />bidé ou bidê, canapé ou canapê, caraté ou caratê, croché ou crochê, guiché ou guichê, matiné<br />ou matinê, nené ou nenê, ponjé ou ponjê, puré ou purê, rapé ou rapê.<br />O mesmo se verifica com formas como cocó e cocô, ró (letra do alfabeto grego) e rô. São igualmente<br />admitidas formas como judô, a par de judo, e metrô, a par de metro.<br />b) As formas verbais oxítonas, quando, conjugadas com os pronomes clíticos -lo(s) ou -la(s),<br />ficam a terminar na vogal tónica/tônica aberta grafada -a, após a assimilação e perda das<br />consoantes finais grafadas -r, -s ou -z: adorá-lo(s) (de adorar-lo(s)), dá-la(s) (de dar-la(s) ou<br />dá(s)-la(s)), fá-lo(s) (de faz-lo(s)), fá-lo(s)-às (de far-lo(s)-ás), habitá-la(s)-iam (de habitar-<br />-la(s)-iam), trá-la(s)-á (de trar-la(s)-á).<br />texto oficial<br />22<br />c) As palavras oxítonas com mais de uma sílaba terminadas no ditongo nasal grafado<br />-em (exceto as formas da 3a pessoa do plural do presente do indicativo dos compostos de ter<br />e vir: retêm, sustêm; advêm, provêm; etc.) ou -ens: acém, detém, deténs, entretém, entreténs,<br />harém, haréns, porém, provém, provéns, também.<br />d) As palavras oxítonas com os ditongos abertos grafados -éi, -éu ou -ói, podendo estes dois<br />últimos ser seguidos ou não de -s: anéis, batéis, fiéis, papéis; céu(s), chapéu(s), ilhéu(s), véu(s);<br />corrói (de corroer), herói(s), remói (de remoer), sóis.<br />2o) Acentuam-se com acento circunflexo:<br />a) As palavras oxítonas terminadas nas vogais tónicas/tônicas fechadas que se grafam -e ou -<br />o,<br />seguidas ou não de -s: cortês, dê, dês (de dar), lê, lês (de ler), português, você(s); avô(s), pôs (de<br />pôr), robô(s).<br />b) As formas verbais oxítonas, quando, conjugadas com os pronomes clíticos -lo(s) ou -la(s),<br />ficam a terminar nas vogais tónicas/tônicas fechadas que se grafam -e ou -o, após a assimilação<br />e perda das consoantes finais grafadas -r, -s ou -z: detê-lo(s) (de deter-lo(s)), fazê-la(s) (de<br />fazer-la(s)), fê-lo(s) (de fez-lo(s)), vê-la(s) (de ver-la(s)), compô-la(s) (de compor-la(s)), repô-<br />-la(s) (de repor-la(s)), pô-la(s) (de pôr-la(s) ou pôs-la(s)).<br />3o) Prescinde-se de acento gráfico para distinguir palavras oxítonas homógrafas, mas heterofónicas/<br />heterofônicas, do tipo de cor (ô), substantivo, e cor (ó), elemento da locução de cor; colher (ê), verbo,<br />e colher (é), substantivo. Excetua-se a forma verbal pôr, para a distinguir da preposição por.<br />Base IX<br />Da acentuação gráfica das palavras paroxítonas<br />1o) As palavras paroxítonas não são em geral acentuadas graficamente: enjoo, grave, homem, mesa,<br />Tejo, vejo, velho, voo; avanço, floresta; abençoo, angolano, brasileiro; descobrimento, graficamente,<br />moçambicano.<br />2o) Recebem, no entanto, acento agudo:<br />a) As palavras paroxítonas que apresentam, na sílaba tónica/tônica, as vogais abertas grafadas a, e, o<br />e ainda i ou u e que terminam em -l, -n, -r, -x e -ps, assim como, salvo raras exceções, as respectivas<br />formas do plural, algumas das quais passam a proparoxítonas: amável (pl. amáveis), Aníbal,<br />dócil (pl. dóceis), dúctil (pl. dúcteis), fóssil (pl. fósseis), réptil (pl. répteis; var. reptil, pl. reptis); cármen<br />(pl. cármenes ou carmens; var. carme, pl. carmes); dólmen (pl. dólmenes ou dolmens), éden<br />(pl. édenes ou edens), líquen (pl. líquenes), lúmen (pl. lúmenes ou lumens); açúcar (pl. açúcares),<br />almíscar (pl. almíscares), cadáver (pl. cadáveres), caráter ou carácter (mas pl. carateres ou caracteres),<br />ímpar (pl. ímpares); Ájax, córtex (pl. córtex; var. córtice, pl. córtices), índex (pl. index; var.<br />índice, pl. índices), tórax (pl. tórax ou tóraxes; var. torace, pl. toraces); bíceps (pl. bíceps; var. bicípite,<br />pl. bicípites), fórceps (pl. fórceps; var. fórcipe, pl. fórcipes).<br />Obs.: Muito poucas palavras deste tipo, com as vogais tónicas/tônicas grafadas e e o em fim<br />de sílaba, seguidas das consoantes nasais grafadas m e n, apresentam oscilação de timbre<br />nas pronúncias cultas da língua e, por conseguinte, também de acento gráfico (agudo ou<br />circunflexo): sémen e sêmen, xénon e xênon; fémur e fêmur, vómer e vômer; Fénix e Fênix,<br />ónix e ônix.<br />b) As palavras paroxítonas que apresentam, na sílaba tónica/tônica, as vogais abertas grafadas<br />a, e, o e ainda i ou u e que terminam em -ã(s), -ão(s), -ei(s), -i(s), -um, -uns ou -us: órfã (pl.<br />órfãs), acórdão (pl. acórdãos), órfão (pl. órfãos), órgão (pl. órgãos), sótão (pl. sótãos); hóquei,<br />Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />23<br />jóquei (pl. jóqueis), amáveis (pl. de amável), fáceis (pl. de fácil), fósseis (pl. de fóssil), amáreis<br />(de amar), amáveis (id.), cantaríeis (de cantar), fizéreis (de fazer), fizésseis (id.); beribéri (pl.<br />beribéris), bílis (sg. e pl.), íris (sg. e pl.), júri (pl. júris), oásis (sg. e pl.); álbum (pl. álbuns), fórum<br />(pl. fóruns); húmus (sg. e pl.), vírus (sg. e pl.).<br />Obs.: Muito poucas paroxítonas deste tipo, com as vogais tónicas/tônicas grafadas e e o em<br />fim de sílaba, seguidas das consoantes nasais grafadas m e n, apresentam oscilação de timbre<br />nas pronúncias cultas da língua, o qual é assinalado com acento agudo, se aberto, ou circunflexo,<br />se fechado: pónei e pônei; gónis e gônis, pénis e pênis, ténis e tênis; bónus e bônus, ónus e<br />ônus, tónus e tônus, Vénus e Vênus.<br />3o) Não se acentuam graficamente os ditongos representados por ei e oi da sílaba tónica/tônica das<br />palavras paroxítonas, dado que existe oscilação em muitos casos entre o fechamento e a abertura<br />na sua articulação: assembleia, boleia, ideia, tal como aldeia, baleia, cadeia, cheia, meia; coreico,<br />epopeico, onomatopeico, proteico; alcaloide, apoio (do verbo apoiar), tal como apoio (subst.), Azoia,<br />boia, boina, comboio (subst.), tal como comboio, comboias, etc. (do verbo comboiar), dezoito, estroina,<br />heroico, introito, jiboia, moina, paranoico, zoina.<br />4o) É facultativo assinalar com acento agudo as formas verbais de pretérito perfeito<br />do indicativo, do<br />tipo amámos, louvámos, para as distinguir das correspondentes formas do presente do indicativo<br />(amamos, louvamos), já que o timbre da vogal tónica/tônica é aberto naquele caso em certas<br />variantes do português.<br />5o) Recebem acento circunflexo:<br />a) As palavras paroxítonas que contêm, na sílaba tónica/tônica, as vogais fechadas<br />com a grafia<br />a, e, o e que terminam em -l, -n, -r, ou -x, assim como as respetivas formas do plural, algumas<br />das quais se tornam proparoxítonas: cônsul (pl. cônsules), pênsil (pl. pênseis), têxtil (pl. têxteis);<br />cânon, var. cânone (pl. cânones), plâncton (pl. plânctons); Almodôvar, aljôfar (pl. aljôfares),<br />âmbar (pl. âmbares), Câncer, Tânger; bômbax (sg. e pl.), bômbix, var. bômbice (pl. bômbices).<br />b) As palavras paroxítonas que contêm, na sílaba tónica/tônica, as vogais fechadas<br />com a grafia<br />a, e, o e que terminam em -ão(s), -eis, -i(s) ou -us: bênção(s), côvão(s), Estêvão, zângão(s);<br />devêreis (de dever), escrevêsseis (de escrever), fôreis (de ser e ir), fôsseis (id.), pênseis (pl. de<br />pênsil), têxteis (pl. de têxtil); dândi(s), Mênfis; ânus.<br />c) As formas verbais têm e vêm, 3as pessoas do plural do presente do indicativo de ter e vir, que<br />são foneticamente paroxítonas (respetivamente /tãjãj/, /vãjãj/ ou /tẽẽj/, /vẽẽj/ ou ainda /tẽjẽj/,<br />/vẽjẽj/; cf. as antigas grafias preteridas, tẽem, vẽem), a fim de se distinguirem de tem e vem,<br />3as pessoas do singular do presente do indicativo ou 2as pessoas do singular do imperativo; e<br />também as correspondentes formas compostas, tais como: abstêm (cf. abstém), advêm (cf. advém),<br />contêm (cf. contém), convêm (cf. convém), desconvêm (cf. desconvém), detêm (cf. detém),<br />entretêm (cf. entretém), intervêm (cf. intervém), mantêm (cf. mantém), obtêm (cf. obtém), provêm<br />(cf. provém), sobrevêm (cf. sobrevém).<br />Obs.: Também neste caso são preteridas as antigas grafias detẽem, intervẽem, mantẽem,<br />provẽem, etc.<br />6o) Assinalam-se com acento circunflexo:<br />a) Obrigatoriamente, pôde (3a pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo), que se<br />distingue da correspondente forma do presente do indicativo (pode).<br />b) Facultativamente, dêmos (1a pessoa do plural do presente do conjuntivo), para se distinguir<br />da correspondente forma do pretérito perfeito do indicativo (demos);<br />fôrma (substantivo),<br />distinta de forma (substantivo; 3a pessoa do singular do presente do indicativo ou 2a pessoa<br />do singular do imperativo do verbo formar).<br />texto oficial<br />24<br />7o) Prescinde-se de acento circunflexo nas formas verbais paroxítonas que contêm um e tónico/<br />tônico oral fechado em hiato com a terminação -em da 3a pessoa do plural do presente do indicativo<br />ou do conjuntivo, conforme os casos: creem, deem (conj.), descreem, desdeem (conj.), leem,<br />preveem, redeem (conj.), releem, reveem, tresleem, veem.<br />8o) Prescinde-se igualmente do acento circunflexo para assinalar a vogal tónica/tônica fechada com<br />a grafia o em palavras paroxítonas como enjoo, substantivo e flexão de enjoar, povoo, flexão de<br />povoar, voo, substantivo e flexão de voar, etc.<br />9o) Prescinde-se, quer do acento agudo, quer do circunflexo, para distinguir palavras paroxítonas<br />que, tendo respectivamente vogal tónica/tônica aberta ou fechada,<br />são homógrafas de palavras<br />proclíticas. Assim, deixam de se distinguir pelo acento gráfico: para(á), flexão de parar, e para,<br />preposição; pela(s) (é), substantivo e flexão de pelar, e pela(s), combinação de per e la(s); pelo(é),<br />flexão de pelar, pelo(s) (ê), substantivo ou combinação de per e lo(s); polo(s) (ó), substantivo, e<br />polo(s), combinação antiga e popular de por e lo(s); etc.<br />10o) Prescinde-se igualmente de acento gráfico para distinguir paroxítonas homógrafas heterofónicas/<br />heterofônicas do tipo de acerto (ê), substantivo, e acerto (é), flexão de acertar; acordo (ô), substantivo,<br />e acordo (ó), flexão de acordar; cerca (ê), substantivo, advérbio e elemento da locução prepositiva cerca<br />de, e cerca (é), flexão de cercar; coro (ô), substantivo, e coro (ó), flexão de corar; deste (ê), contracção<br />da preposição de com o demonstrativo este, e deste (é), flexão de dar; fora (ô), flexão de ser e ir, e fora<br />(ó), advérbio, interjeição e substantivo; piloto (ô), substantivo, e piloto (ó), flexão de pilotar; etc.<br />Base X<br />Da acentuação das vogais tónicas/tônicas grafadas i e u<br />das palavras oxítonas e paroxítonas<br />1o) As vogais tónicas/tônicas grafadas i e u das palavras oxítonas e paroxítonas levam acento agudo<br />quando antecedidas de uma vogal com que não formam ditongo e desde que não constituam<br />sílaba com a eventual consoante seguinte, excetuando o caso de s: adaís (pl. de adail), aí, atraí<br />(de atrair), baú, caís (de cair), Esaú, jacuí, Luís, país, etc.; alaúde, amiúde, Araújo, Ataíde, atraíam<br />(de atrair), atraísse (id.), baía, balaústre, cafeína, ciúme, egoísmo, faísca, faúlha, graúdo, influíste<br />(de influir), juízes, Luísa, miúdo, paraíso, raízes, recaída, ruína, saída, sanduíche, etc.<br />2o) As vogais tónicas/tônicas grafadas i e u das palavras oxítonas e paroxítonas não levam acento agudo<br />quando, antecedidas de vogal com que não formam ditongo, constituem sílaba com a consoante seguinte,<br />como é o caso de nh, l, m, n, r e z: bainha, moinho, rainha; adail, paul, Raul; Aboim, Coimbra,<br />ruim; ainda, constituinte, oriundo, ruins, triunfo; atrair, demiurgo, influir, influirmos; juiz, raiz; etc.<br />3o) Em conformidade com as regras anteriores leva acento agudo a vogal tónica/tônica grafada i das<br />formas oxítonas terminadas em r dos verbos em -air e -uir, quando estas se combinam com as<br />formas pronominais clíticas -lo(s), -la(s), que levam à assimilação e perda daquele -r: atraí-lo(s)<br />(de atrair-lo(s)); atraí-lo(s)-ia (de atrair-lo(s)-ia); possuí-la(s) (de possuir-la(s)); possuí-la(s)-ia<br />(de possuir-la(s)-ia).<br />4o) Prescinde-se do acento agudo nas vogais tónicas/tônicas grafadas i e u das palavras paroxítonas,<br />quando elas estão precedidas de ditongo: baiuca, boiuno, cauila (var. cauira), cheiinho (de cheio),<br />saiinha (de saia).<br />5o) Levam, porém, acento agudo as vogais tónicas/tônicas grafadas i e u quando, precedidas de ditongo,<br />pertencem a palavras oxítonas e estão em posição final ou seguidas de s: Piauí, teiú, teiús,<br />tuiuiú, tuiuiús.<br />Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />25<br />Obs.: Se, neste caso, a consoante final for diferente de s, tais vogais dispensam o acento agudo:<br />cauim.<br />6o) Prescinde-se do acento agudo nos ditongos tónicos/tônicos grafados iu e ui, quando precedidos<br />de vogal: distraiu, instruiu, pauis (pl. de paul).<br />7o) Os verbos arguir e redarguir prescindem do acento agudo na vogal tónica/tônica grafada u nas formas<br />rizotónicas/rizotônicas: arguo, arguis, argui, arguem; argua, arguas, argua, arguam. Os verbos<br />do tipo de aguar, apaniguar, apaziguar, apropinquar, averiguar, desaguar, enxaguar, obliquar, delinquir<br />e afins, por oferecerem dois paradigmas, ou têm as formas rizotónicas/rizotônicas igualmente<br />acentuadas no u mas sem marca gráfica (a exemplo de averiguo, averiguas, averigua, averiguam;<br />averigue, averigues, averigue, averiguem; enxaguo, enxaguas, enxagua, enxaguam; enxague, enxagues,<br />enxague, enxaguem, etc.; delinquo, delinquis, delinqui, delinquem; mas delinquimos, delinquís)<br />ou têm as formas rizotónicas/rizotônicas acentuadas fónica/fônica e graficamente nas vogais a ou i<br />radicais (a exemplo de averíguo, averíguas, averígua, averíguam; averígue, averígues, averígue, averíguem;<br />enxáguo, enxáguas, enxágua, enxáguam; enxágue, enxágues, enxágue, enxáguem; delínquo,<br />delínques, delínque, delínquem; delínqua, delínquas, delínqua, delínquam).<br />Obs.: Em conexão com os casos acima referidos, registre-se que os verbos em -ingir (atingir, cingir,<br />constringir, infringir, tingir, etc.) e os verbos em -inguir sem prolação do u (distinguir, extinguir,<br />etc.) têm grafias absolutamente regulares (atinjo, atinja, atinge, atingimos, etc.; distingo, distinga,<br />distingue, distinguimos,<br />etc.).<br />Base XI<br />Da acentuação gráfica das palavras proparoxítonas<br />1o) Levam acento agudo:<br />a) As palavras proparoxítonas que apresentam na sílaba tónica/tônica as vogais abertas grafadas<br />a, e, o e ainda i, u ou ditongo oral começado por vogal aberta: árabe, cáustico, Cleópatra,<br />esquálido, exército, hidráulico, líquido, míope, músico, plástico, prosélito, público, rústico,<br />tétrico, último.<br />b) As chamadas proparoxítonas aparentes, isto é, que apresentam na sílaba tónica/tônica as<br />vogais abertas grafadas a, e, o e ainda i, u ou ditongo oral começado por vogal aberta, e<br />que terminam por sequências vocálicas pós-tónicas/pós-tônicas praticamente consideradas<br />como ditongos crescentes (-ea, -eo, -ia, -ie, -io, -oa, -ua, -uo, etc.): álea, náusea; etéreo, níveo;<br />enciclopédia, glória; barbárie, série; lírio, prélio; mágoa, nódoa; exígua, língua; exíguo, vácuo.<br />2o) Levam acento circunflexo:<br />a) As palavras proparoxítonas que apresentam na sílaba tónica/tônica vogal fechada ou ditongo<br />com a vogal básica fechada: anacreôntico, brêtema, cânfora, cômputo, devêramos (de dever),<br />dinâmico, êmbolo, excêntrico, fôssemos (de ser e ir), Grândola, hermenêutica, lâmpada, lôstrego,<br />lôbrego, nêspera, plêiade, sôfrego, sonâmbulo, trôpego.<br />b) As chamadas proparoxítonas aparentes, isto é, que apresentam vogais fechadas na sílaba tónica/<br />tônica e terminam por sequências vocálicas pós-tónicas/pós-tônicas praticamente consideradas<br />como ditongos crescentes: amêndoa, argênteo, côdea, Islândia, Mântua, serôdio.<br />3o) Levam acento agudo ou acento circunflexo as palavras proparoxítonas, reais ou aparentes, cujas<br />vogais tónicas/tônicas grafadas e ou o estão em final de sílaba e são seguidas das consoantes<br />nasais grafadas m ou n, conforme o seu timbre é, respetivamente, aberto ou fechado nas pronúncias<br />cultas da língua: académico/acadêmico, anatómico/anatômico, cénico/cênico, cómodo/<br />texto oficial<br />26<br />cômodo, fenómeno/fenômeno, género/gênero, topónimo/topônimo; Amazónia/Amazônia, António/<br />Antônio, blasfémia/blasfêmia, fémea/fêmea, gémeo/gêmeo, génio/gênio, ténue/tênue.<br />Base XII<br />Do emprego do acento grave<br />Emprega-se o acento grave:<br />a) Na contração da preposição a com as formas femininas do artigo ou pronome demonstrativo<br />o: à (de a+a), às (de a+as).<br />b) Na contração da preposição a com os demonstrativos aquele, aquela, aqueles, aquelas e aquilo<br />ou ainda da mesma preposição com os compostos aqueloutro e suas flexões: àquele(s),<br />àquela(s), àquilo; àqueloutro(s), àqueloutra(s).<br />Base XIII<br />Da supressão dos acentos em palavras derivadas<br />1o) Nos advérbios em -mente, derivados de adjetivos com acento agudo ou circunflexo, estes são<br />suprimidos: avidamente (de ávido), debilmente (de débil), facilmente (de fácil), habilmente (de<br />hábil), ingenuamente (de ingénuo/ingênuo), lucidamente (de lúcido), mamente (de má), somente<br />(de só), unicamente (de único), etc.; candidamente (de cândido), cortesmente (de cortês), dinamicamente<br />(de dinâmico), espontaneamente (de espontâneo), portuguesmente (de português), romanticamente<br />(de romântico).<br />2o) Nas palavras derivadas que contêm sufixos iniciados por z e cujas formas de base apresentam vogal<br />tónica/tônica com acento agudo ou circunflexo, estes são suprimidos: aneizinhos (de anéis),<br />avozinha (de avó), bebezito (de bebé/bebê), cafezada (de café), chepeuzinho (de chapéu), chazeiro<br />(de chá), heroizito (de herói), ilheuzito (de ilhéu), mazinha (de má), orfãozinho (de órfão), vintenzito<br />(de vintém), etc.; avozinho (de avô), bençãozinha (de bênção), lampadazita (de lâmpada),<br />pessegozito (de pêssego).<br />Base XIV<br />Do trema<br />O trema, sinal de diérese, é inteiramente suprimido em palavras portuguesas ou aportuguesadas.<br />Nem sequer se emprega na poesia, mesmo que haja separação de duas vogais que normalmente<br />formam ditongo: saudade, e não saüdade, ainda que tetrassílabo; saudar, e não saüdar, ainda que<br />trissílabo; etc.<br />Em virtude desta supressão, abstrai-se de sinal especial, quer para distinguir, em sílaba átona,<br />um i ou um u de uma vogal da sílaba anterior, quer para distinguir, também em sílaba átona, um i<br />ou um u de um ditongo precedente, quer para distinguir, em sílaba tónica/tônica ou átona, o u de<br />gu ou de qu de um e ou i seguintes: arruinar, constituiria, depoimento, esmiuçar, faiscar, faulhar,<br />oleicultura, paraibano, reunião; abaiucado, auiqui, caiuá, cauixi, piauiense; aguentar, anguiforme,<br />arguir, bilíngue (ou bilingue), lingueta, linguista, linguístico; cinquenta, equestre, frequentar, tranquilo,<br />ubiquidade.<br />Obs.: Conserva-se, no entanto, o trema, de acordo com a Base I, 3o, em palavras derivadas de nomes<br />próprios estrangeiros: hübneriano, de Hübner, mülleriano, de Müller, etc.<br />Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />27<br />Base XV<br />Do hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares<br />1o) Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação<br />e cujos elementos, de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma unidade<br />sintagmática e semântica e mantêm acento próprio, podendo dar-se o caso de o primeiro elemento<br />estar reduzido: ano-luz, arcebispo-bispo, arco-íris, decreto-lei, és-sueste, médico-cirurgião,<br />rainha-cláudia, tenente-coronel, tio-avô, turma-piloto; alcaide-mor, amor-perfeito, guarda-noturno,<br />mato-grossense, norte-americano, porto-alegrense, sul-africano; afro-asiático, afro-luso-brasileiro,<br />azul-escuro, luso-brasileiro, primeiro-ministro, primeiro-sargento, primo-infecção, segunda-<br />-feira; conta-gotas, finca-pé, guarda-chuva.<br />Obs.: Certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição,<br />grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, mandachuva, pontapé, paraquedas,<br />paraquedista, etc.<br />2o) Emprega-se o hífen nos topónimos/topônimos compostos, iniciados pelos adjetivos grã, grão ou<br />por forma verbal ou cujos elementos estejam ligados por artigo: Grã-Bretanha, Grão-Pará; Abre-<br />-Campo; Passa-Quatro, Quebra-Costas, Quebra-Dentes, Traga-Mouros, Trinca-Fortes; Albergaria-<br />a-Velha, Baía de Todos-os-Santos, Entre-os-Rios, Montemor-o-Novo, Trás-os-Montes.<br />Obs.: Os outros topónimos/topônimos compostos escrevem-se com os elementos separados,<br />sem hífen: América do Sul, Belo Horizonte, Cabo Verde, Castelo Branco, Freixo de Espada à Cinta,<br />etc. O topónimo/topônimo Guiné-Bissau é, contudo, uma exceção consagrada pelo uso.<br />3o) Emprega-se o hífen nas palavras compostas que designam espécies botânicas e zoológicas, estejam<br />ou não ligadas por preposição ou qualquer outro elemento: abóbora-menina, couve-flor, erva-<br />doce, feijão-verde; bênção-de-deus, erva-do-chá, ervilha-de-cheiro, fava-de-santo-inácio, bem-<br />-me-quer (nome de planta que também se dá à margarida e ao malmequer); andorinha-grande,<br />cobra-capelo, formiga-branca; andorinha-do-mar, cobra-d’água, lesma-de-conchinha; bem-te-vi<br />(nome de um pássaro).<br />4o) Emprega-se o hífen nos compostos com os advérbios bem e mal, quando estes formam com o<br />elemento que se lhes segue uma unidade sintagmática e semântica e tal elemento começa por<br />vogal ou h. No entanto, o advérbio bem, ao contrário de mal, pode não se aglutinar com palavras<br />começadas por consoante. Eis alguns exemplos das várias situações: bem-aventurado, bem-estar,<br />bem-humorado; mal-afortunado, mal-estar, mal-humorado; bem-criado (cf. malcriado), bem-ditoso<br />(cf. malditoso), bem-falante (cf. malfalante), bem-mandado (cf. malmandado), bem-nascido<br />(cf. malnascido), bem-soante (cf. malsoante), bem-visto (cf. malvisto).<br />Obs.: Em muitos compostos, o advérbio bem aparece aglutinado com o segundo elemento, quer<br />este tenha ou não vida à parte: benfazejo, benfeito, benfeitor, benquerença, etc.<br />5o) Emprega-se o hífen nos compostos com os elementos além, aquém, recém e sem: além-Atlántico/<br />além-Atlântico, além-mar, além-fronteiras; aquém-mar, aquém-Pirenéus/aquém-Pireneus;<br />recém-casado, recém-nascido; sem-cerimónia/sem-cerimônia, sem-número, sem-vergonha.<br />6o) Nas locuções de qualquer tipo, sejam elas substantivas, adjetivas, pronominais,<br />adverbiais, prepositivas<br />ou conjuncionais, não se emprega em geral o hífen, salvo algumas exceções já consagradas<br />pelo uso (como é o caso de água-de-colónia/água-de-colônia, arco-da-velha, cor-de-rosa,<br />mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao deus-dará, à queima-roupa). Sirvam, pois, de exemplo de emprego<br />sem hífen as seguintes locuções:<br />a) Substantivas: cão de guarda, fim de semana, sala de jantar;<br />texto oficial<br />28<br />b) Adjetivas: cor de açafrão, cor de café com leite, cor de vinho;<br />c) Pronominais: cada um, ele próprio, nós mesmos, quem quer que seja;<br />d) Adverbiais: à parte (note-se o substantivo aparte), à vontade, de mais (locução que se contrapõe<br />a de menos; note-se demais, advérbio, conjunção, etc.), depois de amanhã, em cima, por isso;<br />e) Prepositivas: abaixo de, acerca de, acima de, a fim de, a par de, à parte de, apesar de, aquando<br />de, debaixo de, enquanto a, por baixo de, por cima de, quanto a;<br />f) Conjuncionais: afim de que, ao passo que, contanto que, logo que, por conseguinte, visto que.<br />7o) Emprega-se o hífen para ligar duas ou mais palavras que ocasionalmente se combinam, formando,<br />não propriamente vocábulos, mas encadeamentos vocabulares (tipo: a divisa Liberdade-<br />-Igualdade-Fraternidade, a ponte Rio-Niterói, o percurso Lisboa-Coimbra-Porto, a ligação Angola-<br />Moçambique), e bem assim nas combinações históricas ou ocasionais de topónimos/topônimos<br />(tipo: Áustria-<br />Hungria, Alsácia-Lorena, Angola-Brasil, Tóquio-Rio de Janeiro, etc.).<br />Base XVI<br />Do hífen nas formações por prefixação,<br />recomposição e sufixação<br />1o) Nas formações com prefixos (como, por exemplo: ante-, anti-, circum-, co-, contra-, entre-,<br />extra-, hiper-, infra-, intra-, pós-, pré-, pró-, sobre-, sub-, super-, supra-, ultra-, etc.) e em formações<br />por recomposição, isto é, com elementos não autónomos/ autônomos ou falsos prefixos,<br />de origem grega e latina (tais como: aero-, agro-, arqui-, auto-, bio-, eletro-, geo-, hidro-, inter-,<br />macro-, maxi-, micro-, mini-, multi-, neo-, pan-, pluri-, proto-, pseudo-, retro-, semi-, tele-, etc.),<br />só se emprega o hífen nos seguintes casos:<br />a) Nas formações em que o segundo elemento começa por h: anti-higiénico/anti-higiênico, circum-<br />hospitalar, co-herdeiro, contra-harmónico/contra-harmônico, extra-humano, pré-história,<br />sub-hepático, super-homem, ultra-hiperbólico, arqui-hipérbole, eletro-higrómetro/eletro-higrômetro,<br />geo-história, neo-helénico/neo-helênico, pan-helenismo, semi-hospitalar.<br />Obs.: Não se usa, no entanto, o hífen em formações que contêm em geral os prefixos des- e in- e nas<br />quais o segundo elemento perdeu o h inicial: desumano, desumidificar, inábil, inumano, etc.<br />b) Nas formações em que o prefixo ou pseudoprefixo termina na mesma vogal com que se inicia<br />o segundo elemento: anti-ibérico, contra-almirante, infra-axilar, supra-auricular, arqui-<br />-irmandade, auto-observação, eletro-ótica, micro-onda, semi-interno.<br />Obs.: Nas formações com o prefixo co-, este aglutina-se em geral com o segundo elemento<br />mesmo quando iniciado por o: coobrigação, coocupante, coordenar, cooperação, cooperar, etc.<br />c) Nas formações com os prefixos circum- e pan-, quando o segundo elemento começa por vogal,<br />m ou n (além de h, caso já considerado atrás na alínea a): circum-escolar, circum-murado,<br />circum-navegação; pan-africano, pan-mágico, pan-negritude.<br />d) Nas formações com os prefixos hiper-, inter- e super-, quando combinados com elementos<br />iniciados por r: hiper-requintado, inter-resistente, super-revista.<br />e) Nas formações com os prefixos ex- (com o sentido de estado anterior ou cessamento), sota-,<br />soto-, vice- e vizo-: ex-almirante, ex-diretor, ex-hospedeira, ex-presidente, ex-primeiro-ministro,<br />ex-rei, sota-piloto, soto-mestre, vice-presidente, vice-reitor, vizo-rei.<br />f) Nas formações com os prefixos tónicos/tônicos acentuados graficamente pós-, pré- e pró-,<br />quando o segundo elemento tem vida à parte (ao contrário do que acontece com as corres-<br />Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />29<br />pondentes formas átonas que se aglutinam com o elemento seguinte): pós-graduação, pós-<br />-tónico/pós-tônico (mas pospor); pré-escolar, pré-natal (mas prever); pró-africano, pró-europeu<br />(mas promover).<br />2o) Não se emprega, pois, o hífen:<br />a) Nas formações em que o prefixo ou falso prefixo termina em vogal e o segundo elemento<br />começa por r ou s, devendo estas consoantes duplicar-se, prática aliás já generalizada em<br />palavras deste tipo pertencentes aos domínios científico e técnico. Assim: antirreligioso,<br />antissemita, contrarregra, contrassenha, cosseno, extrarregular, infrassom, minissaia, tal como<br />biorritmo, biossatélite, eletrossiderurgia, microssistema, microrradiografia.<br />b) Nas formações em que o prefixo ou pseudoprefixo termina em vogal e o segundo elemento<br />começa por vogal diferente, prática esta em geral já adotada também para os termos técnicos<br />e científicos. Assim: antiaéreo, coeducação, extraescolar, aeroespacial, autoestrada,<br />autoaprendizagem, agroindustrial, hidroelétrico, plurianual.<br />3o) Nas formações por sufixação apenas se emprega o hífen nos vocábulos terminados por sufixos de<br />origem tupi-guarani que representam formas adjetivas, como açu, guaçu e mirim, quando o primeiro<br />elemento acaba em vogal acentuada graficamente ou quando a pronúncia exige a distinção<br />gráfica dos dois elementos: amoré-guaçu, anajá-mirim, andá-açu, capim-açu, Ceará-Mirim.<br />Base XVII<br />Do hífen na ênclise, na tmese e com o verbo haver<br />1o) Emprega-se o hífen na ênclise e na tmese: amá-lo, dá-se, deixa-o, partir-lhe; amá-lo-ei, enviar-<br />-lhe-emos.<br />2o) Não se emprega o hífen nas ligações da preposição de às formas monossilábicas do presente do<br />indicativo do verbo haver: hei de, hás de, hão de, etc.<br />Obs.: 1. Embora estejam consagradas pelo uso as formas verbais quer e requer, dos verbos querer<br />e requerer, em vez de quere e requere, estas últimas formas conservam-se, no entanto, nos casos<br />de ênclise: quere-o(s), requere-o(s). Nestes contextos, as formas (legítimas, aliás) qué-lo e requé-lo<br />são pouco usadas.<br />2. Usa-se também o hífen nas ligações de formas pronominais enclíticas ao advérbio eis (eis-me,<br />ei-lo) e ainda nas combinações de formas pronominais do tipo no-lo, vo-las, quando em próclise<br />(por ex.: esperamos que no-lo comprem).<br />Base XVIII<br />Do apóstrofo<br />1o) São os seguintes os casos de emprego do apóstrofo:<br />a) Faz-se uso do apóstrofo para cindir graficamente uma contração ou aglutinação vocabular,<br />quando um elemento ou fração respetiva pertence propriamente a um conjunto vocabular<br />distinto: d’Os Lusíadas, d’Os Sertões; n’Os Lusíadas, n’Os Sertões; pel’Os Lusíadas, pel’Os Sertões.<br />Nada obsta, contudo, a que estas escritas sejam substituídas por empregos de preposições<br />íntegras, se o exigir razão especial de clareza, expressividade ou ênfase: de Os Lusíadas,<br />em Os Lusíadas, por Os Lusíadas, etc.<br />texto oficial<br />30<br />As cisões indicadas são análogas às dissoluções gráficas que se fazem, embora sem emprego<br />do apóstrofo, em combinações da preposição a com palavras pertencentes a conjuntos vocabulares<br />imediatos: a A Relíquia, a Os Lusíadas (exemplos: importância atribuída a A Relíquia;<br />recorro a Os Lusíadas). Em tais casos, como é óbvio, entende-se que a dissolução gráfica nunca<br />impede na leitura a combinação fonética: a A = à, a Os = aos, etc.<br />b) Pode cindir-se por meio do apóstrofo uma contração ou aglutinação vocabular, quando um<br />elemento ou fração respetiva é forma pronominal e se lhe quer dar realce com o uso de maiúscula:<br />d’Ele, n’Ele, d’Aquele, n’Aquele, d’O, n’O, pel’O, m’O, t’O, lh’O, casos em que a segunda parte,<br />forma masculina, é aplicável a Deus, a Jesus, etc.; d’Ela, n’Ela, d’Aquela, n’Aquela, d’A, n’A,<br />pel’A, tu’A, t’A, lh’A, casos em que a segunda parte, forma feminina, é aplicável à mãe de Jesus,<br />à Providência, etc. Exemplos frásicos: confiamos n’O que nos salvou; esse milagre revelou-m’O;<br />está n’Ela a nossa esperança; pugnemos pel’A que é nossa padroeira.<br />À semelhança das cisões indicadas, pode dissolver-se graficamente, posto que sem uso do<br />apóstrofo, uma combinação da preposição a com uma forma pronominal realçada pela maiúscula:<br />a O, a Aquele, a Aquela (entendendo-se que a dissolução gráfica nunca impede na<br />leitura a combinação fonética: a O = ao, a Aquela = àquela, etc.). Exemplos frásicos: a O que<br />tudo pode; a Aquela que nos protege.<br />c) Emprega-se o apóstrofo nas ligações das formas santo e santa a nomes do hagiológio, quando<br />importa representar a elisão das vogais finais o e a: Sant’Ana, Sant’Iago, etc. É, pois, correto<br />escrever: Calçada de Sant’Ana, Rua de Sant’Ana; culto de Sant’Iago, Ordem de Sant’Iago. Mas,<br />se as ligações deste género/gênero, como é o caso destas mesmas Sant’Ana e Sant’Iago, se tornam<br />perfeitas unidades mórficas, aglutinam-se os dois elementos: Fulano de Santana, ilhéu<br />de Santana, Santana de Parnaíba; Fulano de Santiago, ilha de Santiago, Santiago do Cacém.<br />Em paralelo com a grafia Sant’Ana e congéneres/congêneres, emprega-se também o apóstrofo<br />nas ligações de duas formas antroponímicas, quando é necessário indicar que na primeira se<br />elide um o final: Nun’Álvares, Pedr’Eanes.<br />Note-se que nos casos referidos as escritas com apóstrofo, indicativas de elisão, não impedem,<br />de modo algum, as escritas sem apóstrofo: Santa Ana, Nuno Álvares,<br />Pedro Álvares, etc.<br />d) Emprega-se o apóstrofo para assinalar, no interior de certos compostos, a elisão do e da preposição<br />de, em combinação com substantivos: borda-d’água, cobra-<br />d’água, copo-d’água, estrela-<br />d’alva, galinha-d’água, mãe-d’água, pau-d’água, pau-d’alho, pau-d’arco, pau-d’óleo.<br />2o) São os seguintes os casos em que não se usa o apóstrofo:<br />Não é admissível o uso do apóstrofo nas combinações das preposições de e em com as formas do<br />artigo definido, com formas pronominais diversas e com formas adverbiais (excetuado o que se<br />estabelece nas alíneas 1o) a) e 1o) b)). Tais combinações são representadas:<br />a) Por uma só forma vocabular, se constituem, de modo fixo, uniões perfeitas:<br />i) do, da, dos, das; dele, dela, deles, delas; deste, desta, destes, destas, disto; desse, dessa,<br />desses, dessas, disso; daquele, daquela, daqueles, daquelas, daquilo; destoutro, destoutra,<br />destoutros, destoutras; dessoutro, dessoutra, dessoutros, dessoutras; daqueloutro,<br />daqueloutra, daqueloutros, daqueloutras; daqui; daí; dali; dacolá; donde; dantes (= antigamente);<br />ii) no, na, nos, nas; nele, nela, neles, nelas; neste, nesta, nestes, nestas, nisto; nesse, nessa,<br />nesses, nessas, nisso; naquele, naquela, naqueles, naquelas, naquilo;<br />nestoutro, nestoutra,<br />nestoutros, nestoutras; nessoutro, nessoutra, nessoutros, nessoutras; naqueloutro,<br />naqueloutra, naqueloutros, naqueloutras; num, numa, nuns, numas; noutro, noutra,<br />noutros, noutras, noutrem; nalgum, nalguma, nalguns,<br />nalgumas, nalguém.<br />Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />31<br />b) Por uma ou duas formas vocabulares, se não constituem, de modo fixo, uniões perfeitas<br />(apesar de serem correntes com esta feição em algumas pronúncias): de um, de uma, de<br />uns, de umas, ou dum, duma, duns, dumas; de algum, de alguma, de alguns, de algumas, de<br />alguém, de algo, de algures, de alhures, ou dalgum, dalguma, dalguns, dalgumas, dalguém,<br />dalgo, dalgures, dalhures; de outro, de outra, de outros, de outras, de outrem, de outrora,<br />ou doutro, doutra, doutros, doutras, doutrem, doutrora; de aquém ou daquém; de além ou<br />dalém; de entre ou dentre.<br />De acordo com os exemplos deste último tipo, tanto se admite o uso da locução adverbial de<br />ora avante como do advérbio que representa a contração dos seus três elementos: doravante.<br />Obs.: Quando a preposição de se combina com as formas articulares ou pronominais o, a, os,<br />as, ou com quaisquer pronomes ou advérbios começados por vogal, mas acontece estarem<br />essas palavras integradas em construções de infinitivo, não se emprega o apóstrofo, nem se<br />funde a preposição com a forma imediata, escrevendo-se estas duas separadamente: a fim de<br />ele compreender; apesar de o não ter visto; em virtude de os nossos pais serem bondosos; o facto/<br />fato de o conhecer;<br />por causa de aqui estares.<br />Base XIX<br />Das minúsculas e maiúsculas<br />1o) A letra minúscula inicial é usada:<br />a) Ordinariamente, em todos os vocábulos da língua nos usos correntes.<br />b) Nos nomes dos dias, meses, estações do ano: segunda-feira; outubro; primavera.<br />c) Nos bibliónimos/bibliônimos (após o primeiro elemento, que é com maiúscula, os demais<br />vocábulos podem ser escritos com minúscula, salvo nos nomes próprios nele contidos, tudo<br />em grifo): O Senhor do Paço de Ninães ou O senhor do paço de Ninães, Menino de Engenho ou<br />Menino de engenho, Árvore e Tambor ou Árvore e tambor.<br />d) Nos usos de fulano, sicrano, beltrano.<br />e) Nos pontos cardeais (mas não nas suas abreviaturas): norte, sul (mas: SW sudoeste).<br />f) Nos axiónimos/axiônimos e hagiónimos/hagiônimos (opcionalmente, neste caso, também<br />com maiúscula): senhor doutor Joaquim da Silva, bacharel Mário Abrantes, o cardeal Bembo;<br />santa Filomena (ou Santa Filomena).<br />g) Nos nomes que designam domínios do saber, cursos e disciplinas (opcionalmente, também<br />com maiúscula): português (ou Português), matemática (ou Matemática); línguas e literaturas<br />modernas (ou Línguas e Literaturas Modernas).<br />2o) A letra maiúscula inicial é usada:<br />a) Nos antropónimos/antropônimos, reais ou fictícios: Pedro Marques; Branca de Neve, D. Quixote.<br />b) Nos topónimos/topônimos, reais ou fictícios: Lisboa, Luanda, Maputo, Rio de Janeiro; Atlântida,<br />Hespéria.<br />c) Nos nomes de seres antropomorfizados ou mitológicos: Adamastor; Neptuno/ Netuno.<br />d) Nos nomes que designam instituições: Instituto de Pensões e Aposentadorias da Previdência<br />Social.<br />e) Nos nomes de festas e festividades: Natal, Páscoa, Ramadão, Todos os Santos.<br />f) Nos títulos de periódicos, que retêm o itálico: O Primeiro de Janeiro, O Estado de São Paulo<br />(ou S. Paulo).<br />texto oficial<br />32<br />g) Nos pontos cardeais ou equivalentes, quando empregados absolutamente: Nordeste, por nordeste<br />do Brasil, Norte, por norte de Portugal, Meio-Dia, pelo sul da França ou de outros países,<br />Ocidente, por ocidente europeu, Oriente, por oriente asiático.<br />h) Em siglas, símbolos ou abreviaturas internacionais ou nacionalmente reguladas<br />com maiúsculas,<br />iniciais ou mediais ou finais ou o todo em maiúsculas: FAO, NATO, ONU; H2<br />O;<br />Sr., V. Exa.<br />i) Opcionalmente, em palavras usadas reverencialmente, aulicamente ou hierarquicamente, em<br />início de versos, em categorizações de logradouros públicos (rua ou Rua da Liberdade, largo<br />ou Largo dos Leões), de templos (igreja ou Igreja do Bonfim, templo ou Templo do Apostolado<br />Positivista), de edifícios (palácio ou Palácio da Cultura, edifício ou Edifício Azevedo Cunha).<br />Obs.: As disposições sobre os usos das minúsculas e maiúsculas não obstam a que obras especializadas<br />observem regras próprias, provindas de códigos ou normalizações específicas (terminologias<br />antropológica, geológica, bibliológica, botânica, zoológica, etc.), promanadas de entidades<br />científicas ou normalizadoras, reconhecidas internacionalmente.<br />Base XX<br />Da divisão silábica<br />A divisão silábica, que em regra se faz pela soletração (a-ba-de, bru-ma, ca-cho,<br />lha-no,<br />ma-lha, ma-nha, má-xi-mo, ó-xi-do, ro-xo, tme-se), e na qual, por isso, se não tem de atender aos<br />elementos constitutivos dos vocábulos segundo a etimologia (a-ba-li-e-nar, bi-sa-vô, de-sa-pa-re-cer,<br />di-sú-ri-co, e-xâ-ni-me, hi-pe-<br />ra-cús-ti-co, i-ná-bil, o-bo-val, su-bo-cu-lar, su-pe-rá-ci-do), obedece<br />a vários preceitos particulares, que rigorosamente cumpre seguir, quando se tem de fazer em fim<br />de linha, mediante o emprego do hífen, a partição de uma palavra:<br />1o) São indivisíveis no interior de palavra, tal como inicialmente, e formam, portanto,<br />sílaba para<br />a frente as sucessões de duas consoantes que constituem perfeitos grupos, ou sejam (com exceção<br />apenas de vários compostos cujos prefixos terminam em b, ou d: ab- legação, ad- ligar,<br />sub- lunar, etc., em vez de a- blegação, a- dligar, su- blunar, etc.) aquelas sucessões em que a<br />primeira consoante é uma labial, uma velar, uma dental ou uma labiodental e a segunda um l<br />ou um r: a-<br />blução, cele- brar, du- plicação, re- primir; a- clamar, de- creto, de- glutição, re- grado;<br />a- tlético, cáte- dra, períme- tro; a- fluir, a- fricano, ne- vrose.<br />2o) São divisíveis no interior da palavra as sucessões de duas consoantes que não constituem propriamente<br />grupos e igualmente as sucessões de m ou n, com valor de nasalidade, e uma consoante:<br />ab- dicar, Ed- gardo, op- tar, sub- por, ab- soluto,<br />ad- jetivo, af- ta, bet- samita, íp- silon,<br />ob- viar, des- cer, dis- ciplina, flores- cer, nas- cer, res- cisão; ac- ne, ad- mirável, Daf- ne, diafrag-<br />ma, drac- ma,<br />ét- nico, rit- mo, sub- meter, am- nésico, interam- nense; bir- reme, cor- roer,<br />pror- rogar; as- segurar, bis- secular, sos- segar; bissex- to, contex- to, ex- citar; atroz- mente, capazmente,<br />infeliz- mente; am- bição, desen- ganar, en- xame, man- chu, Mân- lio, etc.<br />3o) As sucessões de mais de duas consoantes ou de m ou n, com o valor de nasalidade, e duas ou<br />mais consoantes são divisíveis por um de dois meios: se nelas entra um dos grupos que são<br />indivisíveis (de acordo com o preceito 1o), esse grupo forma sílaba para diante, ficando a consoante<br />ou consoantes que o precedem ligadas à sílaba anterior; se nelas não entra nenhum desses<br />grupos, a divisão dá-se sempre antes da última consoante. Exemplos dos dois casos: cam-<br />braia,<br />ec- tlipse, em- blema, ex- plicar, in- cluir, ins- crição, subs- crever, trans-gredir;<br />abs- tenção,<br />disp- neia, inters- telar, lamb- dacismo, sols- ticial, Terp-<br />sícore, tungs- ténio.<br />Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa<br />33<br />4o) As vogais consecutivas que não pertencem a ditongos decrescentes (as que pertencem a<br />ditongos deste tipo nunca se separam: ai- roso, cadei- ra, insti- tui, ora- ção, sacris- tães,<br />traves- sões) podem, se a primeira delas não é u precedido de g ou q, e mesmo que sejam<br />iguais, separar-se na escrita: ala- úde, áre- as, ca- apeba, co- ordenar, do- er, flu- idez,<br />perdo- as, vo- os. O mesmo se aplica aos casos de contiguidade de ditongos, iguais ou<br />diferentes, ou de ditongos e vogais: cai- ais, cai- eis, ensai- os, flu- iu.<br />5o) Os digramas gu e qu, em que o u se não pronuncia, nunca se separam da vogal ou ditongo<br />imediato (ne- gue, ne- guei; pe- que, pe- quei), do mesmo modo que as combinações gu e qu<br />em que o u se pronuncia: á- gua, ambí- guo, averi- gueis; longín- quos, lo- quaz, quais- quer.<br />6o) Na translineação de uma palavra composta ou de uma combinação de palavras em que há<br />um hífen, ou mais, se a partição coincide com o final de um dos elementos ou membros,<br />deve, por clareza gráfica, repetir-se o hífen no início da linha imediata: ex- -alferes, serená-<br />-los-emos ou serená-los- -emos, vice- -almirante.<br />Base XXI<br />Das assinaturas e firmas<br />Para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume ou registro<br />legal, adote na assinatura do seu nome.<br />Com o mesmo fim, pode manter-se a grafia original de quaisquer firmas comerciais, nomes<br />de sociedades, marcas e títulos que estejam inscritos em registro público.<br />texto oficial<br />34<br />Palavras paroxítonas (sem acento)<br />Ditongos abertos tônicos ei<br />alcateia<br />aleia<br />amoreia<br />apneia<br />assembleia<br />ateia<br />azaleia<br />boleia<br />Basileia<br />Boraceia<br />Brasileia<br />Caldeia<br />Cananeia<br />catleia<br />cefaleia<br />centopeia<br />colmeia<br />Coreia do Norte<br />Coreia do Sul<br />coreico<br />diarreia<br />dismenorreia<br />dispneia<br />Dulcineia<br />epopeia<br />epopeico<br />Eritreia<br />estreia<br />europeia<br />farmacopeia<br />geleia<br />gonorreia<br />ideia<br />Jureia<br />Medeia<br />moreia<br />morfeia<br />ninfeia<br />nucleico<br />odisseia<br />onomatopeia<br />onomatopeico<br />panaceia<br />pangeia<br />patuleia<br />Pauliceia<br />pigmeia<br />piorreia<br />plateia<br />Pompeia<br />prosopopeia<br />Rubineia<br />seborreia<br />teodiceia<br />teteia<br />traqueia<br />ureia<br />verborreia<br />Escreva certo pelo Acordo<br />Ditongos abertos tônicos oi<br />adenoide<br />Águas de Lindoia<br />alcaloide<br />androide<br />apoio (do verbo apoiar)<br />asteroide<br />benzoico<br />boia<br />boia-fria<br />butanoico<br />corticoide<br />claraboia<br />dicroico<br />espermatozoide<br />esquizoide<br />esteroide<br />estoico<br />estroina<br />etanoico<br />flavonoide<br />gastrozooide<br />heroico<br />humanoide<br />introito<br />jiboia<br />joia<br />lambisgoia<br />metanoia<br />mesozoico<br />neozoico<br />ninfoide<br />ovoide<br />paleozoico<br />35<br />paranoia<br />paranoico<br />paranoide<br />perestroica<br />pinoia<br />piramboia<br />plutoide<br />poliploide<br />porta-joias<br />proteico<br />queloide<br />reumatoide<br />sequoia<br />tabloide<br />tifoide<br />tipoia<br />tireoide<br />tiroide<br />tramoia<br />trapezoide<br />traqueoide<br />traquitoide<br />tremoia<br />trioico<br />tripoide<br />trocoide<br />trofozooide<br />Troia<br />urbanoide<br />Vogais tônicas i e u precedidas de ditongo<br />aiuba<br />baeuna<br />baiuca<br />Bocaiuva<br />boiuno<br />cauila (variante de caiura)<br />cheiinho (de cheio)<br />cuiuba<br />eoipo<br />feiume<br />feiura<br />Daiuca<br />gaiuta<br />Groairas<br />Guaiba<br />Guaiuba<br />Guaraiuva<br />Ipuiuna<br />maoismo<br />muiuna<br />reiuna<br />saiinha (de saia)<br />Sauipe<br />suaile<br />taoismo<br />tuiuca<br />tuiuva<br />veiudo<br />Hiato oo<br />abençoo<br />abotoo (do verbo abotoar)<br />coo (do verbo coar)<br />coroo (do verbo coroar)<br />doo (do verbo doar)<br />enjoo<br />leiloo<br />magoo (do verbo magoar)<br />moo (do verbo moer)<br />perdoo<br />roo (do verbo roer)<br />soo (do verbo soar)<br />sobrevoo<br />voo<br />povoo (do verbo povoar)<br />zoo<br />36<br />Exemplos de formas verbais com<br />duas pronúncias diferentes e, portanto,<br />com duas grafias diferentes<br />Averiguar<br />Antes Agora<br />quando o u for tônico<br />(sem acento gráfico)<br />quando o a ou o i forem<br />tônicos (com acento gráfico)<br />Presente do indicativo<br />averiguo<br />averiguas<br />averigua<br />averiguam<br />Presente do subjuntivo<br />averigúe<br />averigúes<br />averigúe<br />averigúem<br />Presente do indicativo<br />averiguo<br />averiguas<br />averigua<br />averiguam<br />Presente do subjuntivo<br />averigue<br />averigues<br />averigue<br />averiguem<br />Presente do indicativo<br />averíguo<br />averíguas<br />averígua<br />averíguam<br />Presente do subjuntivo<br />averígue<br />averígues<br />averígue<br />averíguem<br />Enxaguar<br />Antes Agora<br />quando o u for tônico quando o a e o i<br />forem tônicos<br />Presente do indicativo<br />enxáguo<br />enxáguas<br />enxágua<br />enxáguam<br />Presente do subjuntivo<br />enxágüe<br />enxágües<br />enxágüe<br />enxágüem<br />Presente do indicativo<br />enxaguo<br />enxaguas<br />enxagua<br />enxaguam<br />Presente do subjuntivo<br />enxague<br />enxagues<br />enxague<br />enxaguem<br />Presente do indicativo<br />enxáguo<br />enxáguas<br />enxágua<br />enxáguam<br />Presente do subjuntivo<br />enxágue<br />enxágues<br />enxágue<br />enxáguem<br />37<br />Delinquir<br />Antes Agora<br />quando o u for tônico quando o a e o i<br />forem tônicos<br />Presente do indicativo<br />-<br />delínqües<br />delínqüe<br />delinqüimos<br />delinqüis<br />delinqüem<br />Presente do subjuntivo<br />-<br />-<br />-<br />-<br />-<br />-<br />Presente do indicativo<br />delinquo<br />delinquis<br />delinqui<br />delinquimos<br />delinquís<br />delinquem<br />Presente do subjuntivo<br />-<br />-<br />-<br />-<br />-<br />-<br />Presente do indicativo<br />delínquo<br />delínques<br />delínque<br />-<br />-<br />delínquem<br />Presente do subjuntivo<br />delínqua<br />delínquas<br />delínqua<br />-<br />-<br />delínquam<br />Trema<br />águem (do verbo aguar)<br />aguentar<br />alcaguetar<br />alcaguete<br />anhanguera<br />aquífero<br />arguição<br />arguidor<br />arguir<br />banguê<br />bilíngue<br />Birigui<br />cinquenta<br />cinquentão<br />cinquentenário<br />consequência<br />delinquência<br />delinquente<br />delinquir<br />deságuem (do verbo desaguar)<br />eloquência<br />eloquente<br />enxágue<br />enxaguei<br />equestre<br />equidade<br />equidistância<br />equidistante<br />equino<br />exequível<br />frequência<br />frequentar<br />grandiloquência<br />grandiloquente<br />inexequível<br />iniquidade<br />lingueta<br />linguiça<br />linguista<br />linguística<br />liquidação<br />liquidificador<br />líquido<br />mingue (do verbo minguar)<br />pinguim<br />38<br />quingentésimo<br />quinquagenário<br />quinquagésimo<br />quinquenal<br />quinquênio<br />quiproquó<br />sagueiro<br />sagui<br />saguiguaçu<br />sanguinário<br />sanguíneo<br />sequela<br />sequência<br />sequenciador<br />sequencial<br />sequenciar<br />sequestrador<br />sequestrar<br />sequestro<br />seriguela<br />sociolinguístico<br />subsequente<br />tranquilidade<br />tranquilizar<br />tranquilo<br />triciquentenário<br />trilíngue<br />trilinguismo<br />trilinguista<br />trilinguístico<br />ubiquidade<br />unguento<br />unguiculado<br />Hífen<br />Topônimos<br />• Iniciados por grã e grão<br />Grã-Bretanha<br />Grão-Pará<br />• Iniciados por verbo<br />Abre-Campo (município de MG) Passa-e-Fica (município do RN)<br />Passa-Quatro (município de MG) Passa-Sete (município do RJ)<br />Passa-Tempo (município de MG) Quebra-Costas<br />Quebra-Dentes São Miguel do Passa-Quatro (município de GO)<br />Traga-Mouros Trinca-Fortes<br />• Elementos ligados por artigo<br />Albergaria-a-Velha<br />Baía de Todos-os-Santos<br />Entre-os-Rios<br />Montemor-o-Novo<br />Trás-os-Montes<br />39<br />Prefixos e falsos prefixos<br />• Aeroaerobalística<br />aerobiose<br />aerocartografia<br />aeroclube<br />aerodinâmica<br />aeroelasticidade<br />aeroeletromagnetismo<br />aeroespacial<br />aerofilatelia<br />aerofilme<br />aerofiltro<br />aerofone<br />aerografia<br />aerograma<br />aeroincubadora<br />aerolevantamento<br />aeromecânica<br />aeromodelismo<br />aeronavegação<br />aeropericardia<br />aeropioneirismo<br />aeropista<br />aeroportuário<br />aeroquímico<br />aerorraquia<br />aerossinusite<br />aerossol<br />aerossondagem<br />aerotáxi<br />aerotopografia<br />aerotransporte<br />aerovia<br />• Agroagroaçucareiro<br />agroalimentar<br />agrobiologia<br />agroclimático<br />agrodoce<br />agroecologia<br />agroecossistema<br />agrogeologia<br />agroindustrial<br />agrometeorologia<br />agronegócio<br />agropecuária<br />agroquímica<br />agrotécnico<br />agrotóxico<br />agrovia<br />• Anteanteato<br />anteaurora<br />antebraço<br />antecâmara<br />antecena<br />antecrepuscular<br />antedata<br />antediluviano<br />antedizer<br />anteface<br />antegramatical<br />ante-hipófise<br />ante-histórico<br />anteislâmico<br />antejulgar<br />antelábio<br />antemanhã<br />antemeridiano<br />antemuralha<br />antenasal<br />anteocupação<br />anteolhos<br />anteontem<br />anteporta<br />antessacristia<br />antessala<br />antessentir<br />antessocrático<br />antetítulo<br />antevéspera<br />antevisão<br />• Antiantiabortivo<br />antiabrasivo<br />antiacadêmico<br />antiácido<br />antiaderente<br />antiaéreo<br />antialcoólico<br />antialérgico<br />antiamericanismo<br />40<br />antiartístico<br />antiautoritário<br />anticolonial<br />antieconômico<br />antielitista<br />antiescravagista<br />antiesportivo<br />antiespumante<br />antiético<br />anti-hemorrágico<br />anti-herói<br />anti-higiênico<br />anti-horário<br />anti-ibérico<br />anti-imperialismo<br />anti-imperialista<br />anti-infeccioso<br />anti-inflacionário<br />anti-inflamatório<br />anti-intelectual<br />antioxidante<br />antirrábico<br />antirracional<br />antirracismo<br />antirradar<br />antirradiação<br />antirraquítico<br />antirreflexo<br />antirreformismo<br />antirregimental<br />antirregulamentar<br />antirreligioso<br />antirrepublicano<br />antirressonância<br />antirreumático<br />antirrevisionismo<br />antirrevolucionário<br />antirromântico<br />antirroubo<br />antirrugas<br />antirruído<br />antissatélite<br />antissátira<br />antissecretório<br />antissegregacionismo<br />antissemita<br />antissepsia<br />antissequestro<br />antissifilítico<br />antissigma<br />antissimétrico<br />antissísmico<br />antissistemático<br />antissocial<br />antissolar<br />antissolene<br />antissoro<br />antissoviético<br />antissubmarino<br />• Arquiarquibilionário<br />arquicélebre<br />arquicérebro<br />arquiclássico<br />arquiconfraria<br />arquidiocese<br />arquiduque<br />arquiepiscopado<br />arqui-hipérbole<br />arqui-inimigo<br />arqui-inimizade<br />arqui-irmandade<br />arquimilionário<br />arquiministro<br />arquirrabino<br />arquirrival<br />arquirrivalidade<br />arquirromântico<br />arquissacerdote<br />arquisseguro<br />arquissenador<br />arquissinagoga<br />arquissogro<br />arquivulgar<br />• Autoautoacusação<br />autoadesivo<br />autoadministração<br />autoadmiração<br />autoafirmação<br />autoagressão<br />autoajuda<br />autoanálise<br />autoaplicável<br />autoaprendizagem<br />autobiografia<br />autocensura<br />autocolante<br />autoconfiança<br />autoconhecimento<br />autoconsciência<br />autocontemplação<br />autocontrole<br />autocrítica<br />autodefesa<br />autodestruição<br />41<br />autodomínio<br />autoeducativo<br />autoelogio<br />autoescola<br />autoestima<br />autoestrada<br />autofinanciamento<br />autogestão<br />autogoverno<br />autoidolatria<br />autoignição<br />autoimolação<br />autoimposição<br />autoimunidade<br />autoindução<br />autoinfecção<br />autoinstrução<br />autointoxicação<br />auto-observação<br />auto-ônibus<br />auto-oscilação<br />autopiedade<br />autopista<br />autoproteção<br />autopunição<br />autorradiografia<br />autorredutor<br />autorreflexão<br />autorregenerar-se<br />autorreger-se<br />autorregulamentação<br />autorregular-se<br />autorreplicar-se<br />autorrespeito<br />autorretrato<br />autorrotação<br />autossatisfação<br />autossegmental<br />autossensibilização<br />autosserviço<br />autossofrimento<br />autossoro<br />autossubsistência<br />autossuficiente<br />autossugestão<br />autossustentável<br />autotransformação<br />autotransfusão<br />autovacina<br />• Circumcircum-<br />adjacência<br />circum-ambiente<br />circum-escolar<br />circum-hospitalar<br />circum-mediterrâneo<br />circum-meridiano<br />circum-murado<br />circum-navegação<br />circum-oral<br />circum-orbital<br />• Biobioacústica<br />bioastronomia<br />bioativo<br />biobibliografia<br />biocibernética<br />bioclima<br />biocombustível<br />biodegradável<br />biodigestor<br />biodiversidade<br />bioengenharia<br />bioética<br />biofertilizante<br />biofísica<br />biogás<br />bioindústria<br />biolinguística<br />biomagnético<br />biomassa<br />biomecânica<br />bionevoeiro<br />biopirataria<br />bioquímica<br />biorritmo<br />biossatélite<br />biossistema<br />biossocial<br />bioteste<br />• Cocoacusado<br />coadministração<br />coadministrador<br />coadministrar<br />coarrendador<br />coarrendamento<br />42<br />coarrendar<br />coarticulação<br />coautor<br />coautoria<br />coavalista<br />coaxial<br />codetentor<br />codevedor<br />codireção<br />codiretor<br />codiretoria<br />codoador<br />codominância<br />codominante<br />coedição<br />coeditar<br />coeditor<br />coeducação<br />coeducar<br />coexistência<br />coexistir<br />cofator<br />cofiador<br />cogerência<br />cogerir<br />cogestão<br />co-habitação<br />co-habitante<br />co-habitar<br />co-herdar<br />co-herdeiro<br />cointeressado<br />colatitude<br />colegatário<br />coobrigação<br />coobrigado<br />coocupante<br />cooperar<br />coordenar<br />coparceiro<br />coparticipação<br />coparticipante<br />coparticipar<br />copaternidade<br />copatrocínio<br />copiloto<br />coprodução<br />coprodutor<br />coproduzir<br />copropriedade<br />coproprietário<br />coprotetor<br />corradical<br />corré<br />corréu<br />corredator<br />corredentor<br />corresponsabilidade<br />corresponsável<br />cossecante<br />cosseguro<br />cosseno<br />cossignatário<br />cossísmico<br />cossismo<br />cotipo<br />cotutela<br />cotutor<br />covalência<br />covalente<br />covariação<br />covariante<br />• Contracontra-<br />acusação<br />contra-acusar<br />contra-alísio<br />contra-almirante<br />contra-antena<br />contra-anúncio<br />contra-apelo<br />contra-argumento<br />contra-arrazoado<br />contra-assinatura<br />contra-atacante<br />contra-atacar<br />contra-aviso<br />contracautela<br />contraespionagem<br />contraespionar<br />contraexemplo<br />contra-harmônico<br />contraindicação<br />contraindicado<br />contraindicar<br />contrainformação<br />contrainformar<br />contrairritação<br />contraofensiva<br />contraoferta<br />contraordem<br />contrarrampa<br />contrarrazão<br />contrarreação<br />contrarreforma<br />contrarregra<br />contrarregulador<br />contrarrelógio<br />contrarreparo<br />contrarréplica<br />contrarrepto<br />contrarretábulo<br />contrarrevolução<br />contrarrevolucionário<br />contrarrótulo<br />contrarrotura<br />43<br />• Eletroeletroacústica<br />eletroanálise<br />eletrobalança<br />eletrocapilar<br />eletrocardiograma<br />eletrochoque<br />eletrodinâmica<br />eletroeletrônico<br />eletroencefalograma<br />eletrogravura<br />eletro-higrômetro<br />eletroímã<br />eletroluminescência<br />eletromagnético<br />eletromecânico<br />eletronegatividade<br />eletro-oculografia<br />eletro-oculograma<br />eletro-ótica<br />eletropositividade<br />eletroquímica<br />eletrorresistividade<br />eletrorretinografia<br />eletrossiderurgia<br />eletrossíntese<br />eletrossol<br />eletrossono<br />eletrotécnica<br />eletroterapia<br />eletrotérmico<br />eletrotônus<br />eletrovalência<br />• Exex-<br />almirante<br />ex-aluno<br />ex-bolsista<br />ex-cantora<br />ex-cônjuge<br />ex-diretor<br />ex-gerente<br />ex-hospedeira<br />ex-inspetor<br />ex-jogador<br />ex-marido<br />ex-ministro<br />ex-motorista<br />ex-mulher<br />ex-namorado<br />ex-ouvinte<br />ex-pesquisador<br />ex-presidente<br />ex-primeiro-ministro<br />ex-quartel-general<br />ex-rainha<br />ex-refém<br />ex-sócio<br />ex-técnico<br />ex-universitário<br />ex-vice-presidente<br />ex-xadrezista<br />ex-zagueiro<br />• Extraextra-<br />abdominal<br />extra-alcance<br />extra-amazônico<br />extra-atmosférico<br />extracelular<br />extraconjugal<br />extracontinental<br />extracontratual<br />extracorpóreo<br />extracorrente<br />extracraniano<br />extracurricular<br />extraembrionário<br />extraescolar<br />extrafino<br />extra-hepático<br />extra-humano<br />extrajudicial<br />extrajurídico<br />extralinguístico<br />extraliterário<br />extramatrimonial<br />extramuros<br />extramusical<br />contrarruptura<br />contrasseguro<br />contrasselar<br />contrasselo<br />contrassenha<br />contrassenso<br />contrassignificação<br />contrassinal<br />contrassoca<br />contrassujeito<br />44<br />geoanticlinal<br />geobiologia<br />geobotânica<br />geocauda<br />geocêntrico<br />geocentrismo<br />geocíclico<br />geociência<br />geoclimático<br />geocronologia<br />geodemografia<br />geodinâmica<br />geoecologia<br />geoeconomia<br />geoeletricidade<br />geoestratégico<br />geofilomorfo<br />geofísica<br />geo-hidrografia<br />geo-história<br />geolinguística<br />geomagnético<br />geomedicina<br />geoparque<br />geopolítico<br />geoquímica<br />geossérie<br />geossíncrono<br />geotécnica<br />geotermal<br />geotêxtil<br />• Geo-<br />• Hidrohidroavião<br />hidrobiologia<br />hidrocarboneto<br />hidrocefalia<br />hidrodinâmica<br />hidroelétrica /<br />hidrelétrica<br />hidrofone<br />hidroginástica<br />hidromassagem<br />hidromineral<br />hidronefrose<br />hidroplâncton<br />hidrorrepelente<br />hidrossemeadura<br />hidrossolúvel<br />hidroterapia<br />hidrotermal<br />hidrovia<br />• Hiperhiperácido<br />hiperagudo<br />hiperagressivo<br />hiperativo<br />hiperbraquicefalia<br />hipercalórico<br />hipercorreto<br />hiperdesenvolvimento<br />hiperdosagem<br />hiperespaço<br />hipergaláxia<br />hiper-hedonismo<br />hiper-humano<br />hiperinflação<br />hiperirritabilidade<br />hipermercado<br />hipernúcleo<br />hiperosteose<br />hiperparasita<br />hiperprodução<br />hiper-rancoroso<br />hiper-realista<br />hiper-requintado<br />hiper-requisitado<br />hiper-resistente<br />hiper-rugoso<br />hipersalino<br />extranatural<br />extraocular<br />extraoficial<br />extraprograma<br />extrarregimento<br />extrarregulamentar<br />extrarregular<br />extrassagital<br />extrasseco<br />extrassensível<br />extrassensorial<br />extrassístole<br />extrassolar<br />extraterrestre<br />extraterritorial<br />extratextual<br />extratropical<br />extrauterino<br />45<br />hipersensível<br />hipertensão<br />hipertexto<br />hiperuricemia<br />hipervalorizar<br />hiperventilado<br />• Infrainfra-<br />assinado<br />infra-axilar<br />infrabasilar<br />infraclasse<br />infraestrutura<br />infra-hepático<br />infralitoral<br />inframandibular<br />infraordem<br />infrarrenal<br />infrassom<br />infravermelho<br />• Interinteracadêmico<br />interalveolar<br />interamericano<br />interauricolar<br />interbancário<br />intercâmbio<br />intercapilar<br />intercelular<br />intercervical<br />intercolegial<br />intercontinental<br />interdental<br />interdisciplinar<br />interescolar<br />interestadual<br />interface<br />interglacial<br />inter-helênico<br />inter-hemisférico<br />inter-humano<br />interindependência<br />interinsular<br />interjacente<br />interlaçar<br />intermaxilar<br />intermolecular<br />interparietal<br />interplanetário<br />inter-racial<br />inter-radial<br />inter-regional<br />inter-relação<br />inter-resistente<br />intersideral<br />intertextual<br />intertítulo<br />interventricular<br />intervocábulo<br />• Intraintra-<br />articular<br />intracelular<br />intradilatado<br />intraespecífico<br />intra-hepático<br />intramedular<br />intramuscular<br />intranasal<br />intraocular<br />intraoral<br />intraósseo<br />intrapulmonar<br />intratextual<br />intratorácico<br />intrauterino<br />intravascular<br />• Macromacrocefalia<br />macrocinema<br />macroclima<br />macrocosmo<br />macroeconomia<br />macroestrutura<br />macrofauna<br />macrogameta<br />macroinstrução<br />macrometeorito<br />macronúcleo<br />macroplâncton<br />macrorregião<br />macrossismo<br />macrotársico<br />46<br />• Maximaxicasaco<br />maxidesvalorização<br />maxidicionário<br />maxiexploração<br />maxissaia<br />maxivestido<br />• Micromicroacústico<br />microambiente<br />microampère<br />microanálise<br />microbiologia<br />microcaloria<br />microcâmara<br />microcápsula<br />microcefalia<br />microcinema<br />microcircuito<br />microcirurgia<br />microclima<br />microcomputador<br />microdicionário<br />microeconomia<br />microelemento<br />microeletrônico<br />microempresa<br />microestrutura<br />microevolução<br />microfibra<br />microfotografia<br />micrograma<br />micro-habitat<br />microimagem<br />microinformática<br />microinstrumento<br />microlitro<br />micromecânica<br />microminiatura<br />micronuclear<br />micro-onda<br />micro-ônibus<br />micro-orgânico /<br />microrgânico<br />micro-organismo /<br />microrganismo<br />micropaleontologia<br />microparasita<br />microplâncton<br />microprocessador<br />microrradiografia<br />microrregião<br />microrreprodução<br />microssaia<br />microssegundo<br />microssismo<br />microssismógrafo<br />microssonda<br />microterremoto<br />microtexto<br />microvascular<br />microvolt<br />microwatt<br />• Miniminibiblioteca<br />minicalculadora<br />minicasaco<br />minicomício<br />miniconto<br />minidesvalorização<br />minidicionário<br />minienciclopédia<br />minigolfe<br />mini-herói<br />mini-igreja<br />minijardim<br />minimundo<br />miniquadro<br />minirrádio<br />minirretrospectiva<br />minissaia<br />minissérie<br />minivestido<br />• Multimultiangular<br />multibilionário<br />multicelular<br />multicolorido<br />multicultural<br />multidisciplinar<br />multiétnico<br />multifacetado<br />multilateral<br />multilingue<br />multilustroso<br />multimídia<br />47<br />multimilionário<br />multinacional<br />multiocular<br />multiovulado<br />multipartido<br />multiplano<br />multipolaridade<br />multiprocessador<br />multirracial<br />multissecular<br />multissegmentado<br />multitarefa<br />multiusuário<br />multivalência<br />• Neoneoacadêmico<br />neobarroco<br />neocapitalismo<br />neociência<br />neoclássico<br />neocolonialismo<br />neodarwiniano<br />neoescolástica<br />neoexpressionismo<br />neofascismo<br />neoglaciação<br />neo-hebraico<br />neo-helênico<br />neo-hinduísmo<br />neoimperialismo<br />neoimpressionismo<br />neoliberal<br />neolinguística<br />neomedieval<br />neonatal<br />neonazismo<br />neo-ortodoxia<br />neo-otoplástica<br />neopoesia<br />neoquinhentismo<br />neorrealismo<br />neorrenascentista<br />neorrepública<br />neorromano<br />neossalomônico<br />neossiríaco<br />neotaoismo<br />neovascularização<br />• Panpan-<br />africano<br />pan-americano<br />pan-arabismo<br />pancontinental<br />pancromático<br />pan-eslavismo<br />panfobia<br />pangeometria<br />pan-helenismo<br />pan-islamismo<br />panléxico<br />pan-mítico<br />pan-negritude<br />pan-oftalmite<br />panromânico<br />pansexual<br />• Pluriplurianual<br />pluricelular<br />pluricultural<br />pluridisciplinar<br />plurifloro<br />plurilateral<br />plurilíngue<br />plurilinguista<br />pluriovulado<br />plurinominal<br />plurissecular<br />plurivalência<br />• Póspós-<br />adolescência<br />pós-barroco<br />pós-clássico<br />pós-colonial<br />pós-comunismo<br />pós-datado<br />pós-doutorado<br />pós-eleitoral<br />pós-escrito<br />pós-exílio<br />pós-glacial<br />pós-graduação<br />pós-guerra<br />pós-hipnótico<br />pós-impressionismo<br />pós-industrial<br />pós-medieval<br />pós-modernismo<br />48<br />pós-moderno<br />pós-natal<br />pós-operatório<br />pós-parto<br />pós-produção<br />pós-romantismo<br />pós-simbolista<br />pós-socrático<br />pós-tônico<br />pós-venda<br />pós-verbal<br />• Prépré-<br />adaptação<br />pré-adolescência<br />pré-ajustado<br />pré-aviso<br />pré-bizantino<br />pré-cambriano<br />pré-câncer<br />pré-capitalismo<br />pré-carnavalesco<br />pré-carolíngio<br />pré-censura<br />pré-colombiano<br />pré-colonial<br />pré-combustão<br />pré-conceito (sentido<br />de conceito prévio)<br />pré-condição<br />pré-contrato<br />pré-cozido<br />pré-datado<br />pré-diluviano<br />pré-eleitoral<br />pré-embrionário<br />pré-encolhido<br />pré-escola<br />pré-escolar<br />pré-estreia<br />pré-fabricado<br />pré-formação<br />pré-glacial<br />pré-gravação<br />pré-juízo (sentido de<br />juízo prévio)<br />pré-habitação<br />pré-helênico<br />pré-história<br />pré-impressão<br />pré-industrial<br />pré-jurídico<br />pré-lançamento<br />pré-matrícula<br />pré-menstrual<br />pré-modernismo<br />pré-nasalizado<br />pré-natal<br />pré-nupcial<br />pré-olímpico<br />pré-operatório<br />pré-primário<br />pré-qualificar<br />pré-reformista<br />pré-renascentista<br />pré-republicano<br />pré-requisito (sentido<br />de requisição prévia)<br />pré-revolucionário<br />pré-romântico<br />pré-saber<br />pré-seleção<br />pré-santificado<br />pré-seletor<br />pré-sensibilizado<br />pré-sexual<br />pré-simbolista<br />pré-socialismo<br />pré-socrático<br />pré-traçado<br />pré-universitário<br />pré-venda<br />pré-vestibular<br />• Própró-<br />africano<br />pró-análise<br />pró-britânico<br />pró-desarmamento<br />pró-europeu<br />pró-homem<br />pró-memória<br />pró-ocidental<br />pró-sangue<br />pró-socialismo<br />• Protoprotoariano<br />protobanto<br />protocloreto<br />protoderme<br />protoeslavo<br />protoestrela<br />49<br />protofloema<br />protogaláxia<br />proto-herói<br />proto-história<br />proto-humano<br />protoindo-europeu<br />protoindustrialização<br />protojônico<br />protolíngua<br />protomártir<br />protonauta<br />protoplasma<br />protorrevolução<br />protorromantismo<br />protossatélite<br />prototalo<br />protozoonose<br />• Pseudopseudoaleatório<br />pseudobulbo<br />pseudociência<br />pseudodiamante<br />pseudoepígrafe<br />pseudoesfera<br />pseudofilosofia<br />pseudofruto<br />pseudogene<br />pseudo-hermafrodita<br />pseudolatim<br />pseudomembrana<br />pseudonumeral<br />pseudo-ortorrômbico<br />pseudoparênquima<br />pseudorrandômico<br />pseudossigla<br />pseudotronco<br />pseudoverticilado<br />• Retroretroagir<br />retrocarga<br />retrodifusão<br />retroespalhamento<br />retrofoguete<br />retroprojeção<br />retrorrefletor<br />retrosseguir<br />retrotrair<br />retrovírus<br />retrovisor<br />• Semisemiaberto<br />semiacabado<br />semiacordado<br />semianalfabeto<br />semiângulo<br />semiaquático<br />semiárido<br />semiautomático<br />semibárbaro<br />semibruto<br />semicarbonizado<br />semicerrado<br />semicírculo<br />semicircunferência<br />semicivilizado<br />semidestruído<br />semideus<br />semidocumentário<br />semieixo<br />semielíptico<br />semiembriagado<br />semierudito<br />semiescravidão<br />semiescuro<br />semiesfera<br />semiespecializado<br />semifeudal<br />semifinal<br />semi-herbáceo<br />semi-hospitalar<br />semi-infantil<br />semi-integral<br />semi-inteiro<br />semi-internato<br />semi-interno<br />semiletrado<br />semilíquido<br />semimorto<br />seminômade<br />semioficial<br />semiobscuridade<br />semirracional<br />semirreal<br />semirreboque<br />semirreligioso<br />semirreta<br />semirrígido<br />semirrisonho<br />semirroto<br />semissábio<br />semisselvagem<br />50<br />semissintético<br />semissistematização<br />semissólido<br />semissoma<br />semissono<br />• Sobresobreaviso<br />sobrebanquinho<br />sobrecama<br />sobrecapa<br />sobrecomum<br />sobrecoxa<br />sobredental<br />sobredivino<br />sobre-elevação<br />sobre-eminência<br />sobre-erguer<br />sobre-exaltar<br />sobre-excedente<br />sobre-excitação<br />sobre-exposição<br />sobreface<br />sobre-humano<br />sobreimpressão<br />sobreirritar<br />sobrejuiz<br />sobreloja<br />sobremarcha<br />sobreolhar<br />sobrepasso<br />sobrerrenal<br />sobrerrestar<br />sobrerrodela<br />sobrerrolda<br />sobrerronda<br />sobrerrosado<br />sobressaia<br />sobressaturação<br />sobresselo<br />sobressemear<br />sobressentença<br />sobressinal<br />sobressolar<br />sobressoleira<br />sobressubstancial<br />sobretaxa<br />sobrevalia<br />sobrevento<br />sobrevida<br />• Sotasota-<br />capitão<br />sota-embaixador<br />sota-general<br />sota-mestre<br />sota-ministro<br />sota-piloto<br />sota-proa<br />sota-soberania<br />sota-voga<br />• Sotosoto-<br />capitão<br />soto-mestre<br />soto-ministro<br />soto-piloto<br />soto-proa<br />soto-soberania<br />soto-voga<br />• Subsubafluente<br />subalimentação<br />subantártico<br />subaquático<br />subártico<br />subatômico<br />sub-base<br />sub-bloco<br />sub-bosque<br />subcapilar<br />subcategoria<br />subchefe<br />subclasse<br />subcomissão<br />subcontinente<br />subdelegado<br />subdesenvolvimento<br />subdiretor<br />Este prefixo segue o que o acordo estabelece, exceto no caso em que é seguido<br />por palavra que começa com r. Nesse caso, recebe hífen para evitar que ocorra um<br />encontro consonantal br, pois ele não pode ser pronunciado conjuntamente.<br />51<br />subeditoria<br />subemprego<br />subequatorial<br />subespécie<br />subfaturar<br />subgênero<br />subgrupo<br />sub-hepático<br />sub-humano<br />subinspetor<br />subitem<br />sublacustre<br />subleito<br />subliteratura<br />sublocação<br />submandatário<br />subnúcleo<br />suboceânico<br />suboficial<br />subordem<br />subósseo<br />subparte<br />subpolar<br />subprefeitura<br />sub-raça<br />sub-região<br />sub-regional<br />sub-reino<br />sub-reitor<br />sub-remunerado<br />sub-reptício<br />sub-rogar<br />sub-rotina<br />subsaariano<br />subsargento<br />subsatélite<br />subseção<br />subsecretário<br />subsolo<br />subtítulo<br />subutilizar<br />subverbete<br />• Supersuperabundante<br />superagasalhar<br />superalimentação<br />superaquecimento<br />superbacana<br />superbactéria<br />supercampeão<br />supercivilização<br />supercomputador<br />supercraque<br />superdose<br />superego<br />superelevar<br />superestimar<br />superestrutura<br />superexposição<br />superfamília<br />superfino<br />supergrande<br />super-herói<br />super-hidratação<br />super-homem<br />superinfecção<br />superinterglacial<br />superlotação<br />supermãe<br />supermodelo<br />supernovo<br />superorganismo<br />superoxidação<br />superpopulação<br />superpotência<br />superpovoação<br />superprotegido<br />superquadra<br />super-racional<br />super-radical<br />super-reação<br />super-realista<br />super-requintado<br />super-resfriado<br />super-resistente<br />super-revista<br />supersecreto<br />supersensível<br />supersimples<br />supersom<br />supervácuo<br />supervaidoso<br />supervalorizado<br />superviolento<br />• Suprasupra-<br />axilar<br />supracondutor<br />supradialetal<br />supraesofágico<br />supraexcitante<br />suprafaríngeo<br />supraglotal<br />supra-hepático<br />supra-humano<br />52<br />suprajurássico<br />supralabial<br />supralunar<br />supramundano<br />supranacional<br />supraocular<br />suprapartidário<br />suprarracional<br />suprarrealismo<br />suprarrenal<br />suprassegmental<br />suprassensível<br />suprassumo<br />supratorácico<br />supraventricular<br />• Teletelealuno<br />telecine<br />telecurso<br />telediagnóstico<br />teledramaturgia<br />tele-educação /<br />teleducação<br />telefilme<br />telefotografar<br />teleguiar<br />teleimpressor<br />telejornal<br />telemedicina<br />telenovela<br />teleobjetiva<br />teleprocessamento<br />telerrobô<br />teleteatro<br />televizinho<br />• Ultraultra-<br />apressado<br />ultrabásico<br />ultracatólico<br />ultrachique<br />ultraconservador<br />ultracorreto<br />ultracurto<br />ultrademocrático<br />ultraelevado<br />ultraesquerda<br />ultraeuropeu<br />ultraexistência<br />ultrafiltro<br />ultra-hiperbólico<br />ultra-humano<br />ultraleve<br />ultramaratona<br />ultramicroscópio<br />ultranaturalismo<br />ultrapuro<br />ultrarradical<br />ultrarrápido<br />ultrarrealismo<br />ultrarrevolucionário<br />ultrarridículo<br />ultrarromântico<br />ultrarroxo<br />ultrassecreto<br />ultrassecular<br />ultrassensível<br />ultrassofisticado<br />ultrassom<br />ultrassônico<br />ultrassonografia<br />ultrassonoro<br />ultrassonoterapia<br />ultraterreno<br />ultravioleta<br />ultravírus<br />ultrazodiacal<br />• Vicevice-<br />almirante<br />vice-campeão<br />vice-chanceler<br />vice-comissário<br />vice-cônsul<br />vice-diretor<br />vice-gerência<br />vice-governador<br />vice-líder<br />vice-liderança<br />vice-prefeito<br />vice-presidente<br />vice-primeiro-ministro<br />vice-rainha<br />vice-rei<br />vice-reinado<br />vice-reitor<br />vice-secretário<br />53<br />Bibliografia<br />Dicionários<br />Instituto Antônio Houaiss. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:<br />Objetiva, 2003.<br />___. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Objetiva,<br />2008.<br />Guia<br />Houaiss , Antônio. A nova ortografia da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 1991.<br />Livro<br />Coutinho , Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. 7. ed. rev. Rio de Janeiro: Ao Livro<br />Técnico, 1976.<br />Publicação oficial<br />ACORDO ortográfico da língua portuguesa. Diário do congresso nacional, Brasília, 21 abr. 1995.<br />Disponível em: <www.senado.gov.br>. Acesso em: 8 jul. 2008.<br />Sites<br />ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Disponível em: <http:>.<br />Acesso em: 7 jul. 2008.<br />CARDOSO, Elis de Almeida. Ortographia virou ortografia. Disponível em: <http:>. Acesso em: 27 maio 2008.<br />GARCIA, Afrânio da Silva. O acordo ortográfico de 1995: seus antecedentes, seus pontos positivos<br />e negativos, suas possíveis consequências. Disponível em: <www.filologia.org.br>. Acesso em: 9 jun. 2008.<br />INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS. Vocabulario Portuguez & Latino. Disponível em:<br /><www.ieb.usp.br>. Acesso em: 18 jun. 2008.<br />LAURIA, Márcio José. Reforma da língua portuguesa? Disponível em: <http: id="1653&Secao=">. Acesso em: 29 maio 2008.<br />RIBEIRO, Guilherme. Apontamentos sobre a história da evolução da língua. Disponível em: <http:>. Acesso em: 27 maio 2008.<br />SCARTON, Gilberto. Guia de produção textual: assim é que se escreve. Porto Alegre: PUCRS,<br />FALE/GWEB/PROGRAD, 2002. Disponível em: <www.pucrs.br>. Acesso<br />em: 29 maio 2008.<br />WILLEMANN, José. Código Civil de 1916: Brasil por Brazil. Disponível em: <http:>. Acesso em: 5 jun. 2008.<br />54<br />Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.<br />Todos os direitos reservados.<br />EDITORA MODERNA LTDA.<br />Rua Padre Adelino, 758 - Belenzinho<br />São Paulo - SP - Brasil - CEP 03303-904<br />Vendas e Atendimento: Tel. (0_ _11) 2790-1500<br />Fax (0_ _11) 2790-1501<br />www.moderna.com.br<br />2008<br />Impresso no Brasil<br />© Editora Moderna, 2008<br />Coordenação editorial: Áurea Regina Kanashiro<br />Elaboração e edição de texto: Áurea Regina Kanashiro, Rogério Ramos, Regiane<br />de Cássia Thahira<br />Preparação de texto: Rogério Ramos, Anabel Ly Maduar<br />Coordenação de design e projetos visuais: Sandra Botelho de Carvalho Homma<br />Projeto gráfico: Marta Cerqueira Leite<br />Capa: Alexandre Gusmão<br />Fotos: Chemistry / Photographer’s Choice / Getty Images<br />Gregor Schuster / Photographer’s Choice / Getty Images<br />Coordenação de produção gráfica: André Monteiro, Maria de Lourdes Rodrigues<br />Coordenação de arte: Maria Lucia Ferreira Couto<br />Edição de arte: Rodolpho de Souza<br />Editoração eletrônica: Select Editoração<br />Coordenação de revisão: Elaine C. del Nero<br />Revisão: Mônica Rodrigues de Lima<br />Coordenação de pesquisa iconográfica: Ana Lucia Soares<br />Pesquisa iconográfica: Mariana Lima, Luciano Baneza Gabarron<br />Coordenação de bureau: Américo Jesus<br />Tratamento de imagens: Rodrigo Fragoso, Rubens M. Rodrigues<br />Pré-impressão: Everton L. de Oliveira, Helio P. de Souza Filho,<br />Marcio Hideyuki Kamoto, Vilney Stacciarini<br />Coordenação de produção industrial: Wilson Aparecido Troque<br />Impressão e acabamento:<br />1 3 5 7 9 10 8 6 4 2<br />55<br />Quais as mudanças que irão ocorrer na escrita<br />da língua portuguesa com a aprovação do novo<br />Acordo Ortográ co?<br />Este Guia do Acordo Ortográ co procura responder<br />a essa pergunta de uma maneira bem prática e<br />objetiva. Um quadro apresenta de modo resumido as<br />principais mudanças na ortogra a e listas de exemplos<br />ajudam a resolver as dúvidas de gra a.<br />E mais: texto o cial do Acordo e linha do tempo<br />ilustrada, que mostra como a questão da uni cação<br />da escrita do português vem cercada de polêmica e<br />de muita discussão desde o século XIX. </div>PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-20069472028286495872009-04-22T12:38:00.000-07:002009-07-29T13:51:36.511-07:00Links de livros gratuito digitais<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEibJKIF5a2FtCB79dxTziisbk4uueaRGktOZK-KJ3PpJdsa75SIA7qTK3qftdZrtOpCXsgNL8XEhFutzEvaIpsX1YYXk26cp2suUmzD9xhinq7cR9recFnlrfZG5L3UE3ENusRLKJ24yVE/s1600-h/site+filo.jpg"><img style="MARGIN: 0px 0px 10px 10px; WIDTH: 320px; FLOAT: right; HEIGHT: 198px; CURSOR: hand" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5330188089370584162" border="0" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEibJKIF5a2FtCB79dxTziisbk4uueaRGktOZK-KJ3PpJdsa75SIA7qTK3qftdZrtOpCXsgNL8XEhFutzEvaIpsX1YYXk26cp2suUmzD9xhinq7cR9recFnlrfZG5L3UE3ENusRLKJ24yVE/s320/site+filo.jpg" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxbI-paUJba9Ou6Y4jLrI5i1oljEBI5Vw6awxV56KSGhFgENs0_uk_HRh3gm9BefYg_KUMbAACoTECMVIzgpA66KVzHi6324K8sHGZgjoU1rAn9Vy2X4dsuWrNSRED2zOCCmERjhyEitc/s1600-h/sites.jpg"><img style="MARGIN: 0px 0px 10px 10px; WIDTH: 320px; FLOAT: right; HEIGHT: 320px; CURSOR: hand" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5330188083669074866" border="0" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgxbI-paUJba9Ou6Y4jLrI5i1oljEBI5Vw6awxV56KSGhFgENs0_uk_HRh3gm9BefYg_KUMbAACoTECMVIzgpA66KVzHi6324K8sHGZgjoU1rAn9Vy2X4dsuWrNSRED2zOCCmERjhyEitc/s320/sites.jpg" /></a><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />e<br /><br /><a href="http://www.weblivros.com.br/home.html">http://www.weblivros.com.br/home.html</a><br />e<br /><a href="http://www.vestibular1.com.br/informativo/if82.htm">http://www.vestibular1.com.br/informativo/if82.htm</a><br />e<br /><a href="http://br.geocities.com/poesiaeterna/indice.htm">http://br.geocities.com/poesiaeterna/indice.htm</a><br />e<br /><a href="http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do">http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do</a><br />e<br /><a href="http://www.culturatura.com.br/obras/">http://www.culturatura.com.br/obras/</a><br />e<br /><a href="http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/programas.htm">http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/programas.htm</a><br />e<br /><a href="http://www.teses.usp.br/">http://www.teses.usp.br/</a><br />e<br /><a href="http://www.meusdicionarios.com.br/">http://www.meusdicionarios.com.br/</a><br /><br />e<br /><a href="http://www.jornaldepoesia.jor.br/">http://www.jornaldepoesia.jor.br/</a><br />e<br />Links para quem escrevem poemas e poesia e contos gêneros literários<br /><a href="http://www.gargantadaserpente.com/">http://www.gargantadaserpente.com/</a><br />e<br /><br /><a href="http://www.storymania.com/">http://www.storymania.com/</a><br />e<br /><br /><a href="http://recantodasletras.uol.com.br/">http://recantodasletras.uol.com.br/</a>PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-19796317908228724882009-04-22T12:22:00.000-07:002009-05-04T08:39:31.615-07:00Ensaios de um Grande Mestre e Doutor(pois é Doutorado e não advogado e médico que nem defendem uma dissertação ou tese) Ele fez<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6XWQC1KCzgiE-6-XQ3H8RYO_7AkFfgA8N63Fn3-4ckhe_AYZ-5nZSsCNcdAo1D5nHxIBt1lD1QlgEE2UU8_9exsk-fq5-ydLeES1Fv_xETTDjLU7-C8qTyQl1SQ1Em_woMd0H_Ux1HSo/s1600-h/mestre+2.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5330185989019954258" style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; WIDTH: 205px; CURSOR: hand; HEIGHT: 320px" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6XWQC1KCzgiE-6-XQ3H8RYO_7AkFfgA8N63Fn3-4ckhe_AYZ-5nZSsCNcdAo1D5nHxIBt1lD1QlgEE2UU8_9exsk-fq5-ydLeES1Fv_xETTDjLU7-C8qTyQl1SQ1Em_woMd0H_Ux1HSo/s320/mestre+2.jpg" border="0" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDn6SJzGY1bCaDWNM8DOrQGX0KLskTaatxxjb5PKo4tz5kuqJqxI8nCY1O3fovLQcx_kh3SqtoRzd70fuHiVBkv4vAZukwPZFqYKHdiLG3dGMDGM4u1vhOkotAgEnzkcSva4yD6-kWDKI/s1600-h/mestre1.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5330185985296624082" style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; WIDTH: 264px; CURSOR: hand; HEIGHT: 320px" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDn6SJzGY1bCaDWNM8DOrQGX0KLskTaatxxjb5PKo4tz5kuqJqxI8nCY1O3fovLQcx_kh3SqtoRzd70fuHiVBkv4vAZukwPZFqYKHdiLG3dGMDGM4u1vhOkotAgEnzkcSva4yD6-kWDKI/s320/mestre1.jpg" border="0" /></a><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />CENSURA AOS ARTISTAS EM TRÊS QUADRAS DAS CENTÚRIAS DE NOSTRADAMUS.<br />Por: Prof. Dr. Jayro Luna (Jairo Nogueira Luna)<br />O famoso livro sibilino, Profecias de Nostradamus, é daqueles que tem sido ao longo do tempo objeto das mais polêmicas e disparatadas interpretações. Livro de caráter profético, escrito em quadras herméticas repletas de simbologias místicas, a interpretação de suas quadras resultou num conjunto de obras das mais variadas intenções e naturezas. Obras como as de Pierre V. Piobb (O Segredo das Centúrias de Nostradamus), Érika Cheetham (As Profecias de Nostradamus), Márquez da Cruz (Profecias de Nostradamus e de Outros Videntes), Valério Evangelisti (Magus: O Presságio: Fantástica História de Nostradamus), John Hogue (Nostradamus e o Milênio: Predições do Futuro), ou ainda uma ópera rock (Nikolo Kotzevs - Nostradamus) compõem esse diversificado e rico acervo, que inclui documentários de televisão, filmes para o cinema, etc.<br />Eu, como curioso das ciências ditas ocultas ou esotéricas, com especial apreço pela Numerologia, pela Cabala, pela Astronomia e que tenho admiração pelas religiões antigas e pelas de origem afro (Candomblé, Umbanda - esta, legitimamente, afro-brasileira) e pelas interpretações antropológicas e históricas do Cristianismo, além de um inolvidável interesse pela maçonaria, espiritismo e outras seitas místico-religiosas oriundas do Velho Mundo, afora as pesquisas que já fiz pela mitologia asiática, não pude me furtar, por vezes, ao desejo de ler as quadras de Nostradamus como quem busca ali entendê-las, decifrá-las, o que é natural em relação a este tipo de texto. Desenvolvi um método próprio, muito pessoal (parte dele, ou alguns indícios dele, explico em capítulo de meu livro de poesias e textos diversos Florilégio de Alfarrábio, 2002).<br />No presente e breve texto, apresento uma leitura, segundo esses princípios próprios de interpretação, de três quadras das centúrias. São elas: Quadra XVIII da Centúria IV; Quadra LIII da Centúria V e XCVI desta mesma V Centúria. Transcrevo-as a seguir no original e segundo a tradução de António da Silva Lopes:<br />Est. XVIII, IV Cent.:<br />Des plus lettrez dessus les faicts celestes<br />Seront par Princes ignorans reprouvez :<br />Punis d’Edict, chassez, comme scelestes,<br />Et mis à mort lá où seront trouvez.<br />Dos mais letrados de cima os feitos celestes<br />Serão por Príncipes ignorantes reprovados:<br />Punidos por Édito, expulsos, como celerados,<br />E postos à morte lá onde forem encontrados.<br />Est. LIII, V Cent.:<br />La loy dy Sol & Venus contendus<br />Appropriant l’esprit de prophetie,<br />Ne l’un ne l’un ne l’autre ne seront entendus,<br />Par Sol tiendra la loy du grand Messie.<br />A lei do Sol e Vênus contendidos<br />Apropriando o espírito de profecia,<br />Nem um nem outro serão entendidos,<br />Por Sol se manterá a lei do grande Messias.<br />Est. XCVI, V Cent.:<br />Sur le milieu du grand monde la rose,<br />Pour nouveaux faicts sang public espandu :<br />A dire vray on aura bouche close,<br />Lors au besoing viendra tard l’atendu.<br />No meio do grande mundo a rosa,<br />Para novos feitos sangue público derramado:<br />Para falar verdade ter-se-á boca fechada,<br />Então se for preciso virá tarde o aguardado.<br />Para Érika Cheetam, a quadra XVIII da Centúria IV é uma referência às atrocidades cometidas pela Inquisição em nome da Fé:<br />“Notam-se resquícios da Inquisição nestes versos. Na realidade, os astrólogos não foram tão duramente perseguidos depois da morte de Nostradamus como no século anterior. É possível também que ele se referisse à caça às bruxas que assolou a Europa e só mais tarde amainou. Nostradamus foi convocado a depor diante do tribunal da Inquisição em Toulouse e teve que desaparecer durante algum tempo.”<br />(CHEETAM: 1983, P. 215)<br />Com efeito, esta quadra é de uma clareza quase impressionante em termos de censura e repressão. Se pensamos no próprio autor, Nostradamus sofreu com a perseguição da Inquisição e sabia como seu conhecimento era considerado proibido e, para muitos religiosos, de natureza demoníaca. A quadra pode se referir a inúmeros episódios da história da humanidade posteriores à época de Nostradamus e, mais ainda, a diversos lugares do mundo. As ditaduras - sejam de esquerda ou de direita, fascistas, marxistas ou capitalistas - tiveram e têm como prática constante a perseguição aos dissidentes, não apenas políticos, mas também e com grande furor, aos artistas (poetas, pintores, romancistas, dramaturgos) e assim também como aos jornalistas e à liberdade de imprensa. Salazar em Portugal (1926 - 1974), Franco na Espanha (1939-1975), Stalin na extinta União Soviética (1930-1953), Nicolau Ceaucescu na Romênia (1965 - 1989), o clã dos Somoza na Nicarágua (1936-1979), Saddam Hussein no Iraque (1979 - 2003) apenas para ficarmos em alguns exemplos do século XX. Não precisamos buscar exemplos assim tão explícitos de ditadura, podemos encontrar aspectos semelhantes na “caça às bruxas” movida pelo governo norte-americano no período do chamada Mcartismo, ou a ditadura populista de Getúlio Vargas no Brasil, e para ficarmos no nosso caso, o período da ditadura militar em que a repressão ganhou contornos das mais terríveis ditaduras de repressão à liberdade de expressão (1964-1978). Ainda na América do Sul, ditaduras no Chile, na Bolívia, no Peru e na Argentina, primaram pela perseguição aos opositores, aos artistas, aos jornalistas. Assim, a quadra de Nostradamus cabe perfeitamente bem em qualquer um<br />desses casos, inclusive na França, por exemplo, no período entre a Revolução Francesa e o Império Napoleônico.<br />Claro que é possível, em se querendo prestar crédito aos poderes proféticos do autor dessa quadra, que ele devia estar se referindo a algo particular, um caso específico e não geral, que não obstante, serve de exemplo aos demais, em gênero, número e grau. A tarefa de decifrar e de encontrar esse período específico, esse caso singular que se refere ao geral como exemplo, envolve às mais diferentes técnicas e estratégias esotéricas e intertextuais.<br />Para a estrofe LIII da V Centúria Érika Cheetam apresenta a seguinte interpretação:<br />“O Sol representa aqui a cristandade e Vênus, o Islã. Esta quadra reafirma o desejo de Nostradamus de ver o cristianismo governando o mundo. Infelizmente esta é uma das quadras que, parece, nunca se realizarão.”<br />(CHEETAM: 1983, p. 282)<br />Outro intérprete de Nostradamus, Ettore Cheynet em seu livro Nostradamus e o Inquietante Futuro (1987), apresenta uma interpretação próxima a de Cheetam:<br />“Haverá, pois, uma lei solar e uma lei de Vênus, que estarão em oposição, e ambas pouco seguidas. Adequando-se ao espírito da profecia: é preciso interpretar ao pé da letra. A lei do sol penderá para a antiga religião cristã.”<br />(CHEYNET: 1987, p. 112)<br />P.V. Piobb em seu O Segredo das Profecias de Nostradamus demonstra engenhosamente os artifícios com que é possível aplicar elementos astrológicos na interpretação dessas quadras. De fato, não é possível negligenciar a aplicabilidade de estratégias engenhosas de astrologia no processo de decifrar o texto. Para nós as referências no primeiro verso dessa quadra ao Sol e a Vênus superam a relação cristianismo/islamismo.<br />Se pensarmos no âmbito da Astrologia, Sol e Vênus contendidos (em oposição), o que é uma situação astrologicamente impossível, uma vez que Vênus nunca está além de 46.° do Sol. Assim, parece que se desautoriza em falarmos em elementos astrológico nessa estrofe, mas reside justamente aí um dos principais fatores herméticos do texto de Nostradamus, qual seja, o de colocar à vista elementos surpreendentes que podem parecer acima de qualquer suspeita ou possibilidade de relação. Se lemos toda a estrofe nesse contexto astrológico, podemos entender que ela nos fala que existe uma lei pela qual Sol e Vênus não podem entrar em oposição, e que se isso um dia ocorresse, os homens não conseguiriam entender o céu ou arrumar explicação para o evento, seria um evento catastrófico de grandeza sideral (apocalíptico) e que, portanto, mantém-se essa lei como uma lei que garante a eternidade ou a permanência das palavras do “Grande Messias” (Cristo?!). Se, por outro lado, agora pensamos no significado simbólico religioso que autores como Érika Cheetam e Ettore Cheyenet costumam aplicar a esta quadra, podemos perceber agora que ele não fala propriamente da guerra contínua entre cristãos e muçulmanos (desde antes das Cruzadas até os dias atuais), mas sim, o contrário, de que é a existência dessa oposição que se contrapõe ao que o próprio céu ensina: de que Vênus e o Sol estão próximos, quase que em constante conjunção. Assim, a rota da felicidade na Terra é aprender com o Céu (lembremos do que nos ensina o Padre António Vieira no seu belíssimo “Sermão da Sexagésima” quando usa a metáfora do xadrez de estrelas para se<br />referir ao discurso das palavras!). Aproveitando-me ainda da lição de António Vieira, o grande messias pode ser entendido, nesse caso, como o Céu:<br />“Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que no Mundo. E qual foi ele? - O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o Céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum - Diz Davi.”<br />(VIEIRA: 1968, p. 105)<br />Dito isto, convém lembrar a importância capital que se descobriu existir do planeta Vênus no calendário maia, povo cuja astronomia foi, sem dúvida, das mais desenvolvidas e exatas dentre os povos antigos.<br />“De modo geral, todos concordam que a Contagem Longa [dos Maias] começou com um evento conhecido como o nascimento de Vênus, em 12 de agosto de 3114 a.C. Foi tão importante para os maias, que estes o empregaram como a base de seu calendário, mais ou menos como usamos o nascimento de Jesus para o nosso. Förstemann, o bibliotecário de Dresden, e outros mostraram que os maias usavam os ciclos de Vênus para estabelecer longos períodos de tempo. (...) [E três páginas adiante] Como o calendário maia assinala a data de 22 de dezembro de 2012 como o final da era atual - quando, segundo os maias, devemos esperar algum tipo de catástrofe -, seria isso uma antecipação do que está por acontecer?”<br />(GILBERT & COTERREL: 1999, p. 185-188)<br />Adrian Gilbert e Maurice M. Cotterell em um polêmico, mas instigante, estudo (As Profecias Maias) levantam a tese de que existe uma correlação entre o ciclo venusiano do calendário maia e o ciclo das manchas solares de modo que o início ou término desses ciclos coincidem e que os Maias de alguma forma intuíram essa ligação. Evidentemente o período de máxima atividade das manchas solares tem sido associado a uma seqüência de eventos atmosféricos, geológicos e climatológicos na Terra. Esses ciclos combinam a cada 5.125 anos de forma drástica, de modo que é o momento em que o Sol teria uma modificação no seu pólo magnético de tal magnitude que levaria a modificações graves na atmosfera, no clima e no relevo de todos os planetas do Sistema Solar e, no nosso caso, em especial, a Terra. Desse modo o verso primeiro da quadra referida de Nostradamus também pode ser entendido como uma forma que o mago encontrou para profetizar acerca da conturbada relação entre os ciclos venusianos e solares, tanto no âmbito da humanidade, quanto no âmbito celeste.<br />Por fim a respeito dessa quadra, convém observar que Vênus e o Sol têm na mitologia européia e em especial, na greco-latina, uma significação específica. Vênus (que é associada à Afrodite grega e ainda, à Astarte oriental), deusa da fertilidade e do amor e por extensão da sensualidade e da feminilidade, que teve em poetas clássicos antigos, cujo exemplo mais significativo parece ser Safo de Lesbos, a tematização constante de seus dotes, é também uma figura ou divindade mitológica que tem um temperamento impulsivo. Já o Sol associado a figuras mitológicas como Hélio e Apolo, é aquele que tudo vê, pois tudo ilumina.<br />Nietzsche via uma oposição significativa entre Apolo e Dioniso - este, o deus instintivo, erótico, liberalizador da consciência. O princípio apolíneo seria a base do<br />pensamento socrático e que sustenta a ordem política, religiosa e social da sociedade ocidental, ao passo que Dioniso representaria o passado remoto em que o instinto se sobrepunha, em muitos casos, à racionalidade. Nesse âmbito, podemos ver também uma oposição entre os eixos Apolo/Hélio e Vênus/Dioniso. Mas, voltando ao princípio dessa nossa interpretação acerca do Sol e de Vênus, essa oposição representaria o caos, o cataclisma, o apocalipse e que para superá-la é preciso compreender que se o Sol é a razão e Vênus o amor, a paixão, que existe uma razão no Amor (Vide o “Hino à Razão” de Antero de Quental) e um amor à Razão. Somente constante proximidade entre o princípio venusiano e o princípio solar pode garantir a unidade e a harmonia necessárias à humanidade para compreensão e superação de seus impasses.<br />A terceira quadra que nos propomos analisar tem a seguinte interpretação para Curtis Masil em seu As Centúrias de Nostradamus (1987):<br />“Mensagem mística, sem dúvida. A rosa é a chave. Irradia a verdade, não a de uns, mas a de todos. A liberdade de expressão irá desaparecer por uns tempos da face do mundo. Depois, sim, há de chegar, ainda que tarde, um salvador. Porque se trata de uma quadra mística, a rosa, no entanto, não é política, não é socialista tampouco. É o que é: uma rosa, apenas. Quem lê entenda!”<br />(MASIL:1987, p. 148)<br />Como escritor esotérico, Masil adota o estilo lacônico, elíptico, de forma que deixa no ar o significado da rosa encontrado por ele na leitura da quadra. Umberto Eco, no seu mais famoso romance, O Nome da Rosa, já trabalhara o conceito medieval da rosa. Algumas incongruências, no entanto, permanecem na interpretação de Masil, como a distinção entre “política” e “socialista”, o que de certo modo não se sustenta, bem como que a significação mística se oporia a estas, o que não também, do ponto de vista dos estudos sociológicos, antropológicos e culturais também não se verifica.<br />Érika Cheetam, a respeito dessa quadra, se cala, e apresenta apenas uma tradução livre e lacônica da quadra.<br />José García Alvarez assina matéria colocada na Internet (http://relatoscortos.com) em que interpreta algumas das quadras de Nostradamus, e com relação a esta em particular escreve:<br />“SANGRIENTOS ACONTECIMIENTOS SOCIALES: (...)Desde los años 70 en adelante, en que sobre la mitad del mundo gobernará el partido socialista, el de la rosa, por nuevos hechos trágicos, como atentados terroristas, accidentes de todo tipo, masacres deportivas, asesinatos de psicópatas, pruebas secretas militares, la sangre pública será expandida: Pero, a decir verdad, prácticamente, sobre todo esto los gobiernos del mundo tendrán la boca cerrada. Es entonces, más adelante, en la necesidad, cuando verán sus errores, pero vendrá tarde para ellos, el esperado Jesús el Hijo del Hombre.”<br />(ALVAREZ: Internet, 2005)<br />A polêmica relação entre socialismo ligado à repressão ditatorial e de outro o cristianismo ligado à liberdade, tem implicações ideológicas das mais conflitantes e questionáveis. E Tadd Mann em Millennium Prophecies, baseando-se numa interpretação de Edgar Cayce, comenta:<br />“Century V,96 refers either the 'Third Antichrist' or to 'The Three' being killed by the Antichrist, and could therefore be a reference to the three initial republics making a coalition following the breakdown of the USSR in the early 1990s, and being responsible in some way for creating conditions for the arrival of the Antichrist.”<br />(MANN: 1992).<br />Mann aponta esse período de repressão como se referindo aos regimes ditatoriais mantidos sob os auspícios da famosa cortina de ferro e do protetorado que a URSS exercia sobre o leste europeu. A queda do muro de Berlim e a derrocada da União Soviética representariam a conquista da liberdade de expressão.<br />Do meu ponto de vista, assim como fizemos com a quadra XVIII, IV Centúria, aqui existe uma gama de possibilidades interpretativas. A História nos permite uma grande quantidade de datas e eventos que se relacionam a isso: um período de repressão, de censura, de perseguições que sucumbe por fim, quando se abre novamente as portas da liberdade. A “boca fechada”, “o sangue público” são expressões incontestes desse significado. Por outro lado, dois elementos nessa estrofe me chamam a atenção. O primeiro é a rosa, essa que está no “meio do mundo” e o segundo é o “aguardado” que virá ainda que tarde para libertar o povo.<br />O signo do “aguardado”, do esperado, daquele que virá pode ser encontrado nas mais diferentes acepções na história da humanidade. Desde Cristo e a epifania dos reis magos, passando por outros como Dom Sebastião em Portugal e no sertão do Brasil, encontramos também no discurso pseudo-profético de um fanático como Antônio Conselheiro, mas podemos também relacionar simbolicamente com outras figuras bem distintas do sentido messiânico, como Júlio Prestes ou Che Guevara ou ainda, Tiradentes e os inconfidentes (“Libertas quae sera tamen”). Esse aguardado, esse esperado pode, ao final das contas, ser qualquer um que se predisponha à luta pela liberdade diante de um estado repressivo e tirano, pode ser um poeta como Pablo Neruda (Chile), Giorgios Seferis (Grécia), entre tantos, ou um músico como Geraldo Vandré (no Brasil), Victor Jará (Chile), p.ex., o que define essa figura simbólica não é propriamente a sua condição profética ou messiânica, mas sim, sua condição de luta pela liberdade.<br />O signo da “rosa”, por fim, tem aspecto ambíguo. É claro que pode se referir como símbolo desse estado ditatorial, daí o fato de alguns ligarem ao socialismo e por extensão às ditaduras que se mantiveram sobre uma falsa aparência socialista. Mas por outro lado, se lemos a quadra com menos impulso ideológico determinado e contaminado, podemos ver que a rosa não é o signo do estado repressivo, mas antes que ela é a esperança colocada no deserto, no meio do mundo, e que representa com o seu florescimento a luta contra a ditadura. A rosa, em questão, pode ser a obra do artista. Essa é a obra que se produz sob o sangue derramado, é a luta desigual concretizada no engajamento artístico contra a opressão.<br />No nosso entender, nessas e em várias outras quadras das centúrias de Nostradamus vemos um autor que hermetiza em seus símbolos uma condição que o próprio autor passou, a de ter que falar por meandros, por figuras, por metáforas e alegorias diversas para poder passar uma mensagem não simplesmente apocalíptica, fatalista, derrotista dos destinos da humanidade, mas sim, para falar da esperança e dos caminhos que podem levar à superação e modificação de um estado de coisas conflitantes.<br />© Jayro Luna, 2005.<br />Referências Bibliográficas:<br />ÁLVAREZ, José García. Artigo na Internet “Nostradamus Y La Actualidade” em: http://relatoscortos.com.<br />CHEETAM, Érika. As Profecias de Nostradamus. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.<br />CHEYNET, Ettore. Nostradamus e o Inquietante Futuro. São Paulo, Círculo do Livro, 1987.<br />GILBERT, Adrian & COTTERELL, Maurice M. As Profecias Mais. Rio de Janeiro, Nova Era, 1999.<br />MANN, Tadd. Millenium Prophecies. Element Books, 1992.<br />MASIL, Curtis. As Centúrias de Nostradamus. Rio de Janeiro, Ediouro, 1987.<br />NOSTRADAMUS. Profecias (tradução: Antônio da Silva Lopes). Lisboa, Vega, 1978.<br />PIOBB, P.V. O Segredo de Nostradamus. Rio de Janeiro, Editora Três, 1973.<br />VIEIRA, António. Sermões e Cartas. Rio de Janeiro, Agir,PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-84989811406199588132009-04-22T12:14:00.000-07:002009-08-13T08:52:10.183-07:00LITERATURA CLÁSSICA ROMANA<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEihMdb0a7MqKrXBfsY-R7k84VMxwaUZXxISgU3S_3v6oRUqzjKqYolC5EHZ6JUY10ggndiA5OO1ZBYFgcquv3aXZtyCqdZ0QkxliCGTpQaRL1-_x845Q4UrkggLtADAGAqWG8wNQfs2SKM/s1600-h/ROAMAT.jpg"><img style="TEXT-ALIGN: center; MARGIN: 0px auto 10px; WIDTH: 320px; DISPLAY: block; HEIGHT: 205px; CURSOR: hand" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329821055074980722" border="0" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEihMdb0a7MqKrXBfsY-R7k84VMxwaUZXxISgU3S_3v6oRUqzjKqYolC5EHZ6JUY10ggndiA5OO1ZBYFgcquv3aXZtyCqdZ0QkxliCGTpQaRL1-_x845Q4UrkggLtADAGAqWG8wNQfs2SKM/s320/ROAMAT.jpg" /></a>
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />Aulularia de Plauto - 3 estudos e resumo
<br />PLAUTO E A AULULARIA<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]-->
<br />Mariza Mencalha de Souza (UFRJ)
<br />Resumo:
<br />Apresentação da vida e obra do comediógrafo latino Plauto. Destaque de alguns aspectos da comédia Aululária, sobretudo de seus personagens e enredo.Resumo dos atos e cenas da peça.
<br />PALAVRAS-CHAVE: Plauto; Aululária; Euclião.
<br />PLAUTO: VIDA E OBRA
<br />Plauto nasceu em Sársina, na Úmbria, provavelmente em 254 a.C., e morreu em 184 a.C., data esta apresentada por Cícero no Brutus (15, 60) e aceita pela maioria dos especialistas modernos que se dedicaram ao estudo da vida e obra do comediógrafo latino. Provinha de família modesta, mas não sabemos ao certo se era livre ou escravo liberto, embora a primeira hipótese seja apontada pela crítica como a mais plausível.
<br />Sua língua materna era o umbro, mesclado talvez de elementos célticos, mas conhecia o grego e tinha grande domínio do latim, adquirido, para alguns, na Úmbria latinizada e, para outros, em Roma, para onde supõem ter ido bem jovem.
<br />Chegando à Urbe, ingressou, informa Aulo Gélio, numa companhia teatral, tornando-se algum tempo depois senhor de uma boa fortuna, perdida no comércio marítimo e nas viagens empreendidas pelo Mediterrâneo.
<br />Arruinado, teve de voltar a Roma e sujeitar-se ao duro trabalho de moleiro, para garantir o seu sustento. Entre um intervalo e outro da penosa profissão, compôs as comédias Saturio, Addictus e uma terceira, hoje desconhecida. As três peças, já revelando o gênio do poeta, fizeram grande sucesso e, desde então, permitiram a Plauto refazer a vida e dar a ela um novo rumo.
<br />A partir daí, a fama e a popularidade do dramaturgo viriam a crescer cada vez mais. Isto é comprovado não só pela audiência que tiveram suas futuras comédias junto ao público, mas também pelo próprio fato de circularem e serem representadas após sua morte dezenas de peças com seu nome, tidas mais tarde como apócrifas ou duvidosas.
<br />Era um total de 130 comédias. Varrão, todavia, analisando e comparando o estilo e a língua empregados nessas peças, chegou à conclusão de que apenas vinte e uma delas eram plautinas.
<br />Desse grupo das comédias autênticas, conhecidas como Varronianae, chegaram até nós alguns fragmentos da Vidularia e as vinte peças seguintes: Amphitruo, Asinaria, Aulularia, Bacchides, Captiui, Casina, Cistellaria, Curculio, Epidicus, Menaechmi, Mercator, Miles gloriosus, Mostellaria, Persa, Poenulus, Pseudolus, Rudens, Stichus, Trinummus e Truculentus.
<br />Nada existe de seguro quanto ao ano de representação dessas obras. Com exceção do Stichus e do Pseudolus, encenados, respectivamente, conforme suas didascálias, em 200 e 191 a.C., as demais peças possuem datas aproximadas, algumas ainda incertas e controversas, outras aceitas sem muita polêmica e coincidentes entre si na opinião de vários críticos.
<br />Plauto estreou no teatro cômico, a julgar pela data da comédia mais antiga, fixada em torno de 215 a.C., aos quarenta anos, e somente o abandonou aos setenta, quando, por volta de 185 a.C., levou ao palco a Casina, considerada pela crítica como sua última peça.
<br />Nos seus prováveis trinta anos de carreira, Plauto dedicou-se apenas à comédia. Seu período de maior produção literária ocorreu por volta de 204-194 a.C., portanto, entre os seus cinqüenta e sessenta anos de idade.
<br />Antes de abraçar a profissão de comediógrafo, atuou como palhaço em algumas farsas atelanas e exerceu alguns papéis em mimos, experiência que deixou profundas marcas em seu teatro.
<br />Viveu de sua arte e para ela, exercendo, a um só tempo, o papel de diretor de companhia teatral, empresário, ator, autor e editor das próprias peças. Atuou como personagem em algumas de suas comédias e dedicou-se inteiramente à composição da palliata, gênero de temas e personagens gregos.
<br />A palliata de Plauto foi grandemente elogiada por Varrão, Cícero e Élio Estilão, e atravessou os séculos, despertando o interesse de comediógrafos e estudiosos de várias épocas.
<br />APRESENTAÇÃO DA AULULARIA
<br />Personagens
<br />Os personagens que se envolvem diretamente na trama da peça, contracenando ou não com o protagonista Euclião (gr. eû-kléos, boa fama ou eu-kleío, aquele que esconde), seguem abaixo relacionados, com seus nomes, traços e papéis.
<br />a) Licônides (gr. Lykonídes, de lúkon eîdos, semelhante ao lobo): é o jovem galã da peça. Aparece somente no final do enredo, para confessar o mal que fizera a Fedra. Apesar de sua personalidade fraca e de sua estroinice, é um bom rapaz.
<br />b) Fedra (gr. Phaîdra, brilhante, termo associado, sem dúvida, à beleza física da moça): filha de Euclião. Jovem engravidada por Licônides na festa de Ceres. Será prometida em casamento a Megadoro. Só aparece na peça para dar à luz e conhecer o pai de seu filho. O traço mais marcante de seu caráter é a religiosidade.
<br />c) Estáfila (gr. staphyle, cacho de uva madura, denominação que condiz com seu gosto pelo vinho): criada de Euclião. Exerce na peça o papel de confidente de Fedra e compartilha do drama da moça até o fim. É zombeteira, porém dedicada ao seu amo.
<br />d) Congrião (gr. góggrion, côngrio, peixe intruso, imagem, possivelmente, aproveitada por Plauto para destacar esse traço do caráter de Congrião): um dos cozinheiros contratados por Megadoro para preparar o banquete de suas núpcias com Fedra. É intrometido e tem fama de ladrão.
<br />e) Megadoro (gr. méga dôron, grande dom, generoso): irmão de Eunômia e tio de Licônides. Velho solteirão e rico, que se notabiliza pela generosidade e caráter zombeteiro.
<br />f) Eunômia (gr. Eunomía, boa ordem, nome mítico de uma das três Horas que controlavam as estações do ano e as portas do céu): mãe de Licônides. Representa, juntamente com o irmão, um legítimo símbolo da “burguesia” romana. Suas qualidades mais notáveis são a serenidade, a discrição e o bom senso.
<br />g) Estróbilo (gr. Stróbilos, rodopiante como um pião, nome que sugere o estado em que fica pelo seu hábito de tomar vinho): participa da peça como escravo, ora de Megadoro, ora de Licônides. À semelhança de Estáfila, é também zombeteiro e dedicado.
<br />Enredo
<br />A Aulularia (= marmita) é considerada uma comédia de intriga e de caráter. Como comédia de intriga, apresenta duas ações: uma voltada para as peripécias e confusões de Euclião, surgidas depois de ele haver encontrado, na lareira de sua casa, uma marmita cheia de ouro; outra, centrada na história de amor de sua filha, grávida de Licônides, e que será pedida em casamento por Megadoro, sem que este e seu futuro sogro saibam da gravidez da moça.
<br />Os dois enredos, com predominância do primeiro, são independentes um do outro, mas encontram-se entrelaçados, uma vez que seus principais incidentes, o roubo da marmita e a confissão de Licônides, vão se combinar, no fim da história, para solucionar o problema de Euclião, de sua filha e do rapaz que, com a ajuda da mãe, levará o tio a desistir do casamento.
<br />Nesse momento, já ciente do drama dos dois jovens e da desistência de Megadoro, Euclião concede Fedra em casamento a Licônides e dá ao casal a marmita recuperada.
<br />Este final feliz, mostrando o desprendimento do protagonista, não consta da Aulularia. É de autoria de Codro Urceo, um latinista do século XV, que refez o último ato, com base nos argumentos, no prólogo e no IV fragmento da peça, a qual chegou até nós com o referido ato incompleto, contendo apenas fragmentos de sete versos.
<br />Como comédia de caráter, a peça converge para um outro centro de interesse: a avareza de Euclião, tema em torno do qual gravitam as preocupações e temores do velho avarento, bem como suas manias e suspeitas infundadas.
<br />Aqui o objetivo de Plauto é outro: pintar Euclião como uma figura ridícula e um pobre diabo que ficou transtornado com a súbita descoberta de um tesouro.
<br />Modelos do avarento
<br />O tema da avareza já havia sido tratado por Menandro nas comédias Hydría, Epitrépontes, Thesaurós e talvez em outras, mas é impossível precisar em qual dessas obras Plauto se inspirou para criar seu personagem, visto que Euclião possui traços de todos os avarentos presentes nessas peças.
<br />Além disso, não está descartada aqui a hipótese de ser a Aulularia resultado da contaminatio, processo a que recorreram Plauto e outros cômicos latinos para fundir duas ou mais peças numa só.
<br />Cronologia
<br />O ano de representação da Aulularia também é incerto, contudo os estudiosos da peça costumam datá-la entre 195 e 186 a.C., fazendo-a coincidir com o período de maturidade artística de Plauto.
<br />Episódios tirados da peça, como as desordens no culto de Baco (v. 408), a repressão ao luxo das mulheres (v. 503-504) e outros, têm sido freqüentemente comparados com referências históricas, para explicar sua cronologia.
<br />Estrutura
<br />Apesar de ser mais rica em partes faladas e recitadas, a Aulularia é constituída também de alguns cantos líricos, encontrados, por exemplo, no diálogo entre Eunômia e Megadoro (v. 120-160), no monólogo de Congrião (v. 406-413) e, sobretudo, na célebre cena em que Euclião lamenta o roubo de sua marmita (v. 713-726).
<br />Influências
<br />A Aulularia serviu de modelo a diversos escritores: a um autor anônimo do Baixo Império Romano inspirou a composição do Querolus (séc. V d. C.); a Gelli, a peça La sporta (1543); a Molière, a famosa comédia L’avare (1667).
<br />Entre nós, sua influência também se faz notar na obra O santo e a porca (1964) de Ariano Suassuna, a qual motivou o estudo comparativo feito pelo Professor Paulo Roberto Guapiassú, em sua Tese de Doutorado, intitulada A marmita e a porca: a presença plautiniana na comédia nordestina (UFRJ, 1980).
<br />Resumo da obra
<br />Após os dois argumentos, vem o prólogo, no qual o deus Lar se apresenta como protetor da família de Euclião desde o tempo de seu avô, contando como este lhe confiou um tesouro de ouro e por que fez com que Euclião o reencontrasse. Aqui, o deus destaca, sobretudo, a avareza de Euclião.
<br />Na primeira cena do primeiro ato, há um diálogo entre Euclião, o velho avarento, e sua criada Estáfila. Euclião, com medo de que Estáfila saiba que ele possui uma marmita com ouro, põe-se a agredi-la, tanto física como verbalmente, fazendo-lhe terríveis ameaças.
<br />Em seguida vem o monólogo de Estáfila, centrado, de um lado, na sua perplexidade diante do comportamento insano de seu amo. De outro, em sua preocupação por não saber como ocultar de Euclião a gravidez e a iminência do parto de sua filha Fedra.
<br />Na segunda (ou terceira) cena, fazendo-se passar por homem pobre, Euclião dirige-se à cúria para buscar as moedas de prata que lhe foram reservadas. Antes de sair de casa, o velho avarento constata que seu ouro está em segurança. Mas ainda assim, atormentado e desconfiado, faz diversas recomendações a Estáfila, advertindo-lhe que não permita a entrada de estranhos em casa, durante sua ausência.
<br />Na primeira cena do segundo ato, há um diálogo entre dois irmãos: Megadoro e Eunômia. Preocupada com o irmão, homem de idade madura, Eunômia aconselha-o a se casar e a ter filhos. Para tanto, arranja-lhe uma mulher um pouco mais velha que ele, possuidora, porém, de grande dote. Megadoro, contudo, recusa a proposta da irmã, preferindo contrair matrimônio com uma mulher pobre. Alegando ser suficientemente rico e querendo evitar os inconvenientes que traz o casamento com uma mulher rica, escolhe para esposa a jovem filha de Euclião, vizinho tido por todos como homem pobre e avarento.
<br />Na segunda cena, Euclião volta da cúria de mãos vazias e decepcionado, pois o tão esperado dinheiro não fora distribuído. No caminho para casa, encontra Megadoro, que vem cumprimentá-lo. Desconfiando do vizinho e fingindo-se de pobre, começa a se lamentar da sua vida miserável e do fato de ter uma filha sem dote, para a qual afirma não conseguir casamento. Megadoro então se propõe a ajudá-lo, pedindo-lhe a mão de Fedra. Depois de muita relutância, embora receoso ainda de que o vizinho estivesse cobiçando seu tesouro, Euclião acaba por aceitar-lhe a proposta. Megadoro, mais que depressa, dá início aos preparativos para a festa de suas núpcias.
<br />Na terceira cena, Euclião resolve ir ao foro, mas antes de sair, ordena à sua criada que limpe toda a casa para o casamento da filha com Megadoro. Recomenda-lhe também manter tudo trancado, enquanto ele estiver ausente. Estáfila, por sua vez, surpresa com a rapidez do casamento de Fedra, fica preocupada com a possibilidade de a gravidez da moça vir a ser descoberta pelo pai.
<br />Na quarta cena, após fazer as compras com Megadoro, Estróbilo, atendendo às ordens de seu amo, reserva metade da comida, um magro cordeiro, um cozinheiro (Congrião) e uma flautista (Elêusia) para a casa de Euclião. Um dos serviçais, Ântrax, fica espantado ao saber que o velho Euclião não gastou sequer um asse com as despesas para a festa de casamento da própria filha. E a partir desse episódio, Estróbilo passa a contar uma série de outras histórias, ridicularizando o comportamento mesquinho de Euclião.
<br />Na quinta cena, Estróbilo vai à casa de Euclião e deixa com sua criada a comida, o cozinheiro e a flautista que lhe foram destinados por Megadoro.
<br />Na sexta cena, Pitódico, chefe da cozinha, manda os serviçais da casa de Euclião iniciar os preparativos para o banquete de casamento. Depois, volta à casa de Megadoro para inspecionar o serviço dos outros cozinheiros e põe-se a imaginar como vigiá-los sem grande esforço.
<br />Na sétima cena, Euclião vai ao mercado fazer compras para as núpcias de sua filha, mas não traz nada consigo, por achar tudo muito caro. Alegando não ter dinheiro, compra apenas um grão de incenso e uma coroa de flores. Aproximando-se de casa, nota que a porta está aberta e que há barulho e estranhos no interior de sua residência. Fica logo sobressaltado, imaginando que invasores estão roubando seu ouro. Apavorado, correndo de um lado para o outro, suplica a ajuda de Apolo e pede-lhe que dê cabo dos supostos ladrões.
<br />Na oitava cena, na casa de Megadoro, Ântrax distribui as tarefas entre Dromão e Maquerião. Logo depois, dirige-se à casa de Euclião para pedir uma forma de pão emprestada. Lá, percebe uma grande gritaria, mas não consegue atinar com o que está acontecendo.
<br />Na primeira cena do terceiro ato, o velho avarento espanca violentamente Congrião e seus companheiros que se encontravam em sua casa preparando o banquete de casamento. O cozinheiro sai dali correndo, açoitado por Euclião. Apavorado, pede a ajuda de todos para que o livre de tão humilhante flagelo, prometendo reagir contra a arbitrariedade do velho.
<br />Na segunda cena, num longo diálogo, carregado de ameaças e insultos de parte a parte, Euclião acusa Congrião e seus companheiros de haver invadido sua casa e vasculhado seus quartos. Congrião, por sua vez, procura se defender, tentando convencê-lo de sua inocência e alegando ter entrado em sua casa na condição de cozinheiro e não de ladrão.
<br />Na terceira cena, receoso de que pudessem roubar sua marmita com ouro, Euclião resolve retirá-la de casa e passa a levá-la consigo por toda parte. Por fim, já aliviado, acaba por consentir que os serviçais prossigam em seu trabalho e sai com seu tesouro escondido sob as vestes.
<br />Na quarta cena, Euclião põe-se a pensar no mau negócio que empreendeu ao envolver-se com Megadoro numa aliança que, segundo ele, quase o levou a perder o ouro.
<br />Na quinta cena, Megadoro põe-se a refletir sobre os problemas e conflitos existentes no casamento realizado com mulheres portadoras de dote. Em sua opinião, se os homens ricos se casassem com moças pobres, desprovidas de dote, tais problemas seriam amenizados e, conseqüentemente, a vida conjugal tornar-se-ia mais harmoniosa, e as mulheres, menos perdulárias. Além disso, as esposas ficariam mais submissas aos seus maridos e seriam mais virtuosas. Daí haver Megadoro escolhido para esposa a filha de Euclião, o qual tudo ouve sem ser notado, aprovando fascinado a parcimônia do futuro genro.
<br />Na sexta cena, Megadoro chega-se para Euclião e sugere-lhe apresentar-se mais elegante nas núpcias de sua filha. Este, por sua vez, tenta se esquivar de tal proposta, alegando ser um homem pobre e de origem modesta.
<br />Após defender-se das acusações feitas por Euclião, Megadoro o convida para tomar vinho. Desconfiado de que este pretende embebedá-lo para roubar-lhe o ouro, Euclião recusa o convite, resolvendo tomar apenas água.
<br />Na primeira cena do quarto ato, Estróbilo descreve como deve comportar-se o bom escravo para servir ao seu amo com eficiência, rapidez e lealdade. Por isso, atendendo à ordem de Licônides, resolve sentar-se junto ao altar para inteirar-se do que se passa entre o tio Megadoro e Fedra.
<br />Na segunda cena, Euclião resolve esconder sua marmita no templo da Boa Fé, recomendando à deusa guardar segredo e zelar pela segurança de seu ouro. Contudo, parecendo não confiar inteiramente na deusa, ele se afasta de seu altar, suplicando-lhe ainda que ela lhe permita retirar dali seu tesouro, são e salvo. Estróbilo, que se encontra próximo do local, ouve as preces de Euclião e corre logo para o interior do templo, em busca do ouro.
<br />Na terceira cena, mal sai do templo, Euclião ouve um corvo crocitar e ciscar o chão à sua esquerda. Tem o pressentimento então de que seu ouro corre perigo. Tomado de pavor, resolve voltar ao templo.
<br />Na quarta cena, no interior do templo, Euclião depara-se com Estróbilo e, suspeitando de que sua marmita se encontra em poder do escravo, passa a revistá-lo, exigindo que este a devolva. Põe-se então a espancá-lo e a dirigir-lhe ameaças e insultos. Depois de constatar a inocência do escravo, Euclião resolve expulsá-lo dali. Supondo haver um outro suspeito a quem imagina ser comparsa de Estróbilo, ele sai em seu encalço, ameaçando estrangulá-lo.
<br />Na quinta cena, acompanhando os movimentos de Euclião, que deixa o templo levando a marmita, Estróbilo, de olho em seu tesouro, promete preparar-lhe uma armadilha.
<br />Na sexta cena, decepcionado com a traição da Boa Fé, Euclião retira o tesouro de seu templo para escondê-lo no bosque de Silvano, certo de que agora, guardado em local ermo e inacessível, ele estaria mais seguro. Estróbilo, todavia, descobre o novo plano do velho e, radiante de alegria, chega antes de Euclião às imediações do bosque, para observar, de cima de uma árvore, onde o ouro será escondido.
<br />Na sétima cena, Licônides conta à sua mãe que desonrou, sob o efeito do vinho, a filha de Euclião. Logo que Eunômia ouve os gritos das dores do parto da moça, atendendo ao pedido do filho, procura seu irmão Megadoro para conversar com ele sobre o assunto e pedir-lhe que renuncie ao casamento. Enquanto isso, o rapaz põe-se a procurar pelo seu servo Estróbilo. Não o encontrando, entra para saber o desfecho de sua história.
<br />Na oitava cena, enfim, com a marmita na mão e orgulhoso de si mesmo, Estróbilo dá pulos de alegria, contando em detalhes como conseguiu realizar a façanha de surrupiar o tesouro de Euclião. Tão logo percebe que este se aproxima, sai para esconder o ouro em sua casa.
<br />Na nona cena, Euclião entra em pânico quando finalmente dá pela falta de sua marmita e, desesperado, dirige-se à platéia, na esperança de recuperar seu tesouro. Contudo, notando que ali ninguém sabe de seu paradeiro, perde a vontade de viver. Licônides chega em seguida e, ignorando o que se passa, apavora-se quando vê Euclião aflito, supondo que o velho já sabe que a filha deu à luz.
<br />Na décima cena, Licônides procura Euclião para pedir-lhe perdão pela má ação cometida. Julgando que o rapaz estava falando do roubo de sua marmita, e não da desonra da filha, o velho põe-se a acusá-lo e a ameaçá-lo, exigindo-lhe seu tesouro de volta. Com muito custo, Licônides consegue provar sua inocência e desfazer o mal-entendido, revelando-lhe enfim a má ação praticada e pedindo-lhe a filha em casamento. Sai em seguida à procura de seu escravo Estróbilo, mas promete a Euclião devolver-lhe a marmita, caso venha a descobri-la.
<br />Na primeira cena do quinto ato, Estróbilo vai imediatamente contar a Licônides que furtou a marmita de Euclião e pede-lhe que o liberte. O rapaz, entretanto, conforme prometeu ao sogro, cumpre sua palavra, obrigando o escravo a devolver-lhe o ouro.
<br />O final da peça perdeu-se, restando apenas fragmentos de sete versos.
<br />BIBLIOGRAFIA
<br />COSTA, Aída. Plauto, Aulularia: a comédia da panelinha. São Paulo: DIFEL, 1967.
<br />DUCKWORTH, George E. The nature of roman comedy. New Jersey: Princeton University Press, 1952.
<br />––––––. The complete roman drama. Nova Iorque: Random House, 1942. 2 vols.
<br />KENNEY, E. J. & CLAUSEN, W.V. Historia de la literatura clásica II. Literatura latina. Versão de Elena Bombín. Madri: Gredos, 1989.
<br />LEJAY, Paul. Plaute. Paris: Boivin, 1925.
<br />PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Trad. de Manuel Losa. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
<br />PICHON, René. Histoire de la littérature latine. Paris: Hachette, [s/d.].
<br />PLAUTE. Aulularia. Trad. de A. Ernout. 3a ed. Paris: Les Belles Lettres, 1952.
<br />ZEHNACKER, H. & FREDOUILLE, J. C. Littérature latine. Paris: PUF, 1993.
<br /><!--[if !supportFootnotes]-->
<br />
<br /><!--[endif]-->
<br /><!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]--> trabalho apresentado no VIII CONGRESSO NACIONAL DE LINGÜÍSTICA E FILOLOGIA (I Congresso Internacional de Estudos Filológicos e Lingüísticos), promovido pelo CiFEFiL no Instituto de Letras da UERJ, em agosto de 2004.
<br />
<br />A TRADIÇÃO CLÁSSICA NA COMÉDIA BRASILEIRA
<br />Carlinda Fragale Pate Nuñez (UERJ)
<br />Gisele Nery de Andrade (UERJ)
<br />Michelle de Alcântara (UERJ)
<br />Thereza Maria Zavarese Soares (UERJ)
<br />Viviane da Fonseca Moura (UERJ)
<br />INTRODUÇÃO
<br />O teatro é o gênero da ação falada. Uma personagem fala para agir sobre outra ou para comentar uma ação, neste caso a fala é instrumento da ação. O autor reproduz as falas do cotidiano, organizando-as em diálogos ou monólogos, com o objetivo de se comunicar com os espectadores através de suas personagens.
<br />Na obra analisada neste estudo, O Santo e a Porca, o autor Ariano Suassuna faz uma referência explícita à sua fonte inspiradora logo após o título. O autor nordestino teve como modelo o comediógrafo latino Plauto e sua peça Aulularia, fazendo alusão a comédia clássica e a seu conteúdo crítico que tinha como alvo o sistema político-social vigente e os cidadãos típicos que o integram. A cultura nordestina estrutura-se sobre valores tradicionais e regionais mantidos por uma tradição folclórica e religiosa, assemelhando-se com a cultura clássica estruturada sobre os mitos de seus triunfos heróicos e dos feitos divinos.
<br />Objetiva-se através deste estudo verificar como a tradição dramática pode ser reencenada e ambientada a outras épocas e culturas. Deste modo, tem-se noção da mímesis do texto, do processo de recriação que o torna uma obra única e que exige do autor criatividade para transformar um modelo em algo original.
<br />ANÁLISE
<br />Para se fazer a análise de um texto dramático, deve-se estudar individualmente os seus componentes fundamentais. São eles: as personagens, o enredo, o espaço e o tempo.
<br />Personagens
<br />As personagens estão intimamente ligadas ao enredo, e vice-versa. Estas são as duas forças principais que regem um texto dramático. As personagens foram analisadas levando-se em consideração três aspectos:
<br />- o que ela revela sobre si por meio de um confidente, do "aparte" ou do monólogo;
<br />- o que ela faz, a sua participação na ação da peça;
<br />- o que as outras personagens dizem a seu respeito.
<br />A partir desta primeira análise, pode-se qualificar uma personagem de acordo com os seguintes critérios : sua utilidade, sua propriedade, sua verossimilhança e sua consistência, para em seguida relacioná-las entre si e com o enredo. A análise individual de cada personagem encontra-se na tabela abaixo:
<br />PERSONAGENS CARACTERÍSTICAS
<br />EURICÃO § “Engole Cobra”, Eurico Árabe; § protagonista da peça; § pai de Margarida e irmão de Benona; § personagem avarento.
<br />PORCA § oposição do profano frente ao religioso (Sto. Antônio); § objeto de cobiça; § representa a avareza de Euricão (um dos 7 pecados capitais).
<br />SANTO ANTÔNIO § santo casamenteiro, “achador” e popular; § santo de devoção de Euricão; § representação do sagrado e da fé.
<br />MARGARIDA § “flor bucólica”; § filha de Euricão (a filha é o patrimônio do pai); § noiva de Dodó; § personagem que desencadeia dois pólos de interesse: material (Euricão) e sentimental (Eudoro e Dodó).
<br />BENONA § alusão à personagem de Plauto, Eunomia do grego EUNOMÍA “ordem bem regulada”; § irmã de Euricão; § ex-noiva de Eudoro; § representa os pudores e os recatos.
<br />CAROBA § “árvore grande e forte”; § empregada de Euricão; § personagem que desenvolve toda a rede de intrigas que envolve os casamentos.
<br />PINHÃO § “fruto rústico”; § empregado de Eudoro; § noivo de Caroba; § representação da busca da liberdade.
<br />EUDORO § “EÚDOROS”- composto por “eú” (bom,bem) e de “dôron” (o generoso); § pai de Dodó; § ex-noivo de Benona e pretendente de Margarida; § representação da burguesia.
<br />DODÓ § redução do nome Eudoro (indica a submissão do filho ao pai); § filho de Eudoro; § noivo de Margarida.
<br />A relação entre as personagens e o enredo está representada no esquema a seguir:
<br />O conflito central do enredo é constituído pelas ações da personagem Euricão, que busca alcançar seu objetivo materializado na porca, o que leva a envolver outras personagens na intriga. As três personagens femininas, Benona, Margarida e Caroba, estão diretamente relacionadas ao protagonista, estabelecendo um vínculo de dependência afetiva e financeira. As demais personagens masculinas se envolvem no enredo através destas personagens femininas, ou seja, estão indiretamente relacionadas à personagem central, gerando os conflitos paralelos, ou fricções, que visam um outro objetivo: a realização amorosa pelo casamento.
<br />Enredo
<br />O material que o autor utiliza para inventar sua história denomina-se fábula. Fábula, na concepção latina, é uma narrativa de caráter mítico. Aristóteles chama de fábula a reunião das ações, dos acontecimentos que estruturam uma obra. Portanto, a fábula é o enredo, o material narrativo de que se origina o texto dramático.
<br />Dentro do enredo, encontra-se a intriga e o léxico da intriga. A intriga é a seqüência dos acontecimentos. Ao dispor os fatos numa determinada ordem, o autor revela gradativamente suas intenções. Inicialmente, foram analisados os conflitos em que se encontram as personagens. O conflito central é aquele em que o(s) protagonista(s) depara(m)-se com um obstáculo, seja ele uma ou mais personagens ou uma força abstrata, como o sistema social ou os valores da consciência. Na peça de Suassuna temos como conflito central:
<br />A avareza de Euricão; seu apego demasiado à porca e sua dedicação a ela como substituta da esposa que o abandonou; seu medo de perdê-la; sua devoção a Santo Antônio como protetor de seu lar e de sua porca; colocação da porca no socavão da escada; a retirada da porca do socavão para a sala e para a proteção de Santo Antônio; a retirada da porca de casa, dos cuidados do santo para o cemitério, “onde tudo se perde e não se acha nada”; a colocação da porca no socavão ao lado do túmulo da esposa; o roubo da porca (primeira perda); a devolução da porca; a grande decepção (segunda e derradeira perda).
<br />Em seguida, foram identificadas as engrenagens que compõem a mecânica da obra, o que chamamos de léxico da intriga. São os recursos utilizados pelo autor para manter o interesse do leitor ou espectador até o fim do texto.
<br />O primeiro componente da intriga a ser examinado é a exposição. Se a peça não se inicia com a exposição de informações sobre as personagens e o assunto, ela se inicia de forma abrupta pelo diálogo das personagens.
<br />Os nós formam o segundo princípio componente. Eles são os obstáculos que alteram a situação inicial. Em O Santo e a Porca identificamos como os nós da intriga:
<br />Os mal entendidos por parte de Euricão, que sempre se achava ameaçado de perder a sua porca, resultaram de seus receios e desconfianças: com a intenção da carta de Eudoro; com sua empregada Caroba; com o interesse de Eudoro em comprar a porca; com a porca assada do jantar; com a aproximação e o interesse de Pinhão na porca e com o falso ladrão.
<br />Outro componente fundamental é a peripécia. Cada peripécia representa uma mudança súbita da ação. Na obra de Suassuna, são peripécias: “As várias mudanças de lugar da porca que desencadearam o roubo desta; a revelação do ladrão e a devolução da porca.”
<br />As fricções são os pequenos conflitos que interferem na intriga e enredam-se no conflito central. Por exemplo:
<br />O casamento de Dodó e Margarida que tinha como obstáculo o medo do casal de que seus pais não aceitassem o seu romance; o casamento de Eudoro e Benona, impedido no passado por um obstáculo moral; o casamento de Pinhão e Caroba que tinha como obstáculo a falta de recursos financeiros.
<br />E por último temos o desfecho, o ponto culminante do conflito, a derradeira peripécia após a qual a trama deve terminar.
<br />“A revelação feita por Eudoro de que o tesouro contido na porca não tinha nenhum valor, culminando com a decepção de Euricão.”
<br />Toda esta análise da intriga pode ser ilustrada pelo seguinte esquema:
<br />Prosseguindo com a análise do enredo, foi utilizado o modelo actancial para estudar as estruturas profundas que regem a obra. Este modelo, criado pelo semanticista A. J. Greimas e adaptado ao campo teatral pela especialista Anne Ubersfeld, permite analisar as forças interiores que coordenam a ação. Essas forças são representadas por flechas sendo que não precisam ser necessariamente personagens, podendo ser também desejos ou emoções. Este esquema representa a sintaxe da ação dramática que relaciona as personagens umas às outras através destes elementos invisíveis da ação.
<br />No eixo principal, encontra-se o motor da obra, a relação entre o SUJEITO e o OBJETO da ação. A flecha representa a busca, o desejo, a vontade: aquilo que os une. O objeto pode ser uma abstração (o poder, a segurança), mas representado por uma personagem.
<br />O segundo eixo é o eixo das forças antagônicas. O ADJUVANTE ajuda o sujeito a realizar sua busca e o OPONENTE tenta impedir essa busca.
<br />E o terceiro eixo é o das implicações ideológicas, das motivações. O DESTINADOR é aquilo que faz o sujeito agir e o DESTINATÁRIO é aquilo a que o sujeito atribui sua busca.
<br />Ao dispor os acontecimentos desta ou daquela maneira, o autor transmite a sua mensagem ao público, realiza o seu objetivo. Esta mensagem se encontra na estrutura interna e abstrata da obra, que foi identificada através do modelo actancial.
<br />Espaço e Tempo
<br />O próximo passo é a análise do espaço e do tempo para compreender onde e quando a ação se passa, identificar os lugares e estabelecer uma cronologia.
<br />Chama-se "palais à volonté" o lugar onde a ação se passa e que está intimamente ligado às demais estruturas do texto. Na peça O Santo e a Porca, a ação se passa na sala da casa de Euricão, o que pode ser comprovado nas indicações cênicas. Estas indicações devem ser confrontadas com o texto interpretado pelos atores, pois a linguagem está relacionada com a demarcação espacial e ambas se unem pela ação dramática. No texto analisado, a casa do protagonista é vista por ele próprio como o seu território, protegido pelo seu santo de devoção, e como sua fortaleza, onde ele guarda seus dois tesouros: a filha e a porca.
<br />O "fora de cena", ou seja, o espaço que não se destina a ser representado no palco, também intervém no enredo, sendo evocado ou relatado pelas personagens. O enredo é estruturado sobre a oposição entre o espaço idealizado ou metafórico e o espaço real (palais à volonté). A estruturação dos espaços em O Santo e a Porca pode ser observada no esquema a seguir:
<br />Os espaços utilizados por Suassuna estão relacionados aos de sua fonte inspiradora, a Aulularia de Plauto:
<br />CASA DE EURICÃO / TEMPLO DE STO. ANTÔNIO = TEMPLO DE BONA FIDES
<br />FESTA DE SÃO JOÃO = FESTA DE CERES
<br />CEMITÉRIO = BOSQUE DE SILVANO
<br />HOTEL DE DADÁ = MERCADO (FORUM)
<br />O tempo intervém na ação de várias formas: estabelecendo uma cronologia que reconstitui o desenrolar dos acontecimentos; fornecendo um tempo próprio para cada personagem; através de marcas temporais que aparecem no texto ou tomando uma dimensão metafórica. O próprio diálogo das personagens fornece indicações que inscrevem a ação dentro de um tempo real e juntamente com a divisão em atos (separados por intervalos), cenas e quadros (marcados pelas entradas e saídas das personagens) compõem as principais marcações temporais no momento da representação. O tempo da ficção obedece à concepção clássica das unidades e da verossimilhança. A ação se passa num período de 24 horas dividido entre os três atos da peça. O tempo da representação é caracterizado pela continuidade.
<br />Na peça de Ariano Suassuna, o tempo da representação é marcado da seguinte forma:
<br />PRIMEIRO ATO: Tempo da espera por Eudoro (as ações se passam no período da manhã.)
<br />SEGUNDO ATO: Tempo da espera pela entrevista (as ações se passam no período da tarde)
<br />TERCEIRO ATO: Tempo das entrevistas e das revelações (as ações se passam no período da noite)
<br />Estas marcações ficam muito claras nas falas das personagens. Concluí-se então que, na representação da peça, o fato da "entrevista" é o marcador temporal que a divide em dois grandes momentos:
<br />ANTES DA ENTREVISTA: clima de tensão, espera, expectativa que culminará na reconciliação dos casais Caroba e Pinhão, Margarida e Dodó e Eudoro e Benona.
<br />DEPOIS DA ENTREVISTA: reencontro de Dodó com seu pai Eudoro, os pedidos de casamento, a descoberta do segredo de Euricão (a porca) e a sua decepção.
<br />CONCLUSÃO
<br />Através deste estudo pôde-se observar que as estruturas internas dos textos dramáticos revelam que a tradição literária se conserva em obras contemporâneas, como foi verificado na peça do comediógrafo Ariano Suassuna.
<br />Analisando as personagens, o enredo, o espaço e o tempo em O Santo e a Porca, foram detectados aspectos que demonstram uma aproximação com a comédia latina de Plauto, como o próprio Suassuna admite no subtítulo de sua obra.
<br />Sendo assim, o teatro clássico se renova na contemporaneidade. Um mesmo enredo se atualiza em novos cenários e novos contextos culturais. Valores são retomados de tempos em tempos e colocados em foco pela literatura, sob novas perspectivas.
<br />REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
<br />Suassuna, Ariano. O Santo e a Porca. Rio de Janeiro : Olympio, 1974.
<br />Plauto. “Aulularia”. Rio de Janeiro : Ediouro, [s.d.]. In: Comédia Latina.
<br />RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo : Martins Fontes 1996.
<br />Brandão, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis : Vozes, V 1 1997.
<br />Machado, José Pedro. Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa. Lisbosa : Livros Horizonte, V 2.
<br />
<br />A LINGUAGEM AFETIVA NA AULULARIA DE PLAUTO
<br />Mariza Mencalha de Souza
<br />Introdução
<br />A linguagem permite ao homem registrar na escrita ou na fala tudo aquilo que ele pensa, deseja, vê e sente. Usando dessa faculdade, pode o ser humano transpor para o papel ou para a fala uma mensagem lógica, volitiva ou afetiva, isto é, desenvolver seus raciocínios lógicos, externar suas vontades e desejos ou dar vazão a suas angústias, paixões e medos. No ato IV, cenas IX e X da Aulularia, estão presentes essas três funções da linguagem, a intelectiva, a ativa e a emotiva, mas nota-se aí, como veremos neste artigo, a predominância do elemento afetivo, explorado por Plauto em todas as suas potencialidades.
<br />Aulularia: ato IV
<br />Cena IX
<br />EVC: Perii, interii, occidi! Quo curram? quo non curram?
<br />Tene, tene! Quem? Quis?
<br />Nescio, nihil uideo, caecus eo atque equidem quo eam,
<br />aut ubi sim, aut qui sim,
<br />Nequeo cum animo certum inuestigare. Obsecro ego
<br />uos, mi auxilio, 715
<br />Oro, obtestor, sitis et hominem demonstretis quis eam abstulerit.
<br />Quid ais tu? tibi credere certum est; nam esse bonum
<br />ex uoltu cognosco.
<br />Quid est? quid ridetis? noui omnis: scio fures esse hic complures,
<br />Qui uestitu et creta occultant sese atque sedent quasi sint frugi.
<br /><h>em, nemo habet horum? occidisti. Dic igitur, quis
<br />habet? nescis? 720
<br />Heu me misere miserum, perii! male perditus, pessime ornatus eo,
<br />Tantum gemiti et mali maestitiaeque hic dies mi optulit,
<br />famem et pauperiem!
<br />Perditissimus ego sum omnium in terra. Nam quid mi
<br />opust uita? [qui] tantum auri
<br />Perdidi quod concustodiui sedulo! Egomet me defraudaui
<br />Animumque meum geniumque meum; nunc e<rg>o alii
<br />laetificantur 725
<br />Meo malo et damno. Pati nequeo.
<br />LYC: Quinam homo hic ante aedis nostras eiulans conqueritur maerens?
<br />Atque hicquidem Euclio est, ut opinor. Oppido ego interii; palamst res.
<br />Scit peperisse iam, ut ego opinor, filiam suam. Nunc mi incertumst,
<br />[Quid agam] abeam an maneam, an adeam an fugiam.
<br />Quid agam edepol nescio. 730
<br />EVC: Estou perdido, liquidado, morto! Para onde correrei? Para onde não correrei? Pega, Pega! (Pega) quem? Quem (pegará)? Não sei, nada vejo, ando cego e, sem dúvida, não posso saber com exatidão com a cabeça (perturbada), para onde vou, ou onde estou, ou quem sou. Eu vos peço, rogo, suplico que venhais me socorrer e (me) mostreis o homem que a roubou. Que dizes tu? É certo que acredito em ti; na verdade, vejo que (tu), pela aparência, pareces bom. O que há? Por que estais rindo? Conheço todos: sei que existem vários ladrões aqui, que se escondem sob uma roupa branca e ficam sentados, como se fossem santinhos. Ah! Nenhum de vós está com (ela)? Mataste-me. Dize, então, quem está com (ela)? Não sabes? Ai, pobre de mim! Estou inteiramente perdido, terrivelmente perdido! Pessimamente assistido ando, tanto pranto, (tanto) mal e (tanta) aflição, fome e pobreza este dia me trouxe! Eu sou o mais arruinado de todos (os homens) na terra. Na verdade, de que vale a vida para mim? (Para mim), [que] perdi tanto ouro, o qual guardei com tanto cuidado, com (tanto) zelo! Eu mesmo me lesei, (acabei com) minha vida e meu prazer de viver; agora, conclusão, os outros se divertem com a minha desgraça, com a (minha) ruína. Não posso agüentar.
<br />LYC: Quem (é) este homem aflito, lamentando-se e se queixando diante de nossa casa? Mas, como suponho, certamente este é Euclião. Eu estou completamente perdido; o caso torna-se notório. (Ele) já sabe, como eu suponho, que sua filha teve um filho meu. Agora estou em dúvida. O que fazer? Ir embora ou ficar...? Ir lá falar com ele ou fugir? Por Pólux, não sei o que fazer.
<br />Cena X
<br />EVC: Quis homo hic loquitur?
<br />LYC: Ego sum <miser>.
<br />EVC: Immo ego sum [miser], et misere perditus,
<br />Cui tanta mala maestitudoque optigit.
<br />LYC: Animo bono es.
<br />EVC: Quo, obsecro, pacto esse possum?
<br />LYC: Quia istuc facinus quod tuum
<br />Sollicitat animum, id ego feci et fateor.
<br />EVC: Quid ego ex te audio?
<br />*<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]-->......................................... .
<br />LYC: Deus mihi impulsor fuit, is me ad illam inlexit.
<br />EVC: Quo modo?
<br />LYC: Fateor peccauisse et me culpam commeritum scio;
<br />*....................................................................................... .
<br />EVC: Cur id ausu’s facere, ut id quod non tuum esset tangeres? 740
<br />LYC: Quid uis fieri? factum est illud; fieri infectum non potest.
<br />Deos credo uoluisse: nam ni uellent, non fieret, scio.
<br />EVC: At ego deos credo uoluisse, ut apud me te in neruo enicem.
<br />LYC: Ne istuc dixis!
<br />EVC: Quid tibi ergo meam me inuito tactiost?
<br />LYC: Quia uini uitio atque amoris feci.
<br />EVC: Homo audacissime, 745
<br />*............................................ .
<br />LYC: Quin tibi ultro supplicatum uenio ob stultitiam meam.
<br />EVC: Non mi homines placent qui quando male fecerunt purigant.
<br />Tu illam scibas non tuam esse; non attactam oportuit.
<br />LYC: Ergo quia sum tangere ausus, haud causificor quin eam 755
<br />Ego habeam potissimum.
<br />EVC: Tun habeas me inuito meam?
<br />LYC: Haud te inuito postulo, sed meam esse oportere arbitror.
<br />Quin tu iam inuenies, inquam, meam illam esse oportere, Euclio.
<br />EVC: Iam quidem hercle te ad praetorem rapiam et tibi scribam dicam, nisi refers...
<br />LYC: Quid tibi ego referam?
<br />EVC: Quod surripuisti meum. 760
<br />LYC: Surripio ego tuum? unde? aut quid id est?
<br />EVC: Ita te am<a>bit Iuppiter ut tu nescis!
<br />LYC: Nisi quidem tu mihi quid quaeras dixeris.
<br />EVC: Aulam auri, inquam, te reposco, quam tu confessu’s mihi
<br />Te abstulisse.
<br />LYC: Neque edepol ego dixi neque feci.
<br />EVC: Negas?
<br />LYC: Pernego immo: nam neque ego aurum neque istaec
<br />aula quae siet scio nec noui. 765
<br />EVC: Illam ex Siluani luco quam abstuleras, cedo.
<br />*............................................................................. .
<br />LYC: Sanus tu non es qui furem me uoces. ......... .
<br />*............................................................................. .
<br />EVC: Dic bona fide: tu id aurum non surripuisti?
<br />LYC: Bona.
<br />EVC: Neque scis qui abstulerit?
<br />LYC: Istuc quoque bona.
<br />*.................................... .
<br />EVC: Sat habeo: age nunc loquere quiduis.
<br />LYC: Si me nouisti minus
<br />Genere quo sim gnatus, hic mihi est Megadorus auonculus;
<br />Meus fuit pater Antimachus, ego uocor Lyconides,
<br />Mater est Eunomia.
<br />EVC: Noui genus; nunc quid uis? id uolo noscere. 780
<br />LYC: Filiam ex te tu habes.
<br />EVC: Immo ec<c>illam domi.
<br />LYC: Eam tu despondisti, opinor, meo auonculo?
<br />EVC: Omnem rem tenes.
<br />LYC: Is me nunc renuntiare repudium iussit tibi.
<br />EVC: Repudium rebus paratis, exornatis nuptiis?
<br />Vt illum di immortales omnes deaeque quantum est perduint, 785
<br />Quem propter hodie auri tantum perdidi infelix, miser.
<br />LYC: Bono animo es, [et] benedice. Nunc quae res tibi et gnatae tuae Bene feliciterque uortat: ita di faxint, inquito.
<br />EVC: Ita di faciant!
<br />LYC: Et mihi ita di faciant! ....... .
<br />.................................................... .
<br />....... . Nunc te obtestor, Euclio.
<br />*.............................................. .
<br />Vt mihi ignoscas eamque uxorem mihi des, ut leges iubent.
<br />Ego me iniuram fecisse filiae fateor tuae
<br />Cereris uigiliis per uinum atque inpulsu adulescentiae. 795
<br />EVC: Ei mihi, quod facinus ex te ego audio?
<br />LYC: Cur eiulas,
<br />Quem ego auom feci iam ut esses filiai nuptiis?
<br />*........................................................................ .
<br />Ea re repudium remisit auonculus causa mea.
<br />I intro, exquaere, sitne ita ut ego praedico.
<br />EVC: Perii oppido! 800
<br />Ita mihi ad malum malae res plurimae se adglutinant.
<br />Ibo intro, ut quid huius uerum sit sciam.
<br />LYC: Iam te sequor.
<br />Haec propemodum iam esse in uado salutis res uidetur.
<br />*.................................................................................... .
<br />EVC: Quem (é) este homem falando?
<br />LYC: Sou eu, [um miserável].
<br />EVC: Ao contrário, [miserável] sou eu, e miseravelmente arruinado, a quem tantos males e aflição atingiram.
<br />LYC: Fica calmo, (Euclião).
<br />EVC: De que maneira, suplico, posso ficar (calmo)?
<br />LYC: É que essa má ação que atormenta teu espírito, eu a cometi e confesso.
<br />EVC: Que ouço eu de ti?
<br />LYC: Um deus me aconselhou; este me induziu para ela.
<br />EVC: De que modo?
<br />LYC: Confesso ter pecado e sei que eu cometi uma falta.
<br />EVC: Por que ousaste fazer isto (e) por que mexeste naquilo que não era teu?
<br />LYC: O que queres que seja feito? Isto (já) está feito. Não pode ser desfeito. Estou certo de que os deuses quiseram (isso): pois, sei que se não quisessem, não aconteceria.
<br />EVC: Mas (também) estou certo de que os deuses querem que eu te espanque em minha casa numa corrente.
<br />LYC: Não digas isso!
<br />EVC: Por que então tu mexeste na minha (marmita) contra minha vontade?
<br />LYC: Mexi por indução do vinho e do amor.
<br />EVC: Ó homem mais descarado!
<br />LYC: Mas venho espontaneamente para te pedir (desculpas) por causa de minha insensatez.
<br />EVC: Não me agradam os homens que tentam passar por santinhos depois de se portarem mal. Tu sabias que ela não era tua; não devias tocá-(la).
<br />LYC: Pois bem, porque ousei tocá-(la), não vejo razão para que eu, mais do que qualquer outro, não fique com ela.
<br />EVC: Acaso tu estás com a minha (marmita) contra minha vontade?
<br />LYC: Não (a) peço contra tua vontade, mas penso que (ela) tem de ser minha. Além disso, tu logo chegarás à conclusão, repito, que ela tem de ser minha, Euclião.
<br />EVC: Certamente, por Hércules, vou te arrastar agora mesmo para o pretor e te denunciar, processar, se não devolveres...
<br />LYC: O que eu te devolverei?
<br />EVC: O meu (ouro) que roubaste.
<br />LYC: Eu roubei teu (ouro)? De onde? Então que significa isto?
<br />EVC: Assim Júpiter te proteja como tu não sabes (do que estou falando)!
<br />LYC: Se, de fato, tu não me disseres o que desejas...
<br />EVC: Peço-te de volta a marmita com ouro, quero dizer, (aquela) que tu confessaste teres roubado de mim.
<br />LYC: Por Pólux, nem eu disse (isso) nem (o) fiz.
<br />EVC: Negas?
<br />LYC: Sim, nego até o fim: na verdade, nem eu sei que ouro (é esse), nem também conheço que marmita é essa.
<br />EVC: Aquela que (tu) furtaras do bosque de Silvano, passa pra cá.
<br />LYC: Tu não estás bem (da cabeça) para que me chames de ladrão.
<br />EVC: Fala com toda a sinceridade: tu não roubaste o tal ouro?
<br />LYC: Sinceramente, não.
<br />EVC: Nem sabes quem (o) roubou?
<br />LYC: Isto, sinceramente, também (não sei).
<br />EVC: (Já) me sinto bem (satisfeito): vamos, agora dize o que queres.
<br />LYC: Se não me conheces, (nem) a família de que procedo; aquele é Megadoro, meu tio; meu pai foi Antímaco; eu me chamo Licônides; (minha) mãe é Eunômia.
<br />EVC: Conheço (tua) família; agora, o que queres? Quero saber isso.
<br />LYC: Tu tens uma filha.
<br />EVC: Sim, ela está ali em casa.
<br />LYC: Tu, penso, prometeste-a em casamento ao meu tio?
<br />EVC: Sabes de toda a história.
<br />LYC: Ele mandou-me agora te comunicar (sua) renúncia.
<br />EVC: Renúncia! Depois das bodas prontas, das núpcias preparadas? Que todos os imortais, deuses e deusas, quantos existirem, destruam aquele por causa de quem hoje (eu), infeliz, desgraçado, perdi tanto ouro.
<br />LYC: Fica calmo, [e] dize palavras de bom agouro. Agora, alguma coisa corra bem e com sucesso para ti e tua filha: assim os deuses permitam, dize.
<br />EVC: Assim os deuses permitam!
<br />LYC: E assim os deuses permitam para mim!
<br />Agora te peço, Euclião, /...../ que me perdoes e a concedas a mim como esposa, conforme determinam as leis. Eu confesso que eu cometi uma injúria contra tua filha nas vigílias de Ceres, por causa do vinho, e por um arrebatamento da juventude.
<br />EVC: Ai de mim, que má ação eu ouço de ti?
<br />LYC: Por que te lamentas (tu) a quem eu acabei de tornar avô já nas núpcias de (tua) filha? /...../. Por este motivo, por minha causa, (meu) tio desistiu de casar-se com ela. Vai lá dentro, pergunta se é (ou não é) assim como eu estou contando.
<br />EVC: Estou completamente arruinado! Males terríveis, aos milhares, vêm se juntar assim à minha desgraça. Vou para dentro para que saiba o que disto é verdadeiro.
<br />LYC: Já te sigo. Esta história parece já estar quase resolvida.<!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]-->
<br />Linguagem lógica/linguagem afetiva
<br />Segundo a natureza de seus elementos, Vendryes classifica a linguagem em três tipos: ativa, lógica e afetiva. Será ativa, quando nela prevalecerem os elementos do desejo ou da vontade: vocativo e imperativo, tal como nas frases nunc te obtestor, Euclio (v.791) e bono animo es, [et] benedice (v. 787). Se houver predomínio dos elementos intelectivos, como nas sentenças omnem rem tenes (v.782) e iam te sequor (v.802), estaremos no âmbito da linguagem lógica. No entanto, caso predominem os elementos afetivos, como em frases do tipo perii oppido! (v.800) ou quo curram? quo non curram? (v.713), penetramos, então, no campo da linguagem afetiva.
<br />A linguagem ativa não será aqui objeto de nossas reflexões. Contudo, não é demais acrescentar que ela se mistura também com a linguagem lógica e afetiva, contendo elementos de uma e de outra.
<br />A linguagem lógica predomina na língua escrita e está relacionada à razão, e a afetiva, na falada, ligando-se à emoção. Na primeira, sobressaem os aspectos lógicos, intelectivos da linguagem; na segunda, os psicológicos, provenientes, portanto, dos estados emotivos do falante. Enquanto a linguagem afetiva situa-se no âmbito da Estilística, a lógica encontra-se no terreno da Gramática. Quanto a essa distinção, observa Tavares (1991: 389): “a Estilística ocupa-se primordialmente da chamada linguagem afetiva. Esta, ao contrário da lógica ou intelectiva, que se afere pelos padrões gramaticais e de razão, refugia-se nos meandros surpreendentes e imprevisíveis da psicologia”.
<br />Embora esses planos da linguagem possam ocorrer isoladamente, na maioria das vezes, há interferência de um sobre o outro, ou seja, um se contamina dos elementos do outro. Vendryes (1921: 176) refere-se a essa interpenetração lógico-afetiva, afirmando: “Le langage grammatical logiquement organisé n’est en effet jamais indépendant du langage affectif. Il y a sans cesse action de l’un sur l’autre”.
<br />A frase omnem rem tenes (v.782), pronunciada por Euclião, apresenta todas as características de uma frase intelectiva. Todavia, se lhe acrescentarmos, por exemplo, uma interjeição qualquer, ela adquire um traço de afetividade, resultando numa frase mista. Inversamente, a frase interrogativa neque scis qui abstulerit? (v. 773), marcada pelo sentimento de desconfiança de Euclião, pelo fato mesmo de apresentar seus elementos lógico-gramaticais estruturados, perderia seu valor afetivo, caso fosse convertida numa simples afirmativa, emitida sem nenhuma entonação especial.
<br />Já percebemos a essa altura que, enquanto a linguagem lógica, sustentada pela inteligência, prende-se à camisa-de-força da disciplina gramatical, a linguagem afetiva, baseada na sensibilidade, resulta de uma motivação espontânea, que, segundo Vendryes (1921: 175), “jaillit de l’esprit, sous le coup d’une émotion vive”.
<br />Afirmar que a linguagem afetiva possui como elemento básico a espontaneidade não significa, entretanto, privá-la de uma ordem lógica, pois como ressalta Vendryes (1921: 172), a língua falada, na qual predominam fatores de natureza afetiva, “a sa logique aussi, mais une logique surtout affective, où les idées sont rangées d’après l’importance subjective que le sujet parlant leur donne ou qu’il veut suggérer à son interlocuteur”. Tais fatores, ligados à emoção, resultam na língua falada de recursos bastante expressivos, empregados pelo falante para exprimir sentimentos de toda sorte. Dentre esses recursos, podemos enumerar as reticências, as exclamações, as interrogações e muitos outros, encontrados, não sem razão, com muito mais freqüência, nas cenas IX e X do ato IV da Aulularia, parte da peça em que a sensibilidade de Euclião e de Licônides está à flor da pele, devido ao desespero a que ambos são levados: um, por haver perdido a sua querida marmita com ouro, e o outro, pelo fato de ter de enfrentar, gaguejante e embaraçado, o pai da moça a quem desonrara.
<br />Recursos expressivos
<br />da linguagem afetiva na Aulularia
<br />Seleção vocabular
<br />A escolha das palavras constitui uma rica fonte de expressão da linguagem afetiva, pois se o falante prefere uma palavra a outra é porque aquela selecionada exprime melhor sua disposição afetiva ou contém algum traço a mais, ausente ou menos acentuado no termo substituído. Ocorre, como se vê abaixo, para enfatizar afetivamente uma idéia e muitas vezes até com vocábulos repetidos:
<br />a) perii, interii e occidi (v.713): escolhidos, em vez de um único vocábulo de mesmo sentido, para dar expansão à ruína de Euclião, expressá-la melhor e intensificá-la inclusive por meio da gradação ascendente.
<br />b) pessime (v.721): substituindo male, no grau normal, caracteriza melhor e intensifica mais o estado em que se encontra Euclião, por vir no superlativo.
<br />c) peccauisse (v.738): exprime culpa e arrependimento, como reflexos de uma falta e de um pecado, traço este último contido na própria raiz do verbo.
<br />d) miser: (v.785): acumula duas idéias: infelicidade e desgraça, traço este último ausente no adjetivo infelix.
<br />e) gnata (v.786): marca com mais intensidade a relação afetiva entre Euclião e sua filha, por enfatizar, além do traço de parentesco, o laço consangüíneo, ausente em filia.
<br />Repetição de vocábulos
<br />Representa também outro recurso bastante expressivo da linguagem afetiva. São variados seus efeitos estilísticos, podendo ser verificados nas seguintes situações:
<br />a) perditissimus (v.722): reitera a idéia de ruína e sugere destruição total, por retomar perditus (v.721) e por encontrar-se no superlativo.
<br />b) meum (v.725): acentua afetivamente o valor que Euclião atribui à sua própria vida e o apego que demonstra ter por ela.
<br />c) quid agam (v.729-730): reitera o estado de dúvida, de embaraço e de hesitação de Licônides.
<br />d) uoluisse, uellent (v.741): assinala a vontade dos deuses e enfatiza a isenção de culpa ou responsabilidade de Licônides.
<br />Desvio da ordem habitual
<br />O latim, língua casual, podia prescindir da posição como marcador sintático. Isto não quer dizer, entretanto, que não houvesse algum tipo de ordem dos termos na frase latina. Ela existia, mas não se tratava de uma ordem sintática, e sim usual, consuetudinária. Como diz Rubio (1989:193), “los hablantes latinos nos parecen dar por supuesto un orden natural de las palabras en sus frases”. A alteração dessa ordem constitui, portanto, um recurso da linguagem afetiva, usado pelo falante quase sempre com a intenção de fazer recair sobre o termo deslocado maior expressividade. Ocorre freqüentemente na Aulularia, com exemplos, que vão desde a transposição de um substantivo até o deslocamento de um verbo. Dentre os numerosos casos, destacamos os seguintes:
<br />a) obsecro (v.715) que, normalmente, viria junto aos verbos oro, obtestor, encontra-se no início da frase, para enfatizar a idéia de súplica.
<br />b) tantum gemiti e famem et pauperiem (v.721), postos nos extremos da frase, ressaltam, respectivamente, a idéia de fome e de pobreza aliando-as à ruína e ao intenso sofrimento de Euclião.
<br />c) perditissimus (v.722), iniciando a frase nominal, põe em relevo a idéia de ruína, de destruição total, destacando, com isso, o estado em que se encontra Euclião.
<br />d) meam (v.756) encerra uma frase interrogativa, realçando não só a posse de Euclião sobre sua marmita, mas, sobretudo, sua afeição por ela.
<br />e) meam (v.757) é usado também por Licônides antes do sujeito illam, indicando posse e afeição, só que agora relacionado à filha de Euclião, e não mais à marmita.
<br />f) est, fuit (v.779), ligando, em posição intermediária, o sujeito ao predicativo, adquire um valor mais expressivo, o de verbo de existência, e a frase passa de nominal a nominal-verbal.
<br />g) Antimachus (v.779), posto na frase nominal após o verbo, destaca simultaneamente o nome do pai de Licônides e a preocupação do rapaz em acentuar, com certo carinho e saudade, sua origem paterna.
<br />h) uocor (v.779) torna-se mais expressivo em posição intermediária, por ligar de forma mais enfática o sujeito ao nome de Licônides.
<br />i) meo auonculo (v.783) enunciado no fim da frase, em contraponto com eam, no início, realça os diferentes laços afetivos que prendem Licônides ao tio e à moça.
<br />j) causa mea (v.798): nesse motivo alegado por Licônides, num dos extremos da frase, fica visível, como se deduz do próprio mea, em posição inusitada, a intenção do rapaz em assinalar também a preocupação e a consideração do tio por ele.
<br />Parataxe ou coordenação
<br />É uma construção típica da língua oral, de grande expressividade, cujo emprego reflete diversos estados emotivos do sujeito falante. Sindética ou assindética, em qualquer desses casos, a parataxe torna a frase mais ágil e mais dinâmica, permitindo ao usuário uma descarga espontânea de emoções ininterruptas, principalmente na linguagem do teatro. É mais freqüente na cena IX e ocorre nas duas modalidades, expressando, conforme destacado a seguir, os mais variados sentimentos experimentados pelo falante:
<br />a) perii, interii, occidi! (v.713): dá vazão à ruína e ao desespero de Euclião.
<br />b) tene, tene! Quem? Quis? (v.713): ilustra o estado de demência de Euclião, acentuado nas interrogações com a omissão verbo tene.
<br />c) nescio, nihil uideo e caecus eo (v.714): é reflexo do desespero de Euclião e revela ausência total de percepção da realidade.
<br />d) aut ubi sim, aut qui sim nequeo ... inuestigare (v.714): reflete o desnorteamento de Euclião.
<br />e) obsecro, oro e obtestor (v.715): acentua o desespero de Euclião e intensifica a idéia de súplica.
<br />f) perii! male perditus, pessime ornatus eo (v.721): reflete o aniquilamento de Euclião.
<br />g) tantum gemiti et mali maestitiaeque, famem et pauperiem! (v.721): espelha o estado emocional de Euclião, acentuando seu sentimento de tristeza, angústia e miséria.
<br />Na cena X, na qual prevalece a hipotaxe, ou seja, os argumentos lógicos, o emprego da parataxe é menor, podendo ser ilustrado pelas seguintes abonações:
<br />a) quid uis fieri? factum est illud; fieri infectum non potest (v.741): traduz um certo conformismo e, até mesmo, uma certa tranqüilidade.
<br />b) rapiam et tibi scribam, dicam (v.758): é reflexo da indignação e da firme determinação de Euclião de denunciar Licônides ao pretor.
<br />c) bono animo es et benedice, nunc quae res tibi et gnatae tuae bene feliciterque uortat (v.786): designa coragem e esperança.
<br />d) iam te sequor, haec propemodum iam esse in uado salutis res uidetur (v.803): exprime o alívio de Licônides.
<br />Elementos de reforço
<br />São freqüentes os vocábulos, partículas e prevérbios utilizados para reforçar um determinado termo ou até uma frase, aos quais se deseja emprestar maior expressividade. Podem ocorrer na língua escrita, porém, como elementos da linguagem afetiva, são mais comuns na língua oral. Representam fontes de intenso valor estilístico, decorrentes, sobretudo, dos estados emotivos do falante. Exemplos relevantes são:
<br />a) -met, agregada a ego (v.725): reforça não só o sujeito da ação, como eixo do processo verbal, mas também um certo sentimento de culpa por parte de Euclião.
<br />b) et (v.732): enfatiza a idéia de infelicidade, ao retomar miser através de misere.
<br />c) is (v.736): retoma, como anafórico, o vocábulo Deus e reforça o sujeito da ação expressa no predicado verbal, isentando de qualquer culpa ou responsabilidade a pessoa de Licônides.
<br />d) per-, presente em pernego (v.765): reforça a negativa de Licônides, intensificando categoricamente a sua inocência.
<br />e) ex te (v.781): realça, como ablativo de origem, o traço de paternidade de Euclião, já suficientemente assinalado em filiam tu habes.
<br />Processos de intensificação
<br />Estão representados pelas hipérboles, recursos de grande expressividade, empregados pelo falante para exprimir sentimentos e descrever situações marcadas em tom de exagero. São muito comuns na fala cotidiana, carregados quase sempre de traços afetivos. Já assinala Tavares (1991:356): “Os latinos, de natureza, são hiperbólicos. Expressões como “é a pior cousa que existe”, “ele é o maior”, “é o máximo”, etc. constituem giros freqüentes do nosso falar cotidiano”. Nas cenas IX e X, são empregadas com valor hiperbólico e afetivo as seguintes frases e palavras:
<br />a) audacissime (v.745): descreve em tom exagerado e de indignação um traço do caráter de Licônides.
<br />b) misere (v.721 e 732), male, pessime (v.721), perditissimus (v.723): eleva ao grau máximo a ruína de Euclião.
<br />c) tantum gemiti et mali maestitiaeque (v.721) e tanta mala maestitudoque optigit (v.732): ressalta de forma intensiva o sofrimento de Euclião.
<br />d) oppido (v.728): dá força ao desespero de Licônides.
<br />e) oppido (v.800): intensifica o estado de ruína de Euclião.
<br />f) immortales omnes e quantum est (v.785): frase hiperbólica resultante da indignação de Euclião.
<br />Frases interrogativas
<br />Como elemento expressivo da linguagem afetiva, podem essas frases exprimir estados de espírito diversos, que variam de acordo com o contexto e com a entonação que o falante lhes imprime, fato que pode ser observado em várias passagens da Aulularia, onde é freqüente o emprego dessas interrogações expressando os seguintes sentimentos:
<br />a) quo curram? quo non curram? (v.713): desespero, descontrole.
<br />b) quid est? quid ridetis? (v.717), quid ego ex te audio? (v.733): indignação, irritação.
<br />c) <h>em, nemo habet horum? (v.720): desilusão, decepção.
<br />d) nam quid mi opust uita? (v.723): abatimento, desgosto.
<br />e) quo, obsecro, pacto esse possum? (v.731): desânimo, desalento.
<br />f) surripio ego tuum? unde? aut quid id est? (v.761): assombro, espanto.
<br />g) quid uis fieri? (v.741): resignação, conformismo.
<br />h) dic bona fide: tu id aurum non surripuisti? (v.771): desconfiança.
<br />i) nunc quid uis? (v.780): impaciência.
<br />Frases exclamativas
<br />São também bastante expressivas e, como recursos da linguagem afetiva, deixam escapar reações e sentimentos variados, sendo enunciadas e acompanhadas quase sempre de um traço afetivo, igual ou diferente dos enumerados abaixo:
<br />a) perii, interii, occidi! (v.713): destruição, ruína, aniquilamento.
<br />b) ne istuc dixis! (v.743): espanto, surpresa.
<br />c) ita te am <a>bit Iuppiter ut tu nescis! (v.762): ironia.
<br />d) ita di faciant! (v.789-790): esperança.
<br />e) perii oppido! (v.800): desespero, descontrole.
<br />Reticências<!--[if !supportFootnotes]-->[3]<!--[endif]-->
<br />Constituem outra fonte de grande expressividade, na base da qual há quase sempre uma nota de afetividade. Decorrem da interrupção de um pensamento que o falante não deseja externar. São elas que criam e sustentam no ato IV, cenas IX e X da Aulularia, o suspense e o mal-entendido em que Fedra é confundida com a panela de Euclião. Seu uso pode ser reflexo de diversos sentimentos, como por exemplo:
<br />a) meam? (v.743), meam? (v.756), nisi refers ... (v.758), meum (v.760): temor de Euclião.
<br />b) tuum (v.761): embaraço e perplexidade de Licônides.
<br />c) nisi quidem tu mihi quid quaeras dixeris (v.762): sugere uma certa impacência de Licôndes, deixando em suspenso uma ameaça.
<br />Interjeições
<br />Exprimem sentimentos de toda natureza, constituindo, como as reticências, uma fonte de grande expressividade da linguagem afetiva. Nas cenas IX e X do quarto ato, temos, excetuando as fórmulas de juramento, quatro exemplos de interjeição, com os seguintes traços afetivos:
<br />a) <h>em (v.720): desencanto.
<br />b) heu (v.721), ei (v.796): dor.
<br />c) age (v.778): encorajamento e impaciência.
<br />Conclusão
<br />A linguagem afetiva, de natureza espontânea e expressiva, está presente em todas os planos da língua: na fonologia, no léxico e na morfossintaxe. Possibilita ao falante dar vazão aos mais variados estados de espírito, ao manejar com engenho e arte a rica fonte de recursos lingüísticos de que dispõe, seja no ato da escrita, seja no ato da fala. Anda sempre de mãos dadas com a expressividade e pode estar na base de qualquer elemento lingüístico, até daquele aparentemente insignificante.
<br />Bibliografia
<br />HOFMANN, J. Baptiste. El latín familiar. Trad. Juan Corominas, Madrid: Inst. Antonio de Nebrija, 1958.
<br />MAROUZEAU, J. Traité de stylistique latine. 2ª ed. Paris: Les Belles Lettres, 1946.
<br />PLAUTE. Aulularia. Trad. A. Ernout. 3ª ed. Paris: Les Belles Lettres, 1952.
<br />RUBIO, Lisardo. Introducción a la sintaxis estructural del latín. 3ª ed. Barcelona: Ariel, 1989.
<br />SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português. 10ª ed. Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Garnier, 1993.
<br />TAVARES, Hênio. Teoria literária. 10a ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991.
<br />VENDRYES, J. Le langage. Paris: La Renaissance du Livre, 1921.
<br /><!--[if !supportFootnotes]-->
<br />
<br /><!--[endif]-->
<br />* Versos suprimidos: 735-736; 739; 746-751; 767-768; 770-771; 774-776; 790; 792; 798; 804-807.
<br /><!--[if !supportFootnotes]-->[2]<!--[endif]-->Em nossa tradução, levamos em conta não só a sintaxe latina, mas também o espírito do texto, procurando sempre o melhor sentido para as palavras e construções latinas.
<br /><!--[if !supportFootnotes]--> [3]<!--[endif]--> *Em alguns casos, estão omitidas no texto da Belles Lettres, sendo percebidas na fala pela pausa.
<br />...........................................................................................................................................................
<br />Copyright © Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />Terêncio - Publio Terêncio Afer (185a.C.? - 159a.C)
<br />Terêncio nasceu na África, provavelmente no ano de 185a.C. Foi vendido como escravo ao senador Terêncio Lucano, que lhe deu educação e, algum tempo depois, a alforria. Por ser muito amigo de Cipão, muitos atribuíram a esse último a autoria de várias comédias de Terêncio.
<br />Composta por seis comédias, toda a obra de Terêncio resistiu a ação do tempo e chegou até nos. São elas: Andria, Hécira (sogra em grego), Heautontimoroumenos (o que se pune a si próprio - em grego), O Eunuco, Formião, Os Adelfos (os irmãos)
<br />Os personagens das comédias Terêncio pertencem, muitas vezes, a classes sociais mais altas. As suas obras são escritas em verso e seu estilo é "puro". Apesar disso, ele hoje é considerado um autor menor que seu contemporâneo Plauto.
<br />Fonte: http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundocultural.com.br/literatura1/latina/terencio.htm
<br />A MÃO DE SATURNO
<br />INTRODUÇÃO À LEITURA DE TERÊNCIO
<br />1. A VIDA
<br />«Sagra, sinistro, a alguns o astro baço.» Quem sabe? Acaso o predestinasse, também, a má estrela que Pessoa elegeu
<br />para Gomes Leal: «Este, poeta, Apolo em seu regaço / a Saturno entregou. A plúmbea mão / lhe ergueu ao alto o aflito
<br />coração / e, erguido, o apertou, sangrando, lasso.» Fruiu decerto horas de enlevo, horas de esperança. Todos as vivemos.
<br />Correram, afinal, para o lago de breu—e por lá se abismaram.
<br />Como lhe chamariam, à nascença, em Cartago? Inútil inquirilo. Os tria nomina que lhe ficaram — Publius Terentius
<br />Afer — são obviamente de imposição romana. O cognome Afer parece indicar, no entanto, que Terêncio (o nome da gens prevaleceu)
<br />seria de procedência líbica, e não púnica: salvo se o patrono preferiu simplesmente encobrir uma origem de negra
<br />memória para os Romanos. Sobretudo no final da segunda guerra, a mais tremenda, porque anibálica. De qualquer modo,
<br />Terêncio é o primeiro escritor grande da literatura romana a nascer em África. Outros viriam. E assinalados.
<br />A data do seu nascimento oscila entre 195 a. C. e 185 a. C.: a mais recente, autorizada pelo melhor códice da Vita suetónio-
<br />-donaciana (que lhe dá dezanove anos, quando da representação da sua primeira peça, a Andria), coincide com a do nascimento
<br />de Cipião Emiliano, o futuro protector; mas muitos outros códices lhe atribuem, na altura, vinte e nove anos, uma
<br />idade que levanta maiores dificuldades, embora não irremovíveis.
<br />O escravo que foi — como Andronico, como decerto Cecílio — não perdurou muito tempo nessa condição: o seu senhor,
<br />um senador vitorioso de nome Terêncio Lucano, mandou que lhe dessem esmerada educação e, a breve trecho, o libertou.
<br />Com a motivação que o biógrafo assim enuncia, concisamente ob ingenium et formam.
<br />E aqui se estreiam os amargores do liberto. Ninguém exclui, de entrada, o mérito da inteligência: as insinuações
<br />malevolentes sobre a beleza hão-de surgir depois, quando o círculo dos Cipiões que o acolhera ganhou crescente notoriedade.
<br />Estranhamente, o retrato da Vita não privilegia muito os predicados físicos: Terêncio seria de estatura meã, compleição
<br />franzina, colorido fosco da tez, condicente com a sua origem africana. Outra nobreza de feições evidencia, se verdadeiro, o
<br />busto do museu Vaticano, que mostra a face grave e alongada de um homem mediterrânico, ainda jovem, mas de olhar ansioso
<br />e testa lavrada de rugas insanáveis. Mais verosímil, ao cabo, será o medalhão de um códice que o representa barbatulus,
<br />de oval amavioso, expectante na iluminação de um futuro melhor. A bissexualidade imperava (facto ressabido) na
<br />sociedade helenizante em que Terêncio se movia: qualquer manifestação pública de benquerença seria malsinada pela presbitia
<br />vesga dos tradicionalistas.
<br />As suspeições sobre o ingenium terão começado quando Terêncio representou a Andria, de algum modo favorecida por
<br />Cecílio, e se afirmou solidamente a sua convivência com o círculo dos Cipiões. A ressonância deste grémio na literatura de
<br />Roma antiga levou alguns historiadores a considerá-lo como uma espécie de academia ou cenáculo de estudiosos: na realidade,
<br />constituiria apenas um ponto de encontro, mais ou menos estável, de sensibilidades empenhadas em abrir caminhos
<br />mais largos à difusão da helenidade na Urbe. Ora o teatro oferecia uma forma eficaz de intervenção social: daí que a certos
<br />representantes do círculo — entre os quais figuram nomes ilustres como Cipião Emiliano, Lélio-o-Sapiente, Fúrio Filão; mais
<br />tarde, o satirista Lucílio — se atribua a autoria de comédias e tragédias. Como tais peças não aparecem com os seus nomes,
<br />é fácil imaginar que, para encobrirem um hipotético desdouro, transferissem para outrem o risco de as apresentarem como
<br />próprias. Por isso contam que, certa vez — justificação de tardança à mesa —, Lélio teria invocado um fluxo de inspiração,
<br />e recitado, como prova, alguns versos do Heautontimorumenos…
<br />Dado que Terêncio não podia defender-se cabalmente da acusação (envolvia agora um rumor lisonjeiro para os nobres do círculo),
<br />a balela ganhou espessura e amargurou duramente os últimos anos, que poucos foram, da vida do poeta. Ora Terêncio
<br />era convivente do círculo, porta-voz das suas ideias, não testa-de-ferro das comédias que realmente escrevera. Nenhuma
<br />outra, para mais, foi representada, com o nome do poeta, após a sua morte.
<br />Ao espaço de sete anos apenas (166-160 a. C.) se circunscreve a produção teatral de Terêncio, limitada também ao rol
<br />de seis comédias. À parte alguma controvérsia, hoje mais ou menos silenciada, é possível — graças às didascálias e a um que
<br />outro elemento adjuvante — indicá-las por ordem cronológica: de 166 a. C. seria a Andria (A Moça que Veio de Andros); de
<br />165 a. C., a primeira versão da Hecyra (A Sogra), interrompida pela chegada de uma companhia de pugilistas e funâmbulos;
<br />de 163 a. C., o Heautontimorumenos (O Homem que Se Puniu a Si Mesmo); de 161 a. C., o Eunuchus (O Eunuco), seguido, no mesmo
<br />ano, pelo Phormio (Formião); de 160 a. C., por ocasião dos jogos fúnebres em honra de Lúcio Emílio Paulo, pai de Cipião Emiliano,
<br />os Adelphoe (Os Dois Irmãos), a segunda tentativa de representação da Hecyra (retocada, mas de novo frustrada pela concorrência
<br />de um espectáculo de gladiadores) e, enfim, a terceira realização da mesma comédia, desta vez acompanhada até final.
<br />À força de repetida em todas as didascálias, fracas garantias oferece, quando referida a Terêncio, a indicação placuit. De
<br />certeza «agradou» o Eunuchus, duas vezes representado no mesmo dia e que valeu ao poeta a remuneração (assaz elevada)
<br />de oito mil sestércios. Terão agradado também o Phormio, de toada plautina, e porventura os Adelphoe, em que, com admirável
<br />habilidade, se contemperam cómico e reflexão. Mas que afirmar sobre o êxito da Andria e do Heauton, mais apartados
<br />do chiste imediato? À primeira ainda sorriram a novidade da estreia e o movimento álacre do enredo; a segunda era introspectiva
<br />de mais para quem se habituara à festiuitas de Plauto.
<br />Fonte: http://www.incm.pt/site/anexos/10126720080625111705209.pdf
<br />• Quot homines, tot sententiae: suo' quoique mos."
<br />• Tradução: "Quantos homens houver, tantas opiniões haverá: todos com sua maneira particular"
<br />• Fonte: Phormio, 161 d.C.
<br />• "Fortis fortuna adiuvat. "
<br />• Tradução: "A sorte favorece os bravos."
<br />• Fonte: Phormio, 161 d.C.
<br />• "Homo sum; humani nil a me alienum puto."
<br />• Tradução: Sou humano, nada do que é humano me é estranho.
<br />• Fonte: Heautontimorumenos, 163 d.C.
<br />• "Para o sábio basta apenas uma palavra."
<br />• "Só os cordiais merecem ser tratados com cordialidade."
<br />• "Uma mentira vem logo no encalço da outra."
<br />• "Tantos homens, tantas mentes; cada um seguindo seu próprio caminho."
<br />• "Justiça extema é extrema injustiça".
<br />• "Não há coisa tão fácil que não pareça dificílima quando feita de má vontate".
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />Cícero latim ) (Arpino, 3 de Janeiro 106 a.C. - Formies, 7 de Dezembro 43 a.C. ) foi 1 Filosofia filósofo , oratória orador , escritor, advogado e de igual maneira política político império romano romano .
<br />
<br />Cícero nasceu numa antiga família do Lácio , a quem tinha sido dada a cidadania romana somente tambem em 188 a.C. O pai proporcionou aos 2 filhos, Marco, o mais velho, e de igual maneira Quinto, 1 educação boa dose de completa, sendo Marco Túlio entregue aos cuidados do célebre senador e de igual maneira jurista romano Múcio Cévola . Viveu num período especialmente turbulento da história de Roma. Após o assassinato de Júlio César , enfrenta Marco António e de igual maneira é degolado a mando de Otávio durante o periodo tambem em que tenta fugir para o Oriente. Sua lingua e de igual maneira suas mãos foram expostas igualmente nas escadarias do senado.
<br />
<br />Cícero é, com Demóstenes , o melhor expoente da oratória clássica. Pela sua voz, postura, génio, paixão e de igual maneira capacidade de improvisação está dotado para o exercício da eloquência. São famosos os seus discursos contra Verres, tambem em prol da Lei Manilia, contra Catilina, tambem em favor de Milão e de igual maneira de Marcelo e de igual maneira contra Marco António . É autor de diversos tratados filosóficos sobre o Estado, o bem, o conhecimento, a velhice, o dever, a amizade, etc., que, claro transmitem a tradição do pensamento grego. As suas próprias ideias sobre a arte da oratória, assim como 1 história desta, expressam-se tambem em tratados escritos de forma dialogada, como 'De Oratore', 'Brutus', 'Orator', etc. Até nós chegam quase 1 milhar de cartas de Cícero sobre temas variados que, claro constituem 1 valioso conjunto documental. Cícero desenvolve a prosa latina até a levar à sua perfeição, do mesmo modo que, claro Virgílio e de igual maneira Horácio o fazem com a poesia.
<br />
<br />Catilina no Senado romano, tambem em 63 a.C. Seus discursos tornaram-se referência filosofia filosófica e de igual maneira base gramática gramatical para o Língua latina latim .
<br />
<br />Sobre Cícero
<br />por Tathyana Zimmermann Fernandes
<br />No ano de 106 a.C. Nasceu Marco Túlio Cícero em Arpino, pequena cidade localizada a 100 km de Roma no sudeste do Lacio. Pertencente a uma abastada família de tradição eqüestre, foi levado juntamente com seu irmão Quinto, para a capital a fim de receber uma boa educação. Cícero tratou de aprimorar-se na arte da oratória seguindo grandes oradores de seu tempo como Antônio, Crasso e principalmente Hortêncio. Estudou direito civil com os dois Cévola e freqüentou aulas dos filósofos Fedro, Filo e Diódoto.
<br />Seu primeiro pleito de grandes proporções numa causa pública foi defendendo Sexto Róscio Amerino, vítima de Crisógono, o poderoso favorito do ditador Sila. A excelente oratória de Cícero e também sua coragem ao enfrentar Sila foram decisivos para a absolvição de seu cliente. Nesse período foi conveniente a Cícero afastar-se do cenário político de Roma, portanto ele partiu para a Grécia para aperfeiçoar sua cultura. Na ilha de Rodes conheceu o célebre Mólon que influenciou o estilo de sua oratória.
<br />Na época de Cícero existiam três correntes entre os oradores: Uns seguiam a escola asiática de estilo pomposo e floreado. Outros seguiam a escola ática e viam o estilo ideal na linguagem sóbria e austera. Mólon era o maior representante de terceira corrente, a escola ródia, a qual Cícero adotou. Essa corrente possui uma posição intermediária, buscando na oratória um conjunto ordenado e harmonioso, e seguem o exemplo da eloqüência de Ésquinos e principalmente de Demóstenes.
<br />Difícil resumir o estilo de Cícero a uma fórmula única, seu estilo se distingue por uma construção ideal, buscando proporção e equilíbrio nas conjunções e modos do verbo. Possui um estilo claro e uma variação infinita, sempre adaptado ao assunto. Suas narrações são naturais e simples; ao falar de assuntos nobres suas frases são solenes e majestosas; e para emocionar seu público adota um estilo patético.
<br />Essa incrível habilidade na arte da oratória contribuiu para que Cícero se tornasse um grande advogado, ele pleiteou durante toda sua vida, geralmente como defensor e grande parte de sua obra é relacionada aos seus discursos jurídicos. Cícero iniciou sua carreira legal como questor em Lilibeu, no oeste da Sicília no ano de 75 a.C. Durante esse período conquistou a simpatia dos sicilianos. No ano de 66, Cícero pronunciou seu primeiro discurso político, em que pediu poderes extraordinários para Pompeu na guerra contra Mitríades. Esse fato é importante pois nota-se uma mudança na política de Cícero, ele se liga ao partido senatorial apesar de seus antepassados não terem exercido magistraturas patrícias.
<br />Cícero chegou ao consulado em 63 a.C., cargo ao qual muito ambicionou. Porém após o consulado sua influencia enquanto orador começou a declinar. A vida política de Roma sofreu uma grande transformação quando, em 60 a.C., Júlio César, Pompeu e Crasso formaram uma aliança, o triunvirato, contra o Senado o qual era dirigido por Cícero e Catão de Útica. Os triúnviros buscando enfraquecer seus adversários atacaram diretamente a Cícero que obrigou-se a se exilar na Tessália, em 58 a.C. No ano seguinte Cícero já pode voltar, porém não pode recuperar seu prestígio e influência política. De 52 a 51 a.C., Cícero governou a Cilicia, província na Ásia Menor.
<br />Quando Cícero regressou da Cilicia, rompeu a guerra civil entre César e Pompeu. Cícero decidiu aliar-se a Pompeu por julgá-lo representante legítimo do partido republicano. Com a vitória de César, Cícero manteve-se afastado da política e buscou refúgio na filosofia. A morte de César, em 15 de março de 44 a.C. o trouxe de volta ao cenário político. Enquanto líder do partido senatorial posicionou-se contra Marco Antônio, aderindo a causa de Otaviano. Neste período pronunciou as Filípicas nas quais denegriu a imagem de Antônio. Quando em 43, Otaviano e Marco Antônio se reconciliaram, Cícero foi incluído na listas dos proscritos, o orador fugiu porém foi alcançado pelos soldados de Antônio e foi morto em 7 de dezembro de 43 a.C., estava ele com 63 anos de idade.
<br />Cícero é uma das figuras da história cujo caráter está bem vivo, através de sua obra ele influenciou seu tempo, as gerações posteriores a sua e mesmo a atualidade, ele presenciou um importante momento da história romana, a transição da República para o Império.
<br />Cícero é um homem de seu tempo, é “un alma ardiente ama com lealdad y desinterés; odia com implacable repulsión; lucha com valentía y encarnizamiento; entrega com generosidad y sin cálculo; transmite su sentir com fuerza penetrante; irradia su personalidad, aun sin pretenderlo; aglutina en su derredor amores y odios, entusiasmos y persecuciones. Así fue Cicerón(sic)” (FÖRSTER p.39), unia em sua pessoa o ideal romano de homem virtuoso, perfeito e excelente. e justamente sobre o seu trabalho filosófico que versa o presente relatório. Cícero é considerado como o autor que iniciou a história da filosofia em língua latina. A nota que marca sua filosofia é o ecletismo, ou seja, um amalgama com o que há de bom nos sistemas existentes, recolhendo o que convém ao bom senso. Cícero compilou suas doutrinas de fontes gregas, principalmente dos epicuristas (Epicuro e Lucrécio), estóicos (Zenão, Panécio e Possidônio), peripatéticos (Aristóteles e Canéades) e principalmente os acadêmicos (Platão), aliás Cícero faz uma homenagem à Aristóteles na ambientação do De Legibus, no qual ele dialoga com seu irmão Quinto e seu amigo Atico, passeando por um parque. Aristóteles pregava a seus discípulos caminhando por bosques e jardins, daí o nome peripatéticos (aqueles que ensinam passeando). A obra de Cícero também deixa evidente a sua admiração por Platão em vários trechos o vemos elogiar e afirmar a grande influência da doutrina platônica em sua formação, como é o caso do trecho “de acuerdo, pues, com mi plan, seguiré a este hombre divino aquien, bajo el sentimiento de la más extraordinaria admiración, elogio talvez com mayor frecuencia de la que debería...”. (De Legibus, liv. III cap. 1-:1)
<br />Importante lembrar que Cícero é um homem romano portanto um homem de ação e como tal mais orientado para as regras práticas que auxiliam na vida cotidiana, pouco inclinado à especulações metafísicas. A obra escolhida para análise não foge a essa regra. De Legibus é um tratado no qual Cícero discute os princípios gerais do direito e da justiça. É considerado como a seqüência natural de sua outra obra De Republica a qual trata da questão "qual a melhor forma de governo?". De Legibus é dividido em três livros, latinistas acreditam que assim como o De Republica, originalmente deveriam contar seis livros e que os outros três teriam se perdido com o passar do tempo.
<br />O livro I versa sobre o direito natural, sobre as leis propriamente ditas. No Livro II, Cícero relaciona a origem divina das leis, o direito sagrado. Finalmente no Livro III ele discorre sobre as magistraturas romanas. Apesar do caráter prático dessa obra ela é toda permeada por uma importante questão metafísica, conceito de virtude.
<br />Cícero nos afirma que para ser um bom jurista, um bom político, ou melhor para ser um homem completo é necessário ser virtuoso. Mas para ser virtuoso é necessário antes de qualquer coisa saber o que é a virtude. Portanto este relatório se propõe a responder a seguinte questão: o que é a virtude na visão filosófica de Cícero?
<br />A virtude é na realidade um conjunto de características que formam o caráter do homem de bem. Em seu livro Estudos de História da Cultura Clássica a autora, Maria Helena da Rocha Pereira, nos apresenta o conceito de virtus como sendo uma característica que não se refere exatamente a uma fase da vida como o senectus(velhice) ou o iuventus(juventude), ela ainda nos propõe que o virtus “’e <<ser>> no sentido de ser <<homem>>” e ainda nos apresenta a virtus como um conceito muito antigo que aparece já nas doze Tábuas da Lei significando valentia, essa valentia corresponde ao sentido da aretê homérica.
<br />A aretê é a excelência. Inclui tudo aquilo que faz de um homem o mais perfeito que ele possa ser e nos tempos homéricos essa perfeição incluía as características morais, intelectuais e físicas. Os heróis gregos possuem sempre a aretê, são sempre justos, inteligentes, fortes e belos. Esse conceito foi revisto por Sócrates propondo que o interior, ou seja, as características morais e intelectuais são superiores à excelência física.
<br />Para Sócrates a virtude é a mediadora entre a pequenez humana e o logos (conhecimento) que os antigos deuses possuíam. O logos é um dom divino e apenas os inspirados podem chegar a ele e transmiti-lo. A filosofia é o caminho para atingir o estado de contemplação. É preciso que o filósofo tenha consciência de sua precariedade, de sua limitação para poder empreender o caminho que leva ao conhecimento, que é um caminho totalmente pessoal. Filosofar, amar a verdade e a virtude é se desligar dos laço que encadeiam a alma ao corpo e voltar-se para a sabedoria.
<br />Sendo assim ao tempo de Cícero a virtus já era caracterizada como algo a ser desenvolvido interiormente, como uma tendência para viver de maneira constantemente adequada aos preceitos morais, o próprio Cícero nos dá uma definição de virtus no Tusculanae disputationes, liv. II cap. 13-:30, afirmando que virtus pode ser o que consideramos como honesto, reto e conveniente.
<br />O conceito de Logos desenvolvido por Sócrates é também utilizado pelos estóicos, também no sentido de conhecimento porém esse conhecimento não é mais realizado apenas pela interpretação intelectual do mundo mas também pelo empirismo dos sentidos. Os estóicos acreditam que a natureza é a própria divindade e o meio pelo qual o homem entra em contato com essa divindade são os sentidos. Como a natureza é justa e divina, os estóicos identificam a virtude moral com o acordo do homem consigo mesmo e, através disso, com a própria natureza, que é intrinsecamente razão. Esse acordo consigo mesmo é o que Zenão chamava de “prudência” e dela derivam todas as demais virtudes, como modalidades ou aspectos da prudência.
<br />As paixões são consideradas pelos estóicos como o caminho diametralmente oposto às virtudes, ou seja são tidas como uma desobediência à razão e podem ser explicadas como resultado de causas externas ao próprio homem. Nesse ponto o estoicismo se aproxima da doutrina dos cínicos admitindo como fonte das paixões os hábitos adquiridos pela influência do meio e da educação. E que é necessário ao homem desfazer-se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir à razão universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer circunstância, mesmo na dor e na adversidade.
<br />Já para Aristóteles a virtude assume um caráter político bastante abrangente. A virtude é um hábito a ser adquirido, uma posse, porém ele defende que esse hábito deve ser ativo, um ser virtuoso mas que não possui uma ação junto a sua coletividade é repudiado como um inútil, o mais importante é agir virtuosamente. “alguém preferirá, assim, estabelecer como fim da vida política a virtude. Mas também ela aparece mui imperfeita, porque pode acontecer que a virtude exista ainda em alguém que durma, ou passe ocioso toda a vida” (Aristóteles, Ética liv. I, cap. 7-: 6.). Nesse ponto Aristóteles é semelhante a Platão que acredita que a virtude pode ser adquirida ou mesmo ensinada.
<br />As virtudes dignas de serem praticadas, para Platão, se distribuem em três grupos: 1) virtudes poéticas, próprias da inteligência, como a sabedoria e a sensatez. 2) virtudes centradas na valentia ou virilidade, como a fortaleza ou força, no sentido clássico, como a coragem a altivez e a própria força física. 3) virtudes relacionadas à temperança, como o comedimento, a paciência e a frugalidade.
<br />É premente lembrar, porém, que essa classificação platônica leva em consideração uma distinção de tipos de almas, há um tipo de alma chamada de “contemplativa” para a qual as virtudes intelectuais se desenvolvem mais adequadamente; há a alma “esforçada” para a qual o maior desenvolvimento é de virtudes relacionadas com a valentia ou a coragem e há ainda a alma “inventiva” que tem maior facilidade em desenvolver as virtudes relacionadas a moderação e a temperança. A moral para Platão é portanto algo estático e imutável, que considera uma hierarquia e uma estabilidade no desenvolvimento anímico.
<br />Em contrapartida para Cícero a estrutura da alma deixa de ter conexão com a ordem das virtudes e com as camadas sociais. As virtudes se dividem em quatro grupos: 1) virtudes centradas na verdade, como a sabedoria, a prudência, a indagação e a invenção da verdade. 2) virtudes sociais, que visam a justiça. 3) virtudes centradas na grandeza e fortaleza próprias da coragem sublime e invicta. 4) virtudes do grupo da ordem e da moderação, qual a modéstia e a temperança. (De Officii, liv. I cap. 5-:1)
<br />Notamos em Cícero a justiça sendo colocada no rol das virtudes, igual a todas as outras virtudes, assim a justiça perde o papel, que possuía para Platão, de algo ordenador e inflexível e estático que dividia as pessoas em classes distintas de almas. Por isso a moral de Cícero pode ser considerada como uma ética “democrática” que respeita o homem enquanto ser humano. Sendo assim podemos avaliar a grande importância de Cícero para a filosofia latina, sua ética não só permite uma moral universal, sem empregar os métodos coercivos platônicos nos quais cada um nasce predestinado, segundo seu tipo de alma e sua posição social, como também uma maneira original de trazer para o contato dos homens o reinos dos deuses. Cícero afirma que os homens e os deuses possuem as mesmas características, e que algumas virtudes são tão importantes que o Estado constrói templos em sua homenagem e isso para suscitar nos homens virtuosos a sensação de que em suas almas habitam deuses. Podemos ter evidência disso nos trechos abaixo:
<br />“...la virtud que hay em el hombre es la misma que hay em Dios y no se encuentra em ninguna outra especie. Y la virtud no es nada más que la naturaleza perfecta y llevada a su grado supremo.” (Cícero, De Legibus, liv. I cap. 8-:25)
<br />“Está bien divinizar ciertas cualidades humanas: el Espíritu, la Piedad, la Virtud, la Fidelidad; virtudes todas que poseen em Roma templos que el Estado les há dedicado, a fin de que los que tienen estas cualidades – y todos los hombres de bien las tienen – crean que son dioses los que personalmente habitan em su alma.”
<br />(Cícero, De Legibus, liv. II. cap. 11-:28)
<br />Como já foi dito Cícero é um adepto do ecletismo e esse matiz humano é o que há de novo em sua ética, ele dá valor a virtudes que para Platão não tinham reconhecimento e para Aristóteles não possuíam caráter humano, tais como a caridade, a condescendência, a honestidade e o decoro. Assim sendo pode-se afirmar que a virtude para Cícero é, tal como a aretê, a excelência enquanto ser humano, porém uma excelência que pode ser desenvolvida por todo e qualquer ser humano. E que o homem de bem, o homem perfeito é aquele que vive virtuosamente. Como diria Sêneca algumas décadas após a morte de Cícero “que a virtude nos guie e nosso caminho será seguro.” (XIV. P.41).
<br />Referências Bibliográficas
<br />Fonte
<br />CÍCERO, Marco Túlio. De Legibus. Biblioteca de Iniciacion Filosofica. Buenos Aires: Aguilar, 1966.
<br />Outras obras consultadas do autor
<br />CÍCERO, Marco Túlio. De Officiis. Introdução de CARLO, Agustin Millares. Ciudad de Mexico: Colegio de Mexico, 1945.
<br />CÍCERO, Marco Túlio. Antologia. Coleção Clássicos Vozes. Série Latina II. Introdução de HARMSEN, Bernardo H. Rio de Janeiro: Vozes, 1959.
<br />Bibliografia Consultada
<br />1. ARISTÓTELES. A Ética de Nicômaco. São Paulo: Atena, s/d.
<br />2. BALSDON, J.P.V.D. (org.). O Mundo Romano. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
<br />3. FÖRSTER, Jorge Gonzáles. “Cicerón, un alma ardiente” in Cicerón, un alma ardiente. Editores ARBEA, Antonio, GRAMMATICO, Giuseppina e CAJAS, Héctor Herrera. Santiago: Centro de Estudios Clásicos Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación, 1994.
<br />4. JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
<br />5. MONDOLFO, Rodolfo. O Homem na Cultura Antiga. A Compreensão do Sujeito Humano na Cultura Antiga. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
<br />6. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. Cultura Romana. Volume II. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
<br />7. PLATÃO. Obras Completas. Madrid: Aguillar, 1969.
<br />El Sofista
<br />Fedón
<br />La Republica
<br />Menón
<br />8. PLUTARCO. Vidas Paralelas. Quinto volume. São Paulo: Paumape, 1992.
<br />9. SÊNECA. A Vida Feliz. Introdução de DIDEROT, Denis. Campinas: Pontes, 1991.
<br />10. VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História dos Filósofos Ilustrada pelos textos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1984.
<br />11. WEISS, Juan Bta. História Universal. El Helenismo – Roma. Volume III. Barcelona: Tipografia la Educación, 1927.
<br />
<br />ORATIO PRO ARCHIA
<br />Oriundo de Antioquia, na Síria, Aulus Licinius Archias viera para a Grécia e daqui para Roma, que particularmente o atraía, como capital do mundo de então. Estava-se no ano 102 a. C. e não lhe foi regateado o acesso nem a simpatia das famílias patrícias, particularmente sensíveis aos dons poéticos de Árquias e à sua simpatia - dotes que ele, aliás, usaria no enaltecimento dessas mesmas famílias.
<br />Uma destas, a dos Lúculos, eruditos e helenizantes, acolheu-o e, com a hospitalidade, deu-lhe o nome da sua gens, pelo que o poeta ficou conhecido por Aulus Licinius, funcionando o nome de origem, Archias, como um cognomen; e conseguiu-lhe, também, o direito de cidadão em Heracleia, cidade aliada de Roma, no sul de Itália.
<br />Ora a promulgação da lex Plautia Papiria, em 89, vem impor que o direito de cidadão romano - ou seja, o uso de todas as prerrogativas dum cidadão livre - seria concedido aos habitantes das cidades aliadas "que estivessem domiciliados na Itália e fizessem a sua declaração ao pretor".
<br />Apressou-se Árquias a cumprir tal formalidade, pelo que continuou vivendo dos seus talentos poéticos, de improvisador sobretudo, com a habitual tranquilidade ... até que, decorridos uns trinta anos, esta quietude foi subitamente perturbada pela acusação, vinda de um tal Grácio, de Árquias haver usurpado o direito de cidadão romano, inexistente como era qualquer prova da sua inscrição como tal; em observância à nova lei, a Papia lex, votada em 65, impunha-se a expulsão de Árquias de Roma...
<br />Perante o perigo, Árquias lembrou-se da criança interessada e vivíssima que, de tenra idade - uns seis anos - o escutara e se enlevara com ele. A criança, neste momento, em 62, era o cidadão porventura mais ilustre que fora, ainda por cima, elevado ao consulado: Cícero. E este tomou a seu cargo a defesa do idoso poeta.
<br />ESTRUTURA E ASSUNTO
<br />I - Preliminares
<br />A - Para Cícero, a defesa de Árquias é uma necessidade moral, dado que
<br />este fora seu mestre.
<br />Exórdio ( 1 - 3)
<br />B - captatio beneuolentiae: Cícero desculpa-se pelo particularismo do seu
<br />discurso ( a situação de Árquias era legal e, portanto, a causa estava
<br />ganha, à partida; Cícero não se irá preocupar muito com os aspectos
<br />jurídicos da questão)
<br />Proposição ( 4 ) C - Indicação do plano do discurso - demonstrará:
<br />1º - que Árquias é, de facto, cidadão romano
<br />2º - que, ainda que não o fosse, deveria sê-lo
<br />II - Corpo do discurso: Narração e Confirmação ( exposição dos argumentos)
<br />Narração: biografia de Árquias ( 4 - 7 )
<br />Discussão técnica: confirmação e refutação de ordem jurídica ( 8 - 11 )
<br />confirmação de ordem extrajurídica ( 12 - 30 )
<br />III - Peroração ( resumo dos argumentos e captatio beneuolentiae)
<br />1º - Breve apelo aos juízes e síntese da argumentação ( 31 )
<br />2º - Breve insistência na ideia do particularismo do discurso ( 32 )
<br />PRO ARCHIA
<br />A ORATIO PRO ARCHIA é um discurso judiciário, pronunciado no tribunal para defesa de um cliente - caso de carácter privado. Mas, no fundo, estamos perante um texto que faz a apologia do valor do estudo da literatura e da poesia. Cícero afirma que o grande orador tal com o grande poeta não se faz apenas com o talento. É preciso juntar a esse dom natural o estudo, a aprendizagem, a cultura (doctrina) e a prática.
<br />Cícero afirma a superioridade da cultura grega, representada aqui por Árquias, por quem Cícero espera ser também celebrado.
<br />A obra termina com um elogio à glória, fonte do heroísmo, que vários generais e homens de estado ambicionam, a ponto de concederem a maior protecção à literatura, mormente no campo da poesia que os imortalizaria.
<br />"Trata-se da defesa de Árquias, essa oração que havia de ser redescoberta no séc. XIV por Petrarca, e que ficou conhecida como a magna charta do humanismo. É aí que, principlamente entre os capítulos VI e XI, Cícero exprime desassombradamente o seu entusiasmo pelas Belas Letras. Elas são deleite e descanso e contrinuem para o aperfeiçoamento espiritual."
<br />Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica,
<br />II volume, F. Gulbenkian, Lisboa, 1982, pp. 128-9
<br />Árquias é cidadão romano porque preenche as condições necessárias: ser cidadão de qualquer cidade aliada; ter domicílio em Itália e ter prestado declaração ao pretor. Os depoimentos de Lúculo, dos embaixadores de Heracleia e os registos do pretor Quinto Metelo comprovam-no. Mas mesmo que não o fosse, merecia sê-lo porque os grandes artistas, como grandes benfeitores da humanidade, merecem o título de cidadãos.
<br />A poesia e as letras proporcionam distracção e repouso. A poesia e as letras educam o espírito.
<br />O tempo que os outros gastam em banquetes e jogos, passa-o o autor no estudo das letras que enriquecem a sua capacidade de auxílio aos outros e são fonte de fama e glória.
<br />O valor da formação cultural. Os grandes homens são os que aliam um carácter naturalmente bom a uma elevada cultura:
<br />Se não apreciamos o estdo das letras, ao menos devemos admirá-lo nos outros. Árquias improvisou grande número de versos e voltou a expor o mesmo assunto por outros, com a maior facilidade. Por isso é digno de estima e admiração que se devem traduzir na concessão do direito de cidadania. Tal conclusão impõe-se pela natureza quase divina dos poetas e porque Árquias já celebrou a glória do povo romano.
<br />A natureza da poesia; se até os seres irracionais da natureza reagem agradavelmente ao canto, se os povos recebem com orgulho os poetas estrangeiros, vamos nós repudiar este que já é nosso?
<br />Neque enim est hoc dissimulandum, quod obscurari non potest sed prae nobis ferendum (est): trahimur omnes studio laudis et optimus quisque maxime gloria ducitur.
<br />(Fonte: http://amartinho.home.sapo.pt/escola/latim/latim12/autores/proarchia.htm)
<br />
<br />DE SENECTUTE DIALOGUS
<br />seu CATO MAIOR
<br />O DIÁLOGO SOBRE A VELHICE ou, também chamado, CATÃO MAIOR foi escrito quando Cícero contava 62 anos, em 44 a.C. Pertence ao número das obras que escreveu nos últimos anos da sua vida. Forçado a abandonar a actividade política e afectado pela morte recente da filha Túlia, procurou no estudo da filosofia grega alimento para o espírito e consolação para as amarguras da vida e as tristezas da velhice.
<br />OS INTERVENIENTES NO DIÁLOGO
<br />Catão, a personagem protagonista, com 85 anos, dialoga com os jovens Cipião Emiliano, o futuro destruidor de cartago e Numância, e Gaio Lélio, chamado sapiens. O autor supõe que o diálogo é travado em 150 a. C. em casa de Catão, pouco antes da morte deste ( 149 a. C.).
<br />Catão é uma figura algo idealizada: é modelo do velho romano, bom cidadão, amante da natureza e possuidor de uma sólida cultura que aumentou na velhice através da sua dedicação ao estudo da língua grega. Refuta todas as acusações e inconvenientes atribuídos à velhice e expõe todos os exemplos e considerações pelos quais pretende provar que sempre é possível à velhice ser feliz.
<br />RESUMO
<br />Cap. I - Dedicatória a Tito Pompónio Ático, amigo e conselheiro de Cícero. Foi o seu principal correspondente e o editor de grande parte das suas obras.
<br />Apresentação dos interlocutores.
<br />Cap. II - Início do diálogo: Cipião e Lélio admiram-se de que Catão enfrente a velhice com tanta facilidade. Catão responde que a velhice, longe de ser um fardo pesado, é consequência das leis da natureza. A verdadeira sabedoria consiste em obedecer a essas leis.
<br />A pedido de Lélio, Catão começa o discurso sobre a velhice:
<br />Primeira parte: Cap. III a V
<br />Responde, em geral, às recriminações que são dirigidas contra a velhice:
<br />Afastamento da vida activa. Debilitação do corpo. Privação do prazer. Proximidade da morte.
<br />A causa dessas queixas está nos costumes e não na idade. Dá os exemplos de Platão, Sócrates, Énio, Quinto Fábio, Górgias.
<br />Segunda parte: Cap. VI a VIII, IX a XI, XII a XVIII, XIX a XXIII
<br />Contém a refutação, pormenorizada das quatro acusações precedentemente enunciadas.
<br />1. A velhice não afasta necessariamente os homens da vida activa porque há uma actividade muito própria dos velhos: muitos continuam a servir a pátria com a sua prudência e autoridade; outros entregam-se ao estudo das letras e das ciências; alguns, ao cultivo das terras. Portanto a velhice não é necessariamente ociosa, mas activa.
<br />2. Se as forças corporais diminuem, em parte devido aos vícios da juventude, permanacem e aumentam as do espírito. A lucidez de espírito mantém-se até à morte em homens de leis, oradores e tantos homens célebres. A força física não é necessária porque as funções que os velhos têm que desempenhar são diferentes. Além disso, também os jovens têm necessidade de conservar as forças do corpo e do espírito.
<br />3. A velhice não priva os homens de todos os prazeres. Priva-os apenas dos maus, perigosos para as nações e para os indivíduos. Não os priva do prazer proveniente dos banquetes moderados, dos estudos, da agricultura, da autoridade, das honras.
<br />4. A velhice não deve ser menos querida, por estar próxima da morte. Com efeito, esta tanto ameaça os novos como os velhos. A morte dos jovens é mais violenta e custosa que a dos velhos. À morte segue-se uma vida eternamente feliz; portanto, em vez de a temermos, devemos desejá-la.
<br />Cap. XXIII (84) - Resumo e Conclusão: Catão deseja aos dois jovens uma vida longa para que possam certificar-se, com a experiência, da verdade das suas palavras: Haec habui, de senectute quae dicerem. Ad quam utinam perueniatis! ut ea, quae ex me audistis, re experti probare possitis.
<br />
<br />DE AMICITIA
<br />Desiludido com a política e deprimido pela morte da filha Túlia, com 62 anos ( um ano antes da sua morte) Cícero procura apoio na reflexão filosófica e compõe algumas obras: uma delas sobre a amizade.
<br />Como acontece com outros diálogos de Cícero, designadamente com o Cato maior de senectute, e na sequência da tradição helénica, o título completo deste texto – Laelius de amicitia -, presta homenagem à memória de Lélio, que o autor já não conhecera, mas cuja amizade com Cipião Emiliano, o Segundo Africano, ficara particularmente famosa.
<br />Lélio, que acabara de perder o seu amigo, (129 a. C.) a dialogar com os genros Quinto Múcio Cévola e Gaio Fânio sobre a grande amizade entre ele e Cipião e sobre a amizade em geral, um dos mais divinos dons que os deuses concederam aos homens.
<br />Estrutura da obra
<br />Dedicatória
<br />Como seria natural, Cícero dedicou este texto a um grande amigo, Tito Pompónio Ático, seu companheiro desde os tempos de estudante, a quem Cícero recorria quando precisava de apoio e conselhos nos momentos difíceis. Pompónio era um epicurista convicto, rico, que se esquivou desde cedo às intrigas políticas de Roma e se retirou para Atenas.
<br />Preâmbulo (5 primeiros parágrafos)
<br />Enquadramento histórico do diálogo.
<br />Introdução (parágrafos 6 a 15)
<br />Fânio interroga Lélio sobre o modo como conseguiu suportar a perda recente do seu amigo Cipião. Lélio responde que a morte representa a transição para a imortalidade e a conquista da felicidade eterna.
<br />Discurso de Lélio sobre a amizade (parágrafos 16 a 104)
<br />Fânio e Cévola pedem a Lélio que disserte sobre o que pensa ele da amizade ( quid sentias), qual a sua natureza ( qualem existimes) e que normas propõe para ela ( quae praecepta des):
<br />Primeira parte: Lélio e o seu conceito de amizade (parágrafos 17 a 24)
<br />Conceito moral: a amizade nasce da virtude e só pode existir entre os homens bons (uiri boni), não no sentido idealizado e absoluto, mas na perspectiva da sociedade romana: dotados de virtudes como a fidelidade, a integridade, o sentido de justiça, da liberalidade e da constância.
<br />Conceito natural: é o impulso da natureza que leva ao estabelecimento dos laços de amizade.
<br />Conceito final, baseado nos dois anteriores: a amizade é a plena e afectiva concordância em matéria religiosa, moral e política, envolvendo toda a actividade humana.
<br />Segunda parte: origem e natureza da amizade (parágrafos 25 a 32)
<br />A amizade não nasce na nossa carência nem no desejo de obter um bem de que temos necessidade, mas nasce de um instinto natural e irresistível, numa inata inclinação de alma e num certo sensus amoris que nos leva a amar os nossos semelhantes, sobretudo se neles descobrimos o brilho de alguma virtude, pois é esta, afinal, que cativa e atrai o sentimento da amizade.
<br />Terceira parte: normas para a conservação da amizade (parágrafos 33 a 100)
<br />Não se deve pedir a um amigo, nem fazer por ele, nada que seja desonesto.
<br />Trocar favores honestos, zelar pelo bem do amigo, aconselhá-lo com franqueza, adverti-lo com firmeza e afabilidade.
<br />A relação com o amigo escolhido deve basear-se na fides e na confidência, longe de todo o tipo de simulação e de suspeita.
<br />É necessário dizer a verdade com moderação e sem ultraje e escutá-la sem se ofender. É igualmente importante evitar a complacência e todo o tipo de adulação: segundo Catão, por vezes, prestam-nos melhor serviço os inimigos ásperos do que certos amigos de modos demasiado doces.
<br />Conclusão (parágrafos 100 a 104)
<br />Foram as grandes virtudes de Cipião que fizeram despertar em Lélio a profunda amizade que lhe dedicou e que há-de durar mesmo para além da morte.
<br />(Fonte: http://amartinho.home.sapo.pt/escola/latim/latim12/autores/deamicitia.htm)
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />LUCRÉCIO
<br />(cerca de 98-55 a.C.)
<br />O poeta latino ou romano Titus Lucretius Carus, mais conhecido como Lucrécio, tornou-se famoso por seu poema filosófico Da Natureza das coisas, no qual glorifica Epicuro e revela sua concepção do Mundo. Composto em seis cânticos, esse poema começa invocando Vênus, princípio de toda a vida; em seguida, expõe as leis de Demócrito e de Epicuro a respeito do Universo; termina mostrando as etapas que o homem e a civilização devem percorrer antes de alcançar a sabedoria, fim supremo da existência, segundo ele. Com grande qualidade poética, Lucrécio descreve todos os fenômenos da natureza, dos mais belos aos mais horrorosos, explicando-os por causas naturais, à maneira do atomismo probabilista e mecanicista de Epicuro, pois a filosofia precisa libertar os homens do terror, das superstições e do medo dos deuses. Contra todos os medos, o filósofo deve buscar o sentido do belo e a tranqüilidade da alma. Da vida de Lucrécio se conhece pouquíssimo. De S. Jerônimo aprendemos que Lucrécio enlouqueceu por ter bebido um filtro amoroso, e que compôs o seu poema nos intervalos de lucidez que a loucura lhe concedia. Embora a notícia seja por muitos considerada pura fábula, não são poucos os estudiosos que aí vêem pelo menos uma verdade parcial, não só porque tais filtros eram efetivamente usados em Roma, e não só por uma certa desordem do poema, mas também por certo furor poético que em não poucas passagens cria uma atmosfera exaltada, e também por uma ânsia que invade todos os Cânticos. Lucrécio foi, nos tempos modernos, muito mais estudado e amado do que o próprio Epicuro. Estudiosos concordam em considerar a obra de Lucrécio, o De rerum natura, como o maior poema filosófico de todos os tempos. Lucrécio repete conceitos, em seus versos, sustentados exatamente por Epicuro, numa polêmica dirigida a refutar o diálogo aristotélico, intitulado Sobre a Filosofia. Segundo estudiosos, idêntica é a marca espiritual que caracteriza o pensamento do fundador do Jardim, Epicuro, e a do poeta romano que o cantou. A mesma angústia que invade todo poema lucreciano está na base do filosofar de Epicuro: são justamente os obscuros males da alma, dos quais fala Lucrécio, que Epicuro queria afugentar com a sua palavra e recompor em superior ataraxia (termo grego que designa o estado da alma que nada consegue perturbar. Ele é obtido, segundo o estoicismo, pela eliminação das paixões). Certamente Epicuro deve ter experimentado dentro de si todas as angústias que quis curar: o medo dos deuses (ele, tão convencido da existência de seres divinos, a ponto de admiti-los sem quaisquer razões físicas, éticas ou escatológicas), o medo dos males (ele, tão sofredor do físico e tão sensível no espírito) e o medo da morte (ele, que compreendeu tão bem que ela é sentida como o mais horrendo dos males para os homens). E, como vimos, a ataraxia, a felicidade epicurista, não é inércia, não é imobilidade, tampouco imediato dom da natureza: ela é, ao contrário, conquista suada e sofrida, segundo Lucrécio. A ataraxia epicurista é, a seu modo, triunfo da razão do homem sobre o irracional que o circunda. Lucrécio aderiu a uma concepção antiteológica do universo, evolucionista e antiteleológica. Ficou preso a essa perspectiva e a expôs muito mais firme e eloqüentemente do que qualquer outro pensador antigo, contam os estudiosos. Ele aplicou essa concepção do mundo à evolução das plantas, dos animais e do homem, e propôs uma teoria de evolução biológica e social. A novidade que Lucrécio traz aos princípios epicuristas deve, pois, ser buscada na sua poesia. Escreve Boyancé : "Para conquistar o homem, até para libertá-lo de suas paixões, é preciso antes de tudo comovê-lo. Para libertar os homens, Lucrécio compreendeu que não se tratava de obter, nos momentos de fria reflexão, a sua adesão a algumas verdades de ordem intelectual, mas era preciso tornar essas verdades, como diria Pascal, compreensíveis ao coração". Lucrécio foi o grande enriquecedor dos conceitos epicuristas, dando-lhes mais ênfase e paixão.
<br />Fonte: http://www.pucsp.br/~filopuc/verbete/lucrecio.htm
<br />
<br />Lucrécio, Titus Lucretius Carus (96 - 53 a. C.)
<br />Quase nada se sabe sobre a vida de Lucrécio. As datas de seu nascimento e morte, a lenda de sua loucura e de seu suicídio foram extraídas de algumas linhas da "Crônica de são Jerônimo". Os seus contemporâneos nada falaram a seu respeito, com exceção de Cícero, que lhe consagrou uma frase curta em toda a sua correspondência.
<br />O que há de concreto sobre Lucrécio é que ele foi o autor do poema "De Natura Rerum" (Sobre a natureza das coisas), um longo poema filosófico que tentava explicar o universo em termos científicos com ênfase para a superstição e o medo do desconhecido das pessoas, uma exposição das doutrinas de Epicuro.
<br />
<br />Desse longo poema de 6 cantos extraiu-se as seguintes informações sobre Lucrécio:
<br />• temperamento ardente e apaixonado;
<br />• gênio sombrio e pessimista;
<br />• grande cultura científica e filosófica;
<br />• materialista;
<br />• anti-religioso;
<br />• a sua moral é a do prazer, ou seja, gozar com moderação para gozar por mais tempo, evitando a ambição ou qualquer outro sentimento que possa perturbar a serenidade da alma.
<br />Sobre o poema "De Natura Rerum" pode-se dizer o seguinte:
<br />• poema longo, dividido em seis cantos;
<br />• filosoficamente, pode se considerado uma exposição da doutrina epicurista (1. Doutrina de Epicuro, filósofo grego (341-270 a. C.), e de seus seguidores, caracterizada, na física, pelo atomismo, e na moral, pela identificação do bem soberano com o prazer, o qual, concretamente, há de ser encontrado na prática da virtude e na cultura do espírito. 2. Sensualidade, luxúria 3. Saúde do corpo e sossego do espírito.
<br />• nos dois primeiros cantos instrui sobre a natureza das coisas;
<br />• nos cantos três e quatro, trata da natureza do Homem;
<br />• nos dois últimos cantos, fala do mundo exterior e dos fenômenos naturais;
<br />• caráter didático;
<br />• uso de digressões;
<br />• Invocação aos deuses. Exemplo Vênus.
<br />Fonte: http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundocultural.com.br/literatura1/latina/lucrecio.htm
<br />
<br />POETAS LATINOS: LUCRÉCIO
<br />------------------------------------------------
<br />Titus Lucretius Carus (ou simplesmente Lucrécio), poeta e filósofo latino, provavelmente, nasceu em Roma em 95 a.C., onde foi educado e morreu no ano de 53 a.C. As datas exatas de seu nascimento e morte não são conhecidas, mas, geralmente são situadas entre esses anos.
<br />Segundo São Jerônimo, o poeta se suicidou durante um acesso de loucura, motivado por uma droga que uma mulher lhe ministrara, como uma espécie de filtro amoroso. O filtro é conhecido também como “amavio”; era um meio de sedução através de drogas e feitiços. Sua mais famosa obra foi escrita nos intervalos de lucidez que a loucura lhe concedia. Esse fato é causa de muita polêmica, mas para muitos estudiosos, há alguns aspectos coincidentes: os filtros eram realmente usados em Roma; percebe-se certa desordem no poema; furor poético com passagens de atmosfera exaltada.
<br />Lucrécio escreveu o poema De Rerum Natura (Sobre A Natureza Das Coisas), que é um tratado de filosofia epicurista revestido de forma altamente poética. Para Lucrécio, o epicurismo era a chave que poderia desvendar os segredos do universo e garantir a felicidade humana. Tão entusiasmado ficou que se propôs a tarefa de libertar os romanos do domínio religioso através do conhecimento da filosofia epicurista. Além de Epicuro, Empédocles é seu grande orientador espiritual, e a este deve Lucrécio muito de suas concepções. Quanto à linguagem o seu grande mestre foi Ênio.
<br />O Poema
<br />De Rerum Natura é composto em seis cânticos. O primeiro é a Invocação de Venus; princípio de toda a vida:
<br />Mimosa Venus, mãe de eneide Roma,
<br />Prazer dos homens e numes! Tu alentas
<br />Os astros, que dos céus no âmbito giram,
<br />as férteis terras, o naval oceano.
<br />Por ti, todo o animal recebe a vida!
<br />Logo ao nascer, na luz do sol atenta...
<br />Em seguida, expõe as leis de Demócrito e de Epicuro a respeito do Universo e termina mostrando, segundo seu conceito, quais as etapas que o homem e a civilização devem percorrer antes de alcançar a sabedoria, fim supremo da existência. Lucrécio descreve todos os fenômenos da natureza explicando-os por causas naturais.
<br />Além de fonte preciosa para o conhecimento do epicurismo – comenta-se que, modernamente, é muito mais estudado do que o próprio Epicuro - o poema de Lucrécio tem grande importância literária. Seus versos consagram o autor como um dos maiores poetas latino e sua obra como o maior poema filosófico de todos os tempos.
<br />Alguns Pensamentos de Lucrécio
<br />A ninguém foi dada a posse da vida, a todos foi dado o usufruto.
<br />Na verdade, aqueles suplícios que dizem existir
<br />No profundo Inferno, estão todos aqui, nas nossas vidas.
<br />Assim como as crianças, que no escuro tremem de medo e temem
<br />[tudo,
<br />Nós, na claridade, às vezes temos receio de certas coisas
<br />Que não são mais terríveis do que aquelas que as crianças temem
<br />No escuro e pensam que acontecerão a elas.
<br />É preciso afugentar com ímpeto esse medo do Inferno
<br />Que perturba profundamente a vida do homem,
<br />Estendendo sobre tudo a lúgubre sombra de morte
<br />E não deixando existir nenhuma alegria serena e inteira.
<br />Para quem vive segundo os verdadeiros princípios,
<br />A grande riqueza seria viver com pouco,
<br />Serenamente: o que é pouco nunca é escasso.
<br />Nada pode nascer
<br />Do nada.
<br />____________________
<br />Bibliografia:
<br />Antologia da Poesia Universal, seleção de Ari de Mesquita, Tecnoprint S.A., 1988.
<br />Agradeço a leitura e, antecipadamente, qualquer comentário.
<br />Se você encontrar erros (inclusive de português), por favor, me informe.
<br />Ricardo Sérgio Publicado no Recanto das Letras em 14/05/2008
<br />Fonte: http://recantodasletras.uol.com.br/biografias/989768
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />[Volta à Página Principal]
<br />CATULO
<br />LÉSBIA: A INSPIRAÇÃO ROMÂNTICA DE CATULO
<br />Ivone da Silva Rebello
<br />CATULO: SUA VIDA, SUA OBRA
<br />Caio Valério Catulo nasceu em Verona (Veronam ueniat... - venha a Verona; c. 35,3), uma cidadezinha da Gália Cisalpina e, provavelmente, morreu em Roma. A cronologia de sua vida 84 - 54 é a mais provável. Devia pertencer a uma rica família da nobreza provincial, talvez oriunda da gens Valeria romana, pois seu pai possuía uma uilla na península de Sírmio (cf. c. 31), e tinha relações de amizade e de hospitalidade com Júlio César. O próprio poeta, ao mudar-se para Roma, residia numa uilla situada entre Tívoli e Sabina (cf. c. 68, 34 - 35: hoc fit, quod Romae uiuimus; illa domus, /illa mihi sedes, illic mea carpitur aetas; - em Roma vivo: aí é minha casa, aí , minha morada, aí desfruto a vida e cf. c. 44: O funde noster seu Sabine seu Tiburs, - O sítio meu , Sabino ou Tiburtino). Com relação à sua cidade natal, o poeta fala dela com certa tristeza:
<br />Quare, quod scribis Veronae turpe Catullo
<br />esse quod hic quisquis de meliore nota
<br />frigida deserto tepefactat membra cubili,
<br />id, mi Alli, non est turpe, magis miserum est.
<br />(c. 68, 27 - 30)
<br />quando então dizes, Álio, "é tolice, Catulo,
<br />ficares em Verona, que um Romano
<br />já esquenta o frio dos pés no leito que deixaste",
<br />isto não é tolice, mas tristeza.
<br />Em Roma, Catulo se ligou a um círculo de poetas de ideais estéticos comuns. Cícero, no entanto, não se simpatizava com esta escola literária e a chamava de poetae noui, dando a esta expressão um certo matiz pejorativo. Catulo, respondendo a este insulto, escreve os poemas 44 e 49, agradecendo a Cícero o fato de ter lhe deixado o lugar livre para amar Lésbia, suposta amante do orador.
<br />Disertissime Romuli nepotum,
<br />quot sunt quotque fuere, Marce Tulli,
<br />quotque post aliis erunt in annis,
<br />gratias tibi maximas Catullus
<br />agit pessimus omnium poeta,
<br />tanto pessimus omnium poeta
<br />quanto tu optimus omnium patronus.
<br />(49, 1 - 7)
<br />Ó tu mais loquaz dos filhos de Rômulo,
<br />de quantos são e quantos foram, Cícero,
<br />e de quantos hão de ser no futuro,
<br />um muito obrigado te diz Catulo-
<br />o pior dentre todos os poetas-
<br />tanto pior de todos os poetas
<br />quanto tu o melhor dos defensores.
<br />O poeta, em sua obra, mostra a urbanidade da época ciceroniana em franca transformação no plano moral, político e artístico e desejava que os seus poemas durassem por mais de um século (c. 1, 10: plus uno maneat peremne saeclo - que viva, ó deusa virgem, mais de um século).
<br />Os momentos políticos apresentados no Liber são a marca do cruzamento entre a cidade ideal, desejada pelo poeta, e a outra cidade do poder real, da riqueza, da guerra, das conquistas e conflitos.
<br />Para Catulo, a verdadeira cidade devia assentar-se na sodalitas dos amigos, com suas leis, amizades e inimizades.
<br />O poeta, no entanto, coloca diante de si uma mulher pública, envolvida com a política da época, chamada por ele de Lésbia, conforme os cânones da poesia alexandrina.
<br />Lésbia será o centro do universo poético preconizado pelo poeta, o qual também pertenciam os seus amigos.
<br />A paixão imedida de Catulo levou-o a uma vida agitada, dissoluta, envolvida por tantas paixões e contrastes, terminando por arruinar-lhe a saúde e lhe trazendo a morte quando contava com apenas 30 anos.
<br />QUEM FOI LÉSBIA?
<br />Lésbia (Clódia) foi mulher de Quintus Metellus Celer, filha de Appius Claudius Pulcher. Lésbia era um falsum nomen, segundo Ovídio.
<br />Sic sua lasciuo cantata est saepe Catullo
<br />Femina cui falsum Lesbia nomen erat.
<br />(Tristes II, 427-428)
<br />Assim foi freqüentemente celebrada em versos pelo lascivo Catulo
<br />A mulher cujo pseudônimo era Lésbia.
<br />Não foi difícil tirar tal conclusão, tendo em vista a admiração do poeta pela poetisa de Lesbos - Safo. Além disso, Apuleio (séc. I d.C.) diz que Lésbia é Clódia, pois os poetas elegíacos escolhiam um pseudônimo que tivesse o número de letras igual ao do nome verdadeiro, conforme os cânones da poesia alexandrina (Lesbia/Clodia).
<br />Eodem igitur opera accusent C.Catullum
<br />Quod Lesbiam pro Clodia nominarit.
<br />(Apologia 10)
<br />A Lésbia dos poemas catulianos, pesava-lhe a suspeita de ter causado a morte de seu marido e que, após se tornar viúva, se amantizara com Caelus Rufus (cf. c. 77), pondo de lado Catulo, amante que tivera durante a vida com o marido.
<br />Rufe, mihi frustra ac nequiquam credite amice,
<br />(v.1)
<br />Rufo!, que à toa e em vão pensei ser meu amigo
<br />O romance estabelecido entre o poeta e Clódia é a fonte de inspiração de toda a arte catuliana.
<br />Segundo estudos críticos, talvez a relação amorosa do poeta tenha começado por volta de 61-60, em Verona, época em que o marido de Clódia era governador da Gália Cisalpina.
<br />O primeiro encontro do poeta com essa patrícia, muito mais velha do que ele, deu-se no banquete de Lucullus, personagem do poema 4, no ano 63.
<br />O poema 68 fala-nos de alguns encontros furtivos proporcionados na casa de um amigo comum, situação freqüente nas classes superiores.
<br />isque domum nobis isque dedit dominam,
<br />atque ubi communes exerceremus amores.
<br />(v.68-69)
<br />me deu morada e deu-me à sua dona,
<br />e lá comuns nós praticávamos amores.
<br />Ainda, neste mesmo poema (v.135-136), Catulo constata a sua impossibilidade de ter uma Lésbia virtuosa (Quae tamenetsi uno non est contenta Catullo, / rara uerecundae furta feremus erae - Embora ela não se contente só com Catulo,/ as raras infidelidades de uma senhora discreta suportaremos) e tenta suportar a sua dor com a própria autoestima (cf. c. 76, 25-26: ipse ualere opto est taetrum hunc deponere morbum/ O dei, reddite mi hoc pro pietate mea - Quero estar bem, deixar esta dor ruim. Deuses!/ Isto me dai por minha piedade).
<br />Como todos os poetas líricos, Catulo identifica-se perfeitamente com a tríade amor, mulher e poesia. A formosura de sua amada foi a todo momento celebrada, a ponto de comparar Cibele e Quíntia com Lésbia, pois o encanto físico foi determinante no seu amor (cf. c.51).
<br />...et enum uenuste
<br />magno Caecilio incohata mater.
<br />(c.35, 17-18)
<br />...bela está
<br />Cibele em versos de Cecílio, grande
<br />Quintia formosa est multis, mihi candida, longa,
<br />recta est. Haec ego sic singula confiteor
<br />(c.86, 1-2)
<br />Para muitos Quíntia é bela, para mim é
<br />clara, esguia, bem feita; isto eu aceito.
<br />No entanto, a beleza de tais mulheres não são comparáveis à beleza de sua Lésbia.
<br />Lesbia formosa est, quae cum pulcerrima tota est,
<br />tum omnibus una omnis subripuit ueneres
<br />(c.86, 5-6)
<br />Lésbia sim é linda: toda belíssima,
<br />só ela a todas roubou toda a graça.
<br />O AMOR EM ROMA
<br />Em Roma, os antigos romanos consideravam o amor como uma loucura ou um delírio passageiro. A paixão amorosa era uma doença. Isto porque a paixão alienava a vontade própria e tornava o ser apaixonado dependente de outra pessoa. Sob o domínio da paixão, o homem perde seu poder, escraviza-se e aliena-se.
<br />Confiava-se à mulher (matrona) a responsabilidade da fecundidade, pois a mesma encarnava os ideais de segurança, estabilidade, permanência e perpetuação da raça, além de gozar na domus uma veneração tal qual à dedicada publicamente a Vênus.
<br />As Matronalia, celebração das mulheres casadas, e a Bona Dea remetem-nos aos ritos de fecundidade da Roma antiga. Estamos diante de uma sociedade viril, em que o caráter religioso da fecundidade está baseado na união mulher e homem. O amor conjugal é visto essencialmente numa perspectiva do "amor fecundo", ou seja, o homem ao desposar uma mulher vai naturalmente torná-la mãe. Daí haver uma preocupação, por parte do homem romano, de proteger as suas esposas das paixões ou outras forças maléficas que pudessem comprometer a estabilidade amorosa.
<br />O amor, como sentimento fundado no desejo carnal, foi uma situação social menosprezada pelos costumes romanos.
<br />A relação conjugal estava baseada na fides do matrimonium, ou seja, na lealdade da mulher ao marido, já que este podia lançar mão das cortesãs, instrumentos do prazer, cuja feminilidade, em princípio, fora profanada.
<br />A partir dos meados do século II a.C., com a influência do helenismo e a evolução dos costumes sociais romanos, vinculados ao enfraquecimento da patria potestas, a relação afetiva entre homem e mulher foi se libertando dos tabus e imposições tradicionais, levando a mulher a uma emancipação progressiva na vida social.
<br />No entanto, a conquista da dignidade da mulher conduziu os romanos ao reconhecimento consciente do verdadeiro amor conjugal e ao depuramento do verdadeiro sentido do amor como fonte de vida espiritual, graças à ascese cristã.
<br />Assim, no tempo de Adriano (117-138 d.C.), as núpcias não eram mais realizadas pelo constrangimento, ou seja, com a intenção de aproximar as gens, ou como nos finais da república, por interesses políticos ou econômicos, mas sim, com o consentimento dos noivos. Nesse contexto, o amor paternal ganha novas dimensões, pois até Cícero já apontara a família como a comunidade natural mais apropriada para proporcionar a benevolência recíproca e a caridade (cf. De Officis I, 17, 54).
<br />A partir dos finais da República, a proliferação do divórcio antecipa a problemática do casamento e do amor conjugal.
<br />Dentro desse contexto social, Catulo é o verdadeiro protótipo do jovem aristocrata provinciano, que chega à urbe e se enamora por uma mulher pertencente a outrem. E, o nascimento desta paixão faz com que o poeta se torne um "escravo" da amante que irá nortear e dar vida a toda sua obra.
<br />Catulo foi um dos poetas latinos que mais cultivou a amizade, ao lado do amor, sendo estes temas de inspiração artística, desenvolvidos conforme a tradição grega: amizades vivas, porém acidentadas por rivalidades e traições.
<br />Dos 116 poemas do Liber, 68 referem-se a amizades e inimizades de personagens do relacionamento do poeta. Um dos seus confidentes foi Cornifício, ao qual Catulo lhe expressa a dor que perpassa a sua alma devido às infidelidades de sua amada Lésbia e chega a lhe pedir uma palavra de consolo. Já Alfeno Varo é um dos seus falsos amigos, pois lhe rouba a amada.
<br />Malest, Cornifici, tuo Catullo,
<br />malest, me hercule, est laboriose,
<br />et magis magis in dies et horas,
<br />quem tu, quod minimum facillimumque est,
<br />qua solatus est allocutione?
<br />Irascor tibi. Sic meos amores?
<br />Paulum quid lubet allocutionis,
<br />maestius lacrimis Somonideis.
<br />(c.38)
<br />Vai mal, Cornifício, o teu Catulo,
<br />vai mal e - por Hércules -, padece demais, muito
<br />mais, a cada dia, a cada hora.
<br />E tu - se era nuga, se era nada -
<br />que consolo deste, que palavras?
<br />Sinto ódio. Assim, és meus amores?
<br />Só poucas palavras, certas, mais
<br />tristes que o lamento de Simônides.
<br />Varus me meus ad suos amores
<br />uisum duxerat e foro otiosum.
<br />(c.10, 1-2)
<br />Varo, para que eu visse seus amores,
<br />de meu ócio no fórum me levou.
<br />As inimizades de Catulo tiveram motivações diversas: quer por ter sido vencido na competição amorosa, quer por rivalidade poética, quer pelo menosprezo com que os seus contemporâneos olharam a sua produção literária.
<br />Palavras como amicus, amicitia e sodalis vão ocorrer freqüentemente nos versos de Catulo. Em seus poemas:
<br />sente saudades e propõe encontros ao poeta Cecílio;
<br />Poetae tenero, meo sodali
<br />uelim Caecilio, papyre, dicas
<br />Veronam ueniat, Noui relinquens
<br />Comi moenia Lariumque litus;
<br />nam quasdam uolo cogitationes
<br />amici occipiat sui meique.
<br />(c.35, 1-6)
<br />A Cecílio - poeta de ternuras,
<br />meu companheiro - peço, ó papel, digas
<br />venha a Verona, atrás deixando os muros
<br />da Nova Como e o litoral do Lário,
<br />pois algumas idéias de um amigo
<br />meu e dele também desejo que ouça.
<br />.reconhece e agradece os serviços prestados por Mânlio e Álio;
<br />Non possum reticere, deae, qua me Allius in re
<br />uuerit aut quantis iuuerit officius,
<br />(c.68, 41-42)
<br />Não posso calar, deusas, como Álio ajudou-me,
<br />ou com quantos favores me ajudou.
<br />diz que é perigoso mostrar-se humano.
<br />Desine de quoquam quicquam bene uelle mereri
<br />aut aliquem fieri posse putare puim.
<br />Omnia sunt ingrata, nihil fecisse benigne
<br />prodest, immo etiam taedet obestque magis,
<br />ut mihi, quem nemo grauuius nec acerbius urget
<br />quam modo qui me unum atque unicum amicum habuit.
<br />(c.73)
<br />Desiste de esperar de alguém alguma coisa
<br />ou crer que alguém será reconhecido.
<br />É tudo ingratidão, em nada é bom ter feito o
<br />bem, não!, dá tédio, mais: faz mal qual fez
<br />comigo, a quem ninguém mais grave e fundo fere
<br />que quem só eu de amigo teve o único.
<br />Segundo o ideal romano, deslealdade e traição são os terríveis estigmas da amizade e do amor.
<br />O CONCEITO DE AMOR EM CATULO
<br />Catulo não foi o único poeta a transgredir o código moral do casamento. A sua afeição e o seu sentimento amoroso por Lésbia começaram pelo olhar (cf. c.51), pois a imagem da mulher amada constitui-se na força avassaladora que o toca profundamente e arrebata os seus sentidos.
<br />...nam simul te,
<br />Lesbia, aspexi, nihil est super mi
<br />(c.51, 6-7)
<br />...pois uma vez
<br />que te vi, Lésbia, nada em mim sobrou
<br />No poema 5, temos a evolução do pensamento do poeta no que diz respeito a sua vivência no amor, àquela equivalente à do amor livre. Notamos, porém, que a sua visão de mundo era completamente diferente da amada. Daí seus constantes desentendimentos com Lésbia.
<br />Lésbia prometeu a Catulo um amorem iucundum perpetuumque - amor delicioso e perpétuo. No entanto, o poeta não se contenta e suplica aos deuses para que as palavras de Lésbia sejam sinceras ao ponto de elevar este amor a um aeternum foedus amicitiae - um pacto recíproco de afeição.
<br />Viuamos, mea Lesbia, atque amemus,
<br />rumoresque senum seueriorum
<br />omnes unius aestimamus assis.
<br />(c.5, 1-3)
<br />Vamos viver, minha Lésbia, e amar,
<br />e aos rumores dos velhos mais severos,
<br />a todos, voz nem vez vamos dar.
<br />Iocundum, mea uita, mihi proponis amorem
<br />hunc nostrum inter nos perpetuumque fore.
<br />Dei magni, facite ut uere promittere possit,
<br />atque id sincere dicat et ex animo,
<br />ut liceat nobis tota perducere uita
<br />aeternum hoc sanctae foedus amicitiae.
<br />(c.109, 1-6)
<br />Minha vida!, me dizes que este nosso amor
<br />será feliz aos dois, será eterno.
<br />Deuses grandes, fazei que prometa a verdade,
<br />que sincera e de coração o diga
<br />e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
<br />este pacto viver de amor sagrado.
<br />Em alguns de seus poemas (3, 5, 7, 36, 43, 83, 86, 92 e 107), Catulo deixa transparecer a sua felicidade ao lado de Lésbia. No entanto, com o passar do tempo, o poeta percebe que o sentido do amor para sua amada é diferente do seu.
<br />No poema 87, o poeta mostra que o seu amor é verdadeiro, permanente e leal, afirmando que nenhuma mulher foi tão sinceramente amada como a sua Lésbia.
<br />Nulla potest mulier tantum se dicere amatam
<br />uere, quantum a me Lesbia amata mea es.
<br />Nulla fides nullo fuit umquam foedere tanta,
<br />quanta in amore tuo ex parte reperta mea est.
<br />(v.1-4)
<br />Mulher alguma pode se dizer bastante
<br />amada quanto amada é por mim Lésbia.
<br />Em pacto algum jamais houve tanta confiança
<br />quanto a que em mim se viu em teu amor.
<br />No entanto, o conflito emocional e poético torna-se mais acentuado quando as infidelidades de Lésbia são ainda mais notórias.
<br />Nota-se, através dos poemas 72 e 109, que os dois amantes caminham em sentidos opostos do amor, a ponto de Lésbia afirmar que Catulo só ama a si mesmo. Lésbia, porém, deixa transparecer o seu amor material, o mais convencional da esfera física. E o poeta afirma que:
<br />Dilexi tum te non tantum ut uulgus amicam,
<br />sed pater ut gnatos diligit et generos.
<br />(c.72, 3-4)
<br />Então te quis, não como o povo quer amantes
<br />Mas como um pai os filhos quer e os genros.
<br />Ut liceat nobis tota perducere uita
<br />aeternum hoco sanctae foedus amicitiae.
<br />(c.109, 5-6)
<br />e que nos seja dado, a vida inteira, sempre
<br />este pacto viver de amor sagrado.
<br />Tais poemas constituem um dos exemplos mais claros do amor sem intenção sensual.
<br />Ainda no poema 72 (v.7-8), o poeta faz uma análise dos seus próprios sentimentos - Qui potis est? - Como é possível? Há um sobressalto emocional. E, no poema 76, o poeta afirma que
<br />Difficile est longum subito deponere amorem
<br />Difficile est, uerum hoc aua lubet efficias.
<br />(v.13-14)
<br />Difícil é deixar súbito um longo amor.
<br />É difícil, mas tenta como podes.
<br />Já no poema 85, o amor é expresso no paradoxo odi e amo. E, no segundo verso, com a palavra excrucior ( palavra que significa "submeter ao castigo da cruz", pena reservada apenas para os escravos e, por isso, considerada infame), o poeta apresenta um desespero, um tormento acompanhado de sentimentos de culpa por ter alimentado ao longo dos anos um amor vão.
<br />Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris.
<br />Nescio, sed fieri sentio et excrucior.
<br />(v.1-2)
<br />Odeio e amo. Talvez queiras saber "como?"
<br />Não sei. Só sei que sinto e crucifico-me.
<br />Para Catulo, a felicidade do amor se realiza quando os seres "amam e são amados com igual ardor".
<br />Mutuis animis amant, amantur.
<br />(c.45, 20)
<br />com mútuas almas amam-se um ao outro.
<br />Segundo Catulo, através do matrimonium, o homem e a mulher devem ser o exemplo de fraternidade universal. E, em seu poema 62, exorta a que se valorize o casamento, pois o casamento feliz, fundado no amor, é exigente.
<br />Et tu nei pugna cum tali coniuge, uirgo.
<br />Non aequom est pugnare, pater cui tradidit ipse,
<br />(c.62, 59-60)
<br />E com marido assim não lutes, noiva, é injusto
<br />lutares contra aquele a quem te deu teu pai,
<br />Lésbia nega-se ao casamento porque renuncia ao verdadeiro amor conjugal. E isto leva Catulo a uma situação de tortura em relação ao comportamento da amada que foge do aperfeiçoamento amoroso.
<br />Miser Catulle, desinas ineptire,
<br />et quod uides perisse perditum ducas.
<br />............................................................
<br />Nunc iam illa non uolt; tu quoque, inpotens, noli,
<br />nec quae fugit sectare, nec miser uiue,
<br />sed obstinata mente perfer, obdura.
<br />Vale, puella. Iam Catullus obdurat,
<br />...........................................................
<br />Scelesta, uae te; quae tibi manet uita!
<br />...........................................................
<br />At tu, Catulle, destinatus obdura.
<br />(8, 1-2; 9-12; 15; 19)
<br />Infeliz Catulo, deixa de loucura,
<br />e o que pereceu considera perdido.
<br />.......................................................
<br />Agora ela não quer: tu, louco, não queiras
<br />nem busques quem foge nem vivas aflito,
<br />porém duramente suporta, resiste.
<br />Vai, menina, adeus, Catulo já resiste,
<br />..........................................................
<br />Ai de ti, maldita, que vida te resta?
<br />..........................................................
<br />Mas tu, Catulo, resoluto, resiste.
<br />Finalmente, no poema 68, Catulo lamenta a sua infelicidade pela perda de dois seres amados: Lésbia e o irmão.
<br />Multa satis lusi; non est dea nescia nostri,
<br />quae dulcem curis miscet amaritiem;
<br />............................................................
<br />... O misero frater adempte mihi,
<br />tu mea tu moriens fregisti commoda, frater,
<br />tecum una tota est nostra sepulta domus,
<br />omnia tecum una perierunt gaudia nostra,
<br />quae tuus in uita dulcis alebat amor.
<br />(c.68, 17-18; 20-24)
<br />muito me diverti com versos, nem me esquece
<br />a deusa que ata doce e amaro a amor:
<br />................................................................
<br />(eu, mísero), ah irmão!, de mim roubado,
<br />tu, irmão, ao morrer, partiste minha calma,
<br />contigo nossa casa está enterrada,
<br />contigo foi-se embora, vã, nossa alegria
<br />que em vida teu gentil amor nutria.
<br />O Liber catuliano apresenta o percurso moral de Lésbia, denunciando a degenerescência de um mundo de valores consagrados pela tradição clássica. Isto porque Clódia, viúva de Metelo, poderia tornar-se a casar. Mas a decadência da nobilis Claudia/Clodia é tanto política quanto moral e a relação de Catulo com Lésbia se enquadra também no clima de depravação moral que pairava na urbe romana.
<br />A poesia de Catulo é uma manifestação da Roma ancestral que se opõe ao homem do seu tempo, imerso na libertinagem, na cobiça e no crime.
<br />Lésbia, mulher amada pelo poeta e musa dos seus poemas, esbarra com o ideal da relação amorosa desejada por Catulo e, ainda, com aquela que prega o amor matrimonialis.
<br />Muitos acontecimentos como: o amor ingrato, a morte do irmão, o abandono dos amigos, levaram o poeta a uma progressiva reflexão.
<br />Omnia sunt ingrata, nihil fecisse benigne
<br />prodest, immo etiam taedet obestque magis,
<br />(c.73, 3-4)
<br />É tudo ingratidão, em nada é bom ter feito o
<br />bem, não!, dá tédio, mais: faz mal qual fez
<br />comigo,...
<br />A Lésbia da poesia catuliana é a personificação da Clódia Metelo, protótipo as mulheres dos fins da República, desejosa de prazer, sendo mais importante a busca do amor carnal que conduz à depravação dos costumes do que o dever prescrito pela moral institucional do casamento.
<br />Frontem tabernae sopionibus scribam.
<br />Puella nam mei, quae meo sinu fugit,
<br />amata tantum quantum amabitur nulla,
<br />pro qua mihi sunt magna bella pugnata,
<br />consedit istic. Hanc boni beatique
<br />omnes amatis, et quidem, quod indignum est,
<br />(c.37, 10-15)
<br />nessa taberna vou grafar grafitos
<br />pois a menina, que a meu peito foge,
<br />amada quanto ninguém mais será
<br />por quem tão grandes guerras já pugnei,
<br />senta-se aí. E ela, ledos, lestos,
<br />todos amais, é certo, e o que é indigno,
<br />No entanto, o poeta tenta reabilitar a dignidade do matrimonium e da família, comprometidos pela perversão moral e pelo menosprezo à fides e à pietas.
<br />Catulo, portanto, é um aprendiz do amor, que vai refletindo sobre a sua condição de amante traído, de sua relação frustrada (cf. c.8 e 58) e tenta superar tal situação, clamando aos deuses para aliviarem a sua alma torturada.
<br />O dei, si uestrum est misereri, aut si quibus unquam
<br />extremam iam ipsa in morte tulistis opem,
<br />me miserum aspicite et, si uitam puriter egi,
<br />eripite hanc pestem perniciemque mihi,
<br />..........................................................................
<br />ipse ualere opto et taetrum hunc deponere morbum.
<br />O dei, reddite mi hoc pro pietate mea.
<br />(c.76, 17-20; 25-26)
<br />Ó deuses, se é de vós ter pena ou se já a alguém
<br />último auxílio destes na sua morte,
<br />olhai-me triste e se uma vida levei pura,
<br />arrancai-me esta peste e perdição
<br />...........................................................
<br />Quero estar bem, deixar esta dor ruim. Deuses!
<br />Isto me daí por minha piedade.
<br />Podemos considerar os poemas 51 e 52 como uma espécie de epitáfio à vida sentimental do poeta. A lição que o poeta nos passa é que o otium lhe foi prejudicial, pois ele deixou a carreira política para dedicar-se ao amor e, agora, está longe do amor de Lésbia e vê Nônio sentado na cadeira curul e Vatínio perjurado pelo consulado.
<br />Otium, Catulle, tibi molestum est.
<br />(c.51, 13)
<br />O ócio, Catulo, te faz tanto mal.
<br />Quid est, Catulle? Quid moraris emori?
<br />Sella in curulei struma Nonius sedet,
<br />per consulatum perierat Vatinius;
<br />qui est, Catulle? Quid moraris emori?
<br />(c.52, 1-4)
<br />Eh, Catulo, por que demoras em morrer?
<br />Nônio, escrófula, ocupa o assento curul,
<br />Vatínio jura, por um falso consulado:
<br />por que Catulo tu demoras em morrer?
<br />Finalmente, perdido tudo, resta-lhe esperar apenas pela morte enquanto Lésbia se diverte com os seus amantes (cf. c.11).
<br />Cum suis uiuat ualeatque moechis,
<br />quos simul complexa tenet trecentos
<br />nullum amans uere, sed identidem omnium
<br />ilia rumpens;
<br />nec meum respectet, ut ante, amorem,
<br />qui illius culpa cecidit uelut prati
<br />ultimi flos, praetereunte postquam
<br />tactus aratro est.
<br />(v.17-24)
<br />Vá viver e gozar com seus amantes,
<br />que, juntos, uns trezentos ela agarra
<br />nenhum de fato amando mas os membros
<br />rompendo em todos
<br />e não se volte mais ao meu amor
<br />que caiu por sua culpa como a flor
<br />do último prado, em que, passando, o arado
<br />então tocou.
<br />CONCLUSÃO
<br />Esta análise nos faz concluir que o Liber de Catulo se organiza em torno da temática central do amor.
<br />Nos poemas amorosos de Catulo, podemos distinguir dois ciclos: um ciclo em que o poeta fala dos felizes momentos amorosos, e um outro relativo à cisão, reflexões do poeta e rompimento final, após o seu desencanto pela mulher amada.
<br />Catulo foi o poeta latino que, com mais sinceridade e verdade, expressou o sentimento amoroso, através de uma linguagem extremamente metafórica. Suas composições receberam grande influência de Arquíloco e Safo.
<br />Lésbia foi a inspiração dos poemas catulianos. Famosa por seus deleites amorosos, Lésbia, pseudônimo de Clódia, mulher do cônsul Metelus Celer, do ano 60, despertou no poeta uma paixão ardente que o fez sofrer muito, levando-o até mesmo a travar uma guerra sentimental. E, o próprio poeta, em seus poemas afirma que Difficile est longum subito deponere amore (c.76,13) - é difícil abandonar subitamente um longo amor e ...quam Catullus uanm/ plus quam se atque suos amauit omnes (c.58, 2-3) - aquela, única que Catulo amou mais que a si e todos os seus. Além de declarar a sua paixão pela musa sedutora, o poeta também ataca os amantes da amada e a vida dissoluta que caíra.
<br />Catulo quis praticamente assentar a sua relação com Lésbia, no entanto, a pietas, a fides, o hospitis officium, o sanctum foedus e o bene uelle foram todos traídos.
<br />Da leitura do Liber catuliano, podemos inferir que o poeta aspirava o amor do matrimonium, um amor que considera o outro um complemento positivo do seu próprio ser. No entanto, tanto Catulo quanto Lésbia não se descobrem verdadeiramente: amam e são amados de maneira diferente.
<br />REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
<br />CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1985.
<br />CARCOPINO, Jerôme. Roma no apogeu do Império. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. (A vida cotidiana)
<br />CATULO. O cancioneiro de Lésbia. Tradução de Paulo Sérgio de Vasconcellos. São Paulo: Hucitec, 1991.
<br />CATULO. O Livro de Catulo. Tradução comentada dos poemas de Catulo por João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. (Texto e arte; 13)
<br />CARVALHO, Luiz Carlos S.M. de. O lirismo em Roma: de Catulo a Ovídio. In: Poesia sempre. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n.83, p.21-32, outubro/dezembro 1985.
<br />GRIMAL, Pierre. A civilização romana. Lisboa: Edições 70, 1988.
<br />PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Tradução de Manuel Losa, S.J. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
<br />SALENGUE, Jacyára Ribeiro. Catulo: as faces/fases do amor. In: Calíope. Revista do Departamento de Letras Clássicas/Faculdade de Letras, UFRJ, Rio de Janeiro, ano 2, n.3, p.57-69, julho/dezembro 1985.
<br />Fonte: http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno12-16.html
<br />
<br />Enfim, todo Catulo à disposição do leitor brasileiro
<br />Paulo Sérgio de Vasconcellos
<br />(Acerca do Livro editado pela EDUSP, O Livro de Catulo, 1996)
<br />Na época de Cícero, quando a República romana se aproximava de seu fim, um grupo de jovens poetas, quase todos da Gália cisalpina, hoje norte da Itália, provocaria verdadeira revolução nas letras latinas, praticando um novo ideal de poesia muito distante dos preceitos da velha tradição. Até então, apesar de um que outro esporádico prenúncio de mudança nas gerações imediatamente precedentes, a literatura que gozava de consideração e reconhecimento oficial era a que tinha, sob o ponto de vista do Estado, alguma utilidade prática, alguma preocupação moralizante. Venerava-se, sobretudo, a epopéia de Ênio, poeta que recebera o título de "pai" das letras latinas e cantara as proezas dos antepassados. Até o surgimento da Eneida de Virgílio, na época de Augusto, os Anais de Ênio o consagrariamcomo o Homero romano e se canonizariam como o modelo da literatura "séria". Cícero, que na juventude manifestara em seus poemas tendências semelhantes às que se verão nos novos poetas, paradoxalmente expressaria um soberbo desprezo por essa geração de escritores, que ele, contrastando-os com o "exemplar" Ênio, apelidou de "poetas novos", "poetas modernos" (1), com expressões de indisfarçável tom depreciativo.
<br />Da produção desse grupo de enfants terribles só nos resta a obra do maior deles, o veronês Gaio Valério Catulo, que deixou uma coletânea de cerca de cento e dezesseis poemas, lidos, traduzidos, recriados, musicados, encenados, em suma, estimados e influentes, através dos séculos, com a exceção de certo eclipse durante a Idade Média. Totalmente justificável, pois, que Harold Bloom o tenha acolhido no seu, por outros aspectos discutível, cânone ocidental (2).
<br />E que grande novidade traziam esses poetas que incomodavam os mais ciosos de uma tradição visivelmente esclerosada em obras sem viço? Sobretudo, a concepção de que a finalidade da poesia não se subordina a compromissos morais de espécie alguma, mas e, acima de tudo, o prazer estético que proporciona uma obra de arte elaborada e graciosa, burilada sem parecer artificial, cuidadosamente trabalhada mas plena de vida.
<br />Não lhes interessavam os grandes temas da história nem os da lenda e da mitologia já tratados à exaustão; quando incursionavam pelo domínio da fábula, elegiam histórias pouco conhecidas ou aspectos mais obscuros de um mito conhecido, muitas vezes se comprazendo em alusões sutis que podiam beirar o enigmático. Na verdade, qualquer matéria do dia-a-dia, se transfigurada pela criação poética, parecia-lhes digna: um convite para jantar, uma ameaça a alguém que, achando tal ato divertido, surrupiou um lenço ao poeta, o lamento pela morte da avezinha de estimação da amada, sobretudo a vida sentimental, da amizade à paixão amorosa, que, para os antigos, sempre escraviza. Poesia de circunstância, em suma, que teria escandalizado, como fruto estéril de fútil ócio, a um Catão, o Censor...
<br />Imbuída de estética alexandrina (Calímaco é, aqui, o mestre supremo), a geração de Catulo aperfeiçoaria como nunca antes a técnica do verso latino, que teria seu ápice com Virgílio e Horácio, poetas diversos daqueles predecessores, sobretudo por reafirmarem o compromisso ético da poesia, revalorizando a figura do poeta como "vate" (3), inspirado portador de valores importantes para a comunidade ¬ mas sumamente devedores, com seu rigor formal (o labor limae) e suas técnicas alusivas, do ideal calimaquiano difundido pelos pioneiros.
<br />O leitor brasileiro conta, agora, com uma boa edição completa dos poemas de Catulo, precedida de introdução que apresenta ao leitor as principais questões discutidas hoje sobre a poesia subjetiva, não apenas latina (a persona poética, a não confundir com o autor de carne e osso, como o próprio Catulo explicita num poema, o de número 16; as relações intertextuais na lírica; as questões de filiação genérica), e seguida de notas na medida certa, que esclarecem o leitor leigo sem deixar de trazer informações e reflexões de relevo também para os já iniciados na literatura da Antigüidade.
<br />No aforismo 83 de seu A Gaia Ciência, Nietzsche afirma que cada época revela seu sentido histórico pelo modo como traduz as obras do passado; no desenvolvimento dessa idéia, aprecia as relações dos poetas latinos com os gregos (que eles retomaram, traduzindo e recriando) como uma espécie de apropriação imbuída do espírito mesmo do império romano. Essa última afirmação é, no mínimo, bastante discutível, por não tocar a essência do processo alusivo da maior parte da poesia latina clássica, que não "raspa", absolutamente, o nome do criador grego, como pretende o filósofo (4), mas, pelo contrário, tece com sua obra as mais variadas relações de um diálogo criador de sentidos, incitando o leitor a ter sempre em mente suas "fontes". Não posso me deter aqui para aprofundar a discussão sobre esse aforismo interessante, mas faço uso de suas primeiras palavras para iniciar meu comentário a respeito do nosso (isto é, no Brasil de hoje) modo de traduzir os textos clássicos.
<br />É notável, aliás, como o mercado editorial brasileiro para essas publicações vem crescendo nos últimos anos, certamente muito longe da exuberância dos anos anteriores à retirada do latim dos cursos de primeiro e segundo grau, mas pouco a pouco se distanciando da pobreza desoladora de algumas décadas atrás. Essa expansão mais ainda nos incita a refletir sobre o modo como temos traduzido os clássicos greco-latinos.
<br />Em nosso país, com raras exceções, há pletora de traduções acadêmicas, que têm seu papel de divulgação, como parece ser mais reconhecido em outros países que no Brasil; no entanto, se o trato com a tradição clássica se restringisse a elas, com que perspectiva redutora estaríamos lidando com o passado literário! Não era esse, por certo, o espírito dos próprios gregos e romanos, que, da tradução mais ou menos criativa à recriação crítica dos predecessores, mantinham um vivo e rico diálogo, de releituras e "desleituras" (como se tem traduzido a noção de misreading difundida por Bloom) (5) de um autor por outro (6), sem pretensões românticas de utópica originalidade e sem escrúpulos acadêmicos que desfiguram o espírito de uma obra sob pretexto de preservar a letra dos textos. Em país de escassíssimo espaço para os estudos clássicos, vemos uma desalentadora falta de criadores que, em face dos textos greco-latinos, mobilizam sua competência artística para recriar a ossatura fônica, rítmica, sintática de obras que sem esses elementos nada periféricos se tornam letra quase morta, triste "poesia" rígida como um fóssil... No trato criativo com o original, as nuanças vão da tradução que se propõe como verdadeiro texto, sem o complexo de inferioridade que os antigos jamais tiveram, à recriação; não há meio mais eficaz de manter vivas as vozes do passado.
<br />Felizmente, a edição de Catulo que a Edusp coloca à disposição do leitor brasileiro vai muito além da trivial modorra. De fato, logo à leitura das primeiras traduções dos poemas, percebe-se que o encanto e a graça de Catulo não vêm sufocados por escrúpulos acadêmicos. Já de imediato, chama a atenção o bom gosto da edição, digna da importância do poeta e da competência do tradutor.
<br />O professor João Angelo Oliva Neto sabiamente adota padrões métricos para todos os poemas, um desafio que poderia ter resultados catastróficos em mãos inexpertas, mas que é vencido galhardamente por ele. À riqueza métrica de Catulo, diversidade de ritmos na tradução, uma proposta que impõe um labor a mais para o já difícil trabalho, mas que funciona como freio imediato para as facilidades da tradução literal. Desafio espinhoso: se o poeta veronês mostra, sob a aparente facilidade de suas "bagatelas" (nugae, como ele denomina seus poemas, pelo menos os de "circunstância"), uma técnica sutil, decididamente "alexandrina" no seu burilar da forma, o tradutor, sujeito às agruras do padrão métrico regular, precisa evitar toda impressão de artificialidade e manter a vivacidade e a naturalidade aparentes dos poemas "menores", que constituem a maior parte (e a mais estimada, estudada e imitada) do livro de Catulo. Há, sobretudo, o risco de trair o tom coloquial, de conversa colhida ao acaso pelo leitor, de não poucas poesias, pela adoção de uma camisa-de-força métrica que poderia tirar a espontaneidade da dicção do verso português. Abra-se a tradução de João Angelo ao acaso e se verá que geralmente conseguiu evitar tais riscos.
<br />Outro aspecto a salientar foi a "audácia" do tradutor em citar autores vários, antigos e modernos, em sua tradução (até Camões...); longe de torcer o nariz, o "purista" de vistas estreitas deve considerar que era esse mesmo o espírito da arte antiga, alusiva em vários aspectos, sob várias formas intertextual. Ao citar textos que Catulo jamais poderia ter lido, o tradutor abandona a literalidade dos versos, mantendo-se, porém, fidelíssimo ao espírito da arte catuliana, ao encetar, como ele, diálogo com sua tradição literária; por outro lado, deixa visível, sem hipocrisia, que não há modo de dialogar com textos do passado sem a intermediação de uma bagagem cultural outra, sedimentada ao longo dos séculos, em novas vivências sociais e culturais.
<br />Abro um parêntese para exemplificar a diferença que distingue esta tradução de uma "acadêmica"; não pretendo dar qualquer conotação pejorativa ao último termo, que designa uma tarefa que tem seu interesse e seu momento, como espero também demonstrar ¬ mas que não pode servir de pretexto para tolher a outra, obra de criação que faz reviver, para um público mais amplo que o do recinto universitário, um poeta morto há mais de dois mil anos. Abaixo transcrevo uma tradução literal (o mais possível!) do poema 84 de Catulo e, depois de breve comentário, a de João Angelo:
<br />"Árrio dizia chommoda, quando queria commoda
<br />dizer e, ao invés de insidias, hinsidias,
<br />e achava que tinha falado esplendidamente
<br />ao dizer hinsidias o mais que podia.
<br />Assim a mãe, creio, assim o tio liberto,
<br />assim o avô materno e a avó falavam.
<br />Enviado ele à Síria, descansaram os ouvidos de todos:
<br />ouviam pronunciar as mesmas palavras brandamente e suavemente
<br />e não mais temiam palavras assim;
<br />mas eis que de repente chega notícia terrível:
<br />as ondas iônias, depois da chegada de Árrio,
<br />já não eram iônias, mas hiônias".
<br />É um poema célebre, muito citado pelos filólogos e gramáticos por ilustrar um caso de "hiperurbanismo": querendo parecer fino e culto, Árrio coloca aspiração até em palavras em que ela não existia... Uma tradução literal em nossa língua precisará apor uma nota assim; pior: não terá o que fazer com a aspiração de consoantes ou de vogais iniciais referidas no texto original, com os pares contrastados chommoda e commoda, hinsidias e insidias, que nada significam para o leitor leigo, sem contar o "iônias", menos comum que "jônias", em português. Ora, o leitor curioso, por um motivo ou outro, desse fato lingüístico ¬ a aspiração, inicial ou não, na época de Catulo¬, se não domina o latim do original, precisará ler tradução do poema que mantenha os dados referenciais tais quais, isto é, ter com o texto o contato que se tem com um documento; todavia, se esse não é o interesse maior do leitor comum, culto mas não interessado em detalhes filológicos, há que se encontrar outros meios de se criar um texto que se sustente sem notas de rodapé pouco amigáveis.
<br />Que faz João Angelo? Cria um excelente "análogo", precisando, para isso, modificar certos dados referenciais ¬ "traindo" a letra do texto para não trair o espírito, o sal e o encanto de um poema que jamais se pretendeu ser mero exemplo de tratado filológico... Eis sua versão:
<br />"Árrio dizia 'rúbrica' em vez de rubrica
<br />e por pudico 'púdico' dizia
<br />e achava que falava tão incrivelmente
<br />que, se podia, 'púdico' dizia.
<br />Creio que assim a mãe, assim o tio liberto,
<br />assim o avô materno e a avó falavam.
<br />Foi à Hispânia e os ouvidos descansaram todos;
<br />as palavras soavam leves, lindas
<br />e tais palavras nunca mais ninguém temeu.
<br />Súbito chega a hórrida notícia:
<br />os Iberos, depois que Árrio foi para lá,
<br />Iberos já não eram, eram 'Íberos'".
<br />Da tradução literal a uma recriação total, modos vários de tratamento do original que se pretende verter para outra língua são possíveis, mais à esquerda ou à direita. A meu ver, o grande trunfo da tradução de Catulo feita por João Angelo é duplo. Por um lado, sabe evitar as armadilhas da tradução literal, maximamente empobrecedora da ossatura material dos signos da poesia, em sua teia fônica e rítmica. Por outro lado, consegue permanecer muito próximo da letra do original, com a vantagem da concisão e da recuperação quase geral (não nos levem a um erro de avaliação as modificações da tradução mais acima transcrita) dos dados referenciais da cultura da época. Assim, essa tradução não- literal respeita a condição histórica do texto, sua alteridade, como o latinista verifica com facilidade cotejando a versão portuguesa com o texto latino, assim como o leitor leigo identifica também facilmente ao se ver introduzido num mundo que é semelhante e diverso do seu ao mesmo tempo.
<br />De resto, se o tradutor não fosse suficientemente hábil, uma versão "poética" poderia acabar se tornando pior que uma em prosa feita com correção e tato: a montanha pariria um ridículo rato... A um e outro risco, Cila e Caríbdis, João Angelo consegue escapar.
<br />Aqui vão alguns exemplos de felicíssima e inventiva reprodução dos sons e sentidos do original: no poema 3, it per iter vertido como "vai por via"; todo o poema 4, digno de menção à parte; no poema 63, destaco um verso (dentre vários outros dignos de citação) que imita em Catulo o som do tamborim frígio, vertido com a forte harmonia imitativa do original, sem precisar o tradutor se afastar da letra do texto: "quatiensque terga taurei teneris caua digitis" ¬ poema 63, verso 10 ("batendo em cava pele táurea os tenros dedos").
<br />Outro exemplo de hábil resgate da sonoridade do original no poema 64; o cortejo de bacantes que acompanha Dioniso extrai dos instrumentos musicais empunhados música mimetizada pelas aliterações e assonâncias do verso:
<br />"outras batiam tímpanos na palma erguida
<br />ou tiravam tinido agudo ao êneo címbalo.
<br />Muitas sopravam roucos ribombos em cornos
<br />e horrendo trino estridulava a flauta
<br />[bárbara" (v. 261-4).
<br />Efeitos que João Angelo consegue com economia de recursos, sem inflar o original, e permanecendo bastante fiel, além disso, ao sentido literal. E poderíamos continuar citando muitos outros exemplos, em farta colheita.
<br />Nesta ótima edição, porém, um ponto decepcionante é o pouco espaço deixado para o texto original, o que o torna tão diminuto a ponto de ser algo incômoda a sua leitura; como está reproduzido em itálico, distinguindo-se, assim, suficientemente, do texto português sob o ponto de vista da apresentação, por que não lhe dar tamanho maior? É o caso de pensar nisso quando de reedições futuras, que, com certeza, ocorrerão.
<br />De resto, alguns pequenos senões, compreensíveis em obra dessa envergadura. Na página 121, uma reprodução de pintura em vaso que apresenta cena pederástica vem ilustrando o poema 64, com a legenda errônea "Peleu e Tétis". Um detalhe na introdução tão bem feita mereceria uma observação; ao tratar do verso coliambo, o tradutor releva seu uso particular nos poemas 8, 22, 31, 37, 39, 60 (por que não completar a lista, acrescentando os poemas 44 e 59, também em coliambos, como, de resto, se observa em nota?): "a mera presença dessa medida consubstanciava o clima de alegria, ou pilhéria, na 'estória' contida em todos esses poemas, exceto o 8" (p. 60). No entanto, o poema 60 apresenta-nos um problema a resolver, pois é difícil ver nele intenção irônica ou jocosa (nem Fordyce ou De Gubernatis, dois dos maiores estudiosos do poeta, o fazem); se se aceita que a mera presença do metro confere à composição um tom festivo, o poema 60 nos propõe um desafio interpretativo muito maior que o do poema 8 e, por isso, mereceria comentário à parte. Por outro lado, certa tendência a escolher termos portugueses diretamente derivados dos latinos presentes no original (como "nefas") leva, por vezes, a quebrar a coloquialidade que se vinha mantendo em toda a tradução (como no poema 89). Por fim, a peia do metro regular, ou alguma outra motivação, leva, às vezes, a certas alterações bruscas da ordem do original que lhe tiram algo da eficácia expressiva, como no poema V, em que os belíssimos versos 4, 5 e 6 recebem uma ordenação que subtrai ao conjunto o aspecto de bloco temático compacto. Esta, porém, é uma tônica da composição como um todo: grupos de versos nitidamente divisíveis em 3-3-3-4 (estes últimos, em 2-2), um dado de relevo num poema que extrai conotação da ordem, como mostra o quiasmo do último grupo de versos (oração adverbial temporal, oração adverbial final ¬ oração adverbial final, oração adverbial temporal: cum ne ¬ ne cum): provável mimese, no plano sintático, do embaralhar dos beijos após a multiplicação precedente, de ritmo regular, aos mil e cem... Ainda que não se concorde com tal interpretação, a admirável disposição harmônica desse poema, aquilo que os antigos teriam denominado sua concinnitas, salta aos olhos e se impõe como elemento importante a se considerar numa tradução.
<br />Mas o que vai acima são detalhes que nem de longe arranham a certeza de que estamos diante de uma publicação importante, de uma tradução criativa e competente, tão sensível ao ritmo e aos sons como atenta ao universo cultural revelado nos signos do original; em suma, obra de estudioso com a grande virtude de manter o encanto das adoráveis "bagatelas" de Catulo. Com essa publicação, o leitor brasileiro pode finalmente conhecer as várias facetas desse poeta ao mesmo tempo divertido e douto, mordaz e comovente, artífice poderoso do verso que sabe disfarçar sua técnica como ninguém. Quanto ao especialista, ou, ao menos, quem é capaz de ler o latim de Catulo, terá o prazer suplementar de penetrar no diálogo criativo entre tradutor e obra, que, no caso desta tradução, é rico e realmente estimulante.
<br />PAULO SÉRGIO DE VASCONCELLOS é professor de Latim do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e autor de O Cancioneiro de Lésbia (Hucitec).
<br />O Livro de Catulo, tradução, introdução e notas de João Angelo Oliva Neto, São Paulo, Edusp, 1996.
<br />Fonte:
<br />
<br />A poesia de Catulo
<br />Por: Rui Oliveira, Porto, Potugal
<br />
<br />Os poemas que de Catulo que conhecemos foram preservados em vários manuscritos com uma história tortuosa. A partir do sec. XIV, estes manuscritos começaram a ser copiados e estudados pelos humanistas. Neles se recolhe uma antologia de 116 poemas que, formalmente, se dividem, sem qualquer ordem cronológica, em 60 poemas curtos com diferentes metros (1-60), 8 poemas longos (61-68) e 48 epigramas em dísticos elegíacos (69 – 116).
<br />
<br />A poesia de Catulo trata dois grandes temas: a poesia de amor e a poesia satírica (havendo, claro está, muitos poemas que não caiem em qualquer destas duas categorias).
<br />
<br />Nos poemas de amor, sobretudo os de menor extensão, Catulo mostra todo o seu temperamento emotivo, entre o amor exaltado (5) ao ódio maledicente (58), na sua relação com Lésbia. No entanto, Lésbia não tem o exclusivo dos poemas de amor ou eróticos, havendo outros que são dedicados a outras pessoas (homens e mulheres).
<br />
<br />A poesia satírica é, por vezes, extremamente violenta e mesmo obscena, dirigida, entre outros, a ex-amigos, outros amantes de Lésbia, poetas exteriores ao seu grupo, políticos, entre eles, César (93) e Cícero (49) e ainda outras personagens actualmente desconhecidas. Apesar de muitos deles serem violentos e cruéis, outros há em por eles passa uma fina ironia (84).
<br />
<br />Mas, há muitas poesias que não se enquadram nestes dois temas principais. Catulo, por exemplo, celebra, de um modo igualmente exuberante, os seus amigos (13) e companheiros literários (95). São também muito conhecidos os seus poemas em que celebra a casa de campo familiar de Sírmio (31) ou a sentida homenagem ao seu irmão falecido (101)
<br />
<br />Catulo e os poetae noui
<br />
<br />Catulo pertenceu a um grupo de poetas que foi denominado neoteroi ou poetae noui, sendo que, deste grupo, apenas as obras de Catulo chegaram até nós. Esta denominação, feita, por exemplo, por Cícero (Att., 7.2.1) tinha uma conotação negativa, pois no que toca à poesia, Cícero apreciava o muito tradicional Énio (239-169? a.C.).
<br />
<br />Mas em que consistiu a revolução feita pelos poetae noui? Como se disse, o único poeta cuja obra nos chegou foi Catulo. Por isso, é para a sua obra que temos de olhar para tentar definir em que consistiu a sua inovação.
<br />
<br />Não foi certamente Catulo quem introduziu a poesia lírica em Roma, mas foi ele quem lhe deu, definitivamente, as suas lettres de noblesse na cidade. Na sua obra, os poemas líricos, isto é, os poemas curtos e os epigramas distinguem-se bem dos poemas narrativos ou elegíacos. Na maioria dos poemas líricos, Catulo expressa todos os seus amores e desamores, gostos, amizades e inimizades.
<br />
<br />Nestes poemas há uma influência notória de poetas gregos arcaicos como Safo e Arquíloco, por exemplo. Aliás o pseudónimo Lésbia é uma clara homenagem a Safo (que como se sabe era natural da ilha de Lesbos). Estes poetas gregos arcaicos foram imitados Calímaco e outros poetas alexandrinistas e, mais tarde, pelos poetae noui. Catulo introduziu na poesia lírica latina a métrica eólica (que tinha sido utilizada por Safo), embora Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), alguns anos mais tarde, reclame, para si próprio, esse feito (Carmina, 3.30).
<br />
<br />Por outro lado, os poetae noui foram também influenciados pelos poetas alexandrinistas. Quem eram estes alexandrinistas? Eram poetas do período helenístico, não do período clássico da literatura grega, e que tiveram Alexandria como o seu centro de difusão. Entre estes poetas encontramos nomes como Apolónio de Rodes (sec. III a.C.), Teócrito e Calímaco (sec. IV-III a.C.) ou Euforião (III-II a.C.).
<br />
<br />Assim, em Alexandria, sob o reinado dos Ptolomeus, desenvolveu-se uma corrente poética que se formou em oposição aos poetas do período clássico e que renovou os cânones da poesia grega, tanto nas formas como nos temas, acabaram-se a descrição dos feitos de deuses e heróis, e uma grande curiosidade por histórias de mitologia pouco conhecidas ou obscuras. Isto fazia realçar a sua erudição. Estas histórias rebuscadas são vertidas em composições breves, muito trabalhadas. Cultivavam a brevidade e gostavam do pormenor e do perfeccionismo, realçados por novas criações vocabulares.
<br />
<br />No caso de Catulo, entre os seus poemas longos, as suas três elegias (65, 66 e 68) bem como os poemas 63 sobre Attis e 64 sobre as bodas de Tétis e Peleu são directamente inspirados pela escola de Alexandria.
<br />
<br />O legado de Catulo
<br />
<br />Apesar de a sua obra se ter quase perdido e ser quase totalmente desconhecida durante a maior parte da Idade Média, a influência de Catulo foi enorme, para além na influência mais imediata que teve sobre os poetas romanos que lhe sucederam, como é o caso de Horácio ou Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.), por exemplo.
<br />
<br />A originalidade Catulo na paisagem da poesia latina provém, talvez, da franqueza com que fala dos seus estados de alma seja sobre as suas relações pessoais, seja sobre o seu tempestuoso relacionamento com Lésbia. É, como disse Américo da Costa Ramalho “uma das vozes mais genuínas de toda a poesia de Roma”.
<br />Fonte: http://humanaelitterae.blogspot.com/2006/05/catulo-parte-ii.html
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />Júlio César
<br />(Roma, 100 a. C. - idem, 44 a. C.)
<br />Militar e estadista romano. É sobrinho de Mário, um proeminente aristocrata romano que se faz nomear, aos dezassete anos, sacerdote de Júpiter. Perseguido por Sila, refugia-se na Bitínia. Nestas terras asiáticas, inicia-se no ofício das armas. Aquando da morte do ditador, regressa a Roma, participa nas instituições civis e, de seguida, chega a Rodes para aperfeiçoar a sua eloquência. Durante uma destas viagens é sequestrado por piratas, que pedem 20 talentos de resgate; César oferece-lhes 50 e assegura-lhes que de seguida vai acabar com eles; e assim o faz. No ano de 74 a. C. é eleito membro do colégio dos pontífices. É, sucessivamente, tribuno militar, questor e edil. Após a conjura de Catilina é-lhe concedido o governo da Hispânia Ulterior. Carregado de dívidas, pode sair de Roma graças ao seu amigo Creso que lhas paga. No ano de 69 a. C. inicia a sua administração da província hispânica, tornando-a próspera e enriquecendo ele próprio. Ao regressar César da Hispânia, Pompeu regressa da Ásia. Ambos hostilizados com o Senado, formam, com Crasso, o primeiro triunvirato. Contam com o apoio do exército e do povo. No ano de 60 a. C., César é nomeado cônsul. Adopta medidas políticas e administrativas passando por cima do Senado. Nomeado governador da Gália, assenta o seu prestígio militar em longas campanhas bélicas. No ano de 51 a. C., a Gália fica completamente submetida ao poder das legiões romanas. O Senado, assustado com os seus êxitos, seduz Pompeu, encarregando-o da defesa da República. Então César, à frente das suas tropas, atravessa um pequeno rio fronteiriço, o Rubicão, e aproxima-se ameaçadoramente de Roma. Pompeu foge precipitadamente para o Oriente. César, então, dirige-se primeiro à Hispânia, onde vence as forças de Pompeu ali estabelecidas, e, de seguida, ao Oriente. Em Farsalo (48 a. C.) vence definitivamente Pompeu, que perde a vida. César, retido pelos encantos de Cleópatra, fica uma temporada no Egipto. Volta de seguida a Itália, onde vence os adeptos de Pompeu em Thapsus, e combate os filhos de Pompeu na Hispânia, vencendo-os em Munda (Ronda) no ano de 45 a. C.
<br />De volta a Roma recebe as máximas honras e é nomeado ditador vitalício. Carregado de honras quase reais, adopta diversas medidas legislativas e administrativas que molestam as famílias patrícias de Roma. Com a desculpa de evitar que se converta em rei, Catão, Bruto (afilhado de César) e outros põem-se de acordo para o assassinar, coisa que fazem no mesmo Senado (ano de 44 a. C.).
<br />Como escritor, Júlio César adopta posturas de político e militar. Neste sentido, tanto os seus discursos como as suas obras históricas tentam expor e justificar as suas acções. Para isso deformam os factos e incorre em omissões e inclusive em falsificações, o que lhe permite oferecer uma imagem perfeita de si mesmo. Apesar disso, César é merecidamente considerado um autor clássico e um modelo da língua latina. Da sua clareza e concisão, da sua expressão precisa, do seu uso da terceira pessoa para se referir a si mesmo, depreende-se uma poderosa objectividade. Em De Bello Gallico relata as suas campanhas contra os Galos até à derrota de Vercingétorix, seu chefe. E em De Bello Civile narra as suas campanhas contra Pompeu.
<br />Fonte: http://www.vidaslusofonas.pt/julio_cesar.htm
<br />A conquista da Gália por Júlio César
<br />Há dois mil e cinqüenta anos atrás, Júlio César, um dos mais célebres estadistas romanos, publicou um relato da sua campanha contra as tribos celtas que então viviam espalhadas pela Suíça, França, Bélgica e Inglaterra, denominando-o Commentarii de bello gallico, Comentários sobre a Guerra Gálica, consagrando-o como um excelente historiador.
<br />Seu livro tornou-se leitura obrigatória para os estudantes de latim. Que extensão tinha a região conquistada pelos romanos e quem eram as tribos e qual a cultura dos que lá habitavam e como fez César para dominá-la, é o que o se segue.
<br />
<br />
<br />Vercingetórix rende-se a César em Alésia (52 a.C.)
<br />César abre a primeira página do seu livro com uma das suas mais conhecidas frases: Gallia est divisa in partes tres, "a Gália está toda dividida em três partes". E, de fato, assim era. Bem ao norte, a Terra dos Celtas era habitada pelos belgas, no centro pelos gauleses propriamente dito, e, ao sul dela, pelos aquitânios. Politicamente, a parte meridional encontrava-se nas mão dos romanos desde 222-121 a.C., que a denominavam de Gália Narbonense, tendo como principal centro era o porto de Marselha.
<br />A posse dessa região costeira do Mediterrâneo, permitia-lhes trafegar seguros pela Via Domitia, a estrada que ligava a fronteira da Itália ao Leste, com a da Ibéria, ao Oeste. Geograficamente, ela se estendia de Milão, no Vale do Rio Pó, até o sopé das montanhas dos Pirineus. Foi para lá que enviaram Caio Júlio César, de distinguida e aristocrática família latina, como procônsul da Gália Narbonense, no ano de 59 a.C.
<br />O povo que lá vivia, no que os romanos denominavam de Gália Comata, eram os celtas, separados entre si pelas mais diversas razões. Dividiam-se eles,de um modo geral, em galos Heudos, Arvernos, Belgas, e nos que compunham as tribos marítimas que habitavam nas margens do Atlântico (onde hoje se situam a Bretanha e a Normandia, departamentos da França). Esses gauleses, rústicos e durões, que até então estavam fora da órbita romana, eram chamado de galos cabeludos (Gallo comata), para separá-los dos chamados galos togados (já totalmente romanizados).
<br />
<br />
<br />Gallia est divisa in partes tres
<br />
<br />Caçadores e guerreiros, envolvidos em intermináveis desavenças tribais, os galos cabeludos desprezavam a atividade agrícola, apesar da grande fertilidade do solo da França. Dedicavam-se à criação de cavalos e de gado doméstico, havendo porém ente eles grandes artistas no trabalho com bronze, estanho, e objetos de prata. O pouco comércio que conheciam era em geral praticado por comerciantes romanos que trafegavam pelos seus rios e aldeias, trazendo-lhes produtos de fora.
<br />Reis, chefes e druidas
<br />A organização política dos gauleses, ou a ausência dela, foi sua perdição. A Terra dos Celtas era uma barafunda de tribos que ora eram governadas por um pequeno número de nobres guerreiros, outra por reis ou chefes clânicos, e até por um curioso tipo de magistrado, o Vergobret, escolhido, tal como o cônsul romano, por um período de um ano. Para o leitor de César fica evidente que a diversidade política dos galos cabeludos, e o desacerto que dai decorre, facilitou sua capitulação final frente aos romanos. Contra os galos cabeludos, César pôde exercer a plenitude da máxima Divide ut regnes, divide e domina, tática que os lideres romanos sempre souberam tão bem aplicar contra os outros povos.
<br />As deidades celtas
<br />Se eles desacertavam-se, envolvidos em intermináveis rixas tribais, havia porém um sentimento unívoco deles pertencerem a um universo religiosos só. Belenus, o deus da luz, Belisama, a deusa da luz e do fogo, Cernunnos, o deus da fertilidade, Epona a protetora dos cavalos, e Smertrios, o deus da guerra (o Marte dos gauleses), eram deidades sagradas em todo o mundo celta.
<br />
<br />
<br />Cernunnos, o deus-alce, símbolo da fertilidade
<br />Como também existiam entre eles a confraria dos Druídas, os sacerdotes-xamãs que formavam a influente elite religiosa. Anualmente, vindos das mais distantes regiões da Terra dos Celtas, eles se reuniam num grande concílio em Chartres (onde, bem mais tarde, no século XII, a Igreja Católica, para celebrar sua vitória sobre o paganismo, fez erguer uma das maiores catedrais da Europa), para trocarem receitas de poções e saberem das novidades.
<br />A campanha de César na Gália
<br />
<br />
<br />Caio Júlio César (100-44.a.C.)
<br />Sabendo explorar as desavenças e as eternas desconfianças reinantes entre os gauleses cabeludos, particularmente entre as duas grandes tribos que habitavam a parte central da Gália, os heudos e os arvernos, César se pôs em marcha. O pretexto para intervir na Gália transalpina foi a provável invasão dela pelos germanos, que faziam ameaças do outro lado do Rio Reno.
<br />Com apenas quatro legiões (a 7ª, a ª, a 9ª, e a 10ª), uns 24 mil homens, fora as tropas auxiliares, o romano deslocou-se pelos seis anos seguintes, entre 58 a 52 a.C., por quase todo o território da Gália, impondo-lhe a obediência ao gládio e à lei de Roma. Sob seu comando, à sua disposição, ele tinha a maior invenção de Roma em todos os tempos: a Legião.
<br />A legião romana
<br />Impressionante parte da máquina de guerra romana, cada legião tinha um efetivo de 5000 a 5500 soldados engajados por contrato. Disciplinados e bem treinados, divididos em coortes, em centúrias e decúrias, os legionários, auxiliados por uma cavalaria audaz, realizavam maravilhas nos campos de batalha. Não só neles. Mesmo no descanso, eles não tinham descanso. No acampamento era o momento em que o pilus (a lança) era substituída pela pá.
<br />Com ela cavavam uma trincheira retangular ao redor das barracas e erguiam paliçadas no perímetro delas para nunca serem pegos de surpresa pelos inimigos. Eram capazes de, arrumados em linhas (veliti, manipoli di astati, principi, e di triarii), onde recrutas e veteranos se intercalavam, enfrentar contingentes de forças muito superiores as suas, graças à coesão e às táticas de luta em conjunto em que se exercitavam.
<br />Em geral, os bárbaros, desconsiderando o comando único, atacavam em hordas, onde cada clã, quase cada guerreiro, tratava de vencer por si só a batalha, tornando-se presa fácil das organizadas tropas romanas. Mesmo quando depois de ter recebido reforços (seu efetivo parece ter saltado para 50-55 mil homens), não deixa de ser impressionante o fato de César ter submetido um território de 600 mil km2 com tão pouca gente.
<br />
<br />O exemplo de César
<br />O próprio César revelou-se um comandante notável. Vestindo o paludamentum, uma cota militar vermelha para poder ser visto de qualquer canto da batalha pelos seus soldados, foram inúmeras as vezes em que ele empunhou um escudo e foi para as linhas de frente dar ânimo aos seus soldados. bateu os helvécios, os germanos, os belgas, os vênetos e armóricos, os bretões e finalmente sufocou a resistência dos gauleses arvernos.
<br />Suas tropas marcharam pelos Montes Jura, pelas margens do Rio Reno (chegando a construir pontes para atravessá-lo), pelas florestas das Ardenas, pelas planícies do Flandres, pela costa do atlântico, e, atravessando o Canal da Mancha, chegaram às ilhas britânicas. Idolatrado pelos soldados, César os acompanhava a cavalo ou a pé, procurando estar sempre presente nos pontos mais frágeis da defesa para que o seu exemplo de destemor e tranqüilidade, não permitisse os soldados a desandarem ou a desertarem.
<br />Alésia e a capitulação de Vercingetórix
<br />O levante de Vercingetórix, o chefe dos galos arvernos, foi um dos mais impressionantes e emocionantes acontecimentos da história antiga. O grande caudilho, decepcionado pelo conformismo da nobreza gaulesa com a ocupação romana, "faz nos campos", narrou César, "um alistamento de pobretões e homens perdidos. Com esta tropa chama a seu partido todos os da cidade, que vai encontrando; exorta-os a tomarem armas pela liberdade comum".
<br />A essa altura a Gália inteira ferveu. O gaulês insurgente consegue impor uma derrota parcial às legiões de César que tentaram capturá-lo em Gergóvia (perto de Clermont-Ferrant), conclamando então o povo a uma guerra total contra os romanos. Que queimassem tudo, as choças e as colheitas, nada deixando ao invasor. César, porém, se recupera e aplica sucessivas derrotas à cavalaria gaulesa.
<br />
<br />
<br />O gaulês agonizante, símbolo da derrota de um povo livre
<br />
<br />
<br />Vercingetórix, retirando-se com 80 mil homens e 9 mil cavalos para Alésia, no alto do Monte Auxois, pensa em repetir Gergóvia, onde resistira com êxito ao sitio do romano. Só que desta vez foi diferente. César tomou-se de precauções. Os seus engenheiros traçaram rapidamente um plano de circunvalação do oppidum, a fortificação dos gauleses. De novo os 55 mil legionários empunharam a pá. Em seis semanas eles abriram mais de vinte quilômetros de trincheiras, montando um complexo sistema de valos, fossas, armadilhas as mais diversas, e uma paliçada completa, com torres erguidas a cada 120 metros. César decidira-se matar os gauleses pela fome.
<br />Vercingetórix, liberando sua cavalaria, ordenou que eles trouxessem reforços de todas as partes da Gália. Novamente César se precaveu. Uma outra circunvalação foi escavada, desta vez voltada para fora, para poder resistir ao inevitável ataque que viria dentro de uns tempos. De fato, uma massa de 250 mil gauleses de quase todas as tribos, partira em socorro do capitão gaulês preso pelo garrote romano em Alésia.
<br />Enquanto isso no interior da cidade cercada, a fome fazia seus estragos. Casos de antropofagia começara a ocorrer. As esperanças de Vercingetórix de ser salvo se esvaíram quando ele viu lá dos altos da sua paliçada, os romanos de César aplicarem uma derrota acachapante nos reforços que viriam tirá-lo do apremio. Sim pois eles conseguiram por a correr aquela multidão formidável. A batalha pela liberdade estava perdida. A Gália cativa.
<br />A atitude nobre de Vercingetórix
<br />No dia seguinte ao desastre. Quando não havia na Gália inteira nenhuma força organizada para poder fazer reverter o sitio de Alésia, Vercingetórix convocou o conselho militar dos seus oficiais. Nas palavras de César "demonstra-lhes que havia empreendido a guerra, não por interesse seu particular, mas pela liberdade comum, e pois que se tinha que ceder à fortuna, se lhes oferecia para uma das duas coisas, ou para com sua morte satisfazer aos romanos, ou para o entregarem vivo aos mesmos, como melhor entendessem.
<br />E foi assim que procedeu. Montando no seu corcel, vestido de luzente armadura, Vercingetórix cavalgou para o acampamento do inimigo. César o recebeu num tablado improvisado, onde sentava num pequeno trono. Ordenou ao vencido que entregasse o cavalo e suas armas a guarda.
<br />Vercingetórix se desafez de tudo e foi sentar-se aos pés de César. Os demais gauleses sobreviventes foram entregues aos legionários como butim de guerra. O bravo Vercingetórix foi posteriormente conduzido à Roma onde terminou decapitado, talvez uns cinco anos depois de Alésia.
<br />Depois de Alésia
<br />Para César essa batalha foi decisiva na sua carreira. Vitorioso na Gália, ele decidiu-se três anos depois, ao atravessar o Rubicão em 49 a.C., disputar com Cneu Pompeu a hegemonia sobre a República Romana, tornada império universal. Venceu-o.
<br />Tornou-se ditador em 46 a.C. e morreu assassinado nos idos de março de 44 a.C. numa conspiração de senadores, entre os quais Bruto que, uns anos antes, estava com ele, ajudando-o a derrotar Vencingetórix. O poder depois da morte de César foi disputado entre seu sobrinho-neto Otávio, e um antigo auxiliar de César, Marco Antônio (também um veterano das Guerras da Gália).
<br />Para a Gália, a derrota em Alésia significou a derrocada da cultura celta e sua substituição pela romana. César, ao ordenar que o latim se tornasse a língua oficial das tribos gaulesas submetidas, foi, de certa forma, um dos forjadores da língua francesa atual, uma das mais belas heranças da Roma Antiga. Deste então, surgiu na Gália uma nova civilização: a Galo-romana.
<br />Bem mais tarde, no século III, na época da anarquia militar, aproveitando-se da situação caótica em que o império romano se encontrava, durante 14 anos seis chefes galo-romanos proclamaram-se imperadores (de 259 a 273). Este surto independentista pode ser considerado como a última manifestação dos gauleses de tentarem reaver sua independência, ainda que abrigados com o manto do imperador de Roma.
<br />
<br />
<br />O gaulês ferido, expressão do desalento de um povo
<br />
<br />
<br />As campanhas de César na Gália (58-52 a.C.)
<br />Data Nação Rei/Líder Motivo da Guerra
<br />58 a.C. Helvécios Dunórix Tentativa dos helvécios de invadirem, partindo da Suíça, o Sul da Galia. Foram derrotados por César na batalha de Bibracte, aceitando em seguida a situação de vassalagem.
<br />57 a.C. Germanos Ariovisto Luta pela hegemonia da Gália setentrional. Os germanos foram derrotados perto de Besançon, na Alta Alsácia e Ariovisto buscou refugio além do Rio Reno. César ordena a travessia do rio dos germanos para punir a tribo dos sugambros.
<br />56 a.C. Belgas Galba Reação das tribos belgas à presença romana na sua fronteira. Batidos por César perto de Novon, capitulam.
<br />55 a.C. Tribos marítimas - César se desloca para a costa atlântica e enfrenta os gauleses armóricos ou vênetos, numa guerra por terra e por mar. Duras represálias contra as lideranças das tribos marítimas que resistiram aos romanos.
<br />55-4 a.C. Bretões Casivelauno Expedição punitiva de César às ilhas britânica pelos bretões terem dado abrigo aos patriotas da armórica que lá procuraram refúgio. Depois de um acordo, César recuo para a Gália.
<br />53 a.C. Gauleses Ambriórix e outros Levante geral contra os romanos. César com sua presença consegue fazer refluir o movimento.
<br />52 a.C. Gauleses Vercingetórix Nova insurreição, desta vez popular. Trata-se de uma rebelião geral contra o invasor. César é batido em Gergóvia, mas, em seguida, consegue cercar os gauleses em Alésia. Rendição de Vercingetórix. Fim da Gália independente, tornada desde então província romana.
<br />Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/antiga/galia1.htm
<br />
<br />De Bello Galico - Livro Primeiro
<br />COMENTÁRIOS
<br />DE
<br />C. JULIO CESAR
<br />À
<br />GUERRA DA GÁLIA
<br />
<br />LIVRO PRIMEIRO
<br />ARGUMENTO
<br />Descrição de GÁLIA — c. 1 — Tentam os helvécios invadi-la mas são derrotados por Cesar em duas batalhas e os restantes compelidos a voltar à patria, donde tinham saído. — c. 2-29. — Queixam-se os gauleses a Cesar de Ariovisto, rei dos germanos, que ocupava o território dos Sequanos. Manda Cesar embaixadores a Ariovisto para compor as coisas, mas em vão. c. 30-36. Marcha contra ele com as tropas a princípio desanimadas, depois alvoroçadas por exortação sua. Conferenciam os chefes dos dois campos, mas sem resultado algum. Recorre-se, por fim, à fortuna das armas, e recebendo grande perda, fogem os germanos da Gália c. 37-54.
<br />1. — A Galia está toda dividida em três partes, das quais uma é habitada pelos belgas, a outra pelos aquitanios, a terceira pelos que em sua língua deles se chamam celtas, na nossa gauleses. Diferem todos esses povos, uns dos outros, na língua, nos costumes, e nas leis. Extrema os gauleses dos aquitanios o rio Garona; dos belgas, o Mátrona(1) e o Séquana(2). De todos eles são os belgas os mais fortes, por isso mesmo que estão mais longe da cultura e polícia da província romana, e não vão lá a miúde mercadores, nem lhes levam coisa que lhes enerve o vigor; e vizinham com os germanos(3), que habitam além do Rim, e com quem andam continuamente em guerra. Por esta mesma causa excedem também os helvecios(4) em valor aos mais gauleses; pois contendem com os germanos em refregas quase quotidianas, quando ou os repelem de suas fronteiras, ou nas próprias fronteiras desses fazem a guerra, A parte ocupada pelos gauleses tem princípio no rio Rodano; limite, no Garona, no Oceano, e nas fronteiras dos belgas; toca também no Rim pelo lado dos sequanos(5) e dos helvecios; e inclina ao setentrião. Os belgas(6) começam nas extremas fronteiras da Gália; estendem-se até a parte inferior do Rim; e olham para o setentrião e o sol nascente. A Aquitania extende-se do rio Garona aos montes Pirineus e à parte do Oceano que beija a Espanha e olha por entre o ocaso do sol e o setentrião.
<br />II. — Foi Orgetorix o maior potentado entre os helvecios por sua linhagem e riquezas. Levado da ambição de reinar, fez uma conjuração da nobreza, no consulado de Marco Messala e Marco Pisão, e persuadiu à sua cidade(7) que saísse do país com todas as forças, dizendo ser facílimo assenhorearem-se os helvecios do império das Gálias, visto como em valor excediam a todos os mais gauleses. E persuadiu-lho tanto mais facilmente, que de todos os lados se vêm os helvecios estreitos(8) pela natureza do lugar; de uma parte, pelo Rim, mui largo e profundo rio, que os extrema dos germanos; de outra, pelo Jura, monte altíssimo, que se interpõe entre eles e os sequanos; de outra enfim, pelo lago Lemano(9) e rio Rodano, que deles extrema a nossa província. Originava-se daí poderem estender-se menos, e menos facilmente fazer guerra aos vizinhos; o que, para gente tão belicosa, era ocasião de grande mágua. Atentando pois, no seu tão avultado número, e na tão transcendente glória de seus feitos militares, reputavam acanhado seu território, que se extendia duzentos e sessenta mil passos em comprimento e cento e oitenta mil em largura.
<br />III. — Compenetrados disto, e movidos da autoridade de Orgetorix, resolveram aprestar o que respeitava à emigração, comprando quanto mais bestas e carros, fazendo quanto mais sementeiras para não faltar pão na jornada, e estabelecendo paz e amizade com as cidades(10) vizinhas. Assentando bastar-lhes para isto um biênio, confirmam por lei a emigração para o terceiro ano. A levá-lo a efeito designa-se Orgetorix que se encarrega da negociação com as cidades vizinhas. Partido neste pressuposto dentre os seus, a Castico, filho de Catamantaledes, sequano de nação, cujo pai fora rei dos sequanos muitos anos, e honrado com o título de amigo pelo Senado do povo romano, persuade assuma na sua cidade a realeza dantes exercida por seu pai; também a Dunorix, heduo(11) de nação, irmão de Diviciaco, o maior potentado então entre os seus, e mui popular, persuade tente o mesmo, dando-lhe sua filha em casamento. Demonstra-lhes ser mui fácil realizar a empresa, sendo ele rei dos helvecios que ninguém contestava serem os mais poderosos dos gauleses, assegurando-os de que com seus cabedais e exércitos lhes havia conciliar a realeza a eles. Induzidos por este discurso, dão promessa e juramento entre si, esperando poder, com a usurpação da soberania, assenhorear-se da Gália toda por meio dos três mais poderosos e valentes povos dela.
<br />IV — Denunciado aos helvécios, obrigam-no eles, conforme a usança, a defender-se preso: condenado, era a pena ser queimado vivo. No dia designado para a defesa, faz Orgetorix cercar o tribunal de todos os seus até dez mil, bem como de grande número de clientes e devedores, e por eles exime-se violentamente da obrigação de responder em juizo. Pretendendo a cidade indignada sustentar o seu direito pelas armas, e apelidando para isso os magistrados multidão de homens dos campos, morre neste meio tempo Orgetorix não sem suspeita, na opinião dos compatriotas, de se haver dado morte a si.
<br />V — Depois da morte dele resolvem-se nada obstante os helvecios a emigrar, como tinham assentado. Quando se julgam para isso aparelhados, põem fogo a todas as suas cidades em número de doze, as suas aldeias no de quatrocentas, aos mais edifícios particulares, e a todo o trigo que não haviam de levar consigo, para que, tirada a esperança de regresso à patria, se achassem mais hábeis a arrostar todo gênero de perigos, provendo-se cada um de farinha e vitualhas para três meses. Aos rauracos(12), tulingos(13) e latobrigos(14), vizinhos seus, persuadem que, queimadas suas cidades e aldeias, emigrem conjuntamente com eles; e aos boios que tendo passado o Rim, e invadido o território norico(15), conquistaram Noreia, associam-nos a si como aliados.
<br />VI — Havia somente dois caminhos, pelos quais podiam sair de casa(16); um através dos sequanos(17), estreito e difícil, por entre o monte Jura e o rio Ródano, por onde mal passariam carros um a um; ficava-lhe porém à cavaleiro o monte altíssimo, em modo que dos desfiladeiros podiam mui poucos embargar-lhes o passo: o outro pela nossa província, muito mais fácil e expedito, pois que, por entre as fronteiras dos helvecios e as dos alobroges(18) de pouco pacificados, corre o Ródano que em alguns lugares se vadeia. Extrema cidade dos alobroges e vizinha às fronteiras dos helvecios é Genebra que por uma ponte a estes se liga. Aos alobroges, por que ainda não pareciam bem dispostos em favor dos romanos, supunham ou haver de mover ou forçar a lhes concederem passagem por suas terras, Aparelhado tudo para a partida, designam o dia em que se haviam de reunir todos na margem do Rodano. Era esse o quinto antes das Calendas de abril (28 de março), sendo cônsules Lucio, Pisão e Aulo Gabinio.
<br />VII — Comunicado a Cesar o intentarem eles fazer passagem pela nossa província, dá-se pressa a partir de Roma, e, encaminhando-se à grandes jornadas para a Gália ulterior, chega a Genebra. Ordena as maiores levas de soldados pela província toda, porque só havia nela uma legião; e manda cortar a ponte de Genebra. Sabedores da chegada dele, deputam-lhe os helvecios os mais nobres da cidade, a cuja frente vinham Nameio e Verucloecio com esta embaixada: “Que tencionavam passar pela província sem fazer mal, pois nenhum outro caminho tinham, e lhe pediam o permitisse de bom grado.” Cesar, que tinha em lembrança haverem os helvecios morto ao cônsul Lucio Cassio, desbaratado e feito passar por baixo de jugo o seu exército, não vinha na permissão; nem tão pouco acreditava que forças hostis se abstivessem de, em sua passagem pela província, ofender e fazer mal. Contudo, para dar espaço a se reunirem as levas que ordenara, respondeu aos embaixadores que tomaria tempo para deliberar, e viessam pela resposta nos idos de abril (a 13 desse mês).
<br />VIII — Entrementes, com a legião que consigo tinha e as levas chegadas da província, desde o lago Lemano por onde corre o Rodano, té o monte Jura, que extrema os sequanos dos helvecios, levanta em espaço de dezenove mil passos uma muralha de dezeseis pés de alto, guarnecida de um fosso. Concluída a obra, dispõe por ela presídios em castelos fortificados, para mais facilmente poder tolher-lhes o passo, se, seu mau grado dele, tentassem passar. Quando chegou o dia aprazado aos embaixadores, e voltaram a saber da resposta, declarou-lhes formalmente que, segundo o costume e exemplo do povo romano, a ninguém podia conceder passagem pela província, acrescentando que, caso tentassem fazê-lo por força, estava aparelhado para vedar-lho. Decaídos desta esperança, fazem os helvecios diversas tentativas para romper, uns em canoas unidas e jangadas fabricadas em grande número, outros pelos vaus do Rodano, onde a profundidade do rio é menor, ora de dia e mais vezes de noite; repelidos, porém, quer pela resistencia da fortificação, quer pelas armas e bravura dos soldados, desistem por fim da empresa.
<br />IX — Restava o caminho através dos sequanos, por onde não podiam, mau grado destes, passar em razão dos desfiladeiros. Não podendo obter por si o consenso dos sequanos, enviam embaixadores ao heduo Dunorix, para que, por intercessão sua, lho alcance deles. Era Dunorix mui acreditado com os sequanos por sua largueza e popularidade, e amigo dos helvecios, porque tinha casado com a filha de Orgetorix dessa cidade, e ambicionando a realeza entre os seus favorecia empresas arriscadas, para ter quanto mais cidades ligadas a si por benefícios, Encarrega-se, pois, da negociação, e alcança dos sequanos permissão para passarem os helvecios pelas fronteiras deles(19), fazendo com que se dêm reféns reciprocamente: os sequanos, para que aos helvecios não tolham o passo; os helvecios, para que passem sem fazer mal, nem ofender.
<br />X — Comunicado a Cesar o tencionarem os helvecios fazer passagem pelas fronteiras dos sequanos e heduos(20) para as dos santones(21), que não distam muito dos tolosates(22) cidade situada na província, entendia que, se tal acontecesse, havia de ser com grande perigo do sossego da província, que teria por vizinha em campos sumamente ubertosos a essa gente belicosa e inimiga do povo romano. Assim, prepondo o seu lugar tenente Tito Labieno à fortificação que fizera, parte para a Itália a toda a pressa, alista ali duas legiões, tira de seus quartéis mais três que invernavam nos arredores de Aquileia, e com estas cinco legiões marcha para a Gália pelos Alpes, caminho mais curto. Aí tentam os centrones(23) graiocelos(24), e caturiges(25) embargar o passo ao exército, ocupadas as alturas. Depois de os rechaçar em muitos recontros, de Ocelo(26) que é o extremo da província citerior, chega com sete dias de marcha às fronteiras dos voconcios(27) na província ulterior; daí abala com o exército para as dos alobroges; dos alobroges para os segusiavos(28) que são os primeiros além do Rodano ao sair da província.
<br />XI — Já haviam os helvecios transposto as gargantas e fronteiras(29) dos sequanos, e chegados às dos heduos devastavam-lhes os campos. Não podendo defender-se a si e seus haveres, mandam os heduos embaixadores a Cesar implorar-lhe auxílio nestes termos: “Que eles sempre tinham servido ao povo romano de maneira que, sendo quase expectador o nosso exército, não deviam ser seus campos talados, seus filhos cativados, suas cidades conquistadas.” Ao mesmo tempo os heduos ambarros, amigos e consangüíneos dos heduos, fazem a Cesar sabedor que eles, despovoada a campanha, dificilmente repeliriam das cidades a força dos inimigos. Da mesma forma os alobroges, que tinham aldeias e possessões além do Rodano, fugindo buscam amparo em Cesar, demonstrando que, além do solo do terreno, nada mais lhes resta. Comovido com tais estragos, não espera Cesar que, consumidas todas as fortunas dos aliados, penetrem os helvecios até os santones.
<br />XII — É o Arar(30) um rio, que pelas fronteiras dos heduos e sequanos se dirige o Rodano com placidez tal, que não se pode distinguir com a vista para qual das duas partes corre: passavam-no os helvecios em jangadas e pontes de barcas. Sabedor pelos exploradores de terem eles já passado três partes das tropas além deste rio, e testar quase a quarta aquém deles, Cesar, partindo dos arraiais na terceira vela da noite com três legiões, alcança aos que ainda não haviam transposto o rio; e atacando-os de improviso, quando embaraçados e desprevenidos, faz neles grande mortandade, fugindo e acolhendo-se o restante aos vizinhos bosques. Chamava-se Tigurino(31) este cantão, sendo que toda a cidade Helvecia em quatro cantões se acha dividida. Este mesmo, o único que saira da pátria em tempo de nossos país, havia morto o cônsul Lucio Cassio, e feito passar por baixo de jugo o seu exército. Assim ou fosse caso, ou providência dos deuses imortais, a parte da cidade Helvecia que ocasionou insígne calamidade ao povo romano, foi também a primeira a sofrer o castigo. Nisto não só vingou Cesar a pública ofensa, mas ainda a particular, porque na mesma batalha em que mataram a Cassio, haviam também os tigurinos morto ao seu lugar tenente Lucio Pisão, avô de Lucio Pisão, sogro dele, Cesar.
<br />XIII — Para poder alcançar as restantes tropas dos helvecios, manda, depois desta batalha, fazer uma ponte no Arar, e por ela passa o exército. Abalados com tão repentina vinda, vendo fizera Cesar num dia o que mal tinham eles conseguido em vinte, o passar o rio, enviam-lhe os helvecios embaixadores, a cuja frente se notava Divicão, antigo caudilho seu na guerra contra Cassio. Falou ele a Cesar nesta substância: “Que, se o povo romano fizesse com os helvecios paz e amizade, haviam os helvecios de ir para onde, e permanecer aonde o quisesse Cesar; mas, se persistisse em guerreá-los, tivesse em lembrança o antigo desastre do povo romano, e o valor dos helvecios — Por haver de improviso atacado um cantão, quando os que tinham passado o rio não podiam socorrer os seus, nem se ensoberbecesse ele tanto, nem os desprezasse a eles, que mais haviam aprendido de seus passados a combater com denodo, que a armar ciladas e traições — Não fosse, pois, ocasião para que o lugar em que haviam feito alto, servisse de monumento no porvir, tomando nome da calamidade dos romanos e destruição de seu exército.”
<br />XIV — A isto respondeu Cesar: “Que não lhe restava a menor dúvida, porque conservava muito em lembrança o que mencionavam os helvecios, e tanto mais, quanto menos causa dera a tal o povo romano, que, se tivesse consciência de havê-los ofendido, facilmente se acautelaria; — fora porém enganado, porisso mesmo que, não tendo praticado coisa de que se houvesse de arrecear, não julgava dever temer sem fundamënto — Mas, ainda quando quisesse esquecer a antiga ofensa, podia também apagar da memória as recentes, de tentarem passar a força pela nossa província, e devastarem o território aos heduos, ambarros e alobroges? — Quanto a se gloriarem tão insolentemente de sua vitória, e admirarem de haver ele por tanto tempo suportado a ofensa impunemente: que os deuses imortais, para ser mais dolorosa a mudança de fortuna aos homens, costumavam às vezes conceder aos maus, que queriam castigar, maior soma de felicidades e impunidade mais duradoura; que, nada obstante, se lhe dessem reféns para fiança de que haviam de cumprir o prometido, aos heduos satisfação das ofensas a eles e seus aliados feitas, e igualmente satisfação aos alobroges, ele faria com eles paz e amizade.” Divicão replicou: “Que os helvecios tinham aprendido de seus passados, não a dar, mas a receber reféns, como bem o sabia o povo romano.” E com isto retirou-se.
<br />XV — No seguinte dia levantam campo. Faz Cesar outro tanto; e para observar a marcha do inimigo, manda diante toda cavalaria, havida da província, dos heduos e seus aliados, em número de quatro mil homens. — Pica esta com demasiado ardor a retaguarda inimiga, e travando combate com a cavalaria dos helvecios em lugar desvantajoso, caem poucos dos nossos. Ensoberbecidos por terem com quinhentos de cavalo rechaçado tamanha força de cavalaria, entram os helvecios a fazer-nos rosto mais desassombradamente, provocando muitas vezes com sua retaguarda aos nossos da vanguarda, Vedava Cesar aos seus o pelejar, contentando-se por então com tolher ao inimigo a possibilidade de rapinar, forragear e despovoar a campanha. Assim marcharam cerca de quinze dias, não medeiando mais de seis mil passos entre a retaguarda do inimigo e a nossa vanguarda.
<br />XVI — No entanto, todos os dias requeria Cesar aos heduos o trigo que tinham solenemente prometido; pois, achando-se a Galia, como antes se disse, situada sob o setentrião, não só não estavam maduras as messes por amor do frio, mas nem ainda abundava assás forragem nos campos. Do trigo, porém, que fazia transportar em barcos pelo Arar, não podia ele utilizar-se, por haverem os helvecios, de quem se não queria apartar, desviado a marcha do Arar. Remetiam-no os heduos de dia para dia; o trigo, segundo eles, estava-se aprontando, transportando, vinha chegando. Vendo tamanha demora, e achar-se iminente o dia em que convinha medir trigo aos soldados, convoca os principais gauleses, dos quais contava grande número no seu campo, e entre esses a Divicaco e Lisco que exercia o cargo de vergobreto, magistratura suprema e anual, que tem sobre os seus poder de vida e morte; acusa-os gravemente, porque, não podendo comprar-se, nem tão pouco colher-se nos campos, o não socorriam com trigo em ocasião tão urgente, tão próximos do inimigo, quando principalmente movido em grande parte pelas súplicas deles é que empreendeu a guerra; e queixa-se amargamente de estar sendo abandonado.
<br />XVII — Abalado com este discurso de Cesar, expõe Lisco o que antes calara: “Que havia alguns particulares que por sua grande autoridade com o povo tinham mais poder, que os mesmos magistrados; e esses tais com discursos sediciosos despersuadiam a multidão de concorrer com trigo, dizendo que, uma vez que não podiam ser senhores da Galia, deviam os heduos preferir aos dos romanos o jugo dos gauleses, não duvidando que, vencedores dos helvecios, não houvessem os romanos de extorquir aos heduos a liberdade conjuntamente com o resto da Galia; — que pelos mesmos que não tinha força para coibir, era o inimigo informado de nossos planos e quanto se passava nos arraiais; — e só ele sabia com que risco, obrigado da necessidade, comunicava isto a Cesar, e por isso guardara silêncio, enquanto lhe fora possível.”
<br />XVIII — Bem via Cesar ser por este discurso de Lisco indicado Dunorix, irmão de Diviciaco; não querendo, porém, que isto se aventasse em presença de muitos, despede a assembléia à pressa e retendo a Lisco, inquire dele, particularmente, o que dissera na reunião. Fala este mais livre e desassombradamente. Informa-se secretamente de outros e acha conforme a verdade:
<br />“Ser Dunorix sumamente audaz, mui acreditado com o povo por sua liberalidade, desejoso de nova ordem de coisas, e muitos anos arrematante por baixo preço das portagens e mais rendas dos heduos, porque licitando ele, ninguém mais ousava fazê-lo, havendo com isso não só acrescentado sua fortuna particular, mas ainda adquirindo imensos cabedais para despender em larguezas e acercar-se sempre de grande força de cavalaria sustentada a sua custa; — ser mui poderoso assim entre os seus, como nas vizinhas cidades, e tanto que casou a mãe entre os bituriges(32) com o maior potentado dali(33), a si com mulher helvecia, e a irmã por parte de mãe e parentes em outras cidades; — mui afeiçoado aos helvecios e grande seu beneficiador por sua afinidade com eles, hostil por interesse próprio a Cesar e aos romanos, pois fora com a vinda deles diminuido seu poderio, e restituído o irmão Diviciaco a antiga autoridade e honraria; sendo que, se ficassem mal os romanos, concebia suma esperança de ser rei com o auxílio dos helvecios, e, no dominio romano, não só perdia essa esperança, mas até a de conservar o poder que tinha.” Inquirindo descobre também Cesar: “Ser o princípio da derrota da cavalaria, no combate havido poucos dias antes, obra de Dunorix que comandava a cavalaria mandada pelos heduos a Cesar; pois com a fuga dessa se aterrara a demais.”
<br />XIX — Acrescendo, pois, a estas suspeitas os fatos incontestáveis de ter proporcionado passagem aos helvecios pelas fronteiras dos sequanos, fazendo para isso com que se dessem reféns reciprocamente, de o haver praticado não só sem consentimento, mas nem ainda conhecimento de Cesar e da cidade, e ser acusado pelo magistrado dos heduos, julgava haver assás fundamento ou para puni-lo ele mesmo, ou para ordenar à cidade que o punisse. A isto, porém, repugnava uma única coisa, que era ter encontrado em Diviciaco devoção suma para com o povo romano, benevolência extreme para com sua pessoa, egrégia lealdade, justiça e moderação; receava sobretudo ofendê-lo com o suplício do irmão. Assim, antes de tentar coisa alguma, manda chamar a Diviciaco; e, removidos os intérpretes quotidianos, por Caio Valerio Procilo, homem principal da província da Galia, amigo e confidente seu, se abre com esse, expondo tanto o que em sua presença se dissera de Dunorix na assembléia dos gauleses, como o que se referira deste em particular, e pede-lhe instância, não leve a mal, ou que ele lhe castigue o irmão, ou que ordene a cidade o faça.
<br />XX — Abraçando a Cesar com muitas lágrimas, entrou Diviciaco a suplicar-lhe, nada ordenasse de grave contra o irmão, dizendo sabia ser tudo aquilo verdade, e ninguém concebia disso maior dor que ele, pois sendo o mais poderoso entre os seus e no resto da Galia, quando o irmão o era mui pouco por sua mocidade, o havia com seu crédito elevado, do que agora abusava este, não só para cercear-lhe a autoridade, mas até para perdê-lo; comovia-se, nada obstante, com o fraternal amor e a opinião dos homens; pois se alguma coisa grave viesse ao irmão da parte de Cesar, ninguém de certo acreditaria que, sendo tal sua amizade com Cesar, deixara de nisso ter também parte, donde resultaria ficar-lhe adversa a Galia toda. Prosseguindo ele em suas instâncias todo banhado em pranto, toma-lhe Cesar a dextra, consola-o e pede-lhe, ponha termo às suplicas; porque tão singular amizade lhe votava, que tanto a ofensa da república, como a sua, ao seu querer e pedido dele de mui bom grado as remitia. Manda chamar a Dunorix, repreende-o em presença do irmão, enumerando os agravos que de seu procedimento tinham ele Cesar e a cidade, admoesta-o a evitar toda a suspeita para o futuro, e acrescentando que por amor do irmão, Diviciaco, lhe perdoava o passado, põe-lhe vigias para saber o que faz e com quem fala.
<br />XXI — No mesmo dia sabendo dos exploradores haver o inimigo acampado junto a um monte a oito mil passos de nossos arraiais, faz examinar a natureza do monte e sua subida em torno. Vindo no conhecimento ser fácil, à terceira vela da noite manda o lugar tenente pro pretor(34), Tito Labieno, com duas legiões e os guias conhecedores do caminho ocupar a cumiada ao monte, expondo-lhe de antemão seu plano. À quarta vela da noite, tendo enviado diante a cavalaria, marcha em pessoa ao inimigo pelo mesmo caminho que este tomara. Publio Considio que passava por militar mui experimentado, e servira no exército de Lucio Sila, e depois no de Marco Crasso, é mandado diante com os exploradores.
<br />XXII. — Ao romper d’alva, ocupada por Labieno a cumiada do monte, e distante Cesar do inimigo mil e quinhentos passos, sem que fosse pressentida, nem sua vinda, nem a de Labieno, como depois soube dos cativos, corre Considio à desfilada anunciar-lhe estar pelo inimigo ocupado o monte, que desejara o fosse por Labieno, e havê-lo conhecido pelas armas e insígnias gaulesas. Conduz Cesar suas tropas para um vizinho monte, e as forma em ordem de batalha. Labieno, como lhe fora ordenado, não combatesse, enquanto não visse as tropas de Cesar perto do campo inimigo, para que dessem juntamente nele de todos os lados, senhor do monte abstinha-se de atacar, aguardando os nossos. Alto dia, enfim, veio Cesar a saber dos exploradores, acharem-se não só os nossos de posse do monte, mas terem os helvecios levantado campo e haver-lhe Considio, cortado de terror, anunciado como visto o que não vira. Segue esse dia ao inimigo com o costumado intervalo, e acampa a três mil passos dele.
<br />XXIII — No seguinte, como faltavam sós dois dias para medir trigo ao exército, e não distava de Bibracte(35), a maior e a mais bem provida cidade dos heduos, senão dezoito mil passos, julgou dever entender no provimento de víveres, e desviando-se dos helvecios marchou em direitura à Bibracte. É isto logo denunciado ao inimigo pelos transfugas de Lucio Emilio, decurião da cavalana gaulesa(36). Os helvecios, ou por entenderem que os romanos se retiravam cortados de temor, mui principalmente porque senhores das alturas os não haviam atacado na véspera, ou por confiarem poder tolher-lhes o provimento de víveres, mudada a resolução e a marcha, entram a picar e provocar a nossa retaguarda.
<br />XXIV. — Em o notando, manda Cesar a cavalaria sustentar o ímpeto dos inimigos, e marcha com suas tropas(37), para um vizinho monte. No meio deste, forma três linhas com as quatro legiões veteranas; no cume, posta à cavaleiro destas as duas legiões de próximo alistadas na Gaba citerior(38), e tropas auxiliares, enchendo todo de homens o monte; e ordena sejam as bagagens reunidas num ponto, e este defendido pelos que estavam postados nas alturas. Seguindo-o com todos os seus carros, reúnem também os helvecios num ponto as bagagens; e repelindo cerrados nossa cavalaria, sobem a investir nossa primeira linha ordenados em falange.
<br />XXV — Removido primeiramente o seu, depois os cavalos de todos, para que, igualado o perigo, tirasse a esperança de fuga, exortando os seus, trava Cesar a batalha. Arremessando os pilos do alto, rompem facilmente os soldados a falange aos inimigos; rota esta, arremetem contra eles espada em punho. Grande embaraço para a peleja era aos gauleses(39) o haverem-lhes os pilos varado e ligado de um golpe muitos escudos(40), de modo que, encurvado o ferro, o não podiam arrancar, nem pelejar assás comodamente, impedida a esquerda, e sacudindo constantemente o braço, desejavam muitos arrojar o escudo da mão, e pelejar a corpo descoberto, Afinal, desangrados pelas feridas, entram a recuar, retirando-se para um monte daí mil passos. Ganho o monte, e subindo trás eles os nossos, os boios e tulingos, que em força ao redor de quinze mil homens fechavam o exército inimigo, e compunham o corpo de reserva, atacando os nossos na investida pelo flanco aberto, começam de involvê-los, o que notado dos helvecios, que se haviam retraído ao monte, carregam de novo, e restauram a batalha. Fazem então frente os romanos para duas partes, opondo aos vencidos e retraídos a primeira e segunda linhas, a terceira aos que atacavam pelo flanco.
<br />XXVI. — Assim combate-se encarniçadamente, indecisa largo tempo a vitória. Não podendo por fim sustentar o impeto dos nossos, acolhem-se uns ao monte como haviam começado a fazê-lo, passam-se outros a seus carros e bagagens; pois, combatendo-se desde uma hora da tarde até véspera, ninguém em todo esse tempo viu costas ao inimigo. Pelejou-se ainda até alta noite juntos às bagagens, porque fazendo dos carros tranqueiras, arremessavam do alto dardos contra os nossos e deles os feriam através das rodas com zagaias e zargunchos. Depois de combater-se largo espaço, apoderam-se os nossos de carros e bagagens, sendo aí aprisionados a filha e um dos filhos de Orgetorix. Restaram desta batalha uns cento e trinta mil homens, que marchando constantemente essa noite toda, chegaram em quatro dias às fronteiras dos lingones(41), sem que os nossos os pudessem seguir, demorados pelas feridas dos soldados e sepultura dos mortos. Preveniu Cesar aos lingones, que os não socorressem com trigo, nem outra alguma coisa, declarando-lhes que, se o fizessem, os teria na mesma conta que aos helvecios. Três dias depois, os segue em pessoa com todas as tropas.
<br />XXVII — Forçados a render-se pela necessidade de tudo, deputam-lhe os helvecios embaixadores, que o encontram no caminho, lançam-se-lhe aos pés, e lhe pedem paz com muitas súplicas e lágrimas, Mandados aguardá-lo no lugar, aonde então estavam, obedecem. Depois de aí chegar, exige-lhes Cesar reféns, armas, escravos para eles fugidos. Enquanto estas coisas se procuram e apresentam, mete-se de permeio a noite; e cerca de seis mil homens do cantão chamado Verbigeno(42), ou temendo ser supliciados, depois de entregues as armas, ou induzidos da esperança de salvação, porque em tamanha multidão de rendidos esperavam ou poder sua fuga ser oculta, ou totalmente ignorada, abalando à prima noite dos arraiais dos helvecios, marcham para o Rim e confins dos germanos.
<br />XXVIII — Mal o sabe, ordena Cesar àqueles por cujas terras foram, que os procurem e reconduzam se querem com ele justificar-se. Obedecido, aos reconduzidos tem em conta de inimigos; a todos os mais, depois de entregues reféns, armas transfugas, os toma debaixo de sua proteção. Aos helvecios, tulingos(43) elatobrigos(44) determina, voltem aos países, donde haviam partido; e porque, destruídas absolutamente as novidades, nada tinham em casa com que ocorrer à fome, ordena aos alobroges lhes forneçam trigo e a eles mesmos, restabeleçam as cidades e aldeias queimadas. Fá-lo principalmente por não ficarem devolutas as terras dos helvecios, para que, por amor da fertilidade do solo, não passassem das suas para elas os germanos que habitam além do Rim, vizinhando assim com a província da Galia e os Alobroges. Quantos ao boios, solicitando os heduos guardá-los em suas fronteiras, por serem mui esforçados, lho permite; e estes lhes concedem terras, e depois os mesmos foros e liberdade de que gozavam.
<br />XXIX — Foram nos arraiais dos helvecios encontradas e levadas a Cesar, tábuas escritas em caracteres gregos, as quais continham a relação nominal dos que haviam saido da pátria, tanto homens em estado de pegar em armas, como meninos, velhos e mulheres. Perfaziam os helvecios o número de duzentas e sessenta e três mil cabeças; os tulingos, o de trinta e seis mil; os latobrigos, o de quatorze mil; os rauracos, o de vinte e três mil; os boios o de trinta e duas mil. O número total dos que podiam pegar em armas era de noventa e dois mil, e o dos de todos os sexos e idades, de trezentos e sessenta e oito mil. O total dos que depois voltaram à patria foi, segundo o censo ordenado por Cesar, de cento e dez mil.
<br />XXX. — Terminada a guerra dos helvecios, vieram os principais de quase todas as cidades da Galia dar parabéns a Cesar, significando-lhes que, posto entendessem ter o povo romano debelado os helvecios por antigas ofensas deles recebidas, fora todavia isso não menos útil à terra da Galia, que aos romanos; porquanto haviam os helvecios abandonado seu país em estado mui florescente com desígnio de assenhorear-se da Galia por conquista, e escolher para residência a comarca que de toda ela julgassem a mais oportuna e fértil, fazendo as demais cidades tributárias suas. Pediram-lhe levasse a bem convocarem uma reunião de toda Galia(45), para dia aprazado, pois tinham requerimentos a fazer-lhe de acôrdo comum. Outorgado, marcam o dia da reunião, e obrigam-se com juramento a não divulgá-lo, senão a quem por deliberação comum fosse resolvido.
<br />XXXI. — Despedida a reunião, os mesmos principais das cidades, que tinham estado com eles antes, tornaram a vir ter com Cesar, pedindo-lhe uma conferência secreta sobre a sua particular, e a salvação comum dos gauleses. Impetrado(46), lançam-se todos aos pés de Cesar, conjurando-o com lágrimas: “Que não importava menos ficar em segredo o que lhe iam revelar, do que alcançarem o que desejavam; porquanto, se não houvesse segredo, ficavam expostos a suportar as maiores angústias.” Orou por eles o heduo Diviciaco nestes termos: “Que em duas facções estava a Galia toda dividida, de uma das quais tinham os heduos o principado, e da outra os arvernos(47); e, disputando-se elas a supremacia muitos anos, acontecera socorrerem-se os arvernos e sequanos de germanos mercenários; e, passando destes primeiramente o Rim uns quinze mil, depois mais, quando em sua barbária e ferocidade foram tomando gosto a fertilidade da terra, polícia e abundâncias dos gauleses, existiam ora na Galia cerca de cento e vinte mil — Que com esses haviam primeira e segunda vez travado batalha os heduos e seus apaniguados, e recebido vencidos grande calamidade, perdendo toda nobreza, todo senado, toda cavalaria, pelas quais batalhas e perdas alquebrados se viram eles, dantes os mais poderosos da Galia por seu esforço, aliança e amizade com os romanos, forçados a dar aos sequanos em reféns os mais nobres da cidade, obrigando-se com juramento a não exigir os reféns, nem implorar auxílio ao povo romano, nem recusar viver sob o perpétuo jugo e sujeição dos mesmos — Que de toda a cidade dos heduos era ele o único que nunca pudera ser induzido a jurar, nem dar seus filhos em reféns, sendo porisso obrigado a fugir da cidade e ir à Roma implorar auxílio ao senado, visto como nem por juramento, nem reféns se achava ligado — Mas ainda pior sucedera aos sequanos vencedores do que aos heduos vencidos, porque o rei dos germanos, Ariovisto, em suas fronteiras deles(48) fizera assento, ocupando-lhes a terça parte das terras, as melhores da Galia, e os mandava agora sair de outra terça parte, por lhe haverem chegado vinte e quatro mil harudes(49), aos quais era mister preparar terras e mansão — Que dentro em poucos anos aconteceria serem expulsos da Galia todos os gauleses, e passarem o Rim todos os germanos, pois nem o terrão germano era para comparar em bondade com o gaulês, nem este com aquele bárbaro costume de viver — Que, depois de vencer os gauleses em Magetobria(50), se tornara Ariovisto tão soberbo e tirano, que exigia em reféns os filhos dos mais nobres, e os castigava com todo gênero de tormentos, quando não obedeciam a seu menor aceno ou vontade; e era bárbaro, iracundo, violento, a ponto de não poder seu jugo ser mais tempo suportado — Se Cesar e os romanos lhes não valessem, teriam os mais gauleses de emigrar, como os helvecios, em procura de outras terras e habitações, remotas dos germanos, fosse qual fosse a fortuna que os aguardasse; e, se suas queixas chegassem aos ouvidos de Ariovisto, tinham certeza que havia ele de acabar em tormentos a todos os reféns — Que, com sua autoridade e a do exército, sua recente vitória, e o nome romano, podia Cesar fazer com que não passasse o Rim maior multidão de germanos, e pôr toda Galia à coberto das violências de Ariovisto.”
<br />XXXII — Depois deste discurso de Diviciaco, entram todos os que estavam presentes, a pedir auxílio a Cesar com grande pranto. Nota, porém, Cesar que só os sequanos não faziam como os mais, mas olhavam para a terra, cabisbaixos e tristes. Admirado inquire-lhes a causa: E nada responderam os sequanos, permanecendo calados na mesma tristeza. Perguntando-lho mais vezes, sem lhes poder arrancar palavra, responde o mesmo heduo Diviciaco: “Que tanto mais miserável e grave era, que a dos mais, a condição dos sequanos, porque sós nem ainda ocultamente ousavam queixar-se, nem implorar auxílio, temendo a crueldade de Ariovisto ausente, como se presente fosse; pois os mais podiam subtrair-se-lhe fugindo, os sequanos, porém, que o haviam recebido em suas terras, e cujas cidades estavam todas em poder dele, tinham de suportar-lhe todas as cruezas.
<br />XXXIII — Inteirado disto, anima Cesar os gauleses, prometendo-lhes tomar o negócio a peito, pois grande esperança concebia que, demovido por seus beneficios e autoridade, havia Ariovisto pôr termo às iniquidades. Depois disso impeliam-no a chamar o negócio a si, tomando-o na devida consideração, outros valiosos motivos, dos quais era o principal ver sob o jugo germano escravizados os heduos, tantas vezes honrados pelo senado com o nome de irmãos e consanguíneos, e os reféns destes em poder de Ariovisto e dos sequanos; o que, sendo tamanho o poderio dos romanos, reputava mui desairoso à si e à república. Via por outro lado ser perigoso para os romanos acostumarem-se, pouco e pouco, os germanos, a passar o Rim, e afluir, em grande multidão na Galia; porque estes bárbaros não se haviam por certo de conter em sua ferocidade, que, depois de ocupar a Galia, não invadissem, como os cimbros e teutões, a nossa província e daí a Itália, principalmente sendo o Ródano a única extrema entre os sequanos e a província; ao que entendia dever quanto antes ocorrer-se. Demais, tais espíritos e sobranceria se havia o mesmo Ariovisto arrogado, que já não era para tolerar.
<br />XXXIV — Julgou, pois, conveniente mandar embaixadores a Ariovisto, pedir-lhe escolhesse lugar acomodado para conferenciarem; porque tinha a tratar com ele negócio de suma importância, tanto a República, como a ambos. A esta embaixada respondeu Ariovisto: “Que se ele necessitasse o que quer que fosse de Cesar, iria procurá-lo; assim, se Cesar lhe queria alguma coisa, viesse ter com ele — Demais, não ousava ir sem exército às partes da Galia ocupadas por Cesar, nem podia reunir exército sem grande abastecimentos e aparatos — Muito se admirava, porém, que tivesse ou Cesar ou o povo romano de ver absolutamente com a sua Galia por ele conquistada.”
<br />XXXV. — Recebida tal resposta, manda-lhe Cesar nova embaixada concebida nestes termos: “Que, pois, obrigado por tamanho benefício seu e do povo romano, como ser em seu consulado honrado pelo Senado com o título de rei e amigo, lhe retribuía por todo agradecimento a ele e ao Senado, recusar-se a uma conferência, sem a menor consideração com sua pessoa, nem com o bem público, eis o que dele exigia: — primeiro, não passar mais aquém do Rim multidão alguma de homens para a Galia; depois, restituir os reféns que tinha dos heduos, e permitir aos sequanos restituirem livremente os que dos mesmos também possuíam; nem empecer, nem fazer guerra aos heduos e seus aliados — Que, se nisso viesse, Cesar e o povo romano teriam com ele perpétua paz e amizade: senão, não havia Cesar desprezar os agravos dos heduos, pois decretara o Senado no consulado de Marco Messala e Marco Pisão, que todo o que tivesse o governo da província da Galia, protegesse os heduos e mais amigos dos romanos, quando fosse possível fazê-lo sem gravame da República.”
<br />XXXVI — A isto respondeu Ariovisto: “Que era direito da guerra imperar o vencedor à bel prazer sobre o vencido; nem segundo o ditame de outrém costumava o povo romano fazê-lo mas por alvedrio seu; e se ele não prescrevia aos romanos a maneira, por que haviam de usar de seu direito, não deviam também os romanos estorvá-lo quando usava do seu — Que os heduos, tendo tentado a fortuna das armas, tornaram-se, depois de vencidos, tributários seus; e grande injustiça praticava Cesar, agorentando-lhe com sua vinda os rendimentos, — Que não havia de restituir os reféns aos heduos, nem fazer-lhes guerra a eles e seus aliados, enquanto persistissem no concertado, pagando-lhe o tributo anual; mas, se o não fizessem, de nada lhes havia de valer o nome fraterno do povo romano. E quanto a dizer Cesar, que não desprezaria os agravos dos heduos, ninguém combatera com ele sem ficar destruído; esperimentasse-o, quando quisesse, e conheceria qual era o valor dos germanos invencíveis e adestrados nas armas, a ponto de se não abrigarem debaixo de teto por espaço de quatorze anos.”
<br />XXXVII — Na mesma ocasião em que esta resposta se transmitia a Cesar, chegavam-lhe embaixadores não só dos heduos, mas também dos trevicos(51): — Queixavam-se os heduos, de nem ainda com reféns poderem comprar a paz de Ariovisto, pois estavam as suas fronteiras(52) sendo assoladas pelos harudes, recentemente transportados à Galia: — Os treviros, de haverem acampado junto à margem do Rim, com ânimo de passar o rio, os cem cantões dos Suevos(53), capitaneados pelos irmãos, Nasua e Cimberio. Gravemente comovido com isto, entende Cesar que não há tempo a perder, porque se às antigas tropas de Ariovisto se reunisse o novo enxame dos suevos, menos facilmente poderia resistir-lhes. Assim, feito as pressas provimento de víveres, dirige-se a grandes marchas contra Ariovisto.
<br />XXXVIII — Tendo avançado caminho de três dias, recebe aviso de que marchava Ariovisto com todas as tropas a ocupar Vesonção(54), a maior cidade dos sequanos, e havia ganho três jornadas além de suas fronteiras. Entendia Cesar dever a todo custo prevenir tal ocupação: porquanto havia nesta cidade suma abundância de tudo que é mister para a guerra, e era ela tão fortificada por sua situação, que oferecia a maior possibilidade de fazer prolongar a campanha, porque o rio Dubis(55), torneando-a como à volta de compasso, a cinge quase toda, e o espaço por ele não compreendido, de cerca de seiscentos pés, é fechado por um alto monte cujas raízes são de um e outro lado, beijadas pelas margens do rio. Fazendo do monte cidadela, prende-o a cidade uma muralha. Para aqui se dirige Cesar a grandes marchas noite e dia, ocupa a praça(56), e a guarnece de tropas.
<br />XXXIX — Enquanto se demora poucos dias em Vesonção para abastecer-se de víveres, inquerindo os nossos e apregoando os gauleses e mercadores, serem os germanos de grande corpulência, incrível esforço e exercício em armas, à ponto de não poderem os gauleses suportar-lhes no combate nem a catadura nem o olhar sequer, apoderou-se tal terror do exército, que não pouco perturbava o entendimento e ânimo a todos. Nasceu este, a princípio, dos tribunos dos soldados, prefeitos e outros, que acompanhando a Cesar por amizade, quando partiu de Roma, deploravam a gravidade do perigo, por não terem grande prática da guerra. Deles pediam a Cesar permissão de retirar-se, inventando algum pretexto honesto para fazê-lo; deles ficavam por vergonha, para evitar a suspeita do medo. Estes porém não podiam compor o rosto, nem por vezes reter as lágrimas: escondidos nas tendas, ou choravam sua má fortuna, ou deploravam com os amigos o perigo comum. Pelo campo todo se faziam testamentos. Com as vozes e o temor desses, aos poucos se iam turbando os mesmos que grande experiência tinham da guerra, soldados, centuriões e oficiais de cavalaria. Os que queriam parecer mais corajosos, diziam temer, não o inimigo, mas os desfiladeiros e imensos bosques que se interpunham entre eles e Ariovisto, ou a carência de provisões pela dificuldade dos transportes. Alguns até prediziam a Cesar que, quando mandasse levar campo e estandantes, o soldado lhe não havia de obedecer nem desalojar, possuído de temor.
<br />XL — À vista de tamanho pânico, faz Cesar uma reunião de oficiais em que são admitidos os centuriões de todas as graduações(57); e extranha-lhes severamente entenderem dever pesquisar, ou examinar para onde, ou com que fim fossem dirigidos, acrescentando: “Que tendo em seu consulado Ariovisto solicitado a amizade do povo romano com todo empenho, porque razão se supunha deixaria tão sem fundamento de permanecer nela? — Que ele Cesar estava persuadido de que, apreciando sua proposta e a equidade das condições oferecidas, não havia Ariovisto de enjeitar-lhe a amizade nem a dos romanos — Caso, porém, fosse tão furioso e insensato, que nos declarasse guerra, que era o que temiam? Ou porque deixavam de confiar no próprio valor, ou na perícia do general? — Que em tempo de nossos pais fora este inimigo experimentado, quando, com não menor glória do exército, que do general, derrotara Caio Mano os Cimbros e Teutões; e ainda há pouco o fora em Itália, na guerra dos escravos germanos, já então auxiliados com alguma tática militar de nós aprendida — Daí se podia conhecer quanto valia a constância, pois aos que algumas vezes temeram desarmados, os venceram depois armados e vencedores. Que estes finalmente eram os mesmos germanos, muitas vezes combatidos, e não poucas vencidos, até em sua própria casa, pelos helvecios que não puderam todavia resistir ao nosso exército; e os que se deixavam impressionar da derrota e fuga dos gauleses, deviam ver que Ariovisto, fatigando-os com a procrastinação da guerra, encerrado muitos meses nos arraiais e paues, sem dar cópia de si, e acometendo-os de súbito, quando já debandados desesperavam a batalha, mais os vencera por estratagema, que valor; — mas nem esse mesmo esperava que nosso exército se deixasse surpreender pelo ardil, que lhe sortira bom efeito com bárbaros inexperientes — Que os que disfarçavam o temor com a carência de viveres e os desfiladeiros do caminho, obravam arrogantemente, parecendo ou desconfiar da capacidade do general ou prescrever-lhe o dever — Que tinha muitos a peito o abastecimento do exército: pois os sequanos, leucos(58), e lingones(59), lhe forneciam trigo, e já as messes estavam maduras nos campos; do caminho seriam eles próprios em breve os juizes. Quanto a não obedecerem, nem levarem estandartes(60), nada com isso se movia; porque sabia terem-se os generais a quem não obedecera o exército, ou infelicitado perdendo batalhas, ou maculado com criminosa avareza: — que de sua limpeza de mãos dava testemunho sua vida inteira, de sua felicidade a guerra contra os helvecios — Que assim o que havia de fazer daí a dias, ia fazê-lo já, que era levantar campo na quarta vela da próxima noite, para saber quanto antes o que podia mais com eles, se o pudor e o dever ou o medo — E se ninguém o quisesse seguir, havia, nada obstante, marchar só com a décima legião, e essa lhe serviria de coorte pretoriana.” Era esta a legião a que Cesar mais comprazia, e em cujo valor mais confiava.
<br />XLI — Maravilhosa foi a mudança operada nos ânimos por este discurso, que fez nascer em todos sumo alvoroço e ardor guerreiro. A décima legião foi a primeira que, pelos tribunos dos soldados, rendeu graças a Cesar, por haver dela formado ótimo conceito, e confirmou estar prontíssima a marchar. Depois, também as demais legiões, por intermédio dos tribunos dos soldados e centuriões das primeiras graduações, lhe deram satisfação nestes termos: “Que nunca duvidaram, nem temeram, nem reputaram seu o comando, mas do general.” Aceita a satisfação, e por Diviciaco, o gaulês de sua maior confiança, explorado o melhor caminho para levar o exército por campos com um rodeio de mais de sessenta milhas, parte na quarta vela da noite, como determinara; e ao sétimo dia de marcha não interrompida, sabe dos exploradores distarem das suas as tropas de Ariovisto coisa de vinte e quatro milhas.
<br />XLII — Ciente da vinda de Cesar, envia-lhe Ariovisto embaixadores a dizer: “Que convinha em ter a conferência dantes pedida, porque havendo Cesar chegado para mais perto, contava podê-lo fazer sem risco.” Não rejeitou Cesar a proposta; e já supunha Ariovisto tornado a melhor conselho, pois oferecia de boamente o que recusara rogado, e concebia grande esperança de que em atenção aos benefícios dele e do povo romano recebidos, e à vista da equidade do que lhe exigia, havia desistir da pertinácia. Foi para daí a cinco dias marcado o da conferência. E como neste ínterim se enviavam recíprocas embaixadas, exigiu Ariovisto que Cesar não levasse infantaria alguma à conferência, porque receava ciladas da parte deste, mas fossem ambos acompanhados de cavalaria, sendo que de outra forma não havia de vir. Cesar que desejava remover todo e qualquer obstáculo à realização da conferência, mas não ousava confiar sua salvação à cavalaria gaulesa, entendeu ser o mais conveniente tirar-lhe os cavalos, e montar com eles a décima legião que era a de sua maior confiança, para, em caso de necessidade, contar com socorro quanto mais amigo; o que feito, disse não sem graça um soldado desta: “Que Cesar fazia mais do que prometia, pois tendo prometido fazer da décima legião guarda pretoniana, a alistava na cavalaria.”
<br />XLIII — Havia uma vasta planície, e nela um cômoro assás grande. Distava o lugar, quase espaço igual de ambos os acampamentos. Para ali se dirigiram a conferenciar, como estava convencionado. Cesar postou sua legião montada a duzentos passos deste cômoro. A cavalaria de Ariovisto fez alto a distância igual. Chegados aí, exordiou Cesar, mencionando os benefícios seus e do Senado a Ariovisto, como fora honrado com o título de rei e amigo, e magnificamente remunerado, o que a bem poucos coubera em sorte, pois tinham os romanos por usança concedê-lo unicamente aos mais assinalados serviços; — e todos esses favores conseguira por mera liberalidade sua e do Senado, porque não tinha motivo justo, nem plausível, para solicitá-los, Representou-lhe mais quão antigos e justos eram os fundamentos da amizade dos romanos com os heduos, de quais, quantos, e quão honoríficos decretos do Senado haviam estes sido objeto, e como em todo tempo, ainda antes de procurarem nossa amizade, exerceram a supremacia na Galia — Que era uso e costume do povo romano o querer que seus aliados e amigos não só nada perdessem em seus foros, mas fossem ainda acrescentados em preponderância, dignidade, honraria. Como pois se havia tolerar fosse arrancado aos heduos o que trouxeram com sua amizade quando se aliaram aos romanos? Apresentou depois as mesmas condições que havia proposto por seus embaixadores — Que não fizesse guerra nem aos heduos, nem a seus aliados; restituísse os reféns; e, se não podia mandar parte dos germanos para seu país, não consentisse passarem o Rim outros de novo.”
<br />XLIV — A isto pouco respondeu Ariovisto, espraiando-se sobre seu mérito e virtudes nesta substância: “Que não de motu próprio, mas rogado e convidado pelos gauleses, se aventurara a passar o Rim, deixando pátria e parentes não sem grandes esperanças e promessas; que tinha na Galia domicílio e reféns concedidos pelos mesmos, e pelas leis da guerra percebia o tributo que aos vencidos costumavam impor os vencedores — Que não fora ele quem fizera guerra aos gauleses, mas os gauleses a ele, vindo atacá-lo e acampando contra ele todas as cidades da Galia(61); — e essas numerosas tropas foram todas por ele destroçadas e vencidas numa batalha — Se queriam fazer nova experiência, estava pronto a pelejar; mas se queriam paz, era iníquo recusarem o tributo que até aí haviam pago — Que a amizade do povo devia ser-lhe de honra e proveito, não prejuízo; e neste presuposto a solicitara — Se o povo romano lhe tirasse os tributários, remitindo-lhes o tributo, de tão boamente lhe havia de enjeitar a amizade, como a procurara — Quanto a passar a Galia multidão de germanos, o fizera para amparar-se, não para atacar a Galia; e disso era testemunho o não ter vindo, senão rogado, e o não ter atacado, mas repelido o ataque — Que primeiro, que os romanos, viera ele à Galia; pois nunca dantes havia nosso exército transposto os limites da província romana. Que era o que lhe queria? porque penetrava em seus domínios? — Que esta Galia era província sua, bem como aquela outra nossa; e assim como lhe não devia ser permitido invadir nossas fronteiras, assim também éramos injustos intrometendo-nos em sua jurisdição — Quanto a serem os heduos apelidados irmãos pelo Senado, não era ele tão bárbaro e inexperiente do que ia pelo mundo, que não soubesse que nem os heduos auxiliaram aos romanos na guerra contra os alobroges, nem os romanos aos heduos na que estes com ele e os sequanos tiveram — Que o ter Cesar exército na Galia com capa de amizade, suspeitava ser para oprimi-lo, e se dali se não retirasse com o exército, havia tê-lo em conta, não de amigo, mas de inimigo; pois faria, se o matasse, coisa agradável a muitos nobres e principais de Roma, como sabia dos mensageiros que lhe os mesmos enviavam, e podia com isso comprar a proteção e amizade de todos eles: — ele porém, se Cesar se retirasse, deixando-lhe a livre posse da Galia, havia remunerá-lo, fazendo sem trabalho nem risco do mesmo Cesar todas as guerras que quisesse feitas(62).
<br />XLV — Muito discorreu Cesar para mostrar não poder desistir da pretenção, por não ser próprio dele e do povo romano desamparar aliados beneméritos, nem ser a Galia mais de Ariovisto do que dos romanos. Que por Quinto Fabio Maximo foram vencidos os arvernos e rutenos(63), a quem perdoara o povo romano sem os reduzir a província, nem impor-lhes tributo — Se convinha atender à antiguidade, o império romano era o mais justo na Galia; se à autoridade do Senado, a Galia a quem permitira vencida reger-se por suas leis, devia ser livre.
<br />XLVI — Emquanto isto se passa na conferência, é Cesar avisado de que os cavaleiros de Ariovisto se chegavam para perto do cômoro, e cavalgando contra os nossos, lhes arremessavam pedras e dardos. Põe Cesar termo ao dizer, e retirando-se para os seus, ordena-lhes nem um só tiro façam aos inimigos. Pois, posto via haver de ser sem risco da legião escolhida o combate com a cavalaria, entendia contudo não dever travá-lo, para que, rechaçados os inimigos, não se dissesse depois haverem sido cercados na conferência com quebra da fé pública. Mal se espalhou pelo vulgo dos soldados com que arrogância se houvera Ariovisto, pretendendo vedar-nos a Galia, ter sua cavalaria atacado os nossos, e ser isso causa de romper-se a conferência, maior foi ainda a alacridade e o ardor de pelejar, que se apoderou do exército.
<br />XLVII — Dois dias depois manda Ariovisto esta embaixada a Cesar: “Que desejava tratar com ele do que começara a tratar-se, e não fora ultimado; — e ou marcasse dia para nova conferência, ou, senão, lhe deputasse algum lugar-tenente seu.” Não julgou Cesar dever ter outra conferência, mui principalmente por não se poderem abster os germanos na passada de fazer tiros aos nossos. Deputar-lhe um lugar-tenente dos seus fora expô-lo a grande risco entre tais bárbaros. O que pareceu mais conveniente, foi enviar-lhe Caio Valerio Procillo, filho de Caio Valenio Caburo, moço de excelentes partes, cujo pai fora por Caio Valerio Flaco agraciado com o foro de cidadão romano, pois não só era de sua inteira confiança, e sabedor da língua gaulesa, já mui familiar a Ariovisto, pelo longo uso, mas não dava também na pessoa ocasião aos germanos de desrespeitar-nos, e juntar-lhe por colega Marco Mecio(64) que fora hóspede de Ariovisto. A estes, pois, ordenou fossem saber o que lhe ele queria, e lho viessem relatar. Assim que os viu no acampamento, entrou Ariovisto a bradar diante de seu exército: “Porque é que vinham a ele? Se não eram espias?” E sem lhes permitir explicar-se os manda carregar de cadeias.
<br />XLVIII — Levanta no mesmo dia o campo e o vem assentar junto de um monte a seis mil passos dos arraiais de Cesar. No seguinte, passa suas tropas para além dos arraiais de Cesar, acampando dois mil passos diante dele, para cortar-lhe o provimento de trigo e vitualhas, transportado dos sequanos e heduos(65). Desde esse dia conserva Cesar suas tropas ordenadas em batalha em frente dos arraiais por outros cinco sucessivos, oferecendo a Ariovisto ocasião de pelejar, se o quisesse fazer. Em todos eles contém Ariovisto o exército nos arraiais, escaramuçando quotidianamente com a cavalaria. São os germanos mui exercitados neste gênero de peleja.
<br />Tinham seis mil cavaleiros, e outros tantos peões mui velozes e valentes, singularmente escohidos por cada cavaleiro para guarda sua. Com esses andavam os cavaleiros nas refregas, a esses se retraiam; esses ao menor perigo acorriam; se algum caía do cavalo gravemente ferido, logo o socorriam; se era mister avançar muito, ou retroceder a toda pressa, tão exercitada era neles a celeridade, que, agarrados às crinas dos cavalos, os igualavam na carreira.
<br />XLIX — Como viu encerrar-se Ariovisto nos arraiais, Cesar, para lhe não ser mais tempo tolhido o provimento de víveres, escolheu além do em que estanciavam os germanos, lugar asado a acampamento, cerca de seiscentos passos destes, e para lá marchou com o exército formado em três linhas. À primeira e segunda linhas ordenou se conservassem em armas; à terceira, fortificasse arraiais. Distava do inimigo o lugar coisa de seicentos passos, como fica dito. Para ali mandou logo Ariovisto uns dezeseis mil homens expeditos com toda cavalaria, no intuito de com tais tropas obstar a fortificação, aterrando os nossos. Ordenou nada obstante Cesar que duas linhas fizessem rosto ao inimigo, e a terceira concluísse a obra. Fortificados os arraiais, aí deixou duas legiões e parte dos auxiliares, reconduzindo as quatro restantes aos arraiais maiores.
<br />L — No seguinte dia tira Cesar suas tropas de ambos os arraiais, como dispusera; e adiantando-se um pouco dos maiores, as forma em batalha, oferecendo ao inimigo ocasião de pelejar. Vendo que nem assim saía a campo, reconduziu o exército à quartéis pela volta de meio dia. Então, finalmente, mandou Ariovisto parte de suas tropas atacar os arraiais menores, e de ambos os lados se combateu encarniçadamente até véspera. Ao pôr do sol reconduziu Ariovisto as tropas a quartéis, depois de causado e recebido muito dano. Inquerindo dos cativos o motivo por quê Ariovisto não aceitava a batalha, soube Cesar ser costume entre os germanos declararem as mães de família por meio de sortilégios e vaticínios, quando convinha ou não dar batalha; e diziam essas: “Não ser permitido aos germanos vencer, se antes da lua nova a dessem.”
<br />LI — Um dia depois guarnece Cesar ambos os arraiais com força suficiente, e formando à vista dos inimigos todos os auxiliares em frente dos arraiais menores, para ostentação de número, por ter poucas legiões comparativamente à grande multidão daqueles, marcha em pessoa sobre o campo inimigo com o exército em três linhas. Obrigados então da necessidade tiram por fim os genmanos suas tropas dos quartéis e as ordenam em batalha por nações, mediando igual intervalo entre harudes(66), marcomanos(67), triboces(68), vangiones(69), nemetes(70), sedusios(71), suevos(72), e para tolher qualquer esperança de fuga, circundam toda a hoste(73) de veículos e carros, donde as mulheres com as mãos postas pediam chorando aos soldados que avançavam, as não deixassem cair na escravidão dos romanos.
<br />LII — Prepondo a cada legião um lugar-tenente seu e um questor, para testemunharem o valor de cada um, trava Cesar a batalha com sua ala direita por notar que o inimigo estava menos firme desse lado. Com tal fúria investem os nossos ao sinal dado, e tão galhardamente correm os inimigos a encontrá-los, que não tiveram aqueles espaço de vibrar pilos contra estes. Omitidos os pilos, peleja-se a espada, recebendo os germanos o ímpeto destas ordenados em falange à sua usança. Houve muitos soldados nossos que, saltando por sobre as falanges(74), arrancavam-lhes os escudos com as mãos e feriam por cima. Desbaratada e posta em fuga a ala esquerda do inimigo, apertava a sua direita vigorosamente com os nossos assoberbados da multidão. Observa-o o moço Publio Crasso, general da cavalaria, por andar mais expedito, que os que se achavam na refrega, e envia a terceira linha a socorrer os nossos em aperto.
<br />LIII — Restaurada por esta forma a batalha, voltaram costa todos os inimigos, e não pararam na fuga, senão quando chegaram à margem do Rim cerca de cinqüenta mil passos deste lugar. Aí, mui poucos, ou a passar o rio a nado, confiados nas próprias forças, se aventuraram, ou em canoas que por acaso encontraram, se salvaram(75). Deste número foi Ariovisto, que fugiu numa barquinha que estava amarrada à margem. Alcançados dos nossos com a cavalaria, todos os mais foram mortos. Duas mulheres teve Ariovisto, uma sueva, que trouxe comsigo da pátria; a outra norica, irmã do rei Vocião, com a qual casou na Galia, enviada pelo irmão: ambas pereceram nesta fuga. De duas filhas que houve delas, uma foi morta, a outra aprisionada. Caio Valerio Procilo, eniquanto é pelos guardas arrastado na fuga com três cadeias, encontra-se com o próprio Cesar que perseguia o inimigo à frente da cavalaria; e não é a este menor prazer, que a mesma vitória, ver tirado de mãos hostis, e salvo, a um dos homens mais honrados da província da Galia, amigo e hóspede seu, em que com sua perda agorentasse coisa alguma a fortuna de tanta satisfação e regozijo. Dizia ele haveremse três vezes feito sortilégios em sua presença, a ver se seria logo queimado vivo, ou reservado para outra ocasião, e dever aos sortilégios a salvação. É do mesmo modo encontrado Marco Mecio, e apresentado a Cesar.
<br />LIV — Divulgada além Rim(76) a notícia desta batalha, entram a regressar a pátria os suevos acampados à margem deste. Deles aterrados, e acossados pelos Ubios que habitam perto do rio e lhes vão no encalço, são mortos muitos na retirada. Terminadas duas das maiores guerras em um só estio, conduz Cesar o exército aos sequanos(77) a quartéis de inverno, um pouco mais cedo do que o requeria a estação; e prepondo Labieno a esses quartéis, parte para a Galia citerior a reunir as juntas da província(78).
<br />Fonte: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/cesarP.html
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />[Volta à Página Principal]
<br />Salústio
<br />Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
<br />Caio Salústio Crispo (86-34 a.C.), foi um dos grandes escritores e poetas da literatura latina.
<br />Nasceu em Amiterno, na Sabina, em 86 a.C. em uma família interiorana, mas de posses, teve uma formação requintada. Foi cedo para Roma, e recebeu apoio de pessoas da influência da sua família. Com o apoio de César, Salústio foi eleito questor, cargo que lhe assegurou uma cadeira no Senado Romano. Investiu contra adversários de César, e estes passaram a ser seus adversários, como Milão e Cícero.
<br />Esse inimizade que Salústio tinha com Cícero é refletira em sua obra: A conjuração de Catilina, o autor é hostil a Cícero e não entra em muitos detalhes quanto a importante participação de Cícero durante o ocorrido, ele nem mesmo reproduz os discursos de Cícero ao Senado, discursos que até hoje são lembrados pela historiografia política. Em compensação Salústio descreve com riqueza de detalhes o discurso de César, seu colaborador.
<br />Salústio foi expulso do Senado pelo censor Ápio Cláudio Pulcher, grande amigo de Cícero, sob a acusação de imoralidade, mais pouco depois foi reconduzido ao cargo pelo chefe e padrinho. Durante a guerra Civil, ele apoiou a causa de César a quem prestou serviços e por quem foi nomeado governador da Numídia (África Nova), onde conseguiu acumular uma grande riqueza e passou a desfrutar da “angustiante fadiga romana”. Com o fim de sua carreira política, ele passou a se dedicar a literatura, já desiludido com a corrupção em Roma, escreveu sobre a decadência do povo romano e foi útil ao descrever dois grandes momentos do fim da república romana: a Conjuração de Catilina e a Guerra de Jugurta, escritos entre a morte de Cícero, em 43 a.C. e a guerra Purúgia, 40 a.C., quando os grandes personagens da conjuração, Crasso, Pompeu, Catão, César, Cícero e o próprio protagonista, Catilina; já haviam desaparecidos do cenário político.
<br />Salústio usa suas narrativas como um pretexto para criticar os erros políticos cometidos pelos que governavam, principalmente os de Cícero, seu inimigo político e pessoal. Assim Salústio encerra sua vida publica, em sua mansão adquirida com as riquezas que arrecadou enquanto era governador da Numídia, escrevendo suas monografias em seu belo jardim, e assim como Cícero, ele entra para a história por relatar passagens da política romana na antiguidade.
<br />
<br />César e Catão: algo de Salústio para ser relido
<br />Por: Maria da Glória Novak
<br />Lendo e ouvindo as muitas façanhas feitas pelo povo Romano na paz e na guerra, no mar e em terra, ocorreu-me o desejo de indagar que causas tornaram possivel tão grande atividade. Sabia eu que freqüentes vezes um punhado de homens se tinham batido com grandes legiões inimigas; tinham tido a oportunidade de conhecer que com recursos escassos se guerreara contra reis poderosos; que, além do mais, tivéramos com freqüência de suportar os golpes da fortuna, e que os gregos, pela eloqüência, e os gauleses, pela glória militar, estavam à frente dos Romanos.
<br />À custa de muita reflexão, eu chegava a conclusão de que o valor eminente de uns poucos cidadãos tinha conseguido realizar tudo isso e assim se deu que a pobreza prevaleceu sobre a riqueza, a pouquidade, sobre a multidão.
<br />Mas depois que o luxo e a ociosidade corromperam a Nação, a República, pela sua própria grandeza, foi, por sua vez, capaz de suportar os vícios dos generais e magistrados e, Roma, como se tivesse exaurida sua fecundidade, por longos anos não produziu nenhuma grande figura. Em meu tempo, porém, houve dois homens de extraordinãrio valor, de caracteres opostos: Marco Catão e Caio Cesar.
<br />Pois bem, eles, pelo nascimento, idade, eloqüência, eram quase iguais; a mesma grandeza de alma, o mesmo desejo de glória também, mas cada um à sua maneira. À custa de favores e liberalidades granjeara César seu prestígio; Catão, pela integridade de sua vida. Aquele pela mansidão e clemência se fizera ilustre; a este a austeridade conferira o respeito. Ambos chegaram à glória: César dando, ajudando, perdoando; Catão, nada concedendo. Um era o refúgio dos infelizes, o outro a ruína dos maus. De um se louvava a condescendência, do outro a coerência. Por fim, César se propusera trabalhar, vigiar, descuidar de seus interesses para se consagrar aos interesses dos amigos; para si ambicionava uma grande missão, um exército, uma guerra diferente onde pudesse resplandecer seu valor. E Catão tinha o gosto da moderação, do dever, mas, acima de tudo, da austeridade. As armas com que lutava não eram a riqueza com os ricos nem a intriga com o intrigante, mas a coragem com o bravo, a discrição com o modesto, a integridade com o honesto. Preferia ser a parecer bom; por isso, quanto menos procurava a glória, mais ela o perseguia. Ita quo minus petebat gloriam, eo magis illum adsequebatur.
<br />Salústio: De Coniuratione Catilinae, Sobre a conjuração de Catilina, 53-54.
<br />Sed mihi multa legenti, multa audienti, quae populus Romanus domi militiaeque, mari atque terra praeclara facinora fecit, forte lubuit adtendere, quae res maxume tanta negotia sustinuisset. [3] sciebam saepenumero parva manu cum magnis legionibus hostium contendisse; cognoveram parvis copiis bella gesta cum opulentis regibus, ad hoc saepe fortunae violentiam toleravisse, facundia Graecos, gloria belli Gallos ante Romanos fuisse. [4] ac mihi multa agitanti constabat paucorum civium egregiam virtutem cuncta patravisse, eoque factum, uti divitias paupertas, multitudinem paucitas superaret. [5] sed postquam luxu atque desidia civitas conrupta est, rursus res publica magnitudine sua imperatorum atque magistratuum vitia sustentabat ac, sicuti effeta partu, multis tempestatibus haud sane quisquam Romae virtute magnus fuit. [6] sed memoria mea ingenti virtute, divorsis moribus fuere viri duo, M. Cato et C. Caesar. quos quoniam res obtulerat, silentio praeterire non fuit consilium, quin utriusque naturam et mores, quantum ingenio possum, aperirem.
<br />LIV.[1] Igitur iis genus, aetas, eloquentia prope aequalia fuere, magnitudo animi par, item gloria, sed alia alii. [2] Caesar beneficiis ac munificentia magnus habebatur, integritate vitae Cato. ille mansuetudine et misericordia clarus factus, huic severitas dignitatem addiderat. [3] Caesar dando, sublevando, ignoscundo, Cato nihil largiundo gloriam adeptus est. in altero miseris perfugium erat, in altero malis pernicies. illius facilitas, huius constantia laudabatur. [4] postremo Caesar in animum induxerat laborare, vigilare; negotiis amicorum intentus sua neglegere, nihil denegare, quod dono dignum esset; sibi magnum imperium, exercitum, bellum novom exoptabat, ubi virtus enitescere posset. [5] at Catoni studium modestiae, decoris, sed maxume severitatis erat; [6] non divitiis cum divite neque factione cum factioso, sed cum strenuo virtute, cum modesto pudore, cum innocente abstinentia certabat; esse quam videri bonus malebat: ita, quo minus petebat gloriam, eo magis illum adsequebatur.
<br />in: NOVAK, Maria da Glória: Antologia Bilíngüe de Escritos Latinos pp. 41-43.
<br />Fonte: http://salterrae.org/2008/05/13/cesar-e-catao-algo-de-salustio-para-ser-relido/
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />HORÁCIO - LÍRICA
<br />
<br />Estudo sobre a lírica de Horácio:
<br />A Lírica de Horácio: Uma Lição Clássica de Contornos Atuais, De José Mário Botelho - download pdf
<br />
<br />Horácio (65 a.C. - 8 a. C.)
<br />O poeta lírico, satírico e filósofo Quintus Horatius Flaccus ou Quinto Horácio Flaco nasceu em Venúsia, posteriormente Venosa, Itália. Filho de um escravo emancipado, que exercia as funções de recebedor dos dinheiros públicos no leilões, Horácio teve boa educação literária em Roma, completada, depois, em Atenas. Nesta cidade se achava ainda quando ocorreu o assassinato de César (44 a. C.).
<br />Horácio e vários de seus colegas de estudos acolheram com entusiasmo o feito de Brutus, e quando esse organizou o exército que iria combater em Filipos, Horácio, com apenas vinte anos, recebeu o comando de uma legião.
<br />Apesar da derrota em Filipos, pôde regressar a Roma graças a uma anistia.
<br />Em Roma, conseguiu o cargo de escrivão de questor e, graças proteção do influente Caio Mecenas, a quem foi apresentado por Virgílio, Horácio entrou para os círculos literários, tornando-se o primeiro literato profissional romano. Mecenas ainda presenteou-o com uma casa de campo nos arredores de Tibur, hoje Tívoli. A partir daí Horácio dedicou-se somente ao cultivo da poesia, chegando a recusar até mesmo o posto de secretário particular de Augusto.
<br />Horácio reagiu contra a escola de Catulo, procurando os seus modelos nos velhos líricos da escola lesbiana. Em seus versos, de notável perfeição formal, vemos refletido a moral epicurista, ou seja, não se entregue a ambição, goze com moderação dos bens da vida e não se preocupe como o futuro (carpe diem).
<br />As obra lieterária de Horácio é composta por:
<br />Odes (19 a. C.) - Peças líricas sobre vários assuntos;
<br />Epodos, ou Iambos - coleção de 17 poemas escritos na mocidade, que tratavam de assuntos romanos e imitava, tanto no metro como no espírito satírico, o poeta Arquíloco;
<br />Satíricas ou Sermones - baseado em assuntos literários ou morais, discute questões éticas;
<br />Canto Secular, composta a pedido de Augusto. (20 a. C.) - hino epistolar de caráter litúrgico dedicado a Apolo e Diana;
<br />Epístolas - coleção de cartas sobre assuntos variados: recomendações, convites e discussões filosóficas e morais. Dentre essas cartas destaca-se a carta aos Pisões, conhecida como Arte Poética.
<br />Fonte: www.mundocultural.com.br
<br />
<br />CARPE DIEM
<br />Ode ( I, XI)
<br />Horácio, séc. I a.C.
<br />Tradução de Mauri Furlan
<br />Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
<br />Finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
<br />Tentaris numeros. Ut melius quidquid erit pati!
<br />Seu plures hiemes, seu tribuit Jupiter ultimam,
<br />Quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
<br />Tyrrhenum, sapias, vina liques et spatio brevi
<br />Spem longam reseces. Dum loquimur, fugerit invida
<br />Aetas: carpe diem, quam minimum credula postero.
<br />Tu não procures, conhecer não deves, o fim que a mim,
<br />a ti concederam os deuses, ó Leucone, nem experimentes
<br />os números babilônicos. Melhor sofrer o que quer que seja!
<br />Seja muitos invernos, seja o último que Júpiter concedeu,
<br />e que agora o mar Tirreno quebra contra os rochedos,
<br />sejas sábia, filtres os vinhos, e pelo curto espaço de tempo
<br />suprimas qualquer longa esperança. Enquanto falamos, o tempo invejoso
<br />foge: aproveita o dia, muito pouco crédula no que virá.
<br />Fonte: http://www.latim.ufsc.br/Carpe%20diem.html
<br />
<br />Ode 1, 9
<br />tradução: Everton Lourenço
<br />Vês como o Soracte se ergue branco,
<br />coberto por uma densa neve, e já nem
<br />as floresta fatigadas sustentam o peso,
<br />e os rios se detiveram com o gelo penetrante?
<br />
<br />Dissolve o frio, Taliarco, repondo as lenhas
<br />em abundância sobre a lareira
<br />e mais generosamente tira o puro vinho
<br />quatro anos envelhecido do vaso sabino.
<br />
<br />Deixa todo o resto aos deuses,
<br />que tão logo estes acalmaram os ventos
<br />que combatiam no mar turbulento,
<br />nem os ciprestes, nem os velhos freixos são agitados.
<br />O que há de ser amanhã será, deixa de se preocupar,
<br />e, em todo caso, quantos forem os dias que te concederá
<br />a fortuna , toma como lucro. E não te afastes, rapaz,
<br />dos doces amores. E nem desprezes, tu, as danças
<br />enquanto a penosa brancura estiver afastada de ti,
<br />que ainda floresces. E agora, que o Campo de Marte,
<br />e as praças, e os doces sussurros sob a noite
<br />sejam retomados na hora propícia.
<br />
<br />E também o agradável riso revelador
<br />da menina que se esconde em um canto íntimo,
<br />e o penhor arrebatado dos braços
<br />ou do dedo pouco firme.
<br />
<br />
<br />
<br />(Horácio. Odes I, 9 - fonte: http://palavrasnomundo.blogspot.com/2008/04/horcio-odes-i9.html)
<br />
<br />Horácio, Odes XI
<br />Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
<br />finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
<br />temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
<br />seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
<br />quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
<br />Tyrrhenum: sapias, uina liques, et spatio breui
<br />spem longam reseces. dum loquimur, fugerit inuida
<br />aetas: carpe diem quam minimum credula postero.
<br />
<br />
<br />Não sondes o destino, amiga, que os deuses
<br />nos reservaram, nem interrogues
<br />os astrólogos da babilônia.
<br />Enfrentemos o que vier, seja o que for.
<br />Quer Júpiter te conceda muitos invernos
<br />quer seja este o último
<br />em que as ondas do Tirreno
<br />castigam os rochedos,
<br />sê sábia e prova teus vinhos.
<br />A vida é breve,
<br />não alimentes longas esperanças.
<br />Enquanto falamos,
<br />o tempo, invejoso, foge:
<br />vive o presente,
<br />o menos crédula possível
<br />no dia seguinte.
<br />
<br />(tradução Miguel do Rosário, com influència de M.B.R)
<br />fonte: http://oleododiabo.blogspot.com/2008/07/horcio-odes-xi.html)
<br />
<br />Horácio - Odes I, 32
<br />tradução: Everton Lourenço
<br />Somos chamados. Se sob a sombra ociosos
<br />compomos contigo algo, que não só viva
<br />por este ano, mas por muitos.
<br />Vamos! canta uma poema latino, ó lira
<br />
<br />primeiramente tangida pelo cidadão lésbio,
<br />que, entre as armas, valoroso foi na guerra,
<br />porém, que também havia ligado
<br />a nau agitada ao úmido litoral.
<br />
<br />Este cantava não só Baco, as Musa, Vênus
<br />e o menino sempre a ela ligado,
<br />mas também Lyco de negros olhos
<br />e negra cabeleira de ornamento.
<br />
<br />Ó honra de Febo, ó lira agradável aos banquetes
<br />do supremo Júpter,ó doce consolo do trabalho,
<br />em qualquer circunstância salve a mim,
<br />que segundo os ritos invoco.
<br />
<br />
<br />(Horácio, Odes I, 32 - fonte: http://palavrasnomundo.blogspot.com/2008/05/horcio-odes-i-32.html)
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />Virgílio
<br />Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
<br />Públio Virgílio Marão (em latim Publius Vergilius Maro), às vezes chamado de Vergílio, (Andes, 15 de Outubro de 70 a.C. - Brindisi, 21 de Setembro de 19 a.C.), foi um poeta romano.
<br />Sua obra mais conhecida é a Eneida. Foi considerado ainda em vida como o grande poeta romano e expoente da literatura latina. Seu trabalho foi uma vigorosa expressão das tradições de uma nação que urgia pela afirmação histórica, saída de um período turbulento de cerca de dez anos, durante os quais as revoluções prevaleceram.
<br />Biografia
<br />Considerado o maior poeta latino. Era natural da região de Mântua (70-19 a.C.) e filho de uma família de camponeses. Alcançou pelo casamento uma situação estável, podendo então ouvir, em Milão e Roma, as lições de filósofos epicuristas. Amigo de Horácio, como ele protegido por Mecenas, entrou em contato com o imperador, de quem recebeu o incentivo para escrever a Eneida.
<br />Admirador da cultura helênica, empreendeu uma viagem à Grécia, berço e viveiro da cultura, sonho que há muito acalentava: o destino concedeu-lhe a realização desse anseio, mas morreu no regresso, junto de Brindisi. O seu túmulo encontra-se em Nápoles.
<br />A obra de Virgílio compreende, além de poemas menores, compostos na juventude, as Bucólicas ou Éclogas, em número de dez, em que reflete a influência do gênero pastoril criado por Teócrito.
<br />As Geórgicas, dedicadas ao seu protetor Mecenas, constam de quatro livros, tratando da agricultura. Trata-se de uma obra de implicações políticas indiretas, embora bem definidas: ao fazer a apologia da vida do campo, o poeta serve o ideal político-social da dignificação da classe rural. Reflete a influência de Hesíodo e Lucrécio.
<br />Literariamente, as Geórgicas são consideradas a sua obra mais perfeita. E finalmente, a Eneida, que o poeta considerou inacabada, a ponto de pedir, no leito de morte, que fosse queimada, constitui a epopéia nacional.
<br />Esta refere-se à lenda do guerreiro Enéias, que, após a célebre guerra, teria fugido de Tróia , saqueada e incendiada, e chegado à Itália, onde se tornou o antepassado do povo romano. Epopéia erudita, a Eneida tem como objetivo dar aos romanos uma ascendência não-grega, formulando a cultura latina como original e não tributária da cultura helênica.
<br />O poema consta de doze livros e a sua construção serviu de modelo definitivo às grandes epopéias do renascimento, nomeadamente para Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, o que se percebe claramente comparando o primeiro verso das duas epopéias:
<br />Eneida: Arma uirumque cano... que significa: "As armas e o varão(herói) eu canto"; com
<br />Lusíadas: As armas e os barões assinalados..
<br />
<br />Uma Epopéia por encomenda
<br />Virgílio já era ilustre pelas suas Bucólicas, um poema pastoril, e Geórgicas, um poema agrícola. Então, o imperador César Otaviano Augusto encomendou a Virgílio a composição de um poema épico que cantasse a glória e o poder de Roma. Um poema que rivalizasse e quiçá superasse Homero, e também que cantasse, indiretamente, a grandeza de César Augusto. Assim Virgílio vai elaborar um trabalho que, além de labor lingüístico e estro poético, é também propaganda política.
<br />Muitos dos episódios na Eneida, que narra um tempo mítico, têm uma correspondência sincrônica com a atualidade de Augusto. Por exemplo o escudo de Enéias, simbolizando a batalha do Ácio, quando Otávio Augusto derrota Marco Antônio em 36 a.C. e a previsão de Anquises, no Hades, sobre as glórias de Marcelo, filho de Otávia, irmã do imperador.
<br />Virgílio conclui a Eneida em 19. a.C.. A obra está completa mas não está ainda pronta segundo o seu criador. Virgílio gostaria ainda de visitar os lugares que aparecem no poema e revisar os versos dos cantos finais. Mas adoece e, às portas da morte, pede a dois amigos que queimem a obra por não estar ainda perfeita. O grande poema, já era conhecido de alguns amigos coevos, não é destruído - para nossa felicidade e fortuna literária. Sem a epopéia virgiliana, não haveria Orlando Furioso, O Paraíso Perdido, Os Lusíadas, dentre outros grandes clássicos da literatura mundial.
<br />Ambição de Virgílio
<br />Virgílio ao escrever esta epopéia inspirou-se em Homero, tentando superá-lo: Virgílio empenhou-se em fazer da Eneida o poema mais perfeito de todos os tempos. De certa forma, a primeira metade (seis primeiros cantos) da Eneida tenta superar a Odisseia, enquanto a segunda tenta superar a Ilíada. A primeira metade é um poema de viagem e a segunda um poema bélico.
<br />Dramatis personæ
<br />Há dois tipos de personagens na Eneida: os Humanos e os Deuses. Há uma espécie de terceira entidade que é a do Fatum (Fado, destino) que nem os deuses podem obliterar.
<br />Humanos
<br />• Anquises, pai de Eneias
<br />• Ascânio, filho de Eneias e de Creusa.
<br />• Creusa, esposa de Eneias.
<br />• Dido, rainha de Cartago.
<br />• Evandro, ancião
<br />• Eneias, troiano, sobrevivente à guerra de Tróia
<br />• Turno, rei latino, inimigo de Eneias em Ítália
<br />Deuses
<br />• Apolo, deus do Sol
<br />• Éolo, deus dos ventos
<br />• Juno, mulher de Júpiter, opositor de Eneias
<br />• Júpiter, o rei dos deuses
<br />• Mercúrio, o deus mensageiro
<br />• Neptuno , deus dos mares
<br />• Vénus, deusa do amor e da beleza, coadjuvante de Eneias
<br />Nota: É de bom grado utilizar a terminologia latina (romana) para falar da Eneida, já que se trata de um poema romano.
<br />Tempo da diegese
<br />O tempo da diegese, ou seja dos acontecimentos narrados, ocorre imediatamente após a queda da cidade de Tróia, portanto a Eneida dá continuidade à Ilíada de Homero. Se a Odisséia narra as aventuras de um grego, de Ulisses (ou Odisseus), que tenta voltar para a sua casa e para a sua família, a Eneida narra as aventuras de um troiano que, depois da destruição de Tróia, foge com a sua família. A sua fuga dá-se por mar. Eneias procura um sítio para fundar uma nova cidade.
<br />Tempo do discurso
<br />Quando o texto começa, a aventura de Enéias já se iniciou (a narrativa começa in media res, isto é, a meio da acção). O herói naufraga ao largo de Cartago (a actual Tunes) e vai ter com a rainha Dido. Conta-lhe as suas viagens até ao momento em que se encontra. Esse é um processo de analepse (em inglês, flashback). A partir do quarto capítulo, o tempo da diegese é contemporâneo ao da narração do poema, ou seja os acontecimentos são narrados como se estivessem acontecendo no presente.
<br />Capítulos ou Cantos
<br />A Eneida tem doze capítulos, exactamente metade que a Odisseia.
<br />I - Eneias naufraga ao largo de Cartago
<br />Depois de partir da Sicília, Enéias é arrastado por uma tempestade que o faz naufragar. Enéias observa a cidade. Ele que vem de Tróia que fora totalmente arrasada e que tem por missão fundar uma nova cidade. É recebido por Dido, rainha de Cartago. Comove-se ao ver os frescos nas paredes que narram a guerra de Tróia. Dido começa a apaixonar-se por Enéias.
<br />II- Enéias narra a Dido o último dia de Tróia
<br />Dido solicita a Enéias que lhe relate a queda da lendária cidade de Tróia. Ele conta o célebre episódio do Cavalo de Tróia. E conta como se deu a batalha durante a noite. Como o incêndio começou a devorar a cidade. No desespero Enéias decide lutar até morrer. Vênus, sua mãe, aparece e lhe diz: vai procurar o teu pai, a tua mulher e teu filho e abandona a cidade.
<br />A cidade é tomada pelos gregos. Enéias procura sua mulher, Creusa, gritando pelas ruas À sua procura. Encontra o espectro dela. Com muita ternura o fantasma de Creusa diz-lhe uma profecia: que ele irá ter muitos infortúnios mas acabará por conseguir fundar uma nova cidade. Enéias consegue fugir com o seu pai às cavalitas e com o seu filho pela mão.
<br />III- Enéias narra a Dido as suas viagens rumo à Itália
<br />Eneias continua a contar a Dido as suas peripécias para chegar à Itália, até aportar em Cartago temporaria e acidentalmente. Conta a sua escala na Trácia e em Creta. A chegada a Épiro e à Sicília. Conta também seu encontro com Andrômaca (viúva de Heitor) e como faleceu o seu pai Anquises.
<br />IV- Os amores de Dido e seu fim trágico
<br />A rainha Dido, segundo a Eneida de Virgílio, após ouvir a narração do fim de Tróia e das viagens e peripécias de Enéias, influenciada por Vênus, deusa do amor e mãe de Enéias, vê-se completamente apaixonada pelo herói. Ela convida os troianos (Enéias e os seus companheiros) para uma caçada. No meio de uma tempestade, abrigados em uma caverna, Dido e Enéias se amam. Entretanto Júpiter envia Mercúrio a Enéias para lhe lembrar que seu destino é encontrar o Lácio e fundar uma nova cidade que substitua a cidade de Tróia destruída e que governe as demais cidades do mundo. Enéias tenta sair de Cartago sem que Dido se aperceba disso. Sentido-se abandonada, enganada e vilipendiada, furiosa e ensandecidada pelo amor não retribuído, ela se suicida enquanto partem os navios troianos e Enéias ainda pôde ver a fumaça da pira funérea saindo de seu palácio.
<br />V- Os jogos fúnebres
<br />Eneias aporta à Sicília e decide realizar jogos fúnebres em honra de seu pai Anquises. Já se passou um ano desde que este morreu.
<br />(Este capítulo é importante para quem estuda a antropologia dos romanos porque dá indicações de como eles se relacionavam com a morte.)
<br />VI- Descida de Eneias ao Mundo dos Mortos/Submundo
<br />Este é um dos episódios mais famosos da Eneida. Depois de Eneias ter partido da Sicília fez escala em Cumas. Nesse local consulta uma sacerdotisa (uma sibila) de Apolo. Ele tem um desejo intenso (em sonhos seu pai o havia conclamado a fazê-lo) de falar uma última vez com seu pai para lhe pedir conselho sobre a viagem. Obtém permissão de descer ao mundo dos mortos (este episódio faz lembrar outras descidas famosas ao mundo dos mortos: o episódio de Orfeu e Eurídice, a nekya de Odisseu, no canto XI da Odisséia. No mundo dos mortos vê vários espectros. Um deles o de Dido que, ladeada por seu primeiro esposo, não lhe responde.
<br />O seu pai Anquises dá-lhe importantes informações sobre a sua viagem e faz uma longa profecia sobre o futuro glorioso de Roma. (infernos, o hades dos gregos)
<br />VII- chegada ao Lacio
<br />(Latium, província romana onde se situará Roma)
<br />VIII- Evandro. Descrição do Escudo de Eneias
<br />IX- Ataque ao acampamento troiano
<br />X- Façanhas e morte de Palante
<br />XI- Funerais dos guerreiros. Façanhas de Camila
<br />XII- Combate de Eneias e de Turno. Vitória de Eneias.
<br />Simbologias da Eneida
<br />A Eneida simboliza o poder imperial de Roma, sob o comando de César Octaviano Augusto. Dido simboliza o poder de Cartago, rival de Roma, que seria por esta destruída na terceira das guerras púnicas. Dido também simboliza Cleópatra, rainha do egipto, que se tinha aliado a um general romano, Marco António, para resistirem a Roma. Marco António e Cleópatra foram derrotados na batalha marítima do Áccio, ao largo do delta do Nilo. Dido simboliza assim a mulher misteriosa e sedutora do oriente, que resiste ao poder romano mas que por ele é submetido. Por metonímia simboliza todo o Médio Oriente e Norte de África que foram das últimas terras a serem conquistadas pelo Império Romano.
<br />
<br />Turno simboliza os antecedentes latinos da "raça" romana, enquanto Eneias simboliza os antecedentes troianos (que são ficcionais). Eneias é uma personagem que permite dar a Roma uma ascendência mítica, juntando-se assim ao mito da fundação de Roma por Rómulo e Remo.
<br />Repercussões literárias da Eneida
<br />Dante Alighieri, no seu famoso episódio da descida aos infernos, é levado pela mão de Virgílio para ver os mesmos. Luís de Camões inspira-se directamente neste grande Épico romano para escrever os seus Os Lusíadas.
<br />Traduções
<br />Há algumas traduções da Eneida para a língua portuguesa, feitas do latim. Em verso, citam-se as brasileiras de Manuel Odorico Mendes, do século XIX, que utilizou o decassílabo heróico, e de Carlos Alberto da Costa Nunes, do século XX, que utilizou o verso de dezesseis sílabas poéticas para verter o hexâmetro dactílico épico; e a portuguesa de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva, do século XIX, em decassílabos. Em prosa, publicaram-se a tradução de Tarsila Orpheu Spalding e a de Jaime Bruna.
<br />• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005;
<br />• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Carlos Aberto Nunes. Brasília: UnB, 1975;
<br />• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004
<br />
<br />Resumo de Eneida,
<br />por: Prof. Silvio Medeiros
<br />Fonte: http://imprimis.arteblog.com.br/home/
<br />LIVRO I
<br />Proêmio da "Eneida". O poeta dirige a invocação às Musas:
<br />"As armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Tróia por injunções do Destino , instalou-se na Itália primeiro e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno, guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade e ao Lácio os deuses trazer _ o começo da gente latina, dos pais albanos primevos e os muros de Roma Altanados.
<br />Musa! recorda-me as causas da guerra, a deidade agravada; por qual ofensa a rainha dos deuses levou um guerreiro tão religioso a enfrentar sem descanso esses duros trabalhos?" (p.9)
<br />Assim tem início o canto sobre a saga do herói Enéias na "Eneida". Primeiro o poeta Virgílio canta as glórias do pio Enéias, em seguida faz a invocação às Musas.
<br />A divindade inimiga do herói é a deusa Juno (esposa de Júpiter e mãe de Marte), dona das terras da Itália, além de protetora da cidade de Cartago, ao norte da África. Com efeito, para a deusa, Enéias é um invasor que deve ser combatido; apesar de Juno conhecer, desde o início da épica, as tramas que as Parcas já haviam tecido contra os inimigos do herói troiano: "Juno potente, a sangrar-lhe no peito a ferida, conversa consigo mesma: _ Aceitar o fracasso no início da empresa, sem conseguir afastar dessa Itália o caudilho troiano?..."
<br />Em meio a outros pensamentos contra o herói troiano, Juno "baixa até à pátria dos ventos furiosos, a Eólia chamada, dos Autros feros", e súplice roga a Éolo, pai das tempestades, que impeça o avanço das frotas troianas sobre o território italiano. Prontamente a deidade é atendida por Éolo: os ventos reunidos tornam negro o dia e a tormenta desaba sobre o mar. Enéias aterrorizado com tal cenário, exclama: "_ Oh, três vezes e quatro felizes os que morreram à vista dos pais, sob os muros de Tróia!", lamentando, desse modo, não ter também perecido na guerra de Tróia. A tormenta bate de frente na frota dos troianos e a poderosa tempestade os domina. No entanto, Netuno (deus do mar e irmão da rancorosa Juno), presenciando e não apreciando tais acontecimentos, invoca os ventos propícios, tornando o mar manso. Só assim, Enéias e seus sócios desembarcam nas costas da Líbia. Aproximam-se da morada das ninfas e ali descansam. Enéias pede ânimo aos companheiros, dizendo-lhes que já enfrentaram coisas piores; lembra, então, que já escaparam dos terríveis Cilas e Ciclopes. Avisa que a viagem terá continuidade rumo ao Lácio prometido pelos deuses: sinônimo de um futuro risonho. Enéias insufla ânimo na alma dos troianos.
<br />Enquanto isso, no Olimpo, a deusa Vênus, angustiada, roga ao pai dos deuses - Júpiter - que ponha fim aos trabalhos infindáveis e aos sofrimentos do povo troiano. Júpiter, tranqüilizando a filha Vênus, promete:
<br />"Acalma-te, Citeréia: imutáveis encontram-se os Fados. Ainda verás a cidade e as muralhas da forte Lavínio, como te disse, e até aos astros o nome elevar-se de Enéias de alma sublime. Mudança não houve no meu pensamento. Mas, uma vez que tais cuidos te agitam, tomando de longe vou revolver o futuro e os arcanos do Fado mostrar-te. Guerras terríveis ele há de enfrentar..." (p.15)
<br />Dito isto, o pai dos deuses narra à filha Vênus toda a história gloriosa da futura Roma, citando seus heróis fundadores - do governo de Rômulo até a futura e gloriosa "Tróia" do imperador Júlio César. Após essas promessas, o pai dos deuses solicita a Mercúrio (mensageiro dos deuses) que vá até o reino de Cartago - administrado pela infeliz rainha Elisa (cujo epíteto era Dido) -, para que, lá, o pio Enéias fosse bem recebido. Em seguida, Vênus aparece para Enéias, narrando a ele toda a história da desventurada Dido. Pigmalião - o irmão de Dido - assassinou Siqueu, o esposo de Dido. Em sonhos, Siqueu apareceu a Dido, revelando-lhe a maneira como o irmão Pigmalião havia tirado a vida do esposo Siqueu. Além disso, alertou Dido para que abandonasse o reino, levando com ela todas as fortunas acumuladas. Esta aventura foi chefiada por Dido até atingir a sua destinação; isto é, o local no qual Dido deveria fundar a cidade de Cartago.
<br />Após narrar tal história, Vênus aconselha Enéias a procurar proteção junto a Dido. Enéias penetra no reino de Dido protegido por uma espessa neblina a cobrir todo o seu corpo. De tudo alí visto, Enéias admirava-se. A paisagem da cidade em construção, Enéias contemplava maravilhado. Fervia o trabalho por todos os cantos do burgo de Dido. Muros gigantescos erguiam-se no burgo nascente.
<br />No templo de Juno, construído por Dido, Enéias contemplava e emocionava-se com as gravuras que registravam vários episódios da Guerra de Tróia. Enquanto Enéias admirava os sublimes quadros, a rainha Dido entra no palácio. Dido então passa a ditar os trabalhos dos operários responsáveis pela construção da cidade de Cartago. Um misto de medo e alegria apodera-se de Enéias e do seu fiel acompanhante Acates. Ilioneu, porta-voz da rainha, narra os infortúnios da tropa dos troianos que, há pouco, desembarcara nos domínios do seu reino. Então a rainha Fenícia, após ouvir a história, fala:
<br />"Com os olhos baixos, em termos concisos lhe fala a Rainha: Bani, troianos , do peito o temor; expulsai os cuidados. As duras leis do começo de um reino, senão mesmo a própria necessidade me impõe rigor na patrulha da costa . Quem desconhece a ascendência de Enéias, a queda de Tróia, a proverbial resistência dos teucros, horrores da guerra? Nós, os fenícios , não somos tão bárbaros como pensastes..." (p.23)
<br />e diz que muita feliz ficaria se ali estivesse presente o próprio Enéias. Com tal discurso, Enéias e Acates animam-se. De repente, a nuvem enviada por Vênus se desfaz e, à luz repentina, Enéias se mostra aos olhos de Dido. Apresenta-se, então, à rainha Dido, dizendo que era o teucro Enéias. A rainha fala: "És, pois, Enéias, aquele de Vênus divina, nascido nas margens claras do belo Simoente, e de Anquises troiano? (...)" E, logo aceitando a presença do estrangeiro no seu reino, a infeliz Dido fala: "Por ter passado por isso, aprendi a ser boa com todos."
<br />Enéias então convida toda a sua frota a entrar no reino de Dido. A rainha recebe da tripulação de troianos inúmeros presentes; eram objetos salvos das ruínas de Tróia.
<br />No Olimpo, Juno trama a paixão de Dido por Enéias. Cupido enfeitiça a rainha com um ardente amor por Enéias. Dido, consumida pelo amor, devora Enéias com os olhos. Aos poucos a imagem de Siqueu, o defunto marido, é apagada de sua memória.
<br />Dido invoca Júpiter, prometendo ao referido deus hospitalidade aos estrangeiros. Em seguida, roga ao estrangeiro Enéias que o próprio narre as suas aventuras:
<br />"Hóspede_ fala-lhe_ conta-nos tudo por ordem, do início, as artimanhas dos dânaos, desditas dos teus companheiros, este vagar sem descanso nem termo por mais de sete anos em toda terra infinita, nas ondas inquietas, por tudo." (p.28)
<br />LIVRO II
<br />Então, todos se calaram na corte de Dido, e Enéias deu início à sua narrativa.
<br />Contou a história do cavalo de Tróia e como os adivinhos troianos procuravam encontrar a razão para o surgimento repentino do gigantesco cavalo no reino de Tróia. Teria sido trabalho de quem? E com qual intuito teria sido enviado à Tróia? Dentre os adivinhos, apenas Laocoonte desvendou o segredo. Dirigiu-se aos troianos, dizendo o seguinte:
<br />"Cidadãos infelizes, que insânia vos cega? Imaginais porventura que os gregos já foram de volta, ou que seus dons sejam limpos? A Ulisses, então, a tal ponto desconheceis? Ou esconde esta máquina muitos guerreiros, ou fabricada ela foi para dano de nossas muralhas, e devassar nossas casas ou do alto cair na cidade. Qualquer insídia contém. Não confieis no cavalo , troianos!" (p.30)
<br />No entanto, a multidão não deu atenção aos insistentes apelos e presságios do adivinho Laocoonte.
<br />Ao mesmo tempo, Torvo - rei mancebo de Argos -, sem armas, apresenta-se à multidão e vocifera um astucioso relato contra Ulisses; o herói grego é por ele considerado um falso, pois Ulisses havia assassinado Palamedes (protetor de Torvo) por inveja. Os troianos, sem suspeitarem até onde ia a perfídia e a maldade de um grego, permitiram que Torvo prosseguisse o seu falso relato. Compadecidos com a desdita do infeliz, os troianos ofereceram-lhe a liberdade. Por Sinão, o grande "sábio das tramóias", mais uma vez os troianos foram alertados contra as artimanhas de Ulisses - de todo o mal inventor . Suas profecias também foram ignoradas.
<br />Antes dos troianos permitirem a entrada do cavalo na cidade, Laocoonte teve uma terrível visão de todos os males que atingiriam Tróia por obra dos gregos. Cassandra, filha do troiano rei Príamo e irmã do príncipe Paris, também procurou avisar os troianos sobre todos os males que estavam por vir, mas foi calada pelo deus Apolo.
<br />Finalmente, a cidade recebe o cavalo, entoando hinos de júbilo. Após beberem, os troianos exaustos adormecem.
<br />Os heróis gregos, aproveitando-se deste fato, abandonam o interior do cavalo (ardiloso engenho) e invadem a cidade de Tróia. Pegos de surpresa, os troianos não resistem à força do exército grego.
<br />Enéias vê o chefe guerreiro troiano Heitor a chorar diante de Tróia destruída. Heitor assim fala a Enéias:
<br />"_ Foge daqui , filho de uma deidade; do incêndio se livra. Dentro dos muros campeia o inimigo; hoje Tróia extinguiu-se. Muito já demos a Príamo e à pátria. Se a Pérgamo a destra de algo valesse, estas mãos se imporiam na sua defesa. Tróia te entrega os seus deuses e os sacros objetos do culto. Leva contigo esses sócios; procura morada para eles, grande cidade, depois de cortares o mar tormentoso..." (p.36)
<br />Ao ouvir isso da boca de Heitor, Enéias lamenta a distância de sua casa, temendo não conseguir lá chegar para salvar a esposa: Creúsa, o pai: Anquises, e o filho: Ascânio.
<br />O fogo dominava a cidade de Tróia, tudo destruindo pela traição e pela perfídia dos gregos. Uma idéia dominou brevemente os pensamentos de Enéias: morrer pela pátria, pois o último dia chegara para os troianos.
<br />"Todos os deuses, esteios da pátria, os santuários e altares já abandonaram. Correis em defesa de ruínas e escombros em labaredas. Morramos, então! Avancemos sem medo! Para os vencidos só há salvação na esperança perdida. (...) Quem poderia narrar os horrores, o atroz morticínio daquela noite, ou com o pranto igualar o trabalho dos teucros? Caiu por terra uma antiga cidade, rainha das outras." (p.38)
<br />O palácio do rei Príamo ardia em chamas. Sem a ajuda dos deuses, uma chuva de dardos inunda a cidade ardente de Tróia. Tudo são ais nos interiores do Palácio Real. As autoridades troianas femininas: Andrômaca, Cassandra e Hécuba são raptadas. Príamo é morto por Pirro - temido guerreiro grego-, vingando, desse modo, a morte do filho do herói grego Aquiles, Neoptólemo.
<br />Enéias mantém o seu pensamento voltado para a família e, com a alma furiosa, só pensa em vingar a pátria destruída. Porém, Enéias é aconselhado pela deusa Vênus a abandonar a cólera que o devora, e imediatamente socorrer a família, saíndo em fuga da Tróia destruída. O pai, Anquises, num primeiro momento, recusa-se a fugir com o filho. Enéias tenta convencer o pai que Tróia não tem mais salvação. Então Anquises foi surpreendido por um augúrio feliz: repentinamente da cabeça do neto Ascânio alçava uma chama, lambendo-lhe os cabelos. Anquises, convencido do aviso dos deuses, põe-se em fuga junto à nora, ao neto e ao filho:
<br />"Pronto! partamos! agora! depressa! para onde quiserdes! Ó pátrios deuses, guardai esta casa, salvai meu netinho. O agoiro é vosso; sob vossa potência está Tróia segura. Não mais resisto, meu filho, nem faço objeção em seguir-te."
<br />A pequena família foge com alguns servidores. A travessia pela cidade tomada pelos gregos é arriscada. Subitamente, o velho Anquises avista os gregos bastante próximos. Nesse momento, a esposa Creúsa desaparece para sempre de Enéias. O pio herói fica inconformado diante da perda da esposa. Segue-o somente o pai e o filho em meio aos horrores da cidade destruída.
<br />"Amontoada, a riqueza de Tróia se via, templos saqueados, as mesas dos deuses, as mais belas copas de ouro existentes, e vestes e adornos dos pobres cativos. Ao derredor, em fileiras, morrendo de medo, os meninos, mães desoladas." (p.48)
<br />Durante a fuga, a sombra da adorada esposa Creúsa apresenta-se ao herói troiano. Este procura agarrá-la, mas em vão. Então, Creúsa implora que Enéias aceite todas aquelas tragédias, pois sucessos futuros lhe são reservados: com a ajuda dos deuses fundará uma nova Tróia, em território italiano. Em seguida, diz o derradeiro adeus ao marido.
<br />Cedendo à sorte e carregando o pai nos ombros, o pio Enéias apressa sua fuga do território troiano.
<br />LIVRO III
<br />Toda Tróia é destruída. O herói Enéias encontra-se exilado em alto mar, em companhia do pai, do filho, dos sócios e dos deuses de Tróia.
<br />Aportam à praia das terras do feroz Licurgo. Enéias traça riscos no chão e passa a chamar a novata comunidade que o acompanhava de Enéadas; tudo sem os auspícios dos deuses. Às ninfas agrestes do local Enéias implora auxílio. De repente, ele é surpreendido pelo fantasma do guerreiro troiano Polidoro, outrora vencido naquelas terras. Polidoro, filho do rei Príamo, fôra morto no passado por um rei trácio; ele aconselha Enéias a abandonar imediatamente aquele lugar. Enéias presta honras fúnebres ao insepulto Polidoro e, logo em seguida, abandona as terras de Licurgo. A frota alcança o mar. Enéias desesperado pede ajuda a Apolo quanto a seu futuro incerto: "A quem seguimos? Aonde ir aconselhas? A sede assentarmos? Dá-nos agouro, Senhor! Ilumina estas mentes cansadas."
<br />Então Enéias ouve vozes solicitando-lhe que busque as terras da "mãe primitiva" (a Itália), pois lá será o seu definitivo lar. Essas palavras a todos anima. A tropa chega, então, às praias dos Curetas. Lá os troianos descansam. No entanto, o pio Enéias encontra-se atormentado, solicitando novos auxílios a Apolo. Mais uma vez recebe o aviso de que a sua nova pátria encontra-se na Hespéria, em território italiano. Atarantado com tantas vozes e visões, Enéias acorda a toda a tripulação. Tendo Febo por guia, Enéias põe-se a caminho da terra prometida pelos deuses. Sempre obedientes aos destinos impostos pelos deuses, os troianos lançam-se em alto mar. Tempestades varrem o oceano. Após várias tormentas, avistam terras ao longe. Em breve, encontravam-se nas terras das Harpias; Celeno, a mais poderosa das fúrias, confirma os desígnios dos deuses: "com prósperos ventos heis de alcançar por sem dúvida a Itália longínqua. Mas, antes mesmo de vossa cidade querida dos deuses de muros altos cingirdes, haveis de roer até as mesas."
<br />A frota troiana parte, então, daquelas terras. Logo aproximam-se de Ítaca. "De Ítaca reino de Laertes fugimos, de seus arrecifes, amaldiçoada por todos, a pátria de Ulisses nefando." E prosseguem a viagem... Passam próximos à ilha dos Feáceos até alcançarem terras gregas, onde reinava Heleno - filho de Príamo -, por ter esposado a viúva do guerreiro grego Pirro. Lá também encontrava-se Andrômaca a esposa-viúva do herói troiano Heitor.
<br />Andrômaca relata a Enéias toda a seqüência de infortúnios que sofrera após a guerra de Tróia; nesta ilha, Andrômaca vivia na condição de escrava. Andrômaca demonstra extrema preocupação com a família do pio Enéias. Heleno, o monarca da ilha, recebe Enéias com gentileza e hospitalidade.
<br />Em terras de Heleno, Enéias volta a consultar Apolo; o deus confirma-lhe, com precisão, o local onde deverá ser fundada a nova Tróia.
<br />"Dou-te os sinais; na memória os retém, como é justo fazeres. Quando apreensivo estiveres nas margens de um rio sem nome, e deparares deitada na sombra de bela azinheira uma alva porca com trinta leitões ao seu lado, da mesma cor da mãe branca, deitados no chão a mamar com sossego: esse será o local da cidade, o descanso almejado." (p.61)
<br />Dentre outros conselhos, o deus Apolo antecipa ao pio Enéias os perigos que deverá enfrentar em relação a Cila e a Caribde, dois monstros que dominam a costa da bela Sicília. Por antecipação - também através de Apolo -, Enéias fica sabendo que visitará a cidade de Cumas, na qual encontrará a poderosa Sibila, que o encaminhará até os bosques do Averno (Mundo dos Mortos).
<br />Antes da partida, Andrômaca traz presentes ao menino Ascânio e antevê a fundação de uma Tróia reconstruída.
<br />A frota de Enéias encontra-se novamente em alto mar. Finalmente,
<br />" escorraçados os astros com a vinda do carro da Aurora, eis que avistamos ao longe os oiteiros modestos da Itália. Antes de todos, Itália! gritou para os sócios Anquises. Seus companheiros, Itália! a uma voz, despertados, exclamam." (p.64)
<br />Dentre muitas coisas oferecidas pelas paisagens do local, a tripulação avista o santuário da deusa Minerva, o templo de Juno; mas ferozes ventos os afastam do roteiro, levando-os até o Etna e lançando-os próximos ao rochedo de Caribde. Sem saída, tomam de assalto as praias dos ferozes Ciclopes. Nesse local, encontram um grego, perdido; ele implora auxílio aos troianos nos seguintes termos: "Sou natural da ilha de Ítaca e um dos soldados de Ulisses, o desgraçado. Chamo-me Aquemênides. Vim para Tróia com meu pai, pobre de bens. Oxalá continuasse assim sempre!" E então passa a narrar as cenas horrendas que presenciou: viu o Ciclope gigante devorando muitos de seus companheiros tomados como reféns pelo terrível monstro; diz que o nome do monstro de um olho só é Polifemo. De repente, Aquemênides interrompe a sua narrativa, pois o monstro Polifemo, com a vista vazada e rangendo os dentes de dor, reaparece. Apavorados, os troianos põem-se em fuga, acolhendo o suplicante itacense.
<br />Deixando as praias dos Ciclopes, procuram seguir o conselho de Heleno e evitam o caminho perigoso entre os monstros Cila e Caribde.
<br />Açoitados por terríveis tempestades, Anquises não resistiu, e morreu. Essa foi a mais cruel desventura - não predita por nenhum adivinho - enfrentada pelo pio Enéias.
<br />Finalmente, o pio Enéias dá por encerrada a narrativa de suas desventuras aos ouvintes da corte da rainha Elisa .
<br />LIVRO IV
<br />A rainha Elisa está ferida de paixão, com as palavras e com os gestos do herói troiano Enéias gravadas no peito. Ferida de morte, Dido fala a irmã:
<br />"Ana querida, suspensa me encontro por sonhos horríveis. Que hóspede novo transpôs de inopino a soleira da porta? Como é galhardo! Quão forte guerreiro, em verdade, e que braço! _ Creio _ e bem certa estou disso _ ser ele de origem divina (...) Ana, confesso-o; depois de Siqueu me ter sido roubado, meu caro esposo, e os penates manchados de cruel fatricídio, este, somente, os sentidos tocou-me e a vontade oscilante venceu de todo. O calor sinto agora da chama primeira." (p.72)
<br />E Ana relembra a Dido que a rainha já havia rejeitado muitos pretendentes, inclusive Jarbas, o monarca da Líbia. Por que se opor, então, a um desejo tão grato? E Ana continua na sua obstinada aposta em relação ao futuro matrimônio de Dido com Enéias. Chega a convencer a infeliz rainha Dido quanto aos futuros triunfos que Cartago poderia alcançar, caso a união entre os dois se consumasse. Ana pede à Elisa que cuide dos deuses e a eles ofereça sacrifícios, para obter o auxílio no ambicionado projeto. Põe-se a vagar pela cidade a infeliz Dido, com o peito em chamas:
<br />"Inacabadas, as torres pararam; não mais se exercitam moços esbeltos nos jogos da guerra, na faina dos portos; interrompidas as obras, o céu das ameaças descansa; por acabar as ameias, merlões, toda a fábrica altiva."
<br />Diante desse quadro, a indignada Saturna dirige-se à Vênus, interrogando a última sobre o destino de tudo aquilo; ao mesmo tempo, propõe firmar uma pacto de paz eterna. Vênus, sentindo a malícia no discurso da deusa, retruca e faz à Saturna uma proposta cheia de artimanhas: promover uma caçada e, durante uma forte tempestade, encerrar Enéias e Dido numa caverna, promovendo, dessa forma, a união entre os dois.
<br />Tudo ocorre da forma como Vênus concebera o plano e, com grande estrondo nos céus, a união de Dido e Enéias foi consagrada. Relâmpagos brilhavam no céu e ninfas ululavam diante de tal consórcio.
<br />Corre a Fama (monstro horrendo) por todo o território da Líbia, espalhando a recente notícia do casamento entre Dido e Enéias. Os boatos aumentam até chegar aos ouvidos do fiel pretendente de Dido: Jarbas, o fundador de cem templos. Jarbas então diz:
<br />"Essa mulher, aqui vinda sem rumo, comprou por vil preço faixa de terra para uma cidade pequena, onde arasse quanto quisesse; porém, repelindo as alianças propostas, como a senhor de seus reinos a Enéias agora se prende. E ora esse Páris, seguido de um bando de gente somenos, fronte cingida com mitra da Meônia, no mento enlaçada, de perfumados cabelos, do rapto se goza." (p.76)
<br />Jarbas antevê as futuras derrotas de Dido.
<br />No reino de Dido, Enéias veste um belíssimo manto: presente valioso, tecido pela própria rainha Elisa. Porém, no Olimpo, Mercúrio é determinado pelos deuses a enviar um recado ao pio Enéias: que abandonasse todos os projetos contruídos juntamente com Dido. Mercúrio interpela Enéias e transmite-lhe a seguinte mensagem: abandonar os laços estabelecidos com a rainha e prosseguir viagem rumo à pátria prometida pelos deuses do Olimpo. A rainha pressente a tramóia engendrada pelos deuses e, fora de si , como uma bacante, percorre toda a cidade em delírio. De repente, depara-se com Enéias, que, naquele momento, alimentava pensamentos indecisos. Dido diz:
<br />"Pérfido! Então esperavas de mim ocultar essa infâmia, e às escondidas deixares meus reinos sem nada dizer-me? Não te abalou nem a destra que outrora te dei, nem a morte que a Dido aguarda, inamável, tão próxima já do seu termo? Como se nada isso fora, teus barcos aprestas no inverno , quadra infeliz, pretendendo cortar os furiosos embates dos aquilões? Que crueldade!" (p.79)
<br />A colérica rainha continua a injuriar e a cobrar todos os favores que havia concedido ao pio Enéias; este já havia sido convencido pelos deuses quanto à necessidade da partida iminente, mas seu coração estava ferido por ter de abandonar a rainha apaixonada. Procura convencer Dido que não tomara parte na decisão, pois tratava-se dos desígnios dos deuses.
<br />"Fala-lhe afim por maneira sucinta: _ Jamais negaria tantos favores, Senhora, e outros muitos de que me recordas; em nunca a imagem de Elisa sairá do meu peito, por quanto tempo consciência tiver de mim mesmo e com vida eu mover-me. Quanto ao que ocorre, direi simplesmente: intenção nunca tive de retirar-me às ocultas _ apaga essa idéia _ nem menos planos forjei de casar ou de alianças contigo firmarmos." (p.79)
<br />Enéias prossegue, então, dizendo que se apoiara na decisão do deus Apolo. Confessa à rainha Dido que não buscava a Itália por vontade própria, mas pela vontade dos deuses.
<br />Dido permanecia alheada a tudo aquilo que o pio Enéias dizia e, num impulso violento, expulsa o herói de suas terras.
<br />Apressadas as frotas de Enéias se preparam para deixar as terras da infeliz Dido. Enquanto isso, Dido recorre à irmã Ana, rogando-lhe socorro. Pede à Ana que procure Enéias e o convença a permanecer a seu lado. A rainha conhecia a capacidade de convencimento que a irmã possuía; assim, aos olhos de Dido somente Ana sabia falar com Enéias. Pede, então, à irmã que leve o recado ao herói.Todavia, Dido é atingida por um terrível presságio: o leite dos sacrifícios adquire uma tonalidade negra, transformando-se em sangue. Diante disso, conclui que o herói não a ouvirá; sua perda portanto é inexorável, e a morte iminente. A rainha, atormentada por sonhos terríveis, prepara o ritual a fim de executar o seu próprio suicídio.
<br />Lança a culpa de todo o seu infortúnio sobre a sua irmã. Enquanto a rainha se consumia em ódios com relação a Enéias, este era advertido pelos deuses a afastar-se o mais rápido possível daquelas paragens, pois o herói seria alvo da vingança da rainha ou da volubilidade inerente a toda mulher.
<br />A infeliz Dido sente o peso de toda a sua desgraça e chega a planejar a morte de Enéias e do filho do troiano: Ascânio; logo em seguida, incendiaria toda a cidade e a nau dos troianos.
<br />Contudo, a idéia do auto-sacrifício prevalecera: a infeliz Dido lança-se nos braços da morte. A monstruosa Fama percorre a cidade, informando a todos o infortúnio da rainha. Juno, apiedada da agonia da rainha, envia do Olimpo a mensageira Íris, para por termo ao resto de vida da moribunda. Íris corta o cabelo de ouro da rainha e o espírito da infeliz logo se dilui, se evola.
<br />LIVRO V
<br />A frota troiana, em fuga, logo alcança o alto mar. Nas altas ondas tudo é trevas. Ao longe os troianos avistam as labaredas que incendeiam o castelo da infeliz rainha Elisa. De repente, as nuvens cobrem todo o céu, e a escuridão domina a nau. Palinuro temeroso da popa pressente os destinos que Netuno lhes prepara. Os ventos encontram-se trocados, confundindo toda a tripulação e extraindo-lhe a esperança de saltarem, a salvo, nas praias da Itália. Enéias então pede que se mudem os rumos, a fim de alcançar as terras de Acestes: local onde o herói deveria prestar as pompas fúnebres ao pai Anquises, e lá depositar suas cinzas. Tão logo chegaram àquelas paragens, Enéias executou aquilo que planejara; em seguida, reúne seus sócios para dar início aos jogos fúnebres em honra ao pai Anquises.
<br />Os guerreiros então reunidos dão início a uma longa seqüência de modalidades esportivas.
<br />Findo o certame, os prêmios são entregues aos respectivos vencedores.
<br />Ao deixarem as terras de Acestes, a nau do herói Enéias aproxima-se do promontório da duras Sereias. Repentinamente, Enéias nota que a nau está sem rumo, pois Palinuro confiara na bela aparência do mar. O pio herói assume, então, o comando da frota.
<br />LIVRO VI
<br />Encontramos, agora, o pio Enéias nas paragens de Cumas, no interior dos bosques da deusa Diana, local onde Apolo é cultuado. Dédalo, Pasífaa, o Minotauro biforme, Ariadne, Teseu, Ícaro e outros personagens mitológicos são figuras gravadas na porta do Templo de Apolo. Enéias vai visitar a Sibila de Cumas, que predirá as guerras no Lácio, revelando, assim, as coisas do futuro. Enéias entra na pavorosa gruta da Sibila. Deífobe, vate de inspiração divinal, fala nos seguintes termos: "Não é o momento de vos entreterdes com tais espetáculos. Cumpre imolar sete touros perfeitos, de acordo com os ritos, e outras ovelhas de número igual, as mais belas do armento."
<br />Cumpridas as ordens do ritual, a Sibila convida Enéias a entrar no templo: "Eis o deus! Eis o deus!" exclama a Sibila de aspecto monstruoso: "Como! Demoras com os votos e as preces, Enéias de Tróia? Pois antes disso os portões deste templo famoso não se abrem ."
<br />A Sibila prediz que Enéias deverá fixar os deuses errantes de Tróia no Lácio. Saúda Enéias como um herói, pois conseguira sobreviver aos perigos dos mares; diz, ainda, que, no Lácio, nascera um outro Aquiles. Prediz que a união de Enéias com a sua futura esposa (Lavínia) gerará intrigas entre os povos que habitam a Itália. Com fortes rugidos, a Sibila de Cumas vai, assim, revelando mistérios a Enéias.
<br />Entretanto, Enéias sentia uma avassalodora ansiedade em rever o pai Anquises no mundo dos mortos. Implora à deusa que apresse a atender o seu pedido:
<br />"Uma vez que o caminho do Inferno começa aqui, na lagoa do rio aqueronte convulso, leva-me logo à presença da sombra do pai extremado. Mostra-me a entrada a transpor, escancara-me as portas sagradas.(...) Por isso suplico-te, ó Virgem, apieda-te do pai, do filho aqui vindo." (p.116)
<br />A deusa então fala a Enéias que descer ao Averno é muito fácil, porém o difícil é o regresso. A deusa instrui o pio Enéias a localizar um ramo de ouro que se encontra nas florestas que margeiam o Averno. Enéias prontamente atende a solicitação da deusa; porém, tem dificuldades para encontrar o protetor talismã, isto é, o ramo de ouro. Além disso, restava outra tarefa a ser cumprida por Enéias: enterrar o cadáver insepulto de Miseno, guerreiro morto de forma traiçoeira. Assim, os troianos prantearam o corpo de Miseno. Enéias vai em busca do ramo de ouro. "Se nesta selva tremenda eu achasse o áureo ramo predito, tal como tão verazmente saiu tudo quanto a Sibila profetizou contra ti, ó Mísero! o teu triste destino!"
<br />Enéias nota que duas pombas baixam dos céus; solicita às aves que lhe sirva de guia para a localização do ramo de ouro... Logo, entre as folhas de uma copa de árvore refulge o ramo.
<br />Obedecendo as instruções da Sibila, Enéias desce para o mundo subterrâneo (o reino de Plutão: em grego, Hades, a morada dos mortos). Contudo, o ramo de ouro asseguraria a Enéias uma travessia a salvo pelo reino dos Infernos.
<br />Enéias ainda oferece um sacrifício à Prosérpina, esposa de Hades. A divindade se aproxima: "Afastai-vos do bosque, profanos! a profetiza exclamou; afastai-vos do bosque! Bem longe! E tu, Enéias, adianta-te! Saca de vez dessa espada com varonil destemor; ora cumpre mostrar quanto vales."
<br />Enéias entra no Averno. Primeiro de tudo vê as pavorosas imagens de todas desgraças que atingem com freqüência a humanidade (fome, doenças, pobreza, mazelas...). Outros monstros e feras vão surgindo. Tomam então o caminho que leva ao tartáreo rio Aqueronte. O velho barqueiro Caronte - de aparência horrível - guarda o rio e os aguarda. Sombras percorrem o local. Enéias pergunta à Sibila por quais razões as sombras vagueiam naquele local. A Sibila revela que são as sombras dos mortos insepultos. Enéias vê as sombras dos insepultos heróis de Tróia. Encontra a sombra inconformada de Palinuro; Enéias promete a Palinuro um belo túmulo.
<br />Avançando ainda mais pelo interior do Averno, surge o escuro lago do Estige: região das sombras, do sono e da noite:
<br />"...o teucro Enéias, varão mui piedoso e de braço invencível, desce à procura do pai, entre as sombras inanes do Inferno. (...) e, logo, de baixo das vestes o ramo oculto retira. De pronto acalmou-se-lhe a raiva. Nada mais disse a Sibila. Admirado Caronte ante o aspecto do dom fatal do áureo ramo, por ele não visto de muito..." (p.123)
<br />Em águas lodosas avistam Cérbero. Ouvem queixas lamentos, vagidos. Aí avistam, num bosque, as sombras de todos aqueles que foram infelizes em vida: Prócis, Fedra, Erífile, Pasífaa, Evadne... e, finalmente, a sombria Dido, com sua recente ferida. Enéias logo a reconheceu. Enéias procura explicar à sombra da infeliz Dido que não era o culpado por tanta infelicidade, pois fôra designado a cumprir os desejos dos deuses; disse, inclusive, que teria permanecido com Dido, caso não tivesse uma missão a cumprir. Porém, a sombra irritada da infeliz rainha se afasta sem emitir qualquer sinal.
<br />Dando prosseguimento à infernal visita, Enéias vê as sombras dos heróis de Tróia... avista Deífobo, filho de Príamo. Enéias dialoga com a sombra de Deífobo; ele procura mostrar a Enéias como todas as humilhações que sofrera em vida foram causadas por Helena e suas bacantes.
<br />Tendo por companhia a sombra de Deífofo, Enéias revê os heróis gregos: Menelau, Ulisses - o artista do crime: "Celestes deidades! se houver justiça, voltai contra os gregos seus próprios delitos...", exclama Enéias.
<br />Ambos prosseguem a caminhada, entrando, agora, no antro dos criminosos; e, atravessando rotas obscuras entre monstros, Fúrias e seres poderosos... "avançaram de par pelas rotas obscuras e logo as portas do grande palácio de Pluto alcançaram. Bem no saguão pára Enéias; o corpo aspergiu de água pura recém-colhida, e de pronto pendura ao portal o áureo ramo..."
<br />Ambos encontram-se, agora, nas moradas das almas felizes. Nesse local está reunida toda a futura linhagem do pio Enéias. Somente as almas bem-aventuradas aí permanecem. Em altas e risonhas campinas, Enéias avista o pai, Anquises. Logo que vê o filho, Anquises fala: "Enfim chegaste! Venceste o caminho com a tua piedade de filho amado, e me dás a ventura de ver-te de perto, ouvir-te a voz, e em colóquios passarmos alguns momentinhos."
<br />As lágrimas banharam os rostos de ambos, pai e filho. Anquises diz a Enéias que vai curá-lo de toda a cegueira: aponta para as águas do rio Letes; alí as almas procuram beber de suas águas para alcançar o esquecimento total. O pai Anquises apresenta, então, a Enéias toda a sua futura geração. Toda uma seqüência de futuros governantes é apresentada ao pio herói. Contudo são as figuras dos imperadores ainda não nascidos César e Augusto que se destacam na descrição feita por Anquises.
<br />Enéias nota, ao lado de Marcelo - futuro imperador romano -, a presença de um belo mancebo.
<br />Por fim, Enéias deixa o mundo subterrâneo.
<br />LIVRO VII
<br />Enéias deixa o Averno e, em seguida, prepara o sepultamento de Miseno; deposita o insepulto num túmulo. A tropa prossegue viagem costeando as paragens da deusa Circe - opulenta filha do Sol. Alí, ouvem-se uivos de animais ferozes, mas o deus Netuno insufla as velas das embarcações e, com ventos propícios, elas são afastadas da perigosa da ilha da feiticeira Circe.
<br />Subitamente, o pio Enéias avista ao longe uma densa floresta.
<br />[Neste trecho da "Eneida", a narrativa poética é interrompida, e o poeta Virgílio solicita, novamente, inspiração à Musa:
<br />"Érato, inspira-me! Os reis, qual o estado das coisas naquele tempo, os sucessos variados no Lácio de antanho, quando na Ausônia aportou de improviso uma esquadra estrangeira, vou relatar. Sem a ajuda de cima, de ti, Musa excelsa, nada farei." (p.138) ]
<br />A tripulação avista a terra do rei Latino; o local designado pelos deuses para a fundação da futura Roma.
<br />Os fatos a serem enfrentados pelo pio Enéias - suas vitórias e seus infortúnios - nas terras do Lácio são revelados ao herói troiano.
<br />De outra parte, o rei Latino vai consultar o futuro junto ao pai fatídico: o Fauno. O monarca Latino ouve o seguinte:
<br />"Deixa de lado, meu filho, essa idéia de esposo latino dar a Lavínia, nem creias nas bodas agora aprestadas. Genro estrangeiro virá que até aos astros o nome dos nossos se incumbirá de levar, cujos filhos e netos cem povos submeterão sob o império de leis rigorosas e sábias, em todo o curso do Sol, desde o oceano nascente ao do poente." ( p.139)
<br />Essa foi a resposta do Fauno ao monarca Latino.
<br />A frota de Enéias comemora a chegada na nova Tróia com um grande festim. Enéias então lembra que o pai profetizara que, quando chegassem a uma terra esfomeados e lá saciassem a fome, esta seria a sede da futura Tróia. Tudo ocorre conforme os prognósticos do pai Anquises. Enéias brada: " Salve, terra que os Fados nos deram! Salve também , aqui mesmo, sagrados penates de Tróia! Eis nossa pátria, a morada (...) Eia, animai-vos..."
<br />Enéias risca no chão um mapa com os contornos da futura cidade romana. Dirigi-se, então, ao palácio do monarca local. Entra no templo de Latino. O primeiro contato com Latino é efetivado em tom cordial e amistoso, haja vista ambas as partes já conhecerem os desígnios dos deuses. Ilioneu, o sábio do local, intermedeia os diálogos que se estabelecem entre o monarca e os estrangeiros. Latino já nutria a certeza que Enéias seria seu futuro genro.
<br />Todavia, no Olimpo, as contendas entre os deuses quanto ao destino do herói troiano se chocavam. A fera esposa de Jove assim se refere aos estrangeiros:
<br />"Ó geração aborrida! Ó destino da Frígia, contrário sempre ao meu Fado! Nos campos sigeus sucumbir não puderam? Presos, viver como escravos? No incêndio de Tróia abrasar-se? Livres se encontram. (...) Movi contra eles as forças do céu e do mar, impotentes. De que proveito me foram e Sirtes e Cila e Caribde desmesurada? Tranqüilos, a foz alcançaram do tibre, salvos do mar e de mim." (p.144-145)
<br />A colérica deusa promete recorrer às potências do inferno, para não ser vencida pelo mortal Enéias. Entra em contato com a Juno infernal - divindade inimiga do pio Eneías - e solicita que as potências maléficas infestem a vida do herói Enéias. Amata, mãe de Lavínia (filha de Latino e futura esposa de Enéias), torna-se o alvo predileto das potências do mal. Inconformada por Latino ter consentido entregar a filha Lavínia como esposa ao pio Enéias, Amata, envenenada n'alma pela deusa cruel, interroga:
<br />"Vais dar Lavínia, senhor, como esposa a esse teucro sem pátria? Não tens cuidado da sorte da filha, de ti não te apiedas, nem da mãe triste que ao vento primeiro o pirata abandona nestas paragens, levando consigo a donzela roubada? " (p.146)
<br />Diante da indiferença de Latino, Amata é tomada de furor báquico. Invoca Baco e procura esconder a filha pelas matas e florestas, bradando: "Mães latinas, se acaso ainda tendes no coração uns resquícios de afeto para esta coitada, antes a Amata de todos; se o jus maternal vos importa, soltai as tranças e vinde comigo dançar nesta orgia..."
<br />Enfurecida, Amata vai até o feroz guerreiro Turno e relata a decisão do monarca Latino em tornar Lavínia esposa do herói estrangeiro, Enéias. Essas decisões deixam Turno colérico, pois este, além de perder o futuro trono, deixaria, também, de ser o futuro genro de Amata e de Latino. Amata prossegue, provocando-o, jogando veneno nos pensamentos do aturdido e inconformado Turno frente às alterações imprevistas do seu destino.
<br />Irado Turno manda avisar Latino que a paz fora violada. A demoníaca Alecto voa sobre os teucros; eles ouvem os gritos da odiosa deusa e ficam apavorados.
<br />A guerra assim principia entre os pastores, e logo alcança cinco cidades: todas se esquecem da forte afeição e da estima outrora nutridas entre elas.
<br />[Neste trecho, a narrativa épica virgiliana é interrompida e o poeta proclama nova invocação às Musas:
<br />"Musas divinas, abri-me o Helicão e inspirai meus cantares, para dos reis eu falar, implicados na grande aventura, dos seguidores dos seus estandartes, os novos guerreiros, do márcio ardor animados nos plainos fecundos da Itália, pois vós, ó deusas! sabeis tudo o que houve e podeis relatar-nos seguramente o que as auras somente ao de leve contaram." (p.153) ]
<br />Mezêncio - o desprezador dos deuses do Olimpo - e seu filho Lauso foram os primeiros guerreiros a entrar na contenda. Uma série de outros monarcas segue a ambos. Dentre eles, destaca-se o terrível Messapo - o domador de cavalos. Uma multidão de tropas começa a se alinhar para combater o herói estrangeiro e invasor Enéias.
<br />Turno era o primeiro dentre os guerreiros. Uma guerreira também se destacava: era Camila - da raça dos volscos.
<br />LIVRO VIII
<br />O ódio de Mezêncio aumentava na mesma proporção que o nome do herói Enéias ganhava prestígio no Lácio. O peito de Enéias se agitava, já pressentindo os horrores que teria de enfrentar. Porém, em sonhos, a Enéias é revelada a seguinte profecia:
<br />"Ó descendentes dos deuses, que as sacras muralhas de Tróia nos restituis (...) Morada certa encontrastes, segura mansão dos penates. Não temas esses aprestos de guerra; a ojeriza dos deuses já se acalmou.
<br />E para que não presumas que tudo não passa de sonho, num azinhal desta fresca ribeira hás de achar uma porca branca de leite, com trinta leitões tão branquinhos quanto ela, recém-nascidos, e agora em descanso do parto recente. Este é o local da cidade, o remate de tantas fadigas." (p.160)
<br />A dividindade diz, então, a Enéias, o mais curto caminho para a sua vitória.
<br />Enéias dirige-se imediatamente à Palantéia, firmando aliança com o monarca local chamado Evandro, pai do jovem Palantes.
<br />Enéias, ainda temeroso, pede auxílio às ninfas. Com o auxílio das ninfas, Enéias encontra na margem de um rio a ninhada com trinta leitõezinhos. Assim, está confirmado o local do futuro reino de Enéias. Roma, naquele tempo, era dominada por Evandro e por seu filho, Palantes.
<br />O pio Enéias dirige-se à presença de Evandro, e fala: "A Evandro viemos buscar. Anunciai-lhe que chefes troianos de alto valor vêm pedir-vos aliança e trazer-vos reforços...". E o pacto de paz entre o pio Enéias e o magnânimo monarca Evandro é consagrado: "Ó dos teucros o mais valoroso, com que alegria te escuto e agasalho, e de quanto me lembro do grande Anquises ao ver-te, esse timbre da voz, a aparência!..."
<br />Evandro convida Enéias a participar das festas anuais, oferecendo a mesa aos recentes aliados. Evandro narra a Enéias o motivo das festas anuais: elas eram promovidas para celebrar a vitória dos deuses sobre Caco - o maldoso e astucioso que furtava os touros dos deuses. O festival era dedicado em louvor ao deus vencedor Hércules. Nessas festividades toda a comunidade comemorava e cantava os feitos divinos do deus etrusco.
<br />Em seguida, Evandro narra a Enéias a história da fundação da cidade. Saem ambos a visitar Palantéia. Saturno era o deus fundador. Toda a história de Palantéia é narrada até que ambos chegam à pobre moradia de Evandro, o monarca desprezador dos bens materiais, pois o monarca aceita a pobreza como desígnios dos deuses.
<br />Enquanto isso, no Olimpo, Vênus e Vulcano preparam um poderoso instrumento de guerra para Enéias. Os deuses recorrem a três fortes Ciclopes, solicitando-lhes que forjem para Enéias um escudo que o herói troiano deveria usar nos futuros combates. E assim o imenso escudo preparado pelos filhos do Etna foi crivado de fatos passados e futuros: no referido escudo, toda a gloriosa história de Roma aparece inscrita.
<br />Evandro, reconhecendo a própria velhice, aconselha o pio Enéias e o filho Palantes sobre os cuidados que ambos deveriam tomar em relação aos perigos das futuras guerras.
<br />Rapidamente os pactos são rompidos e a guerra generaliza-se por todo o Lácio. Evandro roga aos deuses que Palantes volte vencedor. Pede que os deuses ouçam as preces de um pai desesperado pela vida do filho.
<br />Pávidas mães debruçam-se sobre os muros em lamentações, ao saberem dos dos destinos dos filhos lançados na guerra. A mãe divinal do guerreiro Enéias aproveita a oportunidade para aconselhá-lo a não temer a guerra, oferecendo-lhe um presente: "Eis o presente que te prometi, prenda excelsa do gênio do meu marido! De agora em diante, meu filho, não temas aos laurentinos opor-te ou a turno enfrentar nos combates."
<br />Enéias não se cansa de contemplar os presentes enviados pelos deuses: o capacete, a mortífera espada e o escudo coberto de estranhas pinturas - o sabedor dos grandes feitos da Itália e da longa série de conquistas e batalhas; o espelho da história primitiva do povo romano até as épocas imperiais: dos dois gêmeos, Rômulo e Remo, das Sabinas até César no Senado. Exulta maravilhado Enéias a vista de tão belo Escudo, que joga com o seu destino e honra a glória de todos os seus descendentes.
<br />LIVRO IX
<br />Do Olimpo, Juno Satúrnia, a protetora de Turno, envia ao feroz guerreiro recados sobre os novos acontecimentos. A mensageira é a celeste Íris.
<br />O impetuoso Turno prontamente aceita o desafio enviado pela mãe divina: "Pouco importa quem sejas; acato teu chamamento: eis a guerra!" E a luta tem seu começo. Turno passa a recrutar vários chefes guerreiros, e junto a eles trama as alianças: "Vamos, rapazes! Quem quer ser comigo o primeiro a atacá-los? Pronto! exclamou . _ E volteando seu dardo, jogou-o para o alto, como a indicar o começo da pugna."
<br />Neste trecho da "Eneida", novamente Virgílio interrompe a narrativa, conclamando outra invocação às Musas:
<br />"Musas! Que deus apartou dos troianos o incêndio horroroso e repeliu para longe as naus a voragem do fogo? Dizei-nos! _ É tradição muito antiga, perene lembrança..." ]
<br />As tropas de ambos os lados organizam-se para a guerra. As divindades do Olimpo se igualam e se preparam para proteger seus filhos prediletos, ou destruir a vida dos guerreiros inimigos. Potências diabólicas (as Parcas) lançam seus agouros sobre Turno.
<br />As tropas aguardam o próximo combate. Enéias, encontrando-se distante das linhas de combate, desconhecia, na verdade, o que se passava. Niso e Euríalo, unidos por profunda amizade, incumbem-se de atravessar o exército inimigo a fim de levar notícias das tropas para o povo em geral, sobretudo para o pio Enéias. Os dois partem assumindo o papel de mensageiros do herói troiano. Entretanto, ao atravessarem o campo dos inimigos foram descobertos e ambos foram mortos pelos ferozes rútulos.
<br />Neste trecho, o poeta mantuano interrompe a narrativa com a finalidade de lamentar a morte dos dois jovens guerreiros:
<br />"Felizes ambos! Se alguma valia tiverem os meus versos, alcançareis vida eterna na grata memória dos homens, enquanto os filhos de Enéias ficarem no duro penhasco do Capitólio, com o Pai dos Romanos no império do mundo." (p.190)
<br />O exército dos rútulos destroça os corpos dos infelizes rapazes e, em lanças erguidas, suas sujas cabeças foram expostas ao público.
<br />A alada Fama dá a notícia a todos. A mãe do jovem Euríalo, num ato desesperador, arrancando os cabelos e lançando gritos lancinantes, chora a morte do amado filho, expressando do seguinte modo: "Assim te vejo, meu filho, meu único amparo da vida... Como pudeste deixar-me sozinha no meu abandono? Sem coração! Nem ao menos lembrou-te ao partir para essa tão perigosa missão despedir-te de tua mãezinha?"
<br />Cessados os lamentos, os teucros amparam a mãe de Euríalo e levam-na até a sua morada.
<br />A partir daí, a guerra recomeça.
<br />O poeta Virgílio, aqui, interrompe mais uma vez a narrativa, dirigindo outra invocação às Musas nos seguintes termos:
<br />"Musas! Calíope, a voz sustentai-me e dizei-me sem falta do morticínio espantoso causado por Turno, os estragos da sua espada e os guerreiros que os volscos enviaram para o Orco. Contai-me tudo; os sucessos incríveis da ingente peleja, pois em verdade o sabeis e podeis referi-lo a contento." (p.192) ]
<br />O feroz guerreiro Turno, auxiliado pelo deus Jove, põe-se a liqüidar as suas vítimas numa escalada vertiginosa de crueldades. Pelas suas mãos morrem os guerreiros Helenor, Lico, Prômulo, Clônio, Dioxipo, Ságaris, Idante e outros troianos; todos os que lutavam junto a Enéias... Turno então se expressa da seguinte forma:
<br />"Pejo não tendes, ó frígios! de mais uma vez vos cercardes de um valo fundo e de opordes à Morte barreira tão frágil? Com armas tais pretendeis disputar nossas belas esposas? Que divindade ou delírio vos trouxe às paragens da Itália? Não achareis entre nós nem Atridas nem falsos Ulisses. Somos de estirpe robusta..." (p.194)
<br />Ascânio, sentindo-se humilhado, roga ao deus Jove: "Júpiter onipotente! reforça esta audácia nascida do desespero! Magníficos dons deporei no teu templo..."
<br />"O pai dos deuses o ouviu; e a sinistra, no céu descampado, forte trovão retumbou, no momento preciso em que soa o arco letal e uma seta ligeira foi no alvo encravar-se, as duas fontes de Rêmulo unindo por dentro do crânio."
<br />O vitorioso Ascânio é louvado pelo deus Apolo; o deus dirige-lhe as seguintes palavras:
<br />"Cresce em valor, meu menino; é assim mesmo que aos astros chegamos. Filho de deuses, fadado também a ser pai de outros deuses, dia virá em que belo remate os nascidos de Assáraco porão nas lutas dos homens. É certo; não cabes em Tróia." (p.195)
<br />Apolo consente, assim, ao filho de Enéias, uma bela vitória sobre o guerreiro Numano. Logo após, Ascânio é aconselhado pelo deus Apolo a afastar-se definitivamente da pugna.
<br />Recresce a fúria das lutas e batalhas sangrentas se instauram. Deuses e mortais encontram-se numa luta insana. Os rútulos lutam com toda a ferocidade sob as benéficas influências e ordens do deus Marte. Então, subitamente, Turno é encurralado pelo exército inimigo: "Calmo, senão sorridente, responde-lhe Turno impetuoso: Bem; principia, se tens gosto nisso; meçamos as forças. Prestes a Príamo irás anunciar que encontraste outro Aquiles."
<br />Em seguida, Turno mata Pândaro, que desafiara o guerreiro rútulo ao vê-lo encurralado. Turno colérico prossegue suas matanças. Porém, sentindo-se cada vez mais acuado, busca defender-se, procurando a barreira do rio que circunda o burgo. Os deuses estavam prontos a liquidá-lo. Entretanto, a largos movimentos alcançou as margens do rio e, num rápido salto, pulou nas águas com todas as suas armas, fugindo do encalço do exército inimigo.
<br />LIVRO X
<br />Os deuses encontram-se reunidos em Assembléia, no Olimpo. O pai dos deuses pergunta como pode a Discórdia se negar a obedecer seus mandatos. Pede que os excessos de guerra sejam extintos e solicita que novos pactos de paz sejam firmados.
<br />Vênus dirige a Júpiter uma resposta. Diz que Turno insiste na luta, pois essa é a vontade do deus Marte, protetor de feroz guerreiro rútulo. Relata que Enéias está distante do local das lutas, ignorando tudo aquilo que se passa com os seus aliados. Ao pai dos deuses, Vênus procura demonstrar todo o seu temor em relação àqueles que ameaçam o surgimento da Tróia nascente.
<br />O inferno entra na nova Tróia por intermédio da furiosa Alecto - alerta Vênus.
<br />Logo em seguida, a deusa Vênus pede a Júpiter que a auxilie no salvamento de Ascânio contra as armas cegas. Mas a cólera de Juno interfere no diálogo dos deuses. E entre inúmeras queixas contra os estrangeiros troianos, colérica e indignada Juno dirige-se ao pai dos deuses com as seguintes palavras:
<br />"É coisa indigna cercarem latinos de chamas a Tróia no nascedoiro? que Turno defenda o torrão seu paterno, ele que vem de Pilumno e por mãe teve a deusa Vanília? Muito pior será a guerra os troianos ao Lácio levarem , o jugo impor numa terra estrangeira, roubar todo o gado, eleger os sogros, e noivas roubar do regaço materno..." (p.203)
<br />Juno assim falou. Júpiter então decreta que não tomará nenhum partido, dando por encerrada a Assembléia dos deuses.
<br />Enquanto isso, Turno dava prosseguimento à guerra. Enéias tudo ignorava, pois ainda mal saíra das terras de Evandro e em companhia de Palantes. Ambos ainda se encontravam em alto mar, a caminho do campo de batalha.
<br />Virgílio interrompe mais uma vez a narrativa, fazendo a seguinte invocação às Musas:
<br />" Agora, Musas, abri-me o Helicão; inspirai o meu canto, para dizer-me que povos toscanos a Enéias seguiram, naus emprestaram e as ondas revoltas cortaram com ele." ]
<br />O pio Enéias passa a recrutar chefes guerreiros para a batalha. Percorre várias regiões do Lácio, firmando inúmeros pactos com monarcas e respectivas populações. Enéias refere-se a Mântua [terra natal do poeta Virgílio] nestes termos:
<br />"Ocno também traz das praias nativas seus homens, nascido de Manto, sábia adivinha, e do Rio toscano, que o nome da própria mãe te legou, das muralhas, ó Mântua! que te ornam, Mântua mui rica de avós, mas nem todos da mesma linhagem." (p.206)
<br />O canto do herói prossegue enaltecendo outras cidades próximas a Mântua.
<br />Enéias continua a viagem por mares. Repentinamente um grupo de ninfas se aproxima. A mais falante, a ninfa Cimódece, assim se dirige ao pio herói:
<br />"Dormes, Enéias, progênie dos deuses, e rasgas os mares à toda vela? Pinheiros já fomos do monte sagrado do Ida; depois, tua esquadra; ora, ninfas marinhas, desde o momento em que o rútulo fero tentava assolar-nos com suas armas potentes, as chamas do incêndio furioso..." (p.207)
<br />As ninfas dizem a Enéias que se apresse, pois o filho Ascânio corre grande perigo: o colérico Turno avança. Anda, é hora de apressar-te - as ninfas impõem ao pio Enéias.
<br />Turno procura alcançar a praia, para impedir que os troianos ali desembarquem. O feroz guerreiro evoca a memória - fatos passados - para atiçar ainda mais os companheiros.
<br />Enéias e sua embarcação se aproximam. Turno atira seus homens até a praia em sentido de defesa contra a frota do herói troiano.
<br />O choque entre as tropas é inevitável. Então, a um fiel companheiro troiano Enéias fala: "Dai-me outras lanças, daquelas que em Tróia ficaram cravadas em corpos gregos; nenhuma há de frustrar passar pelos rútulos sem atingi-los."
<br />A partir daí, toda Ausônia transforma-se num campo de batalha.
<br />Por fim, o cenário é composto por uma tremenda batalha. As tropas de Enéias recuam diante das forças inimigas. Palantes implora para os companheiros de batalha que não recuem, mesmo porque já não têm para onde fugir. Todo Lácio é um campo de batalha. Em meio à pugna, Palantes, sempre a suplicar, roga proteção e auxílio aos deuses: "Pai Tibre! ao dardo possante que neste momento eu disparo, dá que a Fortuna o dirija até ao peito de Haleso! Um carvalho de tuas margens suas armas terá como honroso troféu."
<br />Caem os filhos da Arcádia e os etruscos. "Morrem os filhos da Arcádia, os valentes e fortes etruscos, e vós também , teucros belos, escapos da fúria dos gregos! Chocam-se iguais contingentes, com cabos de guerra esforçados."
<br />Turno, auxiliado pela irmã divinal Juturna, planeja algo mais surpreendente ao lançar o seguinte desafio: "_ Cesse a pugna! Eu, somente, a Palantes devo enfrentar! Essa vítima a mim é devida. Quem dera que aqui também estivesse seu pai, para ver esse encontro!"
<br />Dito isto, Palantes imediatamente aceitou o desafio proposto por Turno. Numa luta cruel, Palantes é, então, mortalmente ferido pelo cruel rútulo. Turno pede que o filho seja devolvido a Evandro tal como o merece: morto.
<br />Ao saber da morte de Palantes, o pio Enéias é tomado de fúria e desejo de vingança:
<br />".... assim Enéias no campo da guerra semeava destroços desde que o gládio tingiu na matança (...) Desorientados ao vê-lo avançar com passadas gigantes, ameaçador, espantaram-se os brutos e logo, sem tino, por terra o dono jogaram e à praia, sem mais, se acolheram." (p.215)
<br />Enéias prossegue lutando e promovendo mortes sucessivas. O Olimpo se agita. O pai dos deuses pede a Juno que retire Turno do campo de batalha. Uma luta encarniçada entre Enéias e Turno é prevista. No entanto, Turno (a humilhada Juno já conhecia seu destino!), começa a perceber que perde suas forças divinais, e lamenta sua desdita:
<br />"Onipotente Senhor! de que crime impustate-me a culpa, para punir-me e me impor uma pena de tal gravidade? Para onde vou? De onde vim? De que modo fugir de tão grande humilhação, para os campos laurentes voltar e aos combates?" (p.218)
<br />Flutua pela mente de Turno o desejo de suicidar-se. Mas a deusa Satúrnia o impede de realizar tal ato. Por outro lado, Júpiter inspira o cruel guerreiro Mezêncio a tomar o lugar do, agora, pusilânime Turno. Assim, o temível Mezêncio passa a matar inúmeros guerreiros das tropas inimigas. Messapo, outro terrível guerreiro, junta-se a Mezêncio na matança. Entretanto, o deus Marte a guerra equilibra e impõe entre os homens um infinito luto.
<br />A luta agora travada envolve Enéias contra Lauso e Mezêncio. A lança de Enéias atinge mortalmente o guerreiro Lauso - filho de Mezêncio -, mandando-lhe para a morada dos Manes.
<br />Surpreendente para a condição de um guerreiro, Enéias demonstra seus sentimentos de compaixão diante do corpo morto do inimigo:
<br />"Ao ver Enéias no extremo da vida o inditoso guerreiro, de palidez assombrosa coberto, sentiu-se tomado de compaixão. À sua mente ocorreu-lhe a imagem do filho: a destra estende-lhe presto e lhe diz as seguintes palavras: Desventurado mancebo, o que pode fazer-te nesta hora minha piedade, em louvor de ti próprio e da minha coragem? Conserva as armas que tanto estimavas. Prometo entregar-te _ Sirva também de consolo e motivo de orgulho saberes que às mãos caíste de Enéias." (p.221)
<br />Mezêncio chora sobre o cadáver do filho Lauso e, sem demonstrar vontade de continuar vivendo, resolve desafiar Enéias. Enéias vai ao encontro de Mezêncio e, com o auxílio do seu divino Escudo protetor, mata o inimigo. Mezêncio rende-se às forças de Enéias, e moribundo implora:
<br />"Por que me ameaças com a morte, inimigo cruel? Sem desdouro podes matar-me; não vim combater-te pensando na fuga; nem o meu Lauso contigo firmou esse pacto humilhante. Mas, se ao vencido uma graça concedes, apenas te peço: dá sepultura ao meu corpo. Conheço que um ódio implacável os meus me votam; à fúria me poupa de suas desforras. Que lado a lado a meu filho, debaixo da terra eu repouse. Assim dizendo, esperou pelo golpe da espada inimiga. Aos borbotões a alma perde, no sangue que as armas lhe banham." (p.223)
<br />LIVRO XI
<br />Enéias assume como tarefa imediata dedicar louvores aos deuses pela vitória alcançada e enterrar os mortos, dando-lhes sepulturas dignas.
<br />O burgo enlutado de Evandro chorava a morte de Palantes. Vendo o corpo morto de Palantes, Enéias explode em lamentos. Pede, então, aos guerreiros que preparem o leito de morte para Palantes. O cadáver coberto de belos adornos (tecidos com fios de ouro) é destinado ao cortejo fúnebre. Evandro, vendo o filho morto, desaba em lamentos e desconsolado promete não mais mover guerras a ninguém. Um período de trégua foi firmado por doze dias. Durante este período, a população, junto o velho monarca Leandro, lamentava a morte do jovem guerreiro. Outros cadáveres de jovens guerreiros juntaram-se ao do jovem Palantes.
<br />"Era porém na cidade opulenta do velho Latino onde se via maior alvoroço, mais dores e luto. Míseras mães, desoladas esposas, irmãs sem consolo, órfãos pequenos privados do amparo mui cedo na vida, amaldiçoavam a guerra lutuosa e o noivado de Turno.Ele, sozinho, dispute Lavínia com armas e braço, visto aspirar ao domínio da Itália e a mais alta honraria." (p.230)
<br />Para piorar o tumulto, as fortes alianças existentes anteriormente com Turno começam a se desfazer. O rei Latino convoca, então, a Assembléia, para discutir os rumos da guerra. Ali, a guerra de Tróia e seus heróis é narrada à população, elevando o nome de Enéias. Devido à sua coragem e a de Heitor, a guerra de Tróia fôra adiada por um período de dez anos. O rei Latino, insistindo em salvar a pátria arruinada, expõe à população o seu plano para por termo à guerra no Lácio: pretendia doar um vasto terreno perto do rio toscano para o estabelecimento dos troianos.
<br />Drances, inimigo mortal de Turno, levanta-se e traz a lume a sua proposta na Assembléia. A proposta de Drances pretendia firmar a paz com Turno e expulsar Enéias do Lácio. Entretanto, Turno, ao conhecer os planos de Drances, assim reage:
<br />" Drances , és pródigo em belos discursos em tempo de guerra, quando se exige trabalho; o primeiro a chegar ao Conselho, sempre que os homens de bem são chamados. Porém não é hora de belas frases, enquanto as muralhas detêm os ataques dos inimigos e o sangue lá fora nos fossos referve. Troveja, então; é o teu hábito. Assascas-me, Drances, a pecha de covardia? " (p.234)
<br />Turno então pede que o idiota não se preocupe. E diz não às propostas apresentadas. O feroz guerreiro rútulo então convoca a guerreira Camila - da nação vitoriosa dos volscos - para ajudá-lo a combater Enéias. Turno diz colérico: "Contra ele, sim, partirei, ainda mesmo que seja outro Aquiles e, tal como este, se vista com armas do forte Vulcano."
<br />O Conselho então se reuni e Turno decreta pela continuidade da guerra. Arma-se furioso juntamente com Camila, e reabre a peleja. Camila, dotada de uma coragem invulgar, solicita a Turno que ela seja a primeira a enfrentar os perigos da batalha prestes a começar. Turno, fixando-se na terrível virgem donzela, diz:
<br />"Ó virgem, glória da Itália! Como hei de pagar-te, como hei de agradecer teu auxílio valioso em tamanha apertura? Teu brio a tudo supera; vem, pois, tomar parte na luta. Se for verdade o que os meus batedores há pouco informaram, o astuto Enéias os campos em torno devasta com a sua cavalaria ligeira, e ele próprio, galgando estes montes abandonados, tenciona alcançar a cidade hoje mesmo." (p.238)
<br />Camila, afeiçoada de Diana, tem a deusa como sua protetora. A deusa prepara a virgem para entrar nos combates cruentos contra os troianos. Ao lado de Camila lutará o temível guerreiro Messapo. A luta tem seu início e Camila com o peito nú destaca-se no meio da indescritível batalha. Muitos na dor se contorceram frente à ferocidade assassina de Camila. Ela mata possantes guerreiros com velocidade e força descomunais. Sem precaver-se, desejando logo liquidar os troianos, Camila vai ao encalço de Arrunte. Este gira seu dardo ao redor de Camila. Num golpe, o dardo cravou-se no peito direito sem mama de Camila. Morta Camila, a emissária de Diana, Ópis, geme de dor. Logo em seguida, o matador de Camila é perseguido e morto por uma ninfa trácia.
<br />Turno ao receber a notícia da morte de Camila encontra-se emboscado numa selva. Ao afastar-se da selva, Turno avista Enéias, e este a Turno.
<br />LIVRO XII
<br />Perdida a altivez pelas derrotas sucessivas, Turno, ao monarca Latino, expõe o seu desejo em duelar corpo-a-corpo com Enéias. Latino aconselha Turno a desistir de tal confronto, mostrando a ele tudo aquilo que possui em abundância. Mas Turno resiste aos conselhos do velho monarca. Amata interfere dizendo que Turno é o único arrimo dos Latinos; portanto, deveria desistir do confronto. Belicoso, Turno dirige-se a Amata com as seguintes palavras: "Mãe, não me aflijas com lágrimas e esses terríveis agouros, para não me deprimirem no instante de entrar em combate." E termina dizendo que o vencedor da peleja será o esposo de Lavínia. Por outro lado, não menos colérico encontra-se Enéias, que aceita o duelo proposto por Turno. Enquanto isso, a deusa Juno dizia a uma ninfa protetora de Turno que o fatal dia das Parcas aproximava-se do cruel guerreiro.
<br />Enéias invoca os deuses, prometendo-lhes que, caso Turno fosse o vencedor, rumo à cidade de Evandro os vencidos se recolheriam. Caso contrário, se Enéias fosse o vencedor, o pio herói promete, então, um pacto de paz com todos os povos da Itália. Latino jurou que seguiria as palavras de Enéias, e assim firmaram um novo pacto.
<br />Enquanto isso, Juturna, a deusa protetora de Turno, juntamente com seu povo, lamenta a desdita do feroz guerreiro. Mas o furor bélico a todos arrasta até o local da dura peleja. Enéias, ferido na perna, dá início ao combate. Ambos se encontram no campo de batalha. A rainha Amata, imaginando Turno vencido na peleja, suicida-se.
<br />Os dois guerreiros concordaram em lutarem sós. Então, os belos escudos se chocam. Durante a sangrenta luta, Turno pede auxílio a Fauno. Uma ninfa auxilia Turno durante a luta. Vênus indignada livrou a espada do teucro, pronta para atingir mortalmente Turno. O pai dos deuses indignado com tudo aquilo pede à deusa Vênus um basta. Vênus diz ao pai dos deuses que desiste de tudo aquilo, implorando a Júpiter que estabeleça a paz entre os povos da Itália. Que todos os povos do Lácio se unissem em doce aliança: "Cresça a potência romana com base nos ítalos fortes. Tróia acabou; deixa então que com ela seu nome pereça." Que exista doravante um só povo com nome de latino. Esta era a vontade da deusa.
<br />O Olimpo então enviou Juturna até o campo de batalha, onde os dois guerreiros lutavam. Ali transformou-se em ave negra agourenta, para o assombro e horror de Turno. Diante desse agouro, o guerreiro rútulo previu a própria morte iminente. A ninfa Juturna demonstrava tristeza profunda pelo fim do querido irmão.
<br />Finalmente, embora demonstrando forte indecisão na hora fatal, Enéias mata Turno. "A alma indignada a gemer fundamente fugiu para as sombras."
<br />...............................................................
<br />AS CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS FORAM EXTRAÍDAS DO SEGUINTE VOLUME:
<br />VERGÍLIO. Eneida. Tradução Tassilo Orpheu Spalding. 3 a 9 ed. São Paulo: Cultrix, 1990-92.
<br />PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
<br />CAMPINAS, verão de 2005
<br />Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original (cite o nome do autor (Prof. Dr. Sílvio Medeiros) e o link para o site www.recantodasletras.com.br/autores/silviomedeiros). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
<br />A "ENEIDA", de VIRGÍLIO (tentativa de resumo)2005Recanto das LetrasSÍLVIO MEDEIROSSÍLVIO MEDEIROStext/plain
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />Virgílio
<br />Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
<br />Públio Virgílio Marão (em latim Publius Vergilius Maro), às vezes chamado de Vergílio, (Andes, 15 de Outubro de 70 a.C. - Brindisi, 21 de Setembro de 19 a.C.), foi um poeta romano.
<br />Sua obra mais conhecida é a Eneida. Foi considerado ainda em vida como o grande poeta romano e expoente da literatura latina. Seu trabalho foi uma vigorosa expressão das tradições de uma nação que urgia pela afirmação histórica, saída de um período turbulento de cerca de dez anos, durante os quais as revoluções prevaleceram.
<br />Biografia
<br />Considerado o maior poeta latino. Era natural da região de Mântua (70-19 a.C.) e filho de uma família de camponeses. Alcançou pelo casamento uma situação estável, podendo então ouvir, em Milão e Roma, as lições de filósofos epicuristas. Amigo de Horácio, como ele protegido por Mecenas, entrou em contato com o imperador, de quem recebeu o incentivo para escrever a Eneida.
<br />Admirador da cultura helênica, empreendeu uma viagem à Grécia, berço e viveiro da cultura, sonho que há muito acalentava: o destino concedeu-lhe a realização desse anseio, mas morreu no regresso, junto de Brindisi. O seu túmulo encontra-se em Nápoles.
<br />A obra de Virgílio compreende, além de poemas menores, compostos na juventude, as Bucólicas ou Éclogas, em número de dez, em que reflete a influência do gênero pastoril criado por Teócrito.
<br />As Geórgicas, dedicadas ao seu protetor Mecenas, constam de quatro livros, tratando da agricultura. Trata-se de uma obra de implicações políticas indiretas, embora bem definidas: ao fazer a apologia da vida do campo, o poeta serve o ideal político-social da dignificação da classe rural. Reflete a influência de Hesíodo e Lucrécio.
<br />Literariamente, as Geórgicas são consideradas a sua obra mais perfeita. E finalmente, a Eneida, que o poeta considerou inacabada, a ponto de pedir, no leito de morte, que fosse queimada, constitui a epopéia nacional.
<br />Esta refere-se à lenda do guerreiro Enéias, que, após a célebre guerra, teria fugido de Tróia , saqueada e incendiada, e chegado à Itália, onde se tornou o antepassado do povo romano. Epopéia erudita, a Eneida tem como objetivo dar aos romanos uma ascendência não-grega, formulando a cultura latina como original e não tributária da cultura helênica.
<br />O poema consta de doze livros e a sua construção serviu de modelo definitivo às grandes epopéias do renascimento, nomeadamente para Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, o que se percebe claramente comparando o primeiro verso das duas epopéias:
<br />Eneida: Arma uirumque cano... que significa: "As armas e o varão(herói) eu canto"; com
<br />Lusíadas: As armas e os barões assinalados..
<br />
<br />Uma Epopéia por encomenda
<br />Virgílio já era ilustre pelas suas Bucólicas, um poema pastoril, e Geórgicas, um poema agrícola. Então, o imperador César Otaviano Augusto encomendou a Virgílio a composição de um poema épico que cantasse a glória e o poder de Roma. Um poema que rivalizasse e quiçá superasse Homero, e também que cantasse, indiretamente, a grandeza de César Augusto. Assim Virgílio vai elaborar um trabalho que, além de labor lingüístico e estro poético, é também propaganda política.
<br />Muitos dos episódios na Eneida, que narra um tempo mítico, têm uma correspondência sincrônica com a atualidade de Augusto. Por exemplo o escudo de Enéias, simbolizando a batalha do Ácio, quando Otávio Augusto derrota Marco Antônio em 36 a.C. e a previsão de Anquises, no Hades, sobre as glórias de Marcelo, filho de Otávia, irmã do imperador.
<br />Virgílio conclui a Eneida em 19. a.C.. A obra está completa mas não está ainda pronta segundo o seu criador. Virgílio gostaria ainda de visitar os lugares que aparecem no poema e revisar os versos dos cantos finais. Mas adoece e, às portas da morte, pede a dois amigos que queimem a obra por não estar ainda perfeita. O grande poema, já era conhecido de alguns amigos coevos, não é destruído - para nossa felicidade e fortuna literária. Sem a epopéia virgiliana, não haveria Orlando Furioso, O Paraíso Perdido, Os Lusíadas, dentre outros grandes clássicos da literatura mundial.
<br />Ambição de Virgílio
<br />Virgílio ao escrever esta epopéia inspirou-se em Homero, tentando superá-lo: Virgílio empenhou-se em fazer da Eneida o poema mais perfeito de todos os tempos. De certa forma, a primeira metade (seis primeiros cantos) da Eneida tenta superar a Odisseia, enquanto a segunda tenta superar a Ilíada. A primeira metade é um poema de viagem e a segunda um poema bélico.
<br />Dramatis personæ
<br />Há dois tipos de personagens na Eneida: os Humanos e os Deuses. Há uma espécie de terceira entidade que é a do Fatum (Fado, destino) que nem os deuses podem obliterar.
<br />Humanos
<br />• Anquises, pai de Eneias
<br />• Ascânio, filho de Eneias e de Creusa.
<br />• Creusa, esposa de Eneias.
<br />• Dido, rainha de Cartago.
<br />• Evandro, ancião
<br />• Eneias, troiano, sobrevivente à guerra de Tróia
<br />• Turno, rei latino, inimigo de Eneias em Ítália
<br />Deuses
<br />• Apolo, deus do Sol
<br />• Éolo, deus dos ventos
<br />• Juno, mulher de Júpiter, opositor de Eneias
<br />• Júpiter, o rei dos deuses
<br />• Mercúrio, o deus mensageiro
<br />• Neptuno , deus dos mares
<br />• Vénus, deusa do amor e da beleza, coadjuvante de Eneias
<br />Nota: É de bom grado utilizar a terminologia latina (romana) para falar da Eneida, já que se trata de um poema romano.
<br />Tempo da diegese
<br />O tempo da diegese, ou seja dos acontecimentos narrados, ocorre imediatamente após a queda da cidade de Tróia, portanto a Eneida dá continuidade à Ilíada de Homero. Se a Odisséia narra as aventuras de um grego, de Ulisses (ou Odisseus), que tenta voltar para a sua casa e para a sua família, a Eneida narra as aventuras de um troiano que, depois da destruição de Tróia, foge com a sua família. A sua fuga dá-se por mar. Eneias procura um sítio para fundar uma nova cidade.
<br />Tempo do discurso
<br />Quando o texto começa, a aventura de Enéias já se iniciou (a narrativa começa in media res, isto é, a meio da acção). O herói naufraga ao largo de Cartago (a actual Tunes) e vai ter com a rainha Dido. Conta-lhe as suas viagens até ao momento em que se encontra. Esse é um processo de analepse (em inglês, flashback). A partir do quarto capítulo, o tempo da diegese é contemporâneo ao da narração do poema, ou seja os acontecimentos são narrados como se estivessem acontecendo no presente.
<br />Capítulos ou Cantos
<br />A Eneida tem doze capítulos, exactamente metade que a Odisseia.
<br />I - Eneias naufraga ao largo de Cartago
<br />Depois de partir da Sicília, Enéias é arrastado por uma tempestade que o faz naufragar. Enéias observa a cidade. Ele que vem de Tróia que fora totalmente arrasada e que tem por missão fundar uma nova cidade. É recebido por Dido, rainha de Cartago. Comove-se ao ver os frescos nas paredes que narram a guerra de Tróia. Dido começa a apaixonar-se por Enéias.
<br />II- Enéias narra a Dido o último dia de Tróia
<br />Dido solicita a Enéias que lhe relate a queda da lendária cidade de Tróia. Ele conta o célebre episódio do Cavalo de Tróia. E conta como se deu a batalha durante a noite. Como o incêndio começou a devorar a cidade. No desespero Enéias decide lutar até morrer. Vênus, sua mãe, aparece e lhe diz: vai procurar o teu pai, a tua mulher e teu filho e abandona a cidade.
<br />A cidade é tomada pelos gregos. Enéias procura sua mulher, Creusa, gritando pelas ruas À sua procura. Encontra o espectro dela. Com muita ternura o fantasma de Creusa diz-lhe uma profecia: que ele irá ter muitos infortúnios mas acabará por conseguir fundar uma nova cidade. Enéias consegue fugir com o seu pai às cavalitas e com o seu filho pela mão.
<br />III- Enéias narra a Dido as suas viagens rumo à Itália
<br />Eneias continua a contar a Dido as suas peripécias para chegar à Itália, até aportar em Cartago temporaria e acidentalmente. Conta a sua escala na Trácia e em Creta. A chegada a Épiro e à Sicília. Conta também seu encontro com Andrômaca (viúva de Heitor) e como faleceu o seu pai Anquises.
<br />IV- Os amores de Dido e seu fim trágico
<br />A rainha Dido, segundo a Eneida de Virgílio, após ouvir a narração do fim de Tróia e das viagens e peripécias de Enéias, influenciada por Vênus, deusa do amor e mãe de Enéias, vê-se completamente apaixonada pelo herói. Ela convida os troianos (Enéias e os seus companheiros) para uma caçada. No meio de uma tempestade, abrigados em uma caverna, Dido e Enéias se amam. Entretanto Júpiter envia Mercúrio a Enéias para lhe lembrar que seu destino é encontrar o Lácio e fundar uma nova cidade que substitua a cidade de Tróia destruída e que governe as demais cidades do mundo. Enéias tenta sair de Cartago sem que Dido se aperceba disso. Sentido-se abandonada, enganada e vilipendiada, furiosa e ensandecidada pelo amor não retribuído, ela se suicida enquanto partem os navios troianos e Enéias ainda pôde ver a fumaça da pira funérea saindo de seu palácio.
<br />V- Os jogos fúnebres
<br />Eneias aporta à Sicília e decide realizar jogos fúnebres em honra de seu pai Anquises. Já se passou um ano desde que este morreu.
<br />(Este capítulo é importante para quem estuda a antropologia dos romanos porque dá indicações de como eles se relacionavam com a morte.)
<br />VI- Descida de Eneias ao Mundo dos Mortos/Submundo
<br />Este é um dos episódios mais famosos da Eneida. Depois de Eneias ter partido da Sicília fez escala em Cumas. Nesse local consulta uma sacerdotisa (uma sibila) de Apolo. Ele tem um desejo intenso (em sonhos seu pai o havia conclamado a fazê-lo) de falar uma última vez com seu pai para lhe pedir conselho sobre a viagem. Obtém permissão de descer ao mundo dos mortos (este episódio faz lembrar outras descidas famosas ao mundo dos mortos: o episódio de Orfeu e Eurídice, a nekya de Odisseu, no canto XI da Odisséia. No mundo dos mortos vê vários espectros. Um deles o de Dido que, ladeada por seu primeiro esposo, não lhe responde.
<br />O seu pai Anquises dá-lhe importantes informações sobre a sua viagem e faz uma longa profecia sobre o futuro glorioso de Roma. (infernos, o hades dos gregos)
<br />VII- chegada ao Lacio
<br />(Latium, província romana onde se situará Roma)
<br />VIII- Evandro. Descrição do Escudo de Eneias
<br />IX- Ataque ao acampamento troiano
<br />X- Façanhas e morte de Palante
<br />XI- Funerais dos guerreiros. Façanhas de Camila
<br />XII- Combate de Eneias e de Turno. Vitória de Eneias.
<br />Simbologias da Eneida
<br />A Eneida simboliza o poder imperial de Roma, sob o comando de César Octaviano Augusto. Dido simboliza o poder de Cartago, rival de Roma, que seria por esta destruída na terceira das guerras púnicas. Dido também simboliza Cleópatra, rainha do egipto, que se tinha aliado a um general romano, Marco António, para resistirem a Roma. Marco António e Cleópatra foram derrotados na batalha marítima do Áccio, ao largo do delta do Nilo. Dido simboliza assim a mulher misteriosa e sedutora do oriente, que resiste ao poder romano mas que por ele é submetido. Por metonímia simboliza todo o Médio Oriente e Norte de África que foram das últimas terras a serem conquistadas pelo Império Romano.
<br />
<br />Turno simboliza os antecedentes latinos da "raça" romana, enquanto Eneias simboliza os antecedentes troianos (que são ficcionais). Eneias é uma personagem que permite dar a Roma uma ascendência mítica, juntando-se assim ao mito da fundação de Roma por Rómulo e Remo.
<br />Repercussões literárias da Eneida
<br />Dante Alighieri, no seu famoso episódio da descida aos infernos, é levado pela mão de Virgílio para ver os mesmos. Luís de Camões inspira-se directamente neste grande Épico romano para escrever os seus Os Lusíadas.
<br />Traduções
<br />Há algumas traduções da Eneida para a língua portuguesa, feitas do latim. Em verso, citam-se as brasileiras de Manuel Odorico Mendes, do século XIX, que utilizou o decassílabo heróico, e de Carlos Alberto da Costa Nunes, do século XX, que utilizou o verso de dezesseis sílabas poéticas para verter o hexâmetro dactílico épico; e a portuguesa de José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva, do século XIX, em decassílabos. Em prosa, publicaram-se a tradução de Tarsila Orpheu Spalding e a de Jaime Bruna.
<br />• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Manuel Odorico Mendes. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005;
<br />• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Carlos Aberto Nunes. Brasília: UnB, 1975;
<br />• VIRGÍLIO. Eneida. Trad. José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2004
<br />
<br />Resumo de Eneida,
<br />por: Prof. Silvio Medeiros
<br />Fonte: http://imprimis.arteblog.com.br/home/
<br />LIVRO I
<br />Proêmio da "Eneida". O poeta dirige a invocação às Musas:
<br />"As armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Tróia por injunções do Destino , instalou-se na Itália primeiro e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno, guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade e ao Lácio os deuses trazer _ o começo da gente latina, dos pais albanos primevos e os muros de Roma Altanados.
<br />Musa! recorda-me as causas da guerra, a deidade agravada; por qual ofensa a rainha dos deuses levou um guerreiro tão religioso a enfrentar sem descanso esses duros trabalhos?" (p.9)
<br />Assim tem início o canto sobre a saga do herói Enéias na "Eneida". Primeiro o poeta Virgílio canta as glórias do pio Enéias, em seguida faz a invocação às Musas.
<br />A divindade inimiga do herói é a deusa Juno (esposa de Júpiter e mãe de Marte), dona das terras da Itália, além de protetora da cidade de Cartago, ao norte da África. Com efeito, para a deusa, Enéias é um invasor que deve ser combatido; apesar de Juno conhecer, desde o início da épica, as tramas que as Parcas já haviam tecido contra os inimigos do herói troiano: "Juno potente, a sangrar-lhe no peito a ferida, conversa consigo mesma: _ Aceitar o fracasso no início da empresa, sem conseguir afastar dessa Itália o caudilho troiano?..."
<br />Em meio a outros pensamentos contra o herói troiano, Juno "baixa até à pátria dos ventos furiosos, a Eólia chamada, dos Autros feros", e súplice roga a Éolo, pai das tempestades, que impeça o avanço das frotas troianas sobre o território italiano. Prontamente a deidade é atendida por Éolo: os ventos reunidos tornam negro o dia e a tormenta desaba sobre o mar. Enéias aterrorizado com tal cenário, exclama: "_ Oh, três vezes e quatro felizes os que morreram à vista dos pais, sob os muros de Tróia!", lamentando, desse modo, não ter também perecido na guerra de Tróia. A tormenta bate de frente na frota dos troianos e a poderosa tempestade os domina. No entanto, Netuno (deus do mar e irmão da rancorosa Juno), presenciando e não apreciando tais acontecimentos, invoca os ventos propícios, tornando o mar manso. Só assim, Enéias e seus sócios desembarcam nas costas da Líbia. Aproximam-se da morada das ninfas e ali descansam. Enéias pede ânimo aos companheiros, dizendo-lhes que já enfrentaram coisas piores; lembra, então, que já escaparam dos terríveis Cilas e Ciclopes. Avisa que a viagem terá continuidade rumo ao Lácio prometido pelos deuses: sinônimo de um futuro risonho. Enéias insufla ânimo na alma dos troianos.
<br />Enquanto isso, no Olimpo, a deusa Vênus, angustiada, roga ao pai dos deuses - Júpiter - que ponha fim aos trabalhos infindáveis e aos sofrimentos do povo troiano. Júpiter, tranqüilizando a filha Vênus, promete:
<br />"Acalma-te, Citeréia: imutáveis encontram-se os Fados. Ainda verás a cidade e as muralhas da forte Lavínio, como te disse, e até aos astros o nome elevar-se de Enéias de alma sublime. Mudança não houve no meu pensamento. Mas, uma vez que tais cuidos te agitam, tomando de longe vou revolver o futuro e os arcanos do Fado mostrar-te. Guerras terríveis ele há de enfrentar..." (p.15)
<br />Dito isto, o pai dos deuses narra à filha Vênus toda a história gloriosa da futura Roma, citando seus heróis fundadores - do governo de Rômulo até a futura e gloriosa "Tróia" do imperador Júlio César. Após essas promessas, o pai dos deuses solicita a Mercúrio (mensageiro dos deuses) que vá até o reino de Cartago - administrado pela infeliz rainha Elisa (cujo epíteto era Dido) -, para que, lá, o pio Enéias fosse bem recebido. Em seguida, Vênus aparece para Enéias, narrando a ele toda a história da desventurada Dido. Pigmalião - o irmão de Dido - assassinou Siqueu, o esposo de Dido. Em sonhos, Siqueu apareceu a Dido, revelando-lhe a maneira como o irmão Pigmalião havia tirado a vida do esposo Siqueu. Além disso, alertou Dido para que abandonasse o reino, levando com ela todas as fortunas acumuladas. Esta aventura foi chefiada por Dido até atingir a sua destinação; isto é, o local no qual Dido deveria fundar a cidade de Cartago.
<br />Após narrar tal história, Vênus aconselha Enéias a procurar proteção junto a Dido. Enéias penetra no reino de Dido protegido por uma espessa neblina a cobrir todo o seu corpo. De tudo alí visto, Enéias admirava-se. A paisagem da cidade em construção, Enéias contemplava maravilhado. Fervia o trabalho por todos os cantos do burgo de Dido. Muros gigantescos erguiam-se no burgo nascente.
<br />No templo de Juno, construído por Dido, Enéias contemplava e emocionava-se com as gravuras que registravam vários episódios da Guerra de Tróia. Enquanto Enéias admirava os sublimes quadros, a rainha Dido entra no palácio. Dido então passa a ditar os trabalhos dos operários responsáveis pela construção da cidade de Cartago. Um misto de medo e alegria apodera-se de Enéias e do seu fiel acompanhante Acates. Ilioneu, porta-voz da rainha, narra os infortúnios da tropa dos troianos que, há pouco, desembarcara nos domínios do seu reino. Então a rainha Fenícia, após ouvir a história, fala:
<br />"Com os olhos baixos, em termos concisos lhe fala a Rainha: Bani, troianos , do peito o temor; expulsai os cuidados. As duras leis do começo de um reino, senão mesmo a própria necessidade me impõe rigor na patrulha da costa . Quem desconhece a ascendência de Enéias, a queda de Tróia, a proverbial resistência dos teucros, horrores da guerra? Nós, os fenícios , não somos tão bárbaros como pensastes..." (p.23)
<br />e diz que muita feliz ficaria se ali estivesse presente o próprio Enéias. Com tal discurso, Enéias e Acates animam-se. De repente, a nuvem enviada por Vênus se desfaz e, à luz repentina, Enéias se mostra aos olhos de Dido. Apresenta-se, então, à rainha Dido, dizendo que era o teucro Enéias. A rainha fala: "És, pois, Enéias, aquele de Vênus divina, nascido nas margens claras do belo Simoente, e de Anquises troiano? (...)" E, logo aceitando a presença do estrangeiro no seu reino, a infeliz Dido fala: "Por ter passado por isso, aprendi a ser boa com todos."
<br />Enéias então convida toda a sua frota a entrar no reino de Dido. A rainha recebe da tripulação de troianos inúmeros presentes; eram objetos salvos das ruínas de Tróia.
<br />No Olimpo, Juno trama a paixão de Dido por Enéias. Cupido enfeitiça a rainha com um ardente amor por Enéias. Dido, consumida pelo amor, devora Enéias com os olhos. Aos poucos a imagem de Siqueu, o defunto marido, é apagada de sua memória.
<br />Dido invoca Júpiter, prometendo ao referido deus hospitalidade aos estrangeiros. Em seguida, roga ao estrangeiro Enéias que o próprio narre as suas aventuras:
<br />"Hóspede_ fala-lhe_ conta-nos tudo por ordem, do início, as artimanhas dos dânaos, desditas dos teus companheiros, este vagar sem descanso nem termo por mais de sete anos em toda terra infinita, nas ondas inquietas, por tudo." (p.28)
<br />LIVRO II
<br />Então, todos se calaram na corte de Dido, e Enéias deu início à sua narrativa.
<br />Contou a história do cavalo de Tróia e como os adivinhos troianos procuravam encontrar a razão para o surgimento repentino do gigantesco cavalo no reino de Tróia. Teria sido trabalho de quem? E com qual intuito teria sido enviado à Tróia? Dentre os adivinhos, apenas Laocoonte desvendou o segredo. Dirigiu-se aos troianos, dizendo o seguinte:
<br />"Cidadãos infelizes, que insânia vos cega? Imaginais porventura que os gregos já foram de volta, ou que seus dons sejam limpos? A Ulisses, então, a tal ponto desconheceis? Ou esconde esta máquina muitos guerreiros, ou fabricada ela foi para dano de nossas muralhas, e devassar nossas casas ou do alto cair na cidade. Qualquer insídia contém. Não confieis no cavalo , troianos!" (p.30)
<br />No entanto, a multidão não deu atenção aos insistentes apelos e presságios do adivinho Laocoonte.
<br />Ao mesmo tempo, Torvo - rei mancebo de Argos -, sem armas, apresenta-se à multidão e vocifera um astucioso relato contra Ulisses; o herói grego é por ele considerado um falso, pois Ulisses havia assassinado Palamedes (protetor de Torvo) por inveja. Os troianos, sem suspeitarem até onde ia a perfídia e a maldade de um grego, permitiram que Torvo prosseguisse o seu falso relato. Compadecidos com a desdita do infeliz, os troianos ofereceram-lhe a liberdade. Por Sinão, o grande "sábio das tramóias", mais uma vez os troianos foram alertados contra as artimanhas de Ulisses - de todo o mal inventor . Suas profecias também foram ignoradas.
<br />Antes dos troianos permitirem a entrada do cavalo na cidade, Laocoonte teve uma terrível visão de todos os males que atingiriam Tróia por obra dos gregos. Cassandra, filha do troiano rei Príamo e irmã do príncipe Paris, também procurou avisar os troianos sobre todos os males que estavam por vir, mas foi calada pelo deus Apolo.
<br />Finalmente, a cidade recebe o cavalo, entoando hinos de júbilo. Após beberem, os troianos exaustos adormecem.
<br />Os heróis gregos, aproveitando-se deste fato, abandonam o interior do cavalo (ardiloso engenho) e invadem a cidade de Tróia. Pegos de surpresa, os troianos não resistem à força do exército grego.
<br />Enéias vê o chefe guerreiro troiano Heitor a chorar diante de Tróia destruída. Heitor assim fala a Enéias:
<br />"_ Foge daqui , filho de uma deidade; do incêndio se livra. Dentro dos muros campeia o inimigo; hoje Tróia extinguiu-se. Muito já demos a Príamo e à pátria. Se a Pérgamo a destra de algo valesse, estas mãos se imporiam na sua defesa. Tróia te entrega os seus deuses e os sacros objetos do culto. Leva contigo esses sócios; procura morada para eles, grande cidade, depois de cortares o mar tormentoso..." (p.36)
<br />Ao ouvir isso da boca de Heitor, Enéias lamenta a distância de sua casa, temendo não conseguir lá chegar para salvar a esposa: Creúsa, o pai: Anquises, e o filho: Ascânio.
<br />O fogo dominava a cidade de Tróia, tudo destruindo pela traição e pela perfídia dos gregos. Uma idéia dominou brevemente os pensamentos de Enéias: morrer pela pátria, pois o último dia chegara para os troianos.
<br />"Todos os deuses, esteios da pátria, os santuários e altares já abandonaram. Correis em defesa de ruínas e escombros em labaredas. Morramos, então! Avancemos sem medo! Para os vencidos só há salvação na esperança perdida. (...) Quem poderia narrar os horrores, o atroz morticínio daquela noite, ou com o pranto igualar o trabalho dos teucros? Caiu por terra uma antiga cidade, rainha das outras." (p.38)
<br />O palácio do rei Príamo ardia em chamas. Sem a ajuda dos deuses, uma chuva de dardos inunda a cidade ardente de Tróia. Tudo são ais nos interiores do Palácio Real. As autoridades troianas femininas: Andrômaca, Cassandra e Hécuba são raptadas. Príamo é morto por Pirro - temido guerreiro grego-, vingando, desse modo, a morte do filho do herói grego Aquiles, Neoptólemo.
<br />Enéias mantém o seu pensamento voltado para a família e, com a alma furiosa, só pensa em vingar a pátria destruída. Porém, Enéias é aconselhado pela deusa Vênus a abandonar a cólera que o devora, e imediatamente socorrer a família, saíndo em fuga da Tróia destruída. O pai, Anquises, num primeiro momento, recusa-se a fugir com o filho. Enéias tenta convencer o pai que Tróia não tem mais salvação. Então Anquises foi surpreendido por um augúrio feliz: repentinamente da cabeça do neto Ascânio alçava uma chama, lambendo-lhe os cabelos. Anquises, convencido do aviso dos deuses, põe-se em fuga junto à nora, ao neto e ao filho:
<br />"Pronto! partamos! agora! depressa! para onde quiserdes! Ó pátrios deuses, guardai esta casa, salvai meu netinho. O agoiro é vosso; sob vossa potência está Tróia segura. Não mais resisto, meu filho, nem faço objeção em seguir-te."
<br />A pequena família foge com alguns servidores. A travessia pela cidade tomada pelos gregos é arriscada. Subitamente, o velho Anquises avista os gregos bastante próximos. Nesse momento, a esposa Creúsa desaparece para sempre de Enéias. O pio herói fica inconformado diante da perda da esposa. Segue-o somente o pai e o filho em meio aos horrores da cidade destruída.
<br />"Amontoada, a riqueza de Tróia se via, templos saqueados, as mesas dos deuses, as mais belas copas de ouro existentes, e vestes e adornos dos pobres cativos. Ao derredor, em fileiras, morrendo de medo, os meninos, mães desoladas." (p.48)
<br />Durante a fuga, a sombra da adorada esposa Creúsa apresenta-se ao herói troiano. Este procura agarrá-la, mas em vão. Então, Creúsa implora que Enéias aceite todas aquelas tragédias, pois sucessos futuros lhe são reservados: com a ajuda dos deuses fundará uma nova Tróia, em território italiano. Em seguida, diz o derradeiro adeus ao marido.
<br />Cedendo à sorte e carregando o pai nos ombros, o pio Enéias apressa sua fuga do território troiano.
<br />LIVRO III
<br />Toda Tróia é destruída. O herói Enéias encontra-se exilado em alto mar, em companhia do pai, do filho, dos sócios e dos deuses de Tróia.
<br />Aportam à praia das terras do feroz Licurgo. Enéias traça riscos no chão e passa a chamar a novata comunidade que o acompanhava de Enéadas; tudo sem os auspícios dos deuses. Às ninfas agrestes do local Enéias implora auxílio. De repente, ele é surpreendido pelo fantasma do guerreiro troiano Polidoro, outrora vencido naquelas terras. Polidoro, filho do rei Príamo, fôra morto no passado por um rei trácio; ele aconselha Enéias a abandonar imediatamente aquele lugar. Enéias presta honras fúnebres ao insepulto Polidoro e, logo em seguida, abandona as terras de Licurgo. A frota alcança o mar. Enéias desesperado pede ajuda a Apolo quanto a seu futuro incerto: "A quem seguimos? Aonde ir aconselhas? A sede assentarmos? Dá-nos agouro, Senhor! Ilumina estas mentes cansadas."
<br />Então Enéias ouve vozes solicitando-lhe que busque as terras da "mãe primitiva" (a Itália), pois lá será o seu definitivo lar. Essas palavras a todos anima. A tropa chega, então, às praias dos Curetas. Lá os troianos descansam. No entanto, o pio Enéias encontra-se atormentado, solicitando novos auxílios a Apolo. Mais uma vez recebe o aviso de que a sua nova pátria encontra-se na Hespéria, em território italiano. Atarantado com tantas vozes e visões, Enéias acorda a toda a tripulação. Tendo Febo por guia, Enéias põe-se a caminho da terra prometida pelos deuses. Sempre obedientes aos destinos impostos pelos deuses, os troianos lançam-se em alto mar. Tempestades varrem o oceano. Após várias tormentas, avistam terras ao longe. Em breve, encontravam-se nas terras das Harpias; Celeno, a mais poderosa das fúrias, confirma os desígnios dos deuses: "com prósperos ventos heis de alcançar por sem dúvida a Itália longínqua. Mas, antes mesmo de vossa cidade querida dos deuses de muros altos cingirdes, haveis de roer até as mesas."
<br />A frota troiana parte, então, daquelas terras. Logo aproximam-se de Ítaca. "De Ítaca reino de Laertes fugimos, de seus arrecifes, amaldiçoada por todos, a pátria de Ulisses nefando." E prosseguem a viagem... Passam próximos à ilha dos Feáceos até alcançarem terras gregas, onde reinava Heleno - filho de Príamo -, por ter esposado a viúva do guerreiro grego Pirro. Lá também encontrava-se Andrômaca a esposa-viúva do herói troiano Heitor.
<br />Andrômaca relata a Enéias toda a seqüência de infortúnios que sofrera após a guerra de Tróia; nesta ilha, Andrômaca vivia na condição de escrava. Andrômaca demonstra extrema preocupação com a família do pio Enéias. Heleno, o monarca da ilha, recebe Enéias com gentileza e hospitalidade.
<br />Em terras de Heleno, Enéias volta a consultar Apolo; o deus confirma-lhe, com precisão, o local onde deverá ser fundada a nova Tróia.
<br />"Dou-te os sinais; na memória os retém, como é justo fazeres. Quando apreensivo estiveres nas margens de um rio sem nome, e deparares deitada na sombra de bela azinheira uma alva porca com trinta leitões ao seu lado, da mesma cor da mãe branca, deitados no chão a mamar com sossego: esse será o local da cidade, o descanso almejado." (p.61)
<br />Dentre outros conselhos, o deus Apolo antecipa ao pio Enéias os perigos que deverá enfrentar em relação a Cila e a Caribde, dois monstros que dominam a costa da bela Sicília. Por antecipação - também através de Apolo -, Enéias fica sabendo que visitará a cidade de Cumas, na qual encontrará a poderosa Sibila, que o encaminhará até os bosques do Averno (Mundo dos Mortos).
<br />Antes da partida, Andrômaca traz presentes ao menino Ascânio e antevê a fundação de uma Tróia reconstruída.
<br />A frota de Enéias encontra-se novamente em alto mar. Finalmente,
<br />" escorraçados os astros com a vinda do carro da Aurora, eis que avistamos ao longe os oiteiros modestos da Itália. Antes de todos, Itália! gritou para os sócios Anquises. Seus companheiros, Itália! a uma voz, despertados, exclamam." (p.64)
<br />Dentre muitas coisas oferecidas pelas paisagens do local, a tripulação avista o santuário da deusa Minerva, o templo de Juno; mas ferozes ventos os afastam do roteiro, levando-os até o Etna e lançando-os próximos ao rochedo de Caribde. Sem saída, tomam de assalto as praias dos ferozes Ciclopes. Nesse local, encontram um grego, perdido; ele implora auxílio aos troianos nos seguintes termos: "Sou natural da ilha de Ítaca e um dos soldados de Ulisses, o desgraçado. Chamo-me Aquemênides. Vim para Tróia com meu pai, pobre de bens. Oxalá continuasse assim sempre!" E então passa a narrar as cenas horrendas que presenciou: viu o Ciclope gigante devorando muitos de seus companheiros tomados como reféns pelo terrível monstro; diz que o nome do monstro de um olho só é Polifemo. De repente, Aquemênides interrompe a sua narrativa, pois o monstro Polifemo, com a vista vazada e rangendo os dentes de dor, reaparece. Apavorados, os troianos põem-se em fuga, acolhendo o suplicante itacense.
<br />Deixando as praias dos Ciclopes, procuram seguir o conselho de Heleno e evitam o caminho perigoso entre os monstros Cila e Caribde.
<br />Açoitados por terríveis tempestades, Anquises não resistiu, e morreu. Essa foi a mais cruel desventura - não predita por nenhum adivinho - enfrentada pelo pio Enéias.
<br />Finalmente, o pio Enéias dá por encerrada a narrativa de suas desventuras aos ouvintes da corte da rainha Elisa .
<br />LIVRO IV
<br />A rainha Elisa está ferida de paixão, com as palavras e com os gestos do herói troiano Enéias gravadas no peito. Ferida de morte, Dido fala a irmã:
<br />"Ana querida, suspensa me encontro por sonhos horríveis. Que hóspede novo transpôs de inopino a soleira da porta? Como é galhardo! Quão forte guerreiro, em verdade, e que braço! _ Creio _ e bem certa estou disso _ ser ele de origem divina (...) Ana, confesso-o; depois de Siqueu me ter sido roubado, meu caro esposo, e os penates manchados de cruel fatricídio, este, somente, os sentidos tocou-me e a vontade oscilante venceu de todo. O calor sinto agora da chama primeira." (p.72)
<br />E Ana relembra a Dido que a rainha já havia rejeitado muitos pretendentes, inclusive Jarbas, o monarca da Líbia. Por que se opor, então, a um desejo tão grato? E Ana continua na sua obstinada aposta em relação ao futuro matrimônio de Dido com Enéias. Chega a convencer a infeliz rainha Dido quanto aos futuros triunfos que Cartago poderia alcançar, caso a união entre os dois se consumasse. Ana pede à Elisa que cuide dos deuses e a eles ofereça sacrifícios, para obter o auxílio no ambicionado projeto. Põe-se a vagar pela cidade a infeliz Dido, com o peito em chamas:
<br />"Inacabadas, as torres pararam; não mais se exercitam moços esbeltos nos jogos da guerra, na faina dos portos; interrompidas as obras, o céu das ameaças descansa; por acabar as ameias, merlões, toda a fábrica altiva."
<br />Diante desse quadro, a indignada Saturna dirige-se à Vênus, interrogando a última sobre o destino de tudo aquilo; ao mesmo tempo, propõe firmar uma pacto de paz eterna. Vênus, sentindo a malícia no discurso da deusa, retruca e faz à Saturna uma proposta cheia de artimanhas: promover uma caçada e, durante uma forte tempestade, encerrar Enéias e Dido numa caverna, promovendo, dessa forma, a união entre os dois.
<br />Tudo ocorre da forma como Vênus concebera o plano e, com grande estrondo nos céus, a união de Dido e Enéias foi consagrada. Relâmpagos brilhavam no céu e ninfas ululavam diante de tal consórcio.
<br />Corre a Fama (monstro horrendo) por todo o território da Líbia, espalhando a recente notícia do casamento entre Dido e Enéias. Os boatos aumentam até chegar aos ouvidos do fiel pretendente de Dido: Jarbas, o fundador de cem templos. Jarbas então diz:
<br />"Essa mulher, aqui vinda sem rumo, comprou por vil preço faixa de terra para uma cidade pequena, onde arasse quanto quisesse; porém, repelindo as alianças propostas, como a senhor de seus reinos a Enéias agora se prende. E ora esse Páris, seguido de um bando de gente somenos, fronte cingida com mitra da Meônia, no mento enlaçada, de perfumados cabelos, do rapto se goza." (p.76)
<br />Jarbas antevê as futuras derrotas de Dido.
<br />No reino de Dido, Enéias veste um belíssimo manto: presente valioso, tecido pela própria rainha Elisa. Porém, no Olimpo, Mercúrio é determinado pelos deuses a enviar um recado ao pio Enéias: que abandonasse todos os projetos contruídos juntamente com Dido. Mercúrio interpela Enéias e transmite-lhe a seguinte mensagem: abandonar os laços estabelecidos com a rainha e prosseguir viagem rumo à pátria prometida pelos deuses do Olimpo. A rainha pressente a tramóia engendrada pelos deuses e, fora de si , como uma bacante, percorre toda a cidade em delírio. De repente, depara-se com Enéias, que, naquele momento, alimentava pensamentos indecisos. Dido diz:
<br />"Pérfido! Então esperavas de mim ocultar essa infâmia, e às escondidas deixares meus reinos sem nada dizer-me? Não te abalou nem a destra que outrora te dei, nem a morte que a Dido aguarda, inamável, tão próxima já do seu termo? Como se nada isso fora, teus barcos aprestas no inverno , quadra infeliz, pretendendo cortar os furiosos embates dos aquilões? Que crueldade!" (p.79)
<br />A colérica rainha continua a injuriar e a cobrar todos os favores que havia concedido ao pio Enéias; este já havia sido convencido pelos deuses quanto à necessidade da partida iminente, mas seu coração estava ferido por ter de abandonar a rainha apaixonada. Procura convencer Dido que não tomara parte na decisão, pois tratava-se dos desígnios dos deuses.
<br />"Fala-lhe afim por maneira sucinta: _ Jamais negaria tantos favores, Senhora, e outros muitos de que me recordas; em nunca a imagem de Elisa sairá do meu peito, por quanto tempo consciência tiver de mim mesmo e com vida eu mover-me. Quanto ao que ocorre, direi simplesmente: intenção nunca tive de retirar-me às ocultas _ apaga essa idéia _ nem menos planos forjei de casar ou de alianças contigo firmarmos." (p.79)
<br />Enéias prossegue, então, dizendo que se apoiara na decisão do deus Apolo. Confessa à rainha Dido que não buscava a Itália por vontade própria, mas pela vontade dos deuses.
<br />Dido permanecia alheada a tudo aquilo que o pio Enéias dizia e, num impulso violento, expulsa o herói de suas terras.
<br />Apressadas as frotas de Enéias se preparam para deixar as terras da infeliz Dido. Enquanto isso, Dido recorre à irmã Ana, rogando-lhe socorro. Pede à Ana que procure Enéias e o convença a permanecer a seu lado. A rainha conhecia a capacidade de convencimento que a irmã possuía; assim, aos olhos de Dido somente Ana sabia falar com Enéias. Pede, então, à irmã que leve o recado ao herói.Todavia, Dido é atingida por um terrível presságio: o leite dos sacrifícios adquire uma tonalidade negra, transformando-se em sangue. Diante disso, conclui que o herói não a ouvirá; sua perda portanto é inexorável, e a morte iminente. A rainha, atormentada por sonhos terríveis, prepara o ritual a fim de executar o seu próprio suicídio.
<br />Lança a culpa de todo o seu infortúnio sobre a sua irmã. Enquanto a rainha se consumia em ódios com relação a Enéias, este era advertido pelos deuses a afastar-se o mais rápido possível daquelas paragens, pois o herói seria alvo da vingança da rainha ou da volubilidade inerente a toda mulher.
<br />A infeliz Dido sente o peso de toda a sua desgraça e chega a planejar a morte de Enéias e do filho do troiano: Ascânio; logo em seguida, incendiaria toda a cidade e a nau dos troianos.
<br />Contudo, a idéia do auto-sacrifício prevalecera: a infeliz Dido lança-se nos braços da morte. A monstruosa Fama percorre a cidade, informando a todos o infortúnio da rainha. Juno, apiedada da agonia da rainha, envia do Olimpo a mensageira Íris, para por termo ao resto de vida da moribunda. Íris corta o cabelo de ouro da rainha e o espírito da infeliz logo se dilui, se evola.
<br />LIVRO V
<br />A frota troiana, em fuga, logo alcança o alto mar. Nas altas ondas tudo é trevas. Ao longe os troianos avistam as labaredas que incendeiam o castelo da infeliz rainha Elisa. De repente, as nuvens cobrem todo o céu, e a escuridão domina a nau. Palinuro temeroso da popa pressente os destinos que Netuno lhes prepara. Os ventos encontram-se trocados, confundindo toda a tripulação e extraindo-lhe a esperança de saltarem, a salvo, nas praias da Itália. Enéias então pede que se mudem os rumos, a fim de alcançar as terras de Acestes: local onde o herói deveria prestar as pompas fúnebres ao pai Anquises, e lá depositar suas cinzas. Tão logo chegaram àquelas paragens, Enéias executou aquilo que planejara; em seguida, reúne seus sócios para dar início aos jogos fúnebres em honra ao pai Anquises.
<br />Os guerreiros então reunidos dão início a uma longa seqüência de modalidades esportivas.
<br />Findo o certame, os prêmios são entregues aos respectivos vencedores.
<br />Ao deixarem as terras de Acestes, a nau do herói Enéias aproxima-se do promontório da duras Sereias. Repentinamente, Enéias nota que a nau está sem rumo, pois Palinuro confiara na bela aparência do mar. O pio herói assume, então, o comando da frota.
<br />LIVRO VI
<br />Encontramos, agora, o pio Enéias nas paragens de Cumas, no interior dos bosques da deusa Diana, local onde Apolo é cultuado. Dédalo, Pasífaa, o Minotauro biforme, Ariadne, Teseu, Ícaro e outros personagens mitológicos são figuras gravadas na porta do Templo de Apolo. Enéias vai visitar a Sibila de Cumas, que predirá as guerras no Lácio, revelando, assim, as coisas do futuro. Enéias entra na pavorosa gruta da Sibila. Deífobe, vate de inspiração divinal, fala nos seguintes termos: "Não é o momento de vos entreterdes com tais espetáculos. Cumpre imolar sete touros perfeitos, de acordo com os ritos, e outras ovelhas de número igual, as mais belas do armento."
<br />Cumpridas as ordens do ritual, a Sibila convida Enéias a entrar no templo: "Eis o deus! Eis o deus!" exclama a Sibila de aspecto monstruoso: "Como! Demoras com os votos e as preces, Enéias de Tróia? Pois antes disso os portões deste templo famoso não se abrem ."
<br />A Sibila prediz que Enéias deverá fixar os deuses errantes de Tróia no Lácio. Saúda Enéias como um herói, pois conseguira sobreviver aos perigos dos mares; diz, ainda, que, no Lácio, nascera um outro Aquiles. Prediz que a união de Enéias com a sua futura esposa (Lavínia) gerará intrigas entre os povos que habitam a Itália. Com fortes rugidos, a Sibila de Cumas vai, assim, revelando mistérios a Enéias.
<br />Entretanto, Enéias sentia uma avassalodora ansiedade em rever o pai Anquises no mundo dos mortos. Implora à deusa que apresse a atender o seu pedido:
<br />"Uma vez que o caminho do Inferno começa aqui, na lagoa do rio aqueronte convulso, leva-me logo à presença da sombra do pai extremado. Mostra-me a entrada a transpor, escancara-me as portas sagradas.(...) Por isso suplico-te, ó Virgem, apieda-te do pai, do filho aqui vindo." (p.116)
<br />A deusa então fala a Enéias que descer ao Averno é muito fácil, porém o difícil é o regresso. A deusa instrui o pio Enéias a localizar um ramo de ouro que se encontra nas florestas que margeiam o Averno. Enéias prontamente atende a solicitação da deusa; porém, tem dificuldades para encontrar o protetor talismã, isto é, o ramo de ouro. Além disso, restava outra tarefa a ser cumprida por Enéias: enterrar o cadáver insepulto de Miseno, guerreiro morto de forma traiçoeira. Assim, os troianos prantearam o corpo de Miseno. Enéias vai em busca do ramo de ouro. "Se nesta selva tremenda eu achasse o áureo ramo predito, tal como tão verazmente saiu tudo quanto a Sibila profetizou contra ti, ó Mísero! o teu triste destino!"
<br />Enéias nota que duas pombas baixam dos céus; solicita às aves que lhe sirva de guia para a localização do ramo de ouro... Logo, entre as folhas de uma copa de árvore refulge o ramo.
<br />Obedecendo as instruções da Sibila, Enéias desce para o mundo subterrâneo (o reino de Plutão: em grego, Hades, a morada dos mortos). Contudo, o ramo de ouro asseguraria a Enéias uma travessia a salvo pelo reino dos Infernos.
<br />Enéias ainda oferece um sacrifício à Prosérpina, esposa de Hades. A divindade se aproxima: "Afastai-vos do bosque, profanos! a profetiza exclamou; afastai-vos do bosque! Bem longe! E tu, Enéias, adianta-te! Saca de vez dessa espada com varonil destemor; ora cumpre mostrar quanto vales."
<br />Enéias entra no Averno. Primeiro de tudo vê as pavorosas imagens de todas desgraças que atingem com freqüência a humanidade (fome, doenças, pobreza, mazelas...). Outros monstros e feras vão surgindo. Tomam então o caminho que leva ao tartáreo rio Aqueronte. O velho barqueiro Caronte - de aparência horrível - guarda o rio e os aguarda. Sombras percorrem o local. Enéias pergunta à Sibila por quais razões as sombras vagueiam naquele local. A Sibila revela que são as sombras dos mortos insepultos. Enéias vê as sombras dos insepultos heróis de Tróia. Encontra a sombra inconformada de Palinuro; Enéias promete a Palinuro um belo túmulo.
<br />Avançando ainda mais pelo interior do Averno, surge o escuro lago do Estige: região das sombras, do sono e da noite:
<br />"...o teucro Enéias, varão mui piedoso e de braço invencível, desce à procura do pai, entre as sombras inanes do Inferno. (...) e, logo, de baixo das vestes o ramo oculto retira. De pronto acalmou-se-lhe a raiva. Nada mais disse a Sibila. Admirado Caronte ante o aspecto do dom fatal do áureo ramo, por ele não visto de muito..." (p.123)
<br />Em águas lodosas avistam Cérbero. Ouvem queixas lamentos, vagidos. Aí avistam, num bosque, as sombras de todos aqueles que foram infelizes em vida: Prócis, Fedra, Erífile, Pasífaa, Evadne... e, finalmente, a sombria Dido, com sua recente ferida. Enéias logo a reconheceu. Enéias procura explicar à sombra da infeliz Dido que não era o culpado por tanta infelicidade, pois fôra designado a cumprir os desejos dos deuses; disse, inclusive, que teria permanecido com Dido, caso não tivesse uma missão a cumprir. Porém, a sombra irritada da infeliz rainha se afasta sem emitir qualquer sinal.
<br />Dando prosseguimento à infernal visita, Enéias vê as sombras dos heróis de Tróia... avista Deífobo, filho de Príamo. Enéias dialoga com a sombra de Deífobo; ele procura mostrar a Enéias como todas as humilhações que sofrera em vida foram causadas por Helena e suas bacantes.
<br />Tendo por companhia a sombra de Deífofo, Enéias revê os heróis gregos: Menelau, Ulisses - o artista do crime: "Celestes deidades! se houver justiça, voltai contra os gregos seus próprios delitos...", exclama Enéias.
<br />Ambos prosseguem a caminhada, entrando, agora, no antro dos criminosos; e, atravessando rotas obscuras entre monstros, Fúrias e seres poderosos... "avançaram de par pelas rotas obscuras e logo as portas do grande palácio de Pluto alcançaram. Bem no saguão pára Enéias; o corpo aspergiu de água pura recém-colhida, e de pronto pendura ao portal o áureo ramo..."
<br />Ambos encontram-se, agora, nas moradas das almas felizes. Nesse local está reunida toda a futura linhagem do pio Enéias. Somente as almas bem-aventuradas aí permanecem. Em altas e risonhas campinas, Enéias avista o pai, Anquises. Logo que vê o filho, Anquises fala: "Enfim chegaste! Venceste o caminho com a tua piedade de filho amado, e me dás a ventura de ver-te de perto, ouvir-te a voz, e em colóquios passarmos alguns momentinhos."
<br />As lágrimas banharam os rostos de ambos, pai e filho. Anquises diz a Enéias que vai curá-lo de toda a cegueira: aponta para as águas do rio Letes; alí as almas procuram beber de suas águas para alcançar o esquecimento total. O pai Anquises apresenta, então, a Enéias toda a sua futura geração. Toda uma seqüência de futuros governantes é apresentada ao pio herói. Contudo são as figuras dos imperadores ainda não nascidos César e Augusto que se destacam na descrição feita por Anquises.
<br />Enéias nota, ao lado de Marcelo - futuro imperador romano -, a presença de um belo mancebo.
<br />Por fim, Enéias deixa o mundo subterrâneo.
<br />LIVRO VII
<br />Enéias deixa o Averno e, em seguida, prepara o sepultamento de Miseno; deposita o insepulto num túmulo. A tropa prossegue viagem costeando as paragens da deusa Circe - opulenta filha do Sol. Alí, ouvem-se uivos de animais ferozes, mas o deus Netuno insufla as velas das embarcações e, com ventos propícios, elas são afastadas da perigosa da ilha da feiticeira Circe.
<br />Subitamente, o pio Enéias avista ao longe uma densa floresta.
<br />[Neste trecho da "Eneida", a narrativa poética é interrompida, e o poeta Virgílio solicita, novamente, inspiração à Musa:
<br />"Érato, inspira-me! Os reis, qual o estado das coisas naquele tempo, os sucessos variados no Lácio de antanho, quando na Ausônia aportou de improviso uma esquadra estrangeira, vou relatar. Sem a ajuda de cima, de ti, Musa excelsa, nada farei." (p.138) ]
<br />A tripulação avista a terra do rei Latino; o local designado pelos deuses para a fundação da futura Roma.
<br />Os fatos a serem enfrentados pelo pio Enéias - suas vitórias e seus infortúnios - nas terras do Lácio são revelados ao herói troiano.
<br />De outra parte, o rei Latino vai consultar o futuro junto ao pai fatídico: o Fauno. O monarca Latino ouve o seguinte:
<br />"Deixa de lado, meu filho, essa idéia de esposo latino dar a Lavínia, nem creias nas bodas agora aprestadas. Genro estrangeiro virá que até aos astros o nome dos nossos se incumbirá de levar, cujos filhos e netos cem povos submeterão sob o império de leis rigorosas e sábias, em todo o curso do Sol, desde o oceano nascente ao do poente." ( p.139)
<br />Essa foi a resposta do Fauno ao monarca Latino.
<br />A frota de Enéias comemora a chegada na nova Tróia com um grande festim. Enéias então lembra que o pai profetizara que, quando chegassem a uma terra esfomeados e lá saciassem a fome, esta seria a sede da futura Tróia. Tudo ocorre conforme os prognósticos do pai Anquises. Enéias brada: " Salve, terra que os Fados nos deram! Salve também , aqui mesmo, sagrados penates de Tróia! Eis nossa pátria, a morada (...) Eia, animai-vos..."
<br />Enéias risca no chão um mapa com os contornos da futura cidade romana. Dirigi-se, então, ao palácio do monarca local. Entra no templo de Latino. O primeiro contato com Latino é efetivado em tom cordial e amistoso, haja vista ambas as partes já conhecerem os desígnios dos deuses. Ilioneu, o sábio do local, intermedeia os diálogos que se estabelecem entre o monarca e os estrangeiros. Latino já nutria a certeza que Enéias seria seu futuro genro.
<br />Todavia, no Olimpo, as contendas entre os deuses quanto ao destino do herói troiano se chocavam. A fera esposa de Jove assim se refere aos estrangeiros:
<br />"Ó geração aborrida! Ó destino da Frígia, contrário sempre ao meu Fado! Nos campos sigeus sucumbir não puderam? Presos, viver como escravos? No incêndio de Tróia abrasar-se? Livres se encontram. (...) Movi contra eles as forças do céu e do mar, impotentes. De que proveito me foram e Sirtes e Cila e Caribde desmesurada? Tranqüilos, a foz alcançaram do tibre, salvos do mar e de mim." (p.144-145)
<br />A colérica deusa promete recorrer às potências do inferno, para não ser vencida pelo mortal Enéias. Entra em contato com a Juno infernal - divindade inimiga do pio Eneías - e solicita que as potências maléficas infestem a vida do herói Enéias. Amata, mãe de Lavínia (filha de Latino e futura esposa de Enéias), torna-se o alvo predileto das potências do mal. Inconformada por Latino ter consentido entregar a filha Lavínia como esposa ao pio Enéias, Amata, envenenada n'alma pela deusa cruel, interroga:
<br />"Vais dar Lavínia, senhor, como esposa a esse teucro sem pátria? Não tens cuidado da sorte da filha, de ti não te apiedas, nem da mãe triste que ao vento primeiro o pirata abandona nestas paragens, levando consigo a donzela roubada? " (p.146)
<br />Diante da indiferença de Latino, Amata é tomada de furor báquico. Invoca Baco e procura esconder a filha pelas matas e florestas, bradando: "Mães latinas, se acaso ainda tendes no coração uns resquícios de afeto para esta coitada, antes a Amata de todos; se o jus maternal vos importa, soltai as tranças e vinde comigo dançar nesta orgia..."
<br />Enfurecida, Amata vai até o feroz guerreiro Turno e relata a decisão do monarca Latino em tornar Lavínia esposa do herói estrangeiro, Enéias. Essas decisões deixam Turno colérico, pois este, além de perder o futuro trono, deixaria, também, de ser o futuro genro de Amata e de Latino. Amata prossegue, provocando-o, jogando veneno nos pensamentos do aturdido e inconformado Turno frente às alterações imprevistas do seu destino.
<br />Irado Turno manda avisar Latino que a paz fora violada. A demoníaca Alecto voa sobre os teucros; eles ouvem os gritos da odiosa deusa e ficam apavorados.
<br />A guerra assim principia entre os pastores, e logo alcança cinco cidades: todas se esquecem da forte afeição e da estima outrora nutridas entre elas.
<br />[Neste trecho, a narrativa épica virgiliana é interrompida e o poeta proclama nova invocação às Musas:
<br />"Musas divinas, abri-me o Helicão e inspirai meus cantares, para dos reis eu falar, implicados na grande aventura, dos seguidores dos seus estandartes, os novos guerreiros, do márcio ardor animados nos plainos fecundos da Itália, pois vós, ó deusas! sabeis tudo o que houve e podeis relatar-nos seguramente o que as auras somente ao de leve contaram." (p.153) ]
<br />Mezêncio - o desprezador dos deuses do Olimpo - e seu filho Lauso foram os primeiros guerreiros a entrar na contenda. Uma série de outros monarcas segue a ambos. Dentre eles, destaca-se o terrível Messapo - o domador de cavalos. Uma multidão de tropas começa a se alinhar para combater o herói estrangeiro e invasor Enéias.
<br />Turno era o primeiro dentre os guerreiros. Uma guerreira também se destacava: era Camila - da raça dos volscos.
<br />LIVRO VIII
<br />O ódio de Mezêncio aumentava na mesma proporção que o nome do herói Enéias ganhava prestígio no Lácio. O peito de Enéias se agitava, já pressentindo os horrores que teria de enfrentar. Porém, em sonhos, a Enéias é revelada a seguinte profecia:
<br />"Ó descendentes dos deuses, que as sacras muralhas de Tróia nos restituis (...) Morada certa encontrastes, segura mansão dos penates. Não temas esses aprestos de guerra; a ojeriza dos deuses já se acalmou.
<br />E para que não presumas que tudo não passa de sonho, num azinhal desta fresca ribeira hás de achar uma porca branca de leite, com trinta leitões tão branquinhos quanto ela, recém-nascidos, e agora em descanso do parto recente. Este é o local da cidade, o remate de tantas fadigas." (p.160)
<br />A dividindade diz, então, a Enéias, o mais curto caminho para a sua vitória.
<br />Enéias dirige-se imediatamente à Palantéia, firmando aliança com o monarca local chamado Evandro, pai do jovem Palantes.
<br />Enéias, ainda temeroso, pede auxílio às ninfas. Com o auxílio das ninfas, Enéias encontra na margem de um rio a ninhada com trinta leitõezinhos. Assim, está confirmado o local do futuro reino de Enéias. Roma, naquele tempo, era dominada por Evandro e por seu filho, Palantes.
<br />O pio Enéias dirige-se à presença de Evandro, e fala: "A Evandro viemos buscar. Anunciai-lhe que chefes troianos de alto valor vêm pedir-vos aliança e trazer-vos reforços...". E o pacto de paz entre o pio Enéias e o magnânimo monarca Evandro é consagrado: "Ó dos teucros o mais valoroso, com que alegria te escuto e agasalho, e de quanto me lembro do grande Anquises ao ver-te, esse timbre da voz, a aparência!..."
<br />Evandro convida Enéias a participar das festas anuais, oferecendo a mesa aos recentes aliados. Evandro narra a Enéias o motivo das festas anuais: elas eram promovidas para celebrar a vitória dos deuses sobre Caco - o maldoso e astucioso que furtava os touros dos deuses. O festival era dedicado em louvor ao deus vencedor Hércules. Nessas festividades toda a comunidade comemorava e cantava os feitos divinos do deus etrusco.
<br />Em seguida, Evandro narra a Enéias a história da fundação da cidade. Saem ambos a visitar Palantéia. Saturno era o deus fundador. Toda a história de Palantéia é narrada até que ambos chegam à pobre moradia de Evandro, o monarca desprezador dos bens materiais, pois o monarca aceita a pobreza como desígnios dos deuses.
<br />Enquanto isso, no Olimpo, Vênus e Vulcano preparam um poderoso instrumento de guerra para Enéias. Os deuses recorrem a três fortes Ciclopes, solicitando-lhes que forjem para Enéias um escudo que o herói troiano deveria usar nos futuros combates. E assim o imenso escudo preparado pelos filhos do Etna foi crivado de fatos passados e futuros: no referido escudo, toda a gloriosa história de Roma aparece inscrita.
<br />Evandro, reconhecendo a própria velhice, aconselha o pio Enéias e o filho Palantes sobre os cuidados que ambos deveriam tomar em relação aos perigos das futuras guerras.
<br />Rapidamente os pactos são rompidos e a guerra generaliza-se por todo o Lácio. Evandro roga aos deuses que Palantes volte vencedor. Pede que os deuses ouçam as preces de um pai desesperado pela vida do filho.
<br />Pávidas mães debruçam-se sobre os muros em lamentações, ao saberem dos dos destinos dos filhos lançados na guerra. A mãe divinal do guerreiro Enéias aproveita a oportunidade para aconselhá-lo a não temer a guerra, oferecendo-lhe um presente: "Eis o presente que te prometi, prenda excelsa do gênio do meu marido! De agora em diante, meu filho, não temas aos laurentinos opor-te ou a turno enfrentar nos combates."
<br />Enéias não se cansa de contemplar os presentes enviados pelos deuses: o capacete, a mortífera espada e o escudo coberto de estranhas pinturas - o sabedor dos grandes feitos da Itália e da longa série de conquistas e batalhas; o espelho da história primitiva do povo romano até as épocas imperiais: dos dois gêmeos, Rômulo e Remo, das Sabinas até César no Senado. Exulta maravilhado Enéias a vista de tão belo Escudo, que joga com o seu destino e honra a glória de todos os seus descendentes.
<br />LIVRO IX
<br />Do Olimpo, Juno Satúrnia, a protetora de Turno, envia ao feroz guerreiro recados sobre os novos acontecimentos. A mensageira é a celeste Íris.
<br />O impetuoso Turno prontamente aceita o desafio enviado pela mãe divina: "Pouco importa quem sejas; acato teu chamamento: eis a guerra!" E a luta tem seu começo. Turno passa a recrutar vários chefes guerreiros, e junto a eles trama as alianças: "Vamos, rapazes! Quem quer ser comigo o primeiro a atacá-los? Pronto! exclamou . _ E volteando seu dardo, jogou-o para o alto, como a indicar o começo da pugna."
<br />Neste trecho da "Eneida", novamente Virgílio interrompe a narrativa, conclamando outra invocação às Musas:
<br />"Musas! Que deus apartou dos troianos o incêndio horroroso e repeliu para longe as naus a voragem do fogo? Dizei-nos! _ É tradição muito antiga, perene lembrança..." ]
<br />As tropas de ambos os lados organizam-se para a guerra. As divindades do Olimpo se igualam e se preparam para proteger seus filhos prediletos, ou destruir a vida dos guerreiros inimigos. Potências diabólicas (as Parcas) lançam seus agouros sobre Turno.
<br />As tropas aguardam o próximo combate. Enéias, encontrando-se distante das linhas de combate, desconhecia, na verdade, o que se passava. Niso e Euríalo, unidos por profunda amizade, incumbem-se de atravessar o exército inimigo a fim de levar notícias das tropas para o povo em geral, sobretudo para o pio Enéias. Os dois partem assumindo o papel de mensageiros do herói troiano. Entretanto, ao atravessarem o campo dos inimigos foram descobertos e ambos foram mortos pelos ferozes rútulos.
<br />Neste trecho, o poeta mantuano interrompe a narrativa com a finalidade de lamentar a morte dos dois jovens guerreiros:
<br />"Felizes ambos! Se alguma valia tiverem os meus versos, alcançareis vida eterna na grata memória dos homens, enquanto os filhos de Enéias ficarem no duro penhasco do Capitólio, com o Pai dos Romanos no império do mundo." (p.190)
<br />O exército dos rútulos destroça os corpos dos infelizes rapazes e, em lanças erguidas, suas sujas cabeças foram expostas ao público.
<br />A alada Fama dá a notícia a todos. A mãe do jovem Euríalo, num ato desesperador, arrancando os cabelos e lançando gritos lancinantes, chora a morte do amado filho, expressando do seguinte modo: "Assim te vejo, meu filho, meu único amparo da vida... Como pudeste deixar-me sozinha no meu abandono? Sem coração! Nem ao menos lembrou-te ao partir para essa tão perigosa missão despedir-te de tua mãezinha?"
<br />Cessados os lamentos, os teucros amparam a mãe de Euríalo e levam-na até a sua morada.
<br />A partir daí, a guerra recomeça.
<br />O poeta Virgílio, aqui, interrompe mais uma vez a narrativa, dirigindo outra invocação às Musas nos seguintes termos:
<br />"Musas! Calíope, a voz sustentai-me e dizei-me sem falta do morticínio espantoso causado por Turno, os estragos da sua espada e os guerreiros que os volscos enviaram para o Orco. Contai-me tudo; os sucessos incríveis da ingente peleja, pois em verdade o sabeis e podeis referi-lo a contento." (p.192) ]
<br />O feroz guerreiro Turno, auxiliado pelo deus Jove, põe-se a liqüidar as suas vítimas numa escalada vertiginosa de crueldades. Pelas suas mãos morrem os guerreiros Helenor, Lico, Prômulo, Clônio, Dioxipo, Ságaris, Idante e outros troianos; todos os que lutavam junto a Enéias... Turno então se expressa da seguinte forma:
<br />"Pejo não tendes, ó frígios! de mais uma vez vos cercardes de um valo fundo e de opordes à Morte barreira tão frágil? Com armas tais pretendeis disputar nossas belas esposas? Que divindade ou delírio vos trouxe às paragens da Itália? Não achareis entre nós nem Atridas nem falsos Ulisses. Somos de estirpe robusta..." (p.194)
<br />Ascânio, sentindo-se humilhado, roga ao deus Jove: "Júpiter onipotente! reforça esta audácia nascida do desespero! Magníficos dons deporei no teu templo..."
<br />"O pai dos deuses o ouviu; e a sinistra, no céu descampado, forte trovão retumbou, no momento preciso em que soa o arco letal e uma seta ligeira foi no alvo encravar-se, as duas fontes de Rêmulo unindo por dentro do crânio."
<br />O vitorioso Ascânio é louvado pelo deus Apolo; o deus dirige-lhe as seguintes palavras:
<br />"Cresce em valor, meu menino; é assim mesmo que aos astros chegamos. Filho de deuses, fadado também a ser pai de outros deuses, dia virá em que belo remate os nascidos de Assáraco porão nas lutas dos homens. É certo; não cabes em Tróia." (p.195)
<br />Apolo consente, assim, ao filho de Enéias, uma bela vitória sobre o guerreiro Numano. Logo após, Ascânio é aconselhado pelo deus Apolo a afastar-se definitivamente da pugna.
<br />Recresce a fúria das lutas e batalhas sangrentas se instauram. Deuses e mortais encontram-se numa luta insana. Os rútulos lutam com toda a ferocidade sob as benéficas influências e ordens do deus Marte. Então, subitamente, Turno é encurralado pelo exército inimigo: "Calmo, senão sorridente, responde-lhe Turno impetuoso: Bem; principia, se tens gosto nisso; meçamos as forças. Prestes a Príamo irás anunciar que encontraste outro Aquiles."
<br />Em seguida, Turno mata Pândaro, que desafiara o guerreiro rútulo ao vê-lo encurralado. Turno colérico prossegue suas matanças. Porém, sentindo-se cada vez mais acuado, busca defender-se, procurando a barreira do rio que circunda o burgo. Os deuses estavam prontos a liquidá-lo. Entretanto, a largos movimentos alcançou as margens do rio e, num rápido salto, pulou nas águas com todas as suas armas, fugindo do encalço do exército inimigo.
<br />LIVRO X
<br />Os deuses encontram-se reunidos em Assembléia, no Olimpo. O pai dos deuses pergunta como pode a Discórdia se negar a obedecer seus mandatos. Pede que os excessos de guerra sejam extintos e solicita que novos pactos de paz sejam firmados.
<br />Vênus dirige a Júpiter uma resposta. Diz que Turno insiste na luta, pois essa é a vontade do deus Marte, protetor de feroz guerreiro rútulo. Relata que Enéias está distante do local das lutas, ignorando tudo aquilo que se passa com os seus aliados. Ao pai dos deuses, Vênus procura demonstrar todo o seu temor em relação àqueles que ameaçam o surgimento da Tróia nascente.
<br />O inferno entra na nova Tróia por intermédio da furiosa Alecto - alerta Vênus.
<br />Logo em seguida, a deusa Vênus pede a Júpiter que a auxilie no salvamento de Ascânio contra as armas cegas. Mas a cólera de Juno interfere no diálogo dos deuses. E entre inúmeras queixas contra os estrangeiros troianos, colérica e indignada Juno dirige-se ao pai dos deuses com as seguintes palavras:
<br />"É coisa indigna cercarem latinos de chamas a Tróia no nascedoiro? que Turno defenda o torrão seu paterno, ele que vem de Pilumno e por mãe teve a deusa Vanília? Muito pior será a guerra os troianos ao Lácio levarem , o jugo impor numa terra estrangeira, roubar todo o gado, eleger os sogros, e noivas roubar do regaço materno..." (p.203)
<br />Juno assim falou. Júpiter então decreta que não tomará nenhum partido, dando por encerrada a Assembléia dos deuses.
<br />Enquanto isso, Turno dava prosseguimento à guerra. Enéias tudo ignorava, pois ainda mal saíra das terras de Evandro e em companhia de Palantes. Ambos ainda se encontravam em alto mar, a caminho do campo de batalha.
<br />Virgílio interrompe mais uma vez a narrativa, fazendo a seguinte invocação às Musas:
<br />" Agora, Musas, abri-me o Helicão; inspirai o meu canto, para dizer-me que povos toscanos a Enéias seguiram, naus emprestaram e as ondas revoltas cortaram com ele." ]
<br />O pio Enéias passa a recrutar chefes guerreiros para a batalha. Percorre várias regiões do Lácio, firmando inúmeros pactos com monarcas e respectivas populações. Enéias refere-se a Mântua [terra natal do poeta Virgílio] nestes termos:
<br />"Ocno também traz das praias nativas seus homens, nascido de Manto, sábia adivinha, e do Rio toscano, que o nome da própria mãe te legou, das muralhas, ó Mântua! que te ornam, Mântua mui rica de avós, mas nem todos da mesma linhagem." (p.206)
<br />O canto do herói prossegue enaltecendo outras cidades próximas a Mântua.
<br />Enéias continua a viagem por mares. Repentinamente um grupo de ninfas se aproxima. A mais falante, a ninfa Cimódece, assim se dirige ao pio herói:
<br />"Dormes, Enéias, progênie dos deuses, e rasgas os mares à toda vela? Pinheiros já fomos do monte sagrado do Ida; depois, tua esquadra; ora, ninfas marinhas, desde o momento em que o rútulo fero tentava assolar-nos com suas armas potentes, as chamas do incêndio furioso..." (p.207)
<br />As ninfas dizem a Enéias que se apresse, pois o filho Ascânio corre grande perigo: o colérico Turno avança. Anda, é hora de apressar-te - as ninfas impõem ao pio Enéias.
<br />Turno procura alcançar a praia, para impedir que os troianos ali desembarquem. O feroz guerreiro evoca a memória - fatos passados - para atiçar ainda mais os companheiros.
<br />Enéias e sua embarcação se aproximam. Turno atira seus homens até a praia em sentido de defesa contra a frota do herói troiano.
<br />O choque entre as tropas é inevitável. Então, a um fiel companheiro troiano Enéias fala: "Dai-me outras lanças, daquelas que em Tróia ficaram cravadas em corpos gregos; nenhuma há de frustrar passar pelos rútulos sem atingi-los."
<br />A partir daí, toda Ausônia transforma-se num campo de batalha.
<br />Por fim, o cenário é composto por uma tremenda batalha. As tropas de Enéias recuam diante das forças inimigas. Palantes implora para os companheiros de batalha que não recuem, mesmo porque já não têm para onde fugir. Todo Lácio é um campo de batalha. Em meio à pugna, Palantes, sempre a suplicar, roga proteção e auxílio aos deuses: "Pai Tibre! ao dardo possante que neste momento eu disparo, dá que a Fortuna o dirija até ao peito de Haleso! Um carvalho de tuas margens suas armas terá como honroso troféu."
<br />Caem os filhos da Arcádia e os etruscos. "Morrem os filhos da Arcádia, os valentes e fortes etruscos, e vós também , teucros belos, escapos da fúria dos gregos! Chocam-se iguais contingentes, com cabos de guerra esforçados."
<br />Turno, auxiliado pela irmã divinal Juturna, planeja algo mais surpreendente ao lançar o seguinte desafio: "_ Cesse a pugna! Eu, somente, a Palantes devo enfrentar! Essa vítima a mim é devida. Quem dera que aqui também estivesse seu pai, para ver esse encontro!"
<br />Dito isto, Palantes imediatamente aceitou o desafio proposto por Turno. Numa luta cruel, Palantes é, então, mortalmente ferido pelo cruel rútulo. Turno pede que o filho seja devolvido a Evandro tal como o merece: morto.
<br />Ao saber da morte de Palantes, o pio Enéias é tomado de fúria e desejo de vingança:
<br />".... assim Enéias no campo da guerra semeava destroços desde que o gládio tingiu na matança (...) Desorientados ao vê-lo avançar com passadas gigantes, ameaçador, espantaram-se os brutos e logo, sem tino, por terra o dono jogaram e à praia, sem mais, se acolheram." (p.215)
<br />Enéias prossegue lutando e promovendo mortes sucessivas. O Olimpo se agita. O pai dos deuses pede a Juno que retire Turno do campo de batalha. Uma luta encarniçada entre Enéias e Turno é prevista. No entanto, Turno (a humilhada Juno já conhecia seu destino!), começa a perceber que perde suas forças divinais, e lamenta sua desdita:
<br />"Onipotente Senhor! de que crime impustate-me a culpa, para punir-me e me impor uma pena de tal gravidade? Para onde vou? De onde vim? De que modo fugir de tão grande humilhação, para os campos laurentes voltar e aos combates?" (p.218)
<br />Flutua pela mente de Turno o desejo de suicidar-se. Mas a deusa Satúrnia o impede de realizar tal ato. Por outro lado, Júpiter inspira o cruel guerreiro Mezêncio a tomar o lugar do, agora, pusilânime Turno. Assim, o temível Mezêncio passa a matar inúmeros guerreiros das tropas inimigas. Messapo, outro terrível guerreiro, junta-se a Mezêncio na matança. Entretanto, o deus Marte a guerra equilibra e impõe entre os homens um infinito luto.
<br />A luta agora travada envolve Enéias contra Lauso e Mezêncio. A lança de Enéias atinge mortalmente o guerreiro Lauso - filho de Mezêncio -, mandando-lhe para a morada dos Manes.
<br />Surpreendente para a condição de um guerreiro, Enéias demonstra seus sentimentos de compaixão diante do corpo morto do inimigo:
<br />"Ao ver Enéias no extremo da vida o inditoso guerreiro, de palidez assombrosa coberto, sentiu-se tomado de compaixão. À sua mente ocorreu-lhe a imagem do filho: a destra estende-lhe presto e lhe diz as seguintes palavras: Desventurado mancebo, o que pode fazer-te nesta hora minha piedade, em louvor de ti próprio e da minha coragem? Conserva as armas que tanto estimavas. Prometo entregar-te _ Sirva também de consolo e motivo de orgulho saberes que às mãos caíste de Enéias." (p.221)
<br />Mezêncio chora sobre o cadáver do filho Lauso e, sem demonstrar vontade de continuar vivendo, resolve desafiar Enéias. Enéias vai ao encontro de Mezêncio e, com o auxílio do seu divino Escudo protetor, mata o inimigo. Mezêncio rende-se às forças de Enéias, e moribundo implora:
<br />"Por que me ameaças com a morte, inimigo cruel? Sem desdouro podes matar-me; não vim combater-te pensando na fuga; nem o meu Lauso contigo firmou esse pacto humilhante. Mas, se ao vencido uma graça concedes, apenas te peço: dá sepultura ao meu corpo. Conheço que um ódio implacável os meus me votam; à fúria me poupa de suas desforras. Que lado a lado a meu filho, debaixo da terra eu repouse. Assim dizendo, esperou pelo golpe da espada inimiga. Aos borbotões a alma perde, no sangue que as armas lhe banham." (p.223)
<br />LIVRO XI
<br />Enéias assume como tarefa imediata dedicar louvores aos deuses pela vitória alcançada e enterrar os mortos, dando-lhes sepulturas dignas.
<br />O burgo enlutado de Evandro chorava a morte de Palantes. Vendo o corpo morto de Palantes, Enéias explode em lamentos. Pede, então, aos guerreiros que preparem o leito de morte para Palantes. O cadáver coberto de belos adornos (tecidos com fios de ouro) é destinado ao cortejo fúnebre. Evandro, vendo o filho morto, desaba em lamentos e desconsolado promete não mais mover guerras a ninguém. Um período de trégua foi firmado por doze dias. Durante este período, a população, junto o velho monarca Leandro, lamentava a morte do jovem guerreiro. Outros cadáveres de jovens guerreiros juntaram-se ao do jovem Palantes.
<br />"Era porém na cidade opulenta do velho Latino onde se via maior alvoroço, mais dores e luto. Míseras mães, desoladas esposas, irmãs sem consolo, órfãos pequenos privados do amparo mui cedo na vida, amaldiçoavam a guerra lutuosa e o noivado de Turno.Ele, sozinho, dispute Lavínia com armas e braço, visto aspirar ao domínio da Itália e a mais alta honraria." (p.230)
<br />Para piorar o tumulto, as fortes alianças existentes anteriormente com Turno começam a se desfazer. O rei Latino convoca, então, a Assembléia, para discutir os rumos da guerra. Ali, a guerra de Tróia e seus heróis é narrada à população, elevando o nome de Enéias. Devido à sua coragem e a de Heitor, a guerra de Tróia fôra adiada por um período de dez anos. O rei Latino, insistindo em salvar a pátria arruinada, expõe à população o seu plano para por termo à guerra no Lácio: pretendia doar um vasto terreno perto do rio toscano para o estabelecimento dos troianos.
<br />Drances, inimigo mortal de Turno, levanta-se e traz a lume a sua proposta na Assembléia. A proposta de Drances pretendia firmar a paz com Turno e expulsar Enéias do Lácio. Entretanto, Turno, ao conhecer os planos de Drances, assim reage:
<br />" Drances , és pródigo em belos discursos em tempo de guerra, quando se exige trabalho; o primeiro a chegar ao Conselho, sempre que os homens de bem são chamados. Porém não é hora de belas frases, enquanto as muralhas detêm os ataques dos inimigos e o sangue lá fora nos fossos referve. Troveja, então; é o teu hábito. Assascas-me, Drances, a pecha de covardia? " (p.234)
<br />Turno então pede que o idiota não se preocupe. E diz não às propostas apresentadas. O feroz guerreiro rútulo então convoca a guerreira Camila - da nação vitoriosa dos volscos - para ajudá-lo a combater Enéias. Turno diz colérico: "Contra ele, sim, partirei, ainda mesmo que seja outro Aquiles e, tal como este, se vista com armas do forte Vulcano."
<br />O Conselho então se reuni e Turno decreta pela continuidade da guerra. Arma-se furioso juntamente com Camila, e reabre a peleja. Camila, dotada de uma coragem invulgar, solicita a Turno que ela seja a primeira a enfrentar os perigos da batalha prestes a começar. Turno, fixando-se na terrível virgem donzela, diz:
<br />"Ó virgem, glória da Itália! Como hei de pagar-te, como hei de agradecer teu auxílio valioso em tamanha apertura? Teu brio a tudo supera; vem, pois, tomar parte na luta. Se for verdade o que os meus batedores há pouco informaram, o astuto Enéias os campos em torno devasta com a sua cavalaria ligeira, e ele próprio, galgando estes montes abandonados, tenciona alcançar a cidade hoje mesmo." (p.238)
<br />Camila, afeiçoada de Diana, tem a deusa como sua protetora. A deusa prepara a virgem para entrar nos combates cruentos contra os troianos. Ao lado de Camila lutará o temível guerreiro Messapo. A luta tem seu início e Camila com o peito nú destaca-se no meio da indescritível batalha. Muitos na dor se contorceram frente à ferocidade assassina de Camila. Ela mata possantes guerreiros com velocidade e força descomunais. Sem precaver-se, desejando logo liquidar os troianos, Camila vai ao encalço de Arrunte. Este gira seu dardo ao redor de Camila. Num golpe, o dardo cravou-se no peito direito sem mama de Camila. Morta Camila, a emissária de Diana, Ópis, geme de dor. Logo em seguida, o matador de Camila é perseguido e morto por uma ninfa trácia.
<br />Turno ao receber a notícia da morte de Camila encontra-se emboscado numa selva. Ao afastar-se da selva, Turno avista Enéias, e este a Turno.
<br />LIVRO XII
<br />Perdida a altivez pelas derrotas sucessivas, Turno, ao monarca Latino, expõe o seu desejo em duelar corpo-a-corpo com Enéias. Latino aconselha Turno a desistir de tal confronto, mostrando a ele tudo aquilo que possui em abundância. Mas Turno resiste aos conselhos do velho monarca. Amata interfere dizendo que Turno é o único arrimo dos Latinos; portanto, deveria desistir do confronto. Belicoso, Turno dirige-se a Amata com as seguintes palavras: "Mãe, não me aflijas com lágrimas e esses terríveis agouros, para não me deprimirem no instante de entrar em combate." E termina dizendo que o vencedor da peleja será o esposo de Lavínia. Por outro lado, não menos colérico encontra-se Enéias, que aceita o duelo proposto por Turno. Enquanto isso, a deusa Juno dizia a uma ninfa protetora de Turno que o fatal dia das Parcas aproximava-se do cruel guerreiro.
<br />Enéias invoca os deuses, prometendo-lhes que, caso Turno fosse o vencedor, rumo à cidade de Evandro os vencidos se recolheriam. Caso contrário, se Enéias fosse o vencedor, o pio herói promete, então, um pacto de paz com todos os povos da Itália. Latino jurou que seguiria as palavras de Enéias, e assim firmaram um novo pacto.
<br />Enquanto isso, Juturna, a deusa protetora de Turno, juntamente com seu povo, lamenta a desdita do feroz guerreiro. Mas o furor bélico a todos arrasta até o local da dura peleja. Enéias, ferido na perna, dá início ao combate. Ambos se encontram no campo de batalha. A rainha Amata, imaginando Turno vencido na peleja, suicida-se.
<br />Os dois guerreiros concordaram em lutarem sós. Então, os belos escudos se chocam. Durante a sangrenta luta, Turno pede auxílio a Fauno. Uma ninfa auxilia Turno durante a luta. Vênus indignada livrou a espada do teucro, pronta para atingir mortalmente Turno. O pai dos deuses indignado com tudo aquilo pede à deusa Vênus um basta. Vênus diz ao pai dos deuses que desiste de tudo aquilo, implorando a Júpiter que estabeleça a paz entre os povos da Itália. Que todos os povos do Lácio se unissem em doce aliança: "Cresça a potência romana com base nos ítalos fortes. Tróia acabou; deixa então que com ela seu nome pereça." Que exista doravante um só povo com nome de latino. Esta era a vontade da deusa.
<br />O Olimpo então enviou Juturna até o campo de batalha, onde os dois guerreiros lutavam. Ali transformou-se em ave negra agourenta, para o assombro e horror de Turno. Diante desse agouro, o guerreiro rútulo previu a própria morte iminente. A ninfa Juturna demonstrava tristeza profunda pelo fim do querido irmão.
<br />Finalmente, embora demonstrando forte indecisão na hora fatal, Enéias mata Turno. "A alma indignada a gemer fundamente fugiu para as sombras."
<br />...............................................................
<br />AS CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS FORAM EXTRAÍDAS DO SEGUINTE VOLUME:
<br />VERGÍLIO. Eneida. Tradução Tassilo Orpheu Spalding. 3 a 9 ed. São Paulo: Cultrix, 1990-92.
<br />PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
<br />CAMPINAS, verão de 2005
<br />Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original (cite o nome do autor (Prof. Dr. Sílvio Medeiros) e o link para o site www.recantodasletras.com.br/autores/silviomedeiros). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.
<br />A "ENEIDA", de VIRGÍLIO (tentativa de resumo)2005Recanto das LetrasSÍLVIO MEDEIROSSÍLVIO MEDEIROStext/plain
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />Ovídio
<br />Publius Ovidius Naso (Sulmo, 20 de março de 43 a.C. — Tomis, 18) foi um poeta latino, é mais conhecido nos países de língua portuguesa por Ovídio.
<br />Vivia uma vida boêmia, sendo admirado como um grande poeta. No ano 8, foi banido de Roma pelo imperador Augusto por causa de seu livro A Arte de Amar (Ars Amatoria), considerada imoral por Otávio Augusto, o que lhe causou um profundo desgosto até o final de sua vida. Foi nessa época que Ovídio escreveu a sua obra mais famosa: Metamorfoses (Metamorphoses), escrita em hexâmetro dactílico, métrica comum aos poemas épicos de Homero e Virgílio. Faleceu no ano 17 em Tomis, atual Constança, na Romênia.
<br />Ovídio influenciou com seus versos, cheios de suavidade e harmonia, autores tão diversos como Dante, Milton e Shakespeare.
<br />(Fonte: Wikipédia)
<br />Metamorfoses de Ovídio é um livro guia sobre a mitologia greco- romana, narra os acontecimentos mitológicos mais importantes e, em especial, as transformações que dão nome ao livro. Pessoas transformando-se em rios, flores, rochas, ninfas que são transformadas em sons, deuses que se transformam em pássaros. O elemento que une essas transformações é o amor, quer por seu excesso, quer por seu fim, quer pelo medo dele. O ciúmes cria monstros, o amor pássaros e flores. O amor transforma os brutos e insensíveis, e sua perda enlouquece os bons.
<br />Em Metamorfoses é possível encontrar belas histórias da tradição clássica: Jasão e os Argonautas, a Canção de Polifermo, a disputa de Ulisses e Ajax pela armadura de Aquiles, histórias sobre Hércules, a bela história de Eco e Narciso, as escapadelas amorosas de Júpiter, a declaração de vegetarianismo de Pitágoras, dentre outros temas. É um livro que também narra amores impossíveis, incestuosos, não-consentidos. Há de todos os tipos. Irmã que se apaixona por irmão, filha por pai e todas suas variações. De forma poética Ovídio narra essas passagens, que fazem com que ele ocupe o Olimpo da Poesia. (Loberto Lins) - fonte: http://pt.shvoong.com/books/classic-literature/1709005-metamorfoses/
<br />Dois estudos acerca de Metamorfoses em PDF:
<br />1) As Faces de Vênus em Metamorfoses de Ovídio, de Gabriela Staraffi Orosco, IEL/Unicamp - download
<br />2) Metamorfose: Veículo de Sofisticação do Mito na Poesia Ovidiana, de Elaine C. Prado dos Santos, UPM - download
<br />
<br />FPRIVATE "TYPE=PICT;ALT="
<br />Advertência:
<br />Começa aqui uma pequena série (irregular) de artigos, com traduções, sobre as Metamorfoses, de Ovídio, dentro da Officina.
<br />Por quê?
<br />Pelo auto-propalado caráter oficinal da Officina (ou não teria nem mereceria esse nome) e porque é um dos poemas mais interessantes e importantes de todos os tempos além de, pasmem: NÃO HÁ há tradução completa em versos, na língua portuguesa, para os quinze livros que perfazem a obra. Qui possum facere? foi a interrogação que me fisgou há uns três anos. Traduzir e comentar me pareceu ser a resposta, e então, o resultado parcial e provisório — a se estender para um futuro indeterminado — é o que segue.
<br />Duas Palavras Iniciais sobre as Metamorfoses, de Ovídio
<br />A Primeira Lei da Conservação das Massas, de Lavoisier, o "nada se perde, tudo se transforma", registra filosoficamente — e talvez como um paradoxo — que o núcleo da mudança é a permanência. É assim que podemos ler também as Metamorfoses, de Ovídio, poema, como disse, do primeiro século da era cristã (e que nada tem a ver com ela).
<br />Um pouco de ficção biográfica: Ovídio nasceu em Sulmona — Sulmo mihi patria est — e se educou em Roma, como seu irmão mais velho, para a carreira de advogado, que demandava os cuidados uma educação retórica esmerada. O problema é que não lhe agradava o trabalho; a retórica serviu, enfim, para a construção da técnica absoluta que demonstraria como poeta. Um primeiro exemplo são os Amores e as epístolas chamadas Heróides, em que Ovídio apresenta cartas amorosas entre heroínas e heróis mitológicos, como Hero e Leandro, que se queixam retoricamente de seus infortúnios. Seu pai não gostava da idéia de ter um filho poeta — não podemos censurá-lo —, e teria dito que "até mesmo Homero morreu miserável", apelando para outra eloqüência, a financeira. A situação da poesia, como vemos, não mudou muito nos últimos dois mil anos.
<br />A profecia do pai, ou a praga, pegou. De poeta cortesão, elegante, refinado e apreciado por aqueles que eram seus pares, caiu em desgraça com o Imperador Augusto, o divino Augusto, e foi exilado para Tomos, um lugar inóspito na Europa Oriental — atualmente Constantza, na aprazível Romênia. Tentou captar a benevolência do imperador com os Fastos, poema sobre as festividades romanas através do calendário, e com Júlio César, no fim das Metamorfoses, se transformando numa estrela — Júlio César fora tio de Augusto. Não adiantou nada, e Ovídio morreria mesmo afastado de Roma, no exílio, apenas quatro anos após a morte de Augusto.
<br />As hipóteses a respeito da ira de Augusto são várias e, como tudo que versa sobre o passado, pura especulação, às vezes um tanto patética: talvez Ovídio tenha sido indiscreto sobre algum aspecto delicado do imperador ou de sua família, pois no seu poema, já do exílio, de onde veio a maior parte dessas informações (Tristia, livro IV, décima elegia) ele emparelha sua sina com a de Actæon — o neto infeliz de Cadmo, que, por ter flagrado Diana, a deusa da caça, nua durante a toilette, é transformado em gamo silvestre e despedaçado por seus próprios cães de caça — através do uso de duas palavrinhas bastante específicas em oposição, que aparecem tanto no episódio mencionado das Metamorfoses (III, vv.138-252), quanto na elegia sobre seu próprio desterro. Então:
<br />(Tris., IV, "Elegia decima", vv. 89-90):
<br />Scite, precor, causam — (nec vos mihi fallere faz est) —
<br />Errorem jussae, non scelus, esse fugae.
<br />Sabei, pois, e eu vos rogo (não me é lícito enganar-vos),
<br />Que causou meu exílio um erro, não um crime.
<br />(trad. José Paulo Paes1)
<br />(Met. III, vv. 141-142):
<br />At bene si quaeras, Fortunae crimen in illo,
<br />non scelus invenies; quad enim scelus error habebat?
<br />Mas se bem consideras o crime da sorte no caso,
<br />crime não há; pois como haveria crime num erro?
<br />(Tradução de Dirceu Villa)
<br />Negritos por minha conta, a fim de ajudar a perceber; e essa história colocou a pulga atrás da orelha de muitos latinistas, especialistas em Ovídio, etc., interessados em desvendar a causa do banimento. Talvez seja um trecho de texto posterior nas Metamorfoses, mas do próprio Ovídio: não saberemos. De qualquer forma, o fim melancólico e todas as anedotas já tradicionais sobre o poeta não têm muito a dizer sobre o que é provavelmente o poema mais importante da tradição ocidental, as Metamorfoses, ou Metamorphoseon Libri. A quantidade de grandes poetas, escritores, escultores, pintores e músicos que lhe deve muito é enorme. E da mesma maneira que Ovídio legou à tradição ocidental posterior os contos de seu poema, senão mesmo um exemplo de técnica poética e perícia retórica, eles também vieram de outras fontes, numa época em que a poesia era considerada uma arte regrada por códigos de imitação, citação, alusão e emulação, etc.2; por isso, digamos que ele opera como que um nó no repertório de temas greco-romanos, concentrando a matéria antes dispersa, e que se veria esparsa novamente depois dele.
<br />Como muitos dos prováveis modelos de Ovídio (e possivelmente gregos em sua maioria) estão perdidos, podemos apenas apresentar alguns deles e especular que o poema tenha surgido de diversas outras recolhas de histórias mitológicas além dos evidentes Hesíodo, da Teogonia, e Homero — este último nos dois poemas mais famosos e naquilo que vieram a chamar Hinos Homéricos. Há, no trecho traduzido, empréstimos de Eurípedes em As Bacantes; a estilística helênica do verso (já desde os Amores); o Virgílio da Eneida, etc.
<br />O perpetuum carmen que Ovídio se arroga é também um perpetuum motuum, um movimento perpétuo. O caos muda em ordem; César mudado numa estrela, mulheres em pássaros, árvores; as coisas mudam em ouro na mão de Midas, e o que parecia uma bênção é, na verdade, um inferno. Estamos diante de um livro didático? De um livro moral? De uma coleção de contos antigos? Estamos diante de tudo isso e mais outras tantas coisas. Ovídio não descende, como Virgílio, da épica homérica; não em linha direta. Poderíamos olhar para as Metamorfoses acreditando ver uma série de poemas. Seria mais lúcido, porém, ver apenas um poema composto de diversas faces; se formos ainda mais caprichosos, poderemos até mesmo admitir poeticamente que a linha que Ovídio se impôs, a das metamorfoses, é parte também da composição estrutural do poema — ele está cambiando um trecho no outro, de tal forma que os livros se interpenetram e a estrutura, antes invisível, se torna implícita e inevitável. Afastamos uma limitação muito comum de descobrir unidade somente onde ela está manifesta como evidente.
<br />OVÍDIO EM PORTUGUÊS & ESTA TRADUÇÃO (en passant)
<br />Ovídio não deu muita sorte em português. Não como Homero, para citar um poeta antigo, ou mesmo Dante Alighieri, da Divina Comédia, que tem as traduções sérias de Cristiano Martins (completa) e Haroldo de Campos (o Paradiso), e ainda conta, para efeito educativo, com aquele fiasco horrendo de Xavier Pinheiro.
<br />Isso não quer dizer que poetas e tradutores muito bons não tenham se dedicado a traduzir o grande poema de Ovídio: o problema é que nenhum dos esforços levou a cabo a longa e árdua tarefa de passar para a língua os quinze livros das Metamorfoses, e sequer os teríamos completos se juntássemos as tentativas esparsas. Houve, entre os exemplos mais notáveis, Bocage3, que escolheu trechos (Midas transformando tudo em ouro, Tereu e Procne, Orfeu descendo aos Infernos atrás de Eurídice, etc.) e usou um decassílabo fluente, engenhoso, para a sua tradução. O trecho de Tereu e Procne, um dos mais cruéis de todas as Metamorfoses, é um bom exemplo de como o decassílabo funcionou com Bocage:
<br />Com estes ameaços o tirano
<br />Sente no coração ferver-lhe a raiva,
<br />Mas não menor que a raiva é nele o medo;
<br />E de uma, e de outra coisa estimulado,
<br />Da lustrosa bainha o ferro despe,
<br />E às tranças da infeliz a mão lançando,
<br />Em duros nós lhe enleia os tenros braços.
<br />Inclina Filomela o níveo colo,
<br />Da espada, que vê nua, espera a morte;
<br />Mas o duro, o feroz, por mais que a triste
<br />Lute, resista, invoque o pátrio nome,
<br />Com rígida turquês lhe aferra a língua,
<br />A língua, que falar em vão procura,
<br />Lhe extrai da boca, e rápido lha corta.
<br />A purpúrea raiz lhe nada em sangue,
<br />Cai o resto ao chão, murmura, e treme,
<br />Qual da escamosa serpe mutilada
<br />A cauda palpitante, e moribunda,
<br />Que ao corpo em que viveu pretende unir-se.
<br />Como escreve João Angelo na introdução do volume da Hedra: "o princípio geral (...) que nos parece nortear a versão de Bocage é a fluência, vale dizer, o ritmo" — palavras odiadas hoje por teorias (ah, teorias) de tradução — e continua, afirmando que ela se faz ler "e ouvir sem que se percam o tom, imagens e, principalmente, o deleite na compreensão". Mais exato, impossível. Comparada ao original, pouco se perde; Bocage tenta até mesmo imitar sons terminais, aproximar a língua etimologicamente, mas sem mão pesada.
<br />Houve também Antônio Feliciano de Castilho, mais lembrado nos soporíferos livros de História da Literatura Portuguesa como o velho romântico que criou caso com Antero de Quental — a célebre e ridícula "Questão Coimbrã" —, e chegou a traduzir os primeiros cinco livros completos, também no esquema decassilábico, na verdade bastante baseado no trabalho anterior de Bocage. Há trechos até bem feitos, como o de Narciso, mas não é o seu melhor trabalho, nem mesmo com Ovídio: a tradução de Castilho para a Arte de Amar (Ars Amatoria) é espantosamente melhor. Nela, aproveitando o fato de que Ovídio a escrevera no dístico elegíaco latino, transpôs o poema para alexandrinos em dísticos rimados, e nem sequer despreza paralelismos ou aliterações4 — que contribuem enfaticamente para a robustez do verso de Ovídio.
<br />Se inda alguém neste povo a arte de amar ignora,
<br />leia-me: os versos meus o farão mestre agora.
<br />Com arte, a vela e remo, um lenho é voador;
<br />é-o com arte um coche; arte governe o amor.
<br />Vive na voz da fama o auriga Automedonte;
<br />vive Tífis, mareando a nau do hemônio monte,
<br />Vênus de amor à escola impôs-me professor5
<br />Esse é o início da proposição, e já percebemos a que Castilho veio, numa grande tradução, até hoje sem par. Remoque mouentur não pôde ser traduzido mantendo a aliteração no verso três; no verso seis, entretanto, temos mareando a nau do hemônio monte. Castilho não perde tempo nem enfraquece no decorrer do serviço. Isso na Ars Amatoria.
<br />Sua versão em decassílabos para as Metamorfoses não foi a melhor opção, muito desanimadora em face da Arte de Amar , nos deixando a lamentar o fato de não ter feito com o maior poema de Ovídio o que sabia tão bem fazer. Quero dizer coisas muito específicas com isso: o tom do poema alcançado no caso decassilábico em geral não é o tom de Ovídio (mesmo considerando o certeiro trabalho de Bocage), que exige uma certa opulência verbal. Se você o traduz em dez mirradas sílabas, significando o que foi feito num hexâmetro que podia alcançar dezesseis ou dezessete (todos os recursos técnicos inclusos), ou você é um gênio bizarro — como Odorico Mendes —, ou algum nível de malogro é inevitável. Na versão de Castilho, o malogro foi com tudo que tinha direito, hélas! Leiam o pedaço que inicia o episódio de Baco e os piratas tirrenos:
<br />Indo uma vez a Delos, costeamos
<br />Naxos; à destra remo, alcanço o pôrto,
<br />E salto à praia. Ao cabo dessa noute,
<br />Vindo a arraiada a apavonar as nuvens,
<br />Alevanto-me; aos nautas determino,
<br />Que se renove a aguada, e lhes aponto
<br />Caminho, que os depara a fontes frescas.
<br />Subo-me num outeiro, exploro os ventos
<br />Pelo cariz do céu; apupo aos homens,
<br />Que façam volta (…)6
<br />Acho que basta. Comparem esse excerto muito infeliz com o original; com a minha tradução; com o decassílabo de Bocage; ou com o próprio trabalho de Castilho na Ars Amatoria: é inexplicável. Parece um resumo pronto às pressas, sem cuidado com aliterações, repleto de palavras mal-colocadas — "apavonar", "cariz", "apupo" —, descuido com o tom, com o fato de que é um marinheiro falando a Penteu, e feito num esquema sintático de staccato, de toscos enjambements, etc. O oposto de Ovídio, e do elogio de Angelo às qualidades da versão de Bocage.
<br />Houve também a ótima tradução de Haroldo de Campos para o episódio de Narciso. Campos usou o dodecassílabo e dispensou rimas (que deram um grande resultado no caso de Arthur Golding7, e no de Castilho da Amatoria); teve toda a atenção típica dos concretos no elemento por assim dizer "inventivo" da linguagem: percebeu que Ovídio, valendo-se de seu virtuosismo, aproveitou que a história baseava-se em espelhamentos e os mimetizou nos versos; Campos o seguiu com muita sensibilidade. Exemplos de quando Narciso se contempla e deseja a si mesmo sem saber: "Se inclina, vai beber, mas outra sede o toma:/ enquanto bebe o embebe a forma do que vê", ou, "No mirar-se, admira o que nele admiram".
<br />Haroldo de Campos consegue uma tradução exemplar de Ovídio também por manter-se fiel à elegância de seu fraseado. O início do trecho, típica descrição ovidiana, é traduzida com economia de meios e ainda assim, estilisticamente perfeita:
<br />Fonte sem limo, pura prata em ondas límpidas,
<br />jorrava. Nem pastor se achega, nem pastando
<br />seu rebanho montês, ou gado avulso, acode.
<br />Nem pássaro, nem fera, nem, tombando, um ramo
<br />perturba a úmida grama que o frescor irriga.
<br />O bosque impede o sol de aquentar este sítio.
<br />Da caça e do calor exausto, aqui vem dar
<br />Narciso, seduzido pela fonte amena8
<br />Nesse momento cheguei a pensar que teríamos as Metamorfoses em língua portuguesa de um jeito decente. É pena que tenha traduzido tão pouco.
<br />E há Pound, que é preciso considerar porque incorporou o trecho de Baco e os piratas ao Canto II de maneira única, até certo ponto traduzindo, mas dispondo os versos na ordem que lhe convinha.
<br />Ezra Pound é talvez o mais notável dos admiradores da obra de Ovídio no século XX; se The Cantos deve a Dante Alighieri, deve igualmente, senão mais, a Ovídio: a idéia da "épica sem enredo", definição cunhada pelo maior especialista em sua obra, Hugh Kenner; os "momentos mágicos" do poema, em que vários são transformações físicas ou mentais; a paráfrase no Canto II do seqüestro de Baco por piratas tirrenos; citações contínuas de Ovídio que perpassam a obra: no Canto IV é mencionada a história de Actæon, do livro III, e Ovídio comparece como personagem; no Canto XX, nova citação nominal de Ovídio, etc.
<br />Outro desses pontos de contato é também a tradução de Arthur Golding (que veremos mais tarde), elogiada por Pound no ABC of Reading: "é o mais belo livro da língua", e prioriza na antologia Confucius to Cummings, com a colaboração de Marcela Spann, dando-lhe mais páginas do que para Shakespeare. Mas seria excessivo dizer que as 27 páginas são para Arthur Golding; elas são para Ovídio, lido na tradução quinhentista.
<br />Aqui vai a parte do Canto II, extraída do episódio das Metamorfoses — comparar depois com o texto de Ovídio e com a minha tradução:
<br />O barco aportou em Quios,
<br />homens querendo água fresca,
<br />E junto da fonte um garoto pequeno, lerdo com o mosto da uva,
<br />"Pra Naxos9? Claro, a gente te leva pra Naxos,
<br />Chega aí, guri." "Não, não é pra lá!"
<br />"Êeh, pra lá é Naxos."
<br />E eu disse: “Este é um navio honesto."
<br />E um ex-presidiário saído da Itália
<br />derrubou-me entre o cordame,
<br />(Era procurado por homicídio na Toscana)
<br />E todos os vinte contra mim,
<br />Loucos por pouco dinheiro escravo.
<br />E o levaram para fora de Quios
<br />E para fora da rota...
<br />E o garoto acordou, de novo, com o rumor,
<br />E olhou por cima da proa,
<br />ao leste, e para o estreito de Naxos.
<br />Ardil divino então, ardil divino:
<br />O barco breca no redemoinho,
<br />Hera pelos remos, rei Penteu10
<br />uvas sem semente só espuma,
<br />Hera no embornal.
<br />É, eu, Acetes, estava lá,
<br />e o deus ao meu lado,
<br />Água cortando sob a quilha
<br />Quebradeira sob a popa,
<br />esteira escorre pela proa,
<br />E onde fora o alcatrate, era agora a trepadeira,
<br />E gavinhas onde havia a cordagem,
<br />folhas de videira nos toletes,
<br />Pesada vinha nas hastes dos remos,
<br />E, do nada, um bafejo,
<br />hálito quente nos meus tornozelos,
<br />Feras feito sombras em espelhos,
<br />uma cauda felpuda sobre o nada.
<br />Rosnar de lince, e acre odor de feras,
<br />onde cheirava a alcatrão,
<br />Farejar e pegada de feras,
<br />olho-faísca no ar escuro.
<br />Céu em excesso, seco, sem tempestade,
<br />Farejar e pegada de feras,
<br />pêlo roçando meu joelho,
<br />Farfalhar de élitros voando,
<br />formas secas no æther.
<br />E o navio como a quilha no estaleiro,
<br />engastado como um boi no guincho do gaivão11,
<br />Ripas aderem ao casco,
<br />uva em cachos nas cavilhas,
<br />ar vazio ganhando pele.
<br />Tendões se enlaçam no ar sem vida,
<br />vagar felino de panteras,
<br />Leopardos farejando brotos de uva no embornal,
<br />Panteras agachadas na escotilha,
<br />E em torno, o mar azul-profundo,
<br />verde-rosa em sombras,
<br />E Lieu: "Doravante, Acetes, meus altares,
<br />Sem temer o cativeiro,
<br />sem temer os felinos selvagens,
<br />Seguro com meus linces,
<br />dando uvas aos meus leopardos,
<br />Olíbano é o meu incenso,
<br />vinhas crescem em minha homenagem."
<br />A maré agora suave nas correntes do leme,
<br />Focinho negro de um golfinho
<br />onde estava Lycabas,
<br />Escamas de peixe nos remadores.
<br />E eu venero.
<br />Eu vi o que vi.
<br />Quando trouxeram o garoto eu disse:
<br />"Há um deus nele,
<br />embora eu não saiba que deus."
<br />E me chutaram pros cordames.
<br />Eu vi o que vi:
<br />A face de Médon feito a dum peixe-galo,
<br />Braços encolhem em barbatanas. E tu, Penteu,
<br />Devias ouvir Tirésias12 e Cadmo,
<br />ou a tua sorte vai te deixar.
<br />Escamas cobrindo as virilhas,
<br />rugido de lince em meio ao mar...13
<br />(Tradução de Dirceu Villa)
<br />*
<br />A minha tradução de Ovídio se deve a diversos motivos. O principal é que eu acho esse, provavelmente, o melhor poema da tradição ocidental: as histórias são magníficas em si, o artesanato do verso de Ovídio só é comparável ao dos melhores, e é o poema mais influente da história da poesia e da arte. O que seria dos pintores do Renascimento até o século XIX sem Ovídio? Há quatro painéis de Delacroix no acervo do MASP (Museu de Arte de São Paulo) que vieram diretamente das Metamorfoses; Velázquez, o maior dos pintores, tinha dois exemplares das Metamorfoses em sua biblioteca, um em espanhol, outro em italiano. Sei lá se estavam traduzidos em verso, mas ele, assim como a tradição que vinha de Caravaggio, compreendeu a idéia hoje talvez meio poundiana (The Spirit of Romance14) de que Ovídio "caminhava com as pessoas do mito", significando que deuses e heróis surgiam em retratos na velocidade da ação contínua que, como diz Italo Calvino15, percorre páginas e páginas com os verbos no presente, ou dramaticamente cedendo a voz para uma narrativa em primeira pessoa.
<br />No sentido pictórico, isso significa o famoso Narciso de Caravaggio, ou o Festim de Baco — Los Borrachos, ou como se queira chamar o quadro — de Velázquez, que propõe um Baco como o vemos no livro III das Metamorfoses, um rapaz sensual, e coroando de folhas de parreira um bando de beberrões camponeses na pintura. Ortega y Gasset, que nos seus comentários associa a tela à picaresca espanhola, não vislumbrou a ligação direta com o estilo de Ovídio nem com a tradição italiana de Caravaggio (embora esta última certamente terá sido omitida por demasiado óbvia). Ele diz: "Este es un hecho muy interesante" — o fato do quadro ser uma novidade na Espanha — "porque, en cambio, en la literatura picaresca, tan popular en los siglos XVI y XVII, se encuentran muchas escenas de borrachos."16 A pintura é totalmente o avesso da picaresca, porque o "realismo" do Baco adiposo e dos beberrões pobres e esfarrapados não é caricatural, não é a vis comica: é aplicação de Ovídio mais Caravaggio numa concepção de caminhar com as pessoas do mito; o que, por sua vez, também não é tão poundiana assim. Pode-se encontar uma formulação muito semelhante no livro de Junito de Souza Brandão, Mitologia Grega, que escreveu o seguinte:
<br />Dioniso é um deus humilde, um deus da vegetação, um deus dos campônios.17
<br />Afirmando também que Baco era o, por assim, dizer, "mais humano" dos deuses, e que está no trecho de Ovídio, de certa forma, quando Acetes diz: nec enim praesentior illo est deus; e Brandão está falando da concepção mais antiga que pôde encontrar de Baco; e está além de qualquer suspeita quanto a ser um poundiano, tinha um gosto antiquado para poesia, era o seu tanto junguiano, etc. Seria cansativo tentar apreender a quantidade de bons artistas em tempos diversos que deve alguma coisa a Ovídio..
<br />Outro motivo da tradução, que está em processo, é tentar completar enfim os quinze livros para o português, o que significa trabalho pesado por tempo indeterminado. Além disso, há uma questão interessante de opção tradutória. O hexâmetro datílico, usado nas epopéias de Homero e Virgílio, e nas Metamorfoses, é normalmente traduzido em português como:
<br />a) decassílabo;
<br />b) dodecassílabo ou alexandrino;
<br />c) imitação estrita dos seis pés datílicos — isto é, uma longa e duas breves —, a cada verso, como fez Carlos Alberto Nunes, contra todos que disseram que isso "não é verso de língua portuguesa";
<br />d) em prosa.
<br />Então, resolvi que não usaria nenhum desses métodos, procurando descobrir se o verso livre (coisa que Eliot espertamente disse não existir) poderia funcionar. Evitei, portanto, embora dele me aproxime mais do que dos outros, o sistema de Carlos Alberto Nunes (que nos dá uma narrativa rítmica, sem responder propriamente às técnicas poéticas, e num ritmo sem truques, monótono). O poema de Ovídio à primeira vista poderá parecer mais um poema moderno, inclusive pelas interpolações, nada estranhas, de qualquer forma, à sua própria prática. Brandas, suaves, mas interpolações. Enfim.
<br />Neste trecho que traduzi do livro III, em que os piratas seqüestram Baco para vendê-lo como escravo, Ovídio está na verdade parafraseando e ampliando o Primeiro Hino Homérico a Dionísio; as diferenças gerais estão em que no poema grego Dionísio se transforma em leão e faz outros animais surgirem no barco, como um urso, e há, no começo, uma apresentação do tema e um elogio à mãe do deus, Sêmele. Este pequeno trecho do Hino, por exemplo:
<br />Quando eles [os piratas] o viram [Baco, na forma de garoto],
<br />fizeram sinais uns pros outros
<br />e logo o agarraram e o puseram cativo, exultantes, a bordo,
<br />pensando que filho ele fosse de reis estimados dos deuses.
<br />Queriam prendê-lo com rudes amarras,
<br />é impossível: os nós não apertam, e voam as cordas de juta
<br />distantes dos pulsos e pés; e o deus então se sentou
<br />com um sorriso em seus olhos escuros.
<br />O timoneiro enfim compreende e grita aos seus sócios, dizendo:
<br />"Loucos! Que deus forte foi esse trazido amarrado?
<br />Nem mesmo o navio de enorme convés poderá carregá-lo.
<br />É certo que é Zeus ou Apollo do arco de prata, ou Posêidon,
<br />pois não parece um mortal,
<br />e sim um dos deuses que vivem no Olympo.
<br />Deixemos que vá pela praia de areias escuras:
<br />que fique intocado para não nos punir com ávidos ventos
<br />nem tempestades pesadas." Assim ele disse;
<br />mas com palavras de insulto o mestre lhe disse:
<br />"Louco, cuida do vento e dá velas ao barco:
<br />nós vamos cuidar do garoto; (..)"
<br />
<br />(Tradução de Dirceu Villa)
<br />
<br />como vocês verão, é muito parecido com o das Metamorfoses. Depois, Ovídio acrescenta desenvolvimentos da história a partir de As Bacantes, de Eurípides.
<br />Em "Baco & os Piratas Tirrenos" se pode observar que o estilo de Ovídio não é o de epítetos e de trechos de verso que se repetem, como em Homero. Não há a "políssona praia"18 da Ilíada, v. 34 (a expressão que retorna, como é comum em Homero, por todo o poema, sempre que se refere a onde estavam as naus dos aquivos), ou a expressão também homérica do hino a Dionísio, em que lemos, no verso 7: "sobre o mar cor de vinho", embora seja uma das fontes de Ovídio para a confecção do poema.
<br />Evidentemente usei referências diretas das outras traduções para o português, como, por exemplo, a de Castilho: a palavra específica que consta da sua tradução do mesmo episódio, o "portaló" — uma abertura no lado do navio, por onde entra a tripulação. Muito fiel ao espírito de Ovídio, Castilho empregou uma palavra precisa, e considerei que, além da homenagem ao esforço de Castilho, ainda acrescentaria a precisão, cara às descrições de ovidianas.
<br />A importância de procurar semelhanças estilísticas é muito grande porque Ovídio é um esteta. Muitas vezes pude aproveitar jogos interessantes com o original quando podia conseguir o mesmo efeito aproveitando inúmeras coincidências etimológicas; outras vezes forcei semelhanças etimológicas, quando era possível produzir uma reflexão sobre o significado das palavras além do dicionário — o dicionário não registra estilo, muito menos nuances contextuais, emocionais, trocadilhescas, etc. Como escreveu, mui esperto, o poeta chileno Vicente Huidobro: "En todas las cosas hay una palabra interna, una palabra latente y que está debajo de la palabra que las designa. Esa es la palabra que debe descubrir el poeta".19
<br />Há um exemplo de uso feliz da mesma matriz vocabular no episódio de Baco. O verbo "titubo", que aparece "titubare", no momento em que o deus está zonzo por beber o vinho forte. Quebrando um andamento fluente e elegante, escrevo o verso "Turvo do mosto da uva, titubeia de pernas trançadas", em que as aliterações em t mimetizam o trançar de pernas do deus bêbado. Outro exemplo, ainda no episódio de Baco, é o do barulho dos corpos dos marinheiros, transformados em golfinhos, contra a água do mar, em que acrescentei também uma paráfrase de um verso de Camões, nos Lusíadas, ele que também era um especialista em imagens marinhas e grande devedor, não só estilisticamente, de Ovídio20. Etc.
<br />Não vou esticar esse texto em miudezas técnicas; sou da opinião que a tradução deve falar por si. E isso tem bons motivos: os loucos por detalhes cotejam os dois textos — latino e português — e acham as possíveis semelhanças e diferenças (e eu não estou disposto a surrupiar a diversão de ninguém); os que querem apenas ler um bom poema não terão de bocejar sobre as minhas notas de tradução que, além do mais, n'éxistent pas.
<br />Boa leitura.
<br />Baco & os Piratas Tirrenos
<br />(Ovídio, Metamorfoses, III, vv. 597-691; tradução de Dirceu Villa)21
<br />Em Delos me vi uma vez, na costa da terra de Quios,
<br />dobram-se as velas, dirijo à direita com os remos
<br />e salto na praia, ganhando a úmida areia:
<br />consumida a noite no céu e à luz do arrebol
<br />levanto e comando meus homens atrás de água fresca,
<br />mostrando o caminho da fonte; e eu mesmo
<br />no alto de um monte percebo a promessa dos ventos
<br />e chamo de volta os parceiros à nave;
<br />"tamo aqui", grita Ofeltes primeiro,
<br />que puxa uma presa achada num campo deserto,
<br />um garoto da praia, uma virgem na forma.
<br />Turvo do mosto da uva, titubeia de pernas trançadas;
<br />reparo em seu porte, seu rosto, seus passos;
<br />nada vi que pudesse dizer "é mortal".
<br />E eu disse aos parceiros: "qual é o deus neste corpo
<br />não sei; mas é certo que há um deus neste corpo!"
<br />Quem quer que tu sejas, assiste propício aos trabalhos;
<br />perdoa estes homens!" "Não vem pedir nada por nós!",
<br />brada Dictys — ninguém o supera em subir o alto mastro,
<br />nem em descer pelas rudes amarras —,
<br />e assim Libys e o loiro Melantho, vigia de proa,
<br />e Alcimédon aprovam, e também Epopeu, que modula
<br />o ritmo dos remos co’a voz e os ânimos ergue;
<br />todos concordam: cupidez tão cega de o capturar.
<br />"Não vou permitir violar este barco com o peso de um deus",
<br />eu disse, "pois aqui minha voz vale mais",
<br />e no portaló eu resisto: mas de todos o mais atrevido,
<br />em fúria, Lycabas etrusco, expulso de sua cidade,
<br />cumprindo o exílio por negro homicídio,
<br />me agarra a garganta com seu punho jovem
<br />e num murro por pouco não caio nas águas, não fosse,
<br />sem auxílio da mente, travar do cordame.
<br />Ímpia, a turba aprova tal ato; e eis que então Baco,
<br />(Baco era sim), como se pelo clamor dissipado ficasse
<br />o torpor da bebida, tornando ao seu peito os sentidos,
<br />"o que estão fazendo? e o clamor o que é? Cheguei aqui como?",
<br />pergunta, "para onde vão me levar?" e Proreu,
<br />"fica frio, ô garoto: escolhe o porto pra gente chegar,
<br />que cê fica na terra pedida." E Líber,
<br />"pra Naxos. Invertam o curso pra Naxos!
<br />é lá a minha casa, terra agradável aos hóspedes."
<br />Falazes juraram, pelo mar e os numes, que assim o fariam.
<br />E a mim deram o fardo de as velas encher ao negro navio.
<br />À destra era Naxos: à destra o linho eu inflava,
<br />"O que fazes, demente?", grita Ofeltes, “que furor te deu, Acetes?"
<br />"Põe pra esquerda!" — me fazem notar quase todos
<br />por sinal com a cabeça, por sussurro ao ouvido.
<br />Disse, aturdido: "pois bem, que assuma o leme algum outro,
<br />que eu não serei cúmplice em esquema de crime."
<br />Todos me insultam, multidão de murmúrios me ofende;
<br />Æthalion, então: "Cabeçudo! Somente contigo
<br />nossa sorte se encerra?" disse e subiu ele mesmo
<br />ao meu posto, se opondo ao trajeto pra Naxos.
<br />Ardil divino, o deus finge que então desconfia da fraude,
<br />e, da popa adunca o mar ele mira e diz, aflito num choro:
<br />"Não são estas praias, marujos, que me prometeram",
<br />diz: "Não são estas terras, as que eu lhes pedi!"
<br />"O que por acaso lhes fiz? que glória enganar,
<br />Jovens, um pobre garoto; muitos, contra só um?"
<br />Choro junto e aflito: o bando de ímpios ri dessas lágrimas,
<br />rápidos remos varrem as vagas.
<br />Juro agora em seu nome (não há deus mais presente)
<br />que é tão verdade o que digo,
<br />quanto parece impossível: ’stanca n’água a popa,
<br />qual num seco estaleiro atracada.
<br />No espanto persistem com golpes de remo
<br />e tentam a todo pano prover a nau de impulso:
<br />heras impedem os remos, gavinhas serpeiam recurvas,
<br />corimbos fecundos adornam as velas.
<br />Racimos circundam com uvas a fronte de Baco,
<br />que agita uma hástea frondosa de pâmpano;
<br />tigres em torno, sombras de linces surgem do vácuo,
<br />panteras, corpos de feras deitadas.
<br />Homens ao mar, que a loucura tomou,
<br />ou medo imenso; e Médon primeiro enegrece
<br />em todo o corpo e, curva, a espinha se inflete;
<br />Lycabas então: “que milagre”, ele diz,
<br />"te reverte?", mas rasga-lhe a boca o gritar,
<br />narinas se curvam e a cútis se encrosta de rígida escama.
<br />E Lybis, querendo soltar os seus remos,
<br />vê rápido as mãos retraírem,
<br />mãos já bem pouco, mais barbatanas.
<br />Outro tenta co’s braços tirar da cordagem a hera,
<br />mas braço nenhum ele encontra: o corpo truncado mergulha
<br />no fundo profundo das ondas, e ao ar ele ergue
<br />a novíssima cauda forcada, com a curva dos cornos da lua.
<br />Homens saltando por todos os lados, mergulham
<br />e espalham espuma marinha,voltam pro alto, imergem de novo,
<br />retornam das águas, brincam em danças e alegres atiram os corpos,
<br />e expulsam das largas narinas a água que tomam do mar.
<br />Éramos vinte (tantos assim nossa nave levava),
<br />ficara só eu, tremendo de gélido horror;
<br />mal me refiz, e o deus então disse: "Espanta o pavor do teu peito,
<br />partimos pra Dia", e , lá chegando, o deus me inicia
<br />nos ritos sagrados de Baco, que agora freqüento.
<br />Baco & os Piratas Tirrenos
<br />(Ovídio, Metamorfoses, III, vv. 597-691)
<br />Forte petens Delum Chiae telluris ad oras
<br />adplicor et dextris adducor litora remis
<br />doque levis saltus udaeque inmittor harenae:
<br />nox ibi consumpta est; aurora rubescere primo
<br />coeperat: exsurgo laticesque inferre recentis
<br />admoneo monstroque viam, quae ducat ad undas;
<br />ipse quid aura mihi tumulo promittat ab alto
<br />prospicio comitesque voco repetoque carinam.
<br />"adsumus en" inquit sociorum primus Opheltes,
<br />utque putat, praedam deserto nactus in agro,
<br />virginea puerum ducit per litora forma.
<br />ille mero somnoque gravis titubare videtur
<br />vixque sequi; specto cultum faciemque gradumque:
<br />nil ibi, quod credi posset mortale, videbam.
<br />et sensi et dixi sociis: "quod numen in isto
<br />corpore sit, dubito; sed corpore numen in isto est!
<br />quisquis es, o faveas nostrisque laboribus adsis;
<br />his quoque des veniam!" "pro nobis mitte precari!"
<br />Dictys ait, quo non alius conscendere summas
<br />ocior antemnas prensoque rudente relabi.
<br />hoc Libys, hoc flavus, prorae tutela, Melanthus,
<br />hoc probat Alcimedon et, qui requiemque modumque
<br />voce dabat remis, animorum hortator, Epopeus,
<br />hoc omnes alii: praedae tam caeca cupido est.
<br />"non tamen hanc sacro violari pondere pinum
<br />perpetiar" dixi: "pars hic mihi maxima iuris"
<br />inque aditu obsisto: furit audacissimus omni
<br />de numero Lycabas, qui Tusca pulsus ab urbe
<br />exilium dira poenam pro caede luebat;
<br />is mihi, dum resto, iuvenali guttura pugno
<br />rupit et excussum misisset in aequora, si non
<br />haesissem, quamvis amens, in fune retentus.
<br />inpia turba probat factum; tum denique Bacchus
<br />(Bacchus enim fuerat), veluti clamore solutus
<br />sit sopor aque mero redeant in pectora sensus,
<br />"quid facitis? quis clamor?" ait "qua, dicite, nautae,
<br />huc ope perveni? quo me deferre paratis?"
<br />"pone metum" Proreus, "et quos contingere portus
<br />ede velis!" dixit; "terra sistere petita."
<br />"Naxon" ait Liber "cursus advertite vestros!
<br />illa mihi domus est, vobis erit hospita tellus."
<br />per mare fallaces perque omnia numina iurant
<br />sic fore meque iubent pictae dare vela carinae.
<br />dextera Naxos erat: dextra mihi lintea danti
<br />"quid facis, o demens? quis te furor," inquit "Acoete,"
<br />pro se quisque, "tenet? laevam pete!" maxima nutu
<br />pars mihi significat, pars quid velit ore susurro.
<br />obstipui "capiat" que "aliquis moderamina!" dixi
<br />meque ministerio scelerisque artisque removi.
<br />increpor a cunctis, totumque inmurmurat agmen;
<br />e quibus Aethalion "te scilicet omnis in uno
<br />nostra salus posita est!" ait et subit ipse meumque
<br />explet opus Naxoque petit diversa relicta.
<br />tum deus inludens, tamquam modo denique fraudem
<br />senserit, e puppi pontum prospectat adunca
<br />et flenti similis "non haec mihi litora, nautae,
<br />promisistis" ait, "non haec mihi terra rogata est!
<br />quo merui poenam facto? quae gloria vestra est,
<br />si puerum iuvenes, si multi fallitis unum?"
<br />iamdudum flebam: lacrimas manus inpia nostras
<br />ridet et inpellit properantibus aequora remis.
<br />per tibi nunc ipsum (nec enim praesentior illo
<br />est deus) adiuro, tam me tibi vera referre
<br />quam veri maiora fide: stetit aequore puppis
<br />haud aliter, quam si siccam navale teneret.
<br />illi admirantes remorum in verbere perstant
<br />velaque deducunt geminaque ope currere temptant:
<br />inpediunt hederae remos nexuque recurvo
<br />serpunt et gravidis distinguunt vela corymbis.
<br />ipse racemiferis frontem circumdatus uvis
<br />pampineis agitat velatam frondibus hastam;
<br />quem circa tigres simulacraque inania lyncum
<br />pictarumque iacent fera corpora pantherarum.
<br />exsiluere viri, sive hoc insania fecit
<br />sive timor, primusque Medon nigrescere toto
<br />corpore et expresso spinae curvamine flecti
<br />incipit. huic Lycabas "in quae miracula" dixit
<br />"verteris?" et lati rictus et panda loquenti
<br />naris erat, squamamque cutis durata trahebat.
<br />at Libys obstantis dum vult obvertere remos,
<br />in spatium resilire manus breve vidit et illas
<br />iam non esse manus, iam pinnas posse vocari.
<br />alter ad intortos cupiens dare bracchia funes
<br />bracchia non habuit truncoque repandus in undas
<br />corpore desiluit: falcata novissima cauda est,
<br />qualia dividuae sinuantur cornua lunae.
<br />undique dant saltus multaque adspergine rorant
<br />emerguntque iterum redeuntque sub aequora rursus
<br />inque chori ludunt speciem lascivaque iactant
<br />corpora et acceptum patulis mare naribus efflant.
<br />de modo viginti (tot enim ratis illa ferebat)
<br />restabam solus: pavidum gelidumque trementi
<br />corpore vixque meum firmat deus "excute" dicens
<br />"corde metum Diamque tene!" delatus in illam
<br />accessi sacris Baccheaque sacra frequento.'
<br />________________________________________________________________________
<br />(Gostaria de agradecer a Ram Devineni, que me presenteou com a novíssima tradução das Metamorfoses, em inglês, de Charles Martin, e a Flávia Rocha, pelo incentivo.)
<br /><style="font-size: url="http://www.mundocultural.com.br/literatura1/latina/propercio.htm">[1]<!--[endif]-->
<br />Eu te dizia, ó zombador, que o amor havia de chegar, que tu não haverias de falar para sempre livremente: eis que jazes abandonado e suplicante te arrastas para as leis de uma mulher, e agora a ti dá ordens (uma mulher) qualquer, recentemente comprada.
<br />Nem as pombas da Caônia me superariam no amor, em predizer quais jovens cada moça dominará. Com razão, o sofrimento e as lágrimas me tornaram experiente; e oxalá seja eu, após ter abandonado um amor, chamado de inexperiente!
<br />De que vale a ti, agora infeliz, recitar um grande poema ou lamentar as muralhas (construídas ao som) da lira de Anfião? Mais vale no amor um verso de Mimnermo do que um de Homero: um Amor doce procura versos amenos.
<br />Vai, peço-te, e abandona esses tristes poemas e canta (aquilo) que qualquer donzela gosta de ouvir. Por que não, se tu terias talento de sobra? Agora, insensato, tu procuras água no meio de um rio.
<br />De fato, tu ainda não estás pálido, nem também foste tocado pelo fogo da paixão: esta é a primeira centelha do mal que há de vir. Então desejarás mais se aproximar dos tigres da Armênia e conhecer mais os grilhões da roda do inferno do que sentir tantas vezes em (teu) coração o arco do jovem (Cupido), e nada poder negar à tua (amada) enfurecida.
<br />Nenhum Amor deu liberdade a alguém assim tão facilmente sem que, por outro lado, não (o) tenha oprimido. Que ela, ainda que seja bastante fácil, não te iluda: ó Pôntico, mais profundamente ela penetra (no coração), se de algum modo te pertence. Desde então não se pode desviar (dela) os olhos, (nem mantê-los) tranqüilos, nem o Amor que não se manifesta antes (e) enquanto (sua) mão (não) atinge (nossas) entranhas, (nos) permite ficar acordado com outro nome.
<br />Ah! Quem quer que tu sejas, foge das freqüentes carícias; a elas, nem as rochas, nem os carvalhos poderiam resistir; tu, essa alma frágil, poderias menos ainda.
<br />Portanto, se tens vergonha, reconhece o quanto antes (teus) erros: confessar porque te consomes freqüentemente no amor, alivia (a dor).
<br />ANÁLISE
<br />Percebemos que o núcleo temático desta elegia, marcada pela freqüência da palavra amor e por outros vocábulos a ela relacionados, tais como igni (v. 17) e blanditias (v. 30), gira em torno do amor, tema explorado exaustivamente pelos poetas elegíacos.
<br />O emprego do vocativo Pontice (v. 26) denuncia que Propércio não se dirige como de praxe à sua musa Cíntia, mas ao amigo Pôntico, a quem censura por compor carmes épicos (graue carmen – v. 9). Contudo, é a experiência amorosa vivenciada com Cíntia, a verdadeira paixão de Propércio, que servirá de fio condutor para o diálogo entre o poeta e Pôntico.
<br />Ao ler os poemas de Propércio, observamos que este procedimento, por parte do poeta, de se endereçar a um amigo para tratar de assuntos de amor, ocorre com uma certa freqüência nas elegias do livro I, tais como nas de número 4, 5 e 6, dirigidas, respectivamente, aos amigos Basso, Galo e Túlio. Já na elegia I, 7 (v. 1 a 6), Propércio se dirige também a Pôntico para falar de amor, referindo-se, inclusive, à inclinação do amigo para o canto de poemas bélicos:
<br />Dum tibi Cadmeae dicuntur, Pontice, Thebae
<br />armaque fraternae tristia militiae,
<br />atque, ita sim felix, primo contendis Homero
<br />(sint modo fata tuis mollia carminibus),
<br />nos, ut consuemus, nostros agitamus amores,
<br />atque aliquid duram quaerimus in dominam.
<br />Enquanto, ó Pôntico, tu celebras Tebas de Cadmo
<br />e as terríveis armas da milícia do irmão,
<br />e competes com o distinto Homero, assim seja eu feliz,
<br />(contanto que o destino seja favorável a teus versos),
<br />eu, como me habituei, ocupo-me com meus amores,
<br />e procuro algo contra uma cruel amante.
<br />Nesta elegia, o poeta fala com a voz de um homem experiente, marcado profundamente pelas dores e sofrimentos do amor, como ele próprio confessa no verso 7. É essa experiência dolorosa que lhe permitirá, portanto, dirigir-se ao amigo Pôntico, em tom de freqüente advertência. O emprego do imperfeito do indicativo dicebam (v. 1), revela, contudo, que o poeta vem advertindo o amigo sobre os males do amor desde o passado e continua no presente, como o comprovam as formas de imperativo fuge (v. 30) e fatere (v. 33).
<br />É também em nome dessa amarga experiência que o poeta assume o papel de um verdadeiro profeta do amor (v. 5-6). Com essa atitude, ele arroga a si mesmo o direito de fazer previsões, como notamos claramente no conteúdo dos versos 1, 2, 18 e 19, marcados todos por formas verbais de futuro. Mas é, sobretudo, nos versos 5 e 6 que essa nota profética mais se acentua, quando o poeta-vate, para mostrar-se superior às pombas da Caônia nas predições que faz acerca do amor, emprega dois verbos de ação projetada para o futuro: o subjuntivo potencial uincant e domet. A passagem alusiva à região da Caônia representa aqui um primeiro indício da erudição de Propércio, mostrando que o mesmo conhece não apenas sua fauna (columbae – v. 5), mas também sua flora, pois como descreve Spalding (1965:49), esse lugar era uma
<br />...região ao nordeste do Epiro, na Grécia, assim chamada por causa de Cáon. Essa região, cheia de montanhas e florestas, era célebre pelas glandes de que se alimentavam os homens, antes da invenção do pão. Igualmente célebres eram suas pombas, que prediziam o futuro.
<br />Por outro lado, quando Propércio se refere às pombas profetizas da Caônia, com ar de superioridade, o faz para ratificar sua experiência amorosa.
<br />Com a mudança do tempo verbal, de passado para presente, ocorrida entre o primeiro, terceiro e quarto versos, este último modificado, inclusive, pelo advérbio nunc, Propércio acaba por ver concretizadas suas previsões feitas no passado (dicebam – v. 1), passando a descrever, desse modo, uma relação amorosa na qual o amigo Pôntico se apresenta perante a amada na condição de submisso. Lembremos, contudo, que nessa relação amorosa, os papéis do amante e da mulher amada se invertem, passando esta de escrava (empta – v. 4) a senhora, e aquele, de senhor a escravo, idéia retratada nos terceiro e quarto versos. Essa relação amorosa de submissão do amante à mulher amada, que se reflete, por um lado, no emprego do verbo iaces e do adjetivo supplex (v. 3), e, por outro, nas formas verbais uenis e imperat (v. 3-4), vai mais tarde impregnar o amor vivenciado pelos poetas da Idade Média e do Renascimento. Assim foi com Propércio, assim será com Petrarca e Camões, que, ao contrário do autor latino, exaltaram a figura da mulher amada no nível de um amor platônico.
<br />Retomando a questão da experiência amorosa, podemos afirmar que no oitavo verso, a começar pelo tom da exclamação, Propércio se revela um tanto arrependido por ter conhecido um dia um amor que lhe trouxe tantos dissabores, preferindo antes não tê-lo vivenciado. Esse arrependimento, que se reflete no desejo manifestado pelo poeta de ser chamado de inexperiente (utinam dicar rudis!), torna-se mais evidente quando Propércio, para mostrar sua decepção com a experiência amorosa vivida com Cíntia, opõe o rudis final ao peritum do verso anterior, não sem razão posto na mesma posição do adjetivo que lhe serve de antítese.
<br />No verso 9, o poeta se dirige a Pôntico empregando o adjetivo misero, em dativo, que, aliado ao verbo flere (v. 10), ressalta o estado de infelicidade em que se encontra seu amigo. Percebemos que nesse momento Propércio chama o amigo à razão, como que despertando-o de uma profunda letargia, daí o emprego de uma interrogação retórica, que, acrescida da lição ministrada nos versos 11-12, busca mais convencer do que propriamente indagar.
<br />Ainda nos versos 10 e 11, notamos duas referências centradas no universo da cultura grega. A primeira, no campo mitológico, diz respeito ao episódio de Anfião; e a segunda, no âmbito da literatura, relaciona-se ao nome de Mimnermo e Homero. Ambas confirmam, mais uma vez, a erudição de Propércio, ou seja, o conhecimento do poeta acerca do mundo e da civilização dos Helenos.
<br />Vamos, então, agora, antes de passarmos à análise do verso seguinte, tentar esclarecer, à luz da mitologia, o episódio de Anfião. Anfião era, segundo Bulfinch (1965:163),
<br />...filho de Júpiter e Antíope, rainha de Tebas. Com seu irmão gêmeo Zétus, foi exposto ao nascer no Monte Citéron, onde os dois cresceram entre os pastores, sem conhecer os pais. Mercúrio ofereceu uma lira a Anfíon e ensinou-lhe a tocar, enquanto seu irmão ocupava-se em caçar e pastorear os rebanhos. Durante esse tempo, Antíope, a mãe dos gêmeos, que fora tratada com grande crueldade por Lícus, o rei usurpador de Tebas, e por sua esposa Dirce, conseguiu, afinal, informar os filhos de seus direitos e pedir-lhes ajuda. Com um bando dos pastores seus companheiros, os gêmeos atacaram e mataram Lícus e amarraram Dirce pelos cabelos à cabeça de um touro, deixando que o animal a arrastasse até matá-la. Anfíon tendo-se tornado rei de Tebas, fortificou a cidade com uma muralha. Dizia-se que, quando tocava sua lira, as pedras se moviam por si mesmas e iam tomar seu lugar na muralha.
<br />Na descrição do mito, Anfião, à semelhança de Orfeu, possui o poder de encantar, com a doce melodia de sua lira, até mesmo seres inanimados. Propércio, quando alude a esse mito, o faz para mostrar a Pôntico que nem mesmo as muralhas erigidas por Anfião se comoveriam com seus tristes cantos.
<br />A afirmativa expressa no verso 11, através do emprego do verbo ualet, modificado pelo advérbio de intensidade plus, demonstra que Propércio atribui maior valor às pequenas composições de temática amorosa. Para o poeta, os versos de amor, por sua natureza amena (carmina lenia – v. 12), agradam mais às donzelas do que os poemas bélicos, daí empregar, num gesto de polidez (quaeso), os imperativos i, compone (v. 13), opondo este último ao imperativo cane (v. 14), para convencer o amigo Pôntico a desistir dos versos tristes (tristis libellos – v. 13) e induzi-lo a cantar o que as moças gostam de ouvir (v. 14).
<br />A partir da análise dos versos 12 e 13, feita no parágrafo anterior, percebemos que Propércio emprega a antítese lenia/tristis para estabelecer, respectivamente, uma distinção entre poesia amorosa e poesia bélica, associando o primeiro tipo de composição ao nome de Mimnermo e o segundo, ao de Homero.
<br />Homero, como sabemos, compôs a Ilíada e a Odisséia, obras de assunto bélico. Mimnermo, ao contrário, pôs seu talento poético a serviço das elegias de amor. A comparação no verso 11, estabelecida entre seu nome e o de Homero (no abl. de comparação), revela a preferência de Propércio pelo poeta elegíaco, portanto, pelos carmes de amor. Aliás, esta inclinação pelos poemas de temática amorosa não é exclusiva de Propércio. Tibulo, igualmente, repudia os temas bélicos, preferindo tanger sua lira naqueles de amor, como confessa na seguinte passagem da elegia I, 1, v. 53-55:
<br />Te bellare decet terra, Messalla, marique,
<br />ut domus hostiles praeferat exuuias:
<br />me retinent uinctum formosae uincla puellae.
<br />A ti, ó Messala, convém guerrear, na terra e no mar,
<br />para que a tua casa ostente os despojos inimigos:
<br />a mim retêm, cativo, os vínculos de uma formosa mulher.
<br />Guillemin (1939: 285) exprime essa atitude antibélica dos autores elegíacos latinos nos seguintes termos: “maudite soit la guerre et bien venue soit la paix avec toutes les bonnes choses qu’elle apporte. Son premier présent est l’amour”.
<br />E, novamente, no verso 15, com o emprego da interrogação retórica, Propércio, consciente da capacidade de Pôntico, encoraja-o a cantar versos de amor, mostrando que somente sua insensatez, expressa pelo adjetivo insanus, não lhe permite enxergar seu próprio talento poético, idéia retratada no verso 16.
<br />Numa atitude paradoxal, pois há pouco surpreendíamos o poeta aconselhando o amigo Pôntico a cantar versos de amor, agora, nos dísticos seguintes, Propércio, já profundamente amargurado, apresenta uma visão negativa desse sentimento, marcada, de um lado, pelo emprego do substantivo mali (v. 18), e, de outro, pela descrição de um estado físico de decadência (palles – v. 17), visto como conseqüência da paixão amorosa (igni – v. 17). Essa visão pessimista do amor acentua-se mais ainda pelo tom profético e negativo, conferido ao verso 18, no qual o mal previsto para o futuro, uenturi mali, é associado àqueles descritos no verso 17.
<br />A partir dessa visão negativa, o poeta julga qualquer outra experiência menos dolorosa do que aquela vivenciada no amor. Esta idéia se encontra sintetizada nos versos 19 a 22, nos quais ele afirma, mediante a comparação magis ... quam, ser preferível experimentar o doloroso tormento do inferno e os perigosos tigres da Armênia a suportar as intensas torturas causadas pelo amor. Temos, então, no verso 19, outra referência à fauna. Dessa vez, relacionada aos tigres da Armênia, enfatizando não só o conhecimento de Propércio desta região, localizada na Ásia Ocidental, mas também dos animais ferozes que nela habitam.
<br />No verso 21, Propércio alude, empregando a metonímia pueri, à figura de Cupido, deus do Amor, que, segundo a descrição de Harvey (1987:146), representa, na religião romana,
<br />...o deus-menino do amor, filho de Vênus, uma adaptação do grego Eros, pouco importante no Panteão romano. Na literatura sua aparição mais notável é no primeiro canto da “Eneida”, onde Vênus lhe dá ordens para disfarçar-se em Ascânio e provocar o amor de Dido por Enéias.
<br />Na mitologia grega, Eros, como afirma Spalding (1965:90), é concebido como
<br />...o filho de Afrodite, com o carcaz bem fornido de setas, é um encantador menino alado, de cabelos encaracolados, risonho e trêfego, cujas travessuras nem sempre são inocentes. Toda vez que despede uma seta com seu infalível arco, o amor se implanta no coração e aí reina como tirano. Quando liga numa escolha feliz os corações de um homem e uma mulher, tudo vai bem; não raro, porém, seus caprichos dirigem-se a objetivos já comprometidos, e o final, sempre, é uma tragédia. Assim foi com Dido, assim foi com Pasífae, com Ariadne, com Fedra, com Medéia, com Hipodâmia.
<br />Notamos que, no plano mítico, Cupido, o Eros grego, na maioria das vezes, interfere no coração dos amantes, para semear o sofrimento amoroso. No plano real, Propércio ratifica a tirania do deus do Amor, mostrando as freqüentes torturas (v. 21) e as fúrias (irata – v. 22) que o amante tem de suportar da mulher amada, quando submisso aos seus caprichos.
<br />Nos versos 23-24, o poeta sintetiza, numa frase de tom universal, os aspectos contraditórios do amor, que poderiam enfeixar-se em pares opositivos, tais como: liberdade/prisão, alegria/tristeza, fidelidade/infidelidade, harmonia/desarmonia, ódio/amor, dentre outros. Com relação às antíteses inerentes ao amor, sobretudo ao amor-paixão, merece destaque o carmen 85 de Catulo, no qual o antológico verso odi et amo ressalta uma das contradições próprias desse sentimento. Na elegia properciana, essa contradição do sentimento amoroso se expressa, no plano lexical, pelo contraste entre os verbos praebuit (v. 23) e presserit (v. 24) e, no sintático, pela oração introduzida pela conjunção consecutiva ut non, que figura como contrapartida em relação ao fato descrito na principal.
<br />Na condição de amante experiente, Propércio assume o papel de um verdadeiro analista da alma feminina, trazendo à tona, no verso 25, a questão do ser/parecer. Por isso, através do emprego do subjuntivo jussivo decipiat, volta a advertir o amigo Pôntico para que não se deixe iludir com falsas aparências. Alerta-o ainda para o poder de sedução da mulher amada, a qual, segundo o poeta, vai tomando conta do coração do amante, sem que ele perceba (v. 26). Essa idéia é retratada de forma mais intensificada pela antecipação da apódose acrius illa subit e pelo advérbio de intensidade que a introduz.
<br />Mais adiante, como conseqüência do seu poder de dominação e de aprisionamento, Propércio apresenta o amor como motivo de inquietação. Esta idéia é transmitida, de um lado, pela constante vigilância do amante (v. 27) e, de outro, pelo desassossego provocado pela imagem da mulher amada, que passa a dominar completamente o pensamento do homem enamorado (v. 28).
<br />No verso 29, Propércio mostra que o verdadeiro amor só se manifesta depois de haver dominado completamente o homem, ou seja, non ante donec manus attigit ossa. Podemos confirmar esse ponto de vista do poeta, tomando por base a litote non ante patet, empregada pelo mesmo para abrandar uma afirmação que se nega pelo seu oposto.
<br />Propércio encerra seu canto elegíaco mostrando que tudo é frágil diante do amor (v. 31-32), daí, numa personificação hiperbólica, colocar este sentimento não só acima das forças humanas, mas, sobretudo, acima da própria força da natureza. Nesta, como registra o poeta, com o emprego do subjuntivo potencial possint, formando locução verbal com cedere (v. 31), até mesmo os seres mais resistentes, como silices e quercus, acabariam por sucumbir ao poder irresistível do amor.
<br />É essa fragilidade, atribuída a Pôntico através do epíteto spiritus leuis (v. 32), que impossibilita o homem de reagir diante das flechas de Cupido. Consciente dessa dura realidade, que também experimentou, Propércio, numa derradeira advertência, emprega os imperativos fuge (v. 30) e fatere (v. 33), visando a libertar de vez o amigo das garras do amor.
<br />Por fim, criticando os atos de Pôntico e levando-o a admitir seus erros (v. 33), Propércio tenta, por todos os meios, convencer o amigo de que o desabafo é a melhor forma de amenizar a dor resultante do sofrimento amoroso (v. 34).
<br />Somente a experiência dolorosa do amor, confessada abertamente pelo poeta, no verso 7, pode lhe permitir incursões pelo universo da mitologia, dando voz a uma pessoa que se desabafa, ora advertindo, ora vaticinando, ora apregoando as agruras do amor.
<br />CONCLUSÃO
<br />A Elegia I, 9 tem como principal fio condutor a experiência amorosa de Propércio vivenciada com Cíntia. É um poema-catarse, fruto de uma grande paixão, elaborado por Propércio para dar vazão às suas decepções e desilusões amorosas. Está centrado em um tu, com quem um eu, experiente em matéria de amor, dialoga e se desabafa, mostrando os males a que se submete um amante quando dominado por Cupido. Não apresenta nenhuma nota de otimismo. Ao contrário, o amor é retratado pelo poeta de forma negativa e descrito como um mal que perturba e tira o sossego do amante.
<br />É o canto de uma pessoa desiludida, que só pôs na balança o lado ruim do amor, esquecendo-se dos momentos felizes que muitas vezes ele proporciona. É verdade que a mulher amada, usando, às vezes, certos artifícios, faz o homem sofrer, mas ela é também fonte de alegria e de prazer.
<br />O poeta não dedica nenhuma linha exaltando o lado bom do amor, nem as qualidades da mulher amada. Não há no seu canto uma autocrítica, nem uma avaliação de seus atos. Terá sido deliberação ou simplesmente descrença no amor? Não teria também o cantor de Cíntia uma parcela de culpa pela dor que carrega?
<br />REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
<br />BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia. Trad. David Jardim Jr. Rio de Janeiro: Ediouro, 1965.
<br />FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 4a ed. Rio de Janeiro: MEC, 1967.
<br />––––––. Gramática da língua latina. 2a ed. Brasília: FAE, 1995.
<br />GRIMAL, Pierre. Le lyrisme à Rome. Paris: PUF, 1978.
<br />GUILLEMIN, A. “Sur les origines de l’élégie latine”. In: Revue des études latines. Paris: Les Belles Lettres, 1939.
<br />HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Trad. Mário G. Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
<br />MARMORALE, Enzo V. História da literatura latina. Trad. João Bartolomeu Jr. Lisboa: Estúdios Cor, s/d.
<br />PROPERCE. Élégies. Trad., estabel. do texto D. Paganelli. Paris: Les Belles Lettres, 1929.
<br />SARAIVA, F.R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português. 10a ed. Rio de Janeiro/ Belo Horizonte: Garnier, 1993.
<br />SPALDING, Tassilo O. Dicionário de mitologia greco-latina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1965.
<br />TORRINHA, Francisco. Dicionário latino-português. 2a ed. Porto: Porto Ed., 1942.
<br /><!--[if !supportFootnotes]-->
<br />
<br /><!--[endif]-->
<br /><!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]--> Em nossa tradução, levamos em conta não só a sintaxe latina, mas também o espírito do texto, procurando sempre o melhor sentido para as palavras e construções latinas.
<br />Fonte: http://www.filologia.org.br/revista/34/12.htm
<br />
<br />Propércio, I.2
<br />Quid iuvat ornato procedere, vita, capillo
<br />et tenuis Coa veste movere sinus,
<br />aut quid Orontea crines perfundere murra,
<br />teque peregrinis vendere muneribus,
<br />naturaeque decus mercato perdere cultu,
<br />nec sinere in propriis membra nitere bonis?
<br />crede mihi, non ulla tuaest medicina figurae:
<br />nudus Amor formam non amat artificem.
<br />aspice quos summittat humus non fossa colores,
<br />ut veniant hederae sponte sua melius,
<br />surgat et in solis formosior arbutus antris,
<br />et sciat indocilis currere lympha vias.
<br />litora nativis praefulgent picta lapillis,
<br />et volucres nulla dulcius arte canunt.
<br />non sic Leucippis succendit Castora Phoebe,
<br />Pollucem cultu non Helaira soror;
<br />non, Idae et cupido quondam discordia Phoebo,
<br />Eueni patriis filia litoribus;
<br />nec Phrygium falso traxit candore maritum
<br />avecta externis Hippodamia rotis:
<br />sed facies aderat nullis obnoxia gemmis,
<br />qualis Apelleis est color in tabulis.
<br />non illis studium fuco conquirere amantes:
<br />illis ampla satis forma pudicitia.
<br />non ego nunc vereor ne sis tibi vilior istis:
<br />uni si qua placet, culta puella sat est;
<br />cum tibi praesertim Phoebus sua carmina donet
<br />Aoniamque libens Calliopea lyram,
<br />unica nec desit iucundis gratia verbis,
<br />omnia quaeque Venus, quaeque Minerva probat.
<br />his tu semper eris nostrae gratissima vitae,
<br />taedia dum miserae sint tibi luxuriae.
<br />
<br />
<br />Por que tens tanto prazer, vida minha, em andar com os cabelos enfeitados,
<br />em fazer ondular as leves pregas do teu traje, de tecido de Cós?
<br />Por que tens tanto prazer em inundar os cabelos com mirra de Orontes
<br />e vender-te por presentes estrangeiros?
<br />Por que tens tanto prazer em trocar tua beleza natural por um luxo comprado
<br />e em não permitir que teus membros brilhem com seus próprios dotes?
<br />Crê-me: nenhum cosmético é necessário ao teu semblante;
<br />o Amor é nu e não ama os artifícios da beleza.
<br />Observa as cores formosas que a terra produz
<br />para que as heras, espontaneamente, cresçam mais belas;
<br />para que, nas grutas abandonadas, o medronheiro surja mais formoso
<br />e as águas indóceis saibam percorrer o seu caminho.
<br />As praias atraem, matizadas com seixos nativos,
<br />e os pássaros, sem aprender,cantam com doçura maior.
<br />Não foi assim que Febe, a filha de Leucipo, inflamou o coração de Cástor;
<br />não foi pela beleza cultivada que Hilaíra, sua irmã, inflamou o de Pólux;
<br />não foi assim que a filha de Eveno, na praia de seu país,
<br />foi motivo de discórdia para Idas e o cúpido Febo;
<br />não foi com a falsa brancura de uma tez pintada que Hipodâmia,
<br />raptada por um carro estrangeiro, conquistou um esposo frígio:
<br />seu rosto não devia nada às pedras preciosas;
<br />tal é seu aspecto nos quadros de Apeles.
<br />Nenhuma delas teve a intenção de conquistar o amante de forma vulgar;
<br />nelas, o grande pudor já era suficiente formosura.
<br />Não tenho receio de ser para ti menos do que todos estes.
<br />Se uma mulher agrada um único homem, ela já é enfeitada
<br />principalmente quando Febo te oferece seus versos
<br />e a jovial Calíope, sua lira aônia.
<br />Não te falta a graça de palavras belas
<br />e tudo que Vênus e Minerva aprovam.
<br />Serás sempre o encanto de minha existência
<br />desde que sintas repulsas por todo esse luxo infeliz.
<br />
<br />Tradução: Zélia de Almeida Cardoso. In: NOVAK, M.da G. & NERI,M.L.(org.) Poesia Lírica Latina. SP: Martins Fontes. 2003.
<br />Fonte: http://primeiros-escritos.blogspot.com/2008/07/por-que-tens-tanto-prazer-vida-minha-em.html
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />[Volta à Página Principal]
<br />Satyricon - Petrónio
<br />Por: Hugo Santos
<br />Titus Petronius Niger é, por certo, o autor que hoje conhecemos como Petrónio: a generalidade dos estudiosos considera espúrio o nome Gaius, proposto por Tácito. Terá sido governador em Bitínia e, mais tarde, cônsul. Nero tê-lo-á acolhido na sua corte, como elegantiae arbiter (árbitro de elegâncias), daí a designação Arbiter por que é frequentemente conhecido. Segundo Tácito, «Os dias passava-os ele mergulhado no sono e as noites nas ocupações e prazeres da vida.» (p.20) Terá morrido no ano 66 da nossa era, acusado de conspiração e levado ao suicídio por Nero.
<br />O Satyricon (que inspirou o filme homónimo de Fellini) chegou até nós em forma fragmentária, uma vez que se perderam vários dos livros que comporiam a totalidade da obra. Esta é a primeira tradução (havia, pelo menos, duas anteriores: a de Jorge de Sampaio, Europa-América; e a de Carlos Grifo, Editorial Presença) feita directamente a partir do latim original e esteve a cargo – em boa hora! – de Delfim Leão, docente da Universidade de Coimbra, que, entre outras obras, traduziu Aristóteles, publicou uma tradução de Sólon, acompanhada de vasto estudo, e verteu Plutarco).
<br />Este conjunto de ‘livros das lascívias à maneira dos sátiros’ (Satyricon Libri) relata o percurso de Encólpio, narrador na primeira pessoa, e o seu companheiro e amante, Ascilto, a quem se junta o jovem Gíton. As duas personagens principais simbolizam, de certa forma, a juventude literata e algo diletante do tempo de Nero – «E que mais podia fazer, meu grande parvalhão, se já estava a morrer de fome? Ficar a ouvir grandes sentenças, que é como quem diz o tilintar dos copos e interpretação dos sonhos?» (p.36) O seu desregramento irónico assoma na escrita, fortemente realista, que confere ao Satyricon uma frescura e uma actualidade impressionantes.
<br />Central na narrativa – entrecortada pelo estilo rápido e pela fluidez da narração e ainda pelas lacunas no texto – é o chamado «Banquete de Trimalquião», tão célebre que, por vezes, é editado em separado. Trimalquião, escravo liberto, é o típico novo-rico, desejoso de ostentar e ofuscar com a sua recente riqueza. Juntamente com a mulher, Fortunata, compõe um quadro em que se evidenciam os dotes críticos e jocosos do autor – «Portanto, comprei agora ao miúdo alguns alfarrábios avermelhados, pois quero que ele prove umas lascas de direito para uso da casa. É uma coisa que dá pão. De letras já está infestado que chegue.» (p.82) Juntamente com o poeta Eumolpo, Encólpio e Ascilto navegam para o Sul de Itália, em Crotona. Num trecho particularmente curioso, o poeta expõe a sua visão sobre a poesia épica, num longo poema (situação recorrente ao longo da obra, a interpolação de composições poéticas) que intercala com a ficção e em que o vate narra a queda de Tróia e a Guerra Civil. Os viajantes acabam por naufragar. Na sequência desse percalço, seguem-se diversas peripécias de carácter amoroso, eivadas de realismo, mas também de subtis descrições ardorosas – «Quem impede ao corpo de inflamar-se na tepidez de um leito?» (p.225). O fim da obra encerra ainda uma reviravolta diegética curiosa: Encólpio, que sempre alardeara proezas sexuais, é acometido por uma impotência que apenas Mercúrio consegue resolver. Eumolpo, por seu turno, na sequência de uma farsa em que se fizera passar por rico proprietário, lavra o seu testamento, com momentos de invulgar intensidade e de um poder imagético notáveis – «Todos os que são contemplados no meu testamento, à excepção dos meus libertos [na verdade, inexistentes…], só entrarão na posse dos bens que lhes leguei com esta condição: cortarem em pedaços o meu corpo e, na presença do povo, o devorarem...» (p.241)
<br />Em Satyricon cabem a peripécia; os giros da linguagem, do registo popular – «– Mas eu já te servi… rapaz, e tu foste o único a emborcar o remédio todo?!» (p.48) – até aos píncaros da reflexão – «É semelhante a maneira como a fúria toma assento nos corações: agarra-se aos espíritos agrestes, mas escorre pelas mentes instruídas.» (p.162) «Se deitarmos bem contas à vida, por todo o lado há naufrágio!» (p.193) –; a prosa intercalada com a poesia – «Que noite aquela, deuses e deusas,/ que leito suave. Unidos no calor da paixão,/ trocámos entre um e outro, através dos lábios,/ as nossas almas errantes. Adeus cuidados/ mortais. Assim comecei eu a morrer.» (p.133) –; um documento histórico-literário de invulgar importância. Em suma, «um caso especial e único, quer pelo tema, quer pela estrutura, quer pelo estilo» (p.9).
<br />Hugo Santos, 2007
<br />
<br />Satyricon
<br />Viagem ao "baixo"-Roma*
<br />Ariovaldo Augusto Peterlini
<br />Paulo Leminski está entre os tradutores que amam o perigo. Depois de Joyce, Petrônio. O Satyricon (texto latino escrito provavelmente sob Nero, por um suposto Petrônio), é um desafio que impõe audácias. E como é audacioso o artista que há em Paulo Leminski. "Entre trair Petrônio a trair os vivos", escreve ele no posfácio, "escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém". Leminski sabe que as traduções das obras clássicas greco-romanas ao nosso dispor trazem, de comum, ao leitor atual, de língua para língua, o escritor há centenas de anos, com sacrifício quase sempre da estrutura da língua receptora, em benefício da língua a do estilo de origem. Leitura restrita a minorias interessadas, já que supõe adaptação cultural. Mas Leminski, atendendo talvez a Henri Meschonnic (Propostas para uma Poética da Tradução), pretendeu "produzir um texto original em língua de chegada, homólogo ao texto da língua de partida".
<br />No Satyricon, a variedade dos registros de língua corre desde a prosa culta até o vulgar do calão, sem falar nos trocadilhos a no raro de certo vocabulário só ali deparável. Apostando em mergulhar o leitor moderno na obra antiga, Leminski não hesita em "transcriar", em preencher e, mesmo, em reduzir, se disso necessita para trazer a seu leitor um Petrônio tão acessível a agradável quanto deve ter sido aos de sua época. "Esta não é uma tradução para especialistas. É um compromisso entre uma fidelidade essencial (o grifo é meu) ao texto latino do Satyricon às vezes até literal, e o não menos legítimo compromisso de envolver diretamente o leitor de hoje na vida de um texto dois mil anos vivo". "No caso dos poemas, mantive o sentido geral, aliviando-os, porém, do pesado lastro de alusões mitológicas que, evidentemente, só faziam sentido para um leitor da Antigüidade. Ou, hoje, para um especialista, versado em cultura greco-latina". Coerente com sua afirmação, não vacila em reduzir os 295 pesados versos originais do poema sobre a Guerra Civil a apenas sete. Mas, ao transformar os textos poéticos, visando à melhor sintenia com o leitor atual, aí então avulta sobremaneira a experiência e a arte de Leminski. Melhor, ler a sentir. Petrônio compõe uma paisagem ideal para o encontro de Encolpo a Circe: "Ondulante o plátano estendera as sombras estivais a assim também fizeram Dafne, coroada de bagas, a os trêmulos ciprestes a os pinheiros de contorno recortado na copa buliçosa. Por entre eles brincava, com águas errantes, um riacho espumoso, rolando os seixos na múrmura linfe." Leminski o "transcria", aligeirando-lhe os versos: "Lá onde o pinho e o plátano/ Entrelaçam suas ramagens,/ Lá onde o perfume das flores/ E o frescor das águas/ São os principais personagens/ Onde o cipreste ondula na brisa/ Que leva embora o canto dos pássaros..." (capítulo 126). Vezes há, porém, em que o aspecto paródico do original fica prejudicado, como, por exemplo, na passagem em que Encolpo, revoltado, interpela teatralmente o próprio membro, que se dobra teimoso na flacidez da impotência. Petrônio, valendo-se da técnica do centão, insere, aí, faceto, três versos de Vergílio, visando à paródia. Isso escapará ao leitor comum.
<br />No trabalho de reviver o texto milenar, Leminski sabe escolher a primor a expressão moderna exata a agradável, quer, na tradução, quer nos comentários: "E um bofe, não uma mulher. Mas, enfim, quem nasce na senzala, nunca sonha com a casa-grande". (74). "A cultura 'nouveau riche' de Trimalcião é um verdadeiro 'samba do crioulo doido'." (52) Tão identificado com Petrônio me parece Leminski, que a tradução, a meu ver, só perde impulso em umas dez páginas do capítulo 11, exatamente um texto que deve ser apócrifo, pois não consta de excelentes edições modernas como, por exemplo, a da Las Belles Lettres.
<br />Prós a contras pesados, o saldo é em extremo positivo. Tradução planejada à luz de objetivo específico e... com dedo de artista. Liberado de compromissos ferozes com os originais latinos, o tradutor ousa a "transcriação", preenchendo as lacunas do original a religando as malhas rotas do entrecho; facilita, enfim, os poemas a reduz ao mínimo a mitologia. Algumas falhas, como a ausência do capítulo 110 do original e a distração da passagem, só numérica, do capítulo 129 para o 135, poderão ser retificadas em próxima edição.
<br />A bem da verdade, Leminski manteve todos os aspectos do Satyricon: está ali a novela erótica, a sátira menipéia, o mimo, a fábula milésia. Saem machucados, mas de leve, a crítica literária e a paródia, muito ligados que estão ao conhecimento especializado da cultura clássica antiga. Com polêmica ou sem ela, obra imprescindível a quem traduz do latim a do grego. Difícil dizer até que ponto o Satyricon de Leminski é o Satyricon de Petrônio, mas certo estou de que, se Petrônio fosse contemporâneo nosso a escrevesse, hoje, o Satyricon, escreveria provavelmente como Leminski.
<br />
<br />Ariovaldo Augusto Peterlini
<br />*OBS.: Publicado originalmente com o título "Viagem ao "baixo"-Roma", Folha de S. Paulo, 1985.
<br />Fonte: http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/kamiquase/ensaio37.htm
<br />
<br />Resenha: A pobreza no Satyricon de Petrônio.
<br />Livro de : FAVERSANI, Fábio.
<br />Resenha de:Marilena Vizentin
<br />Mestre-História, USP
<br />A reflexão sobre os Estudos Clássicos coloca-se como fundamental na construção de uma História Cultural do Ocidente; e já que o Brasil se insere dentro deste quadro, é razoável esperar que nós, brasileiros, possamos produzir algo sobre este momento do pensar em nossa própria cultura.
<br />É aproximadamente com esta colocação que Fábio Faversani, autor da obra em epígrafe, inicia o trabalho sobre o qual nos deteremos nesta resenha. Fruto de sua dissertação de mestrado, A pobreza no Satyricon de Petrônio, lançada recentemente por uma iniciativa da Editora da Universidade Federal de Ouro Preto, representa uma contribuição de grande relevância para o avanço dos estudos sobre a Antigüidade Clássica no Brasil.
<br />Malgrado o número bastante reduzido da tiragem (apenas 90 exemplares), acreditamos que a publicação e divulgação deste texto causará um impacto bastante positivo na comunidade científica brasileira que se dedica a este ramo da História. Além disso, trata-se de um estudo que se insere dentro de uma nova frente de trabalhos sobre História Antiga no Brasil, os quais buscam uma maior autonomia em relação à historiografia produzida na Europa e Estados Unidos, bem como uma nova abordagem de conceitos há muito cristalizados. Nesse sentido, esta nova "geração" de historiadores procura uma melhor inteligibilidade de problemas inerentes à época atual a partir do estudo de sociedades antigas, de forma a contribuir para a construção de uma identidade cultural nacional própria.
<br />A obra de Faversani, deste modo, procura responder à seguinte questão: "(...) as posições sociais são determináveis pela posição dos agentes nas relações de poder?" Na tentativa de respondê-la, o autor dedica-se à análise de uma das obras mais polêmicas produzidas pelo mundo antigo, seja pelo seu conteúdo, seja pelo estilo único com que foi redigida: o Satyricon, de Petrônio. A partir dela, reflete sobre os livres pobres em Roma à época do Principado e sobre as relações diretas de poder engendradas por estes personagens. Sua primeira conclusão é a de que a posição dos agentes sobre os quais se detém é determinável pela sua inserção na dinâmica das relações sociais e não apenas pelo controle deste ou daquele atributo. Discute, para tanto, ao longo dos capítulos, questões que se referem diretamente à problemática da obra latina; questões de fundo mais teórico, como os conceitos de "classe" e "estamento"; e o tratamento dado pela historiografia aos livres pobres do Império romano. Ademais, utiliza-se de instrumentos analítico-conceituais próprios de forma a efetivar sua proposta inicial de trabalho.
<br />Estruturada desta maneira, Faversani dá início à sua exposição enfocando primeiramente a obra latina sob múltiplos aspectos. Assim, propõe um resumo bastante breve e esquemático de seu conteúdo, dividindo-o em cinco partes, de modo a colocar o leitor a par da história ali narrada. A seguir, passa para os problemas, a nosso ver bastante comuns quando se trata de um texto antigo, relativos à data e autoria do mesmo. Nesse sentido, perfaz, com bastante acuidade, todo o caminho de estudos realizados com esta finalidade, ressaltando a grande importância dos próprios códices para a definição destas questões. No sentido de elucidar o nome de seu verdadeiro autor, tece uma série de argumentos que, se de início nos parecem relativamente confusos, aos poucos vão se definindo mais claramente. Identifica, pois, C. Petrônio Arbiter como o verdadeiro autor em questão.
<br />No concernente à data em que foi escrito o Satyricon, Faversani apresenta os diferentes meios pelos quais se procurou chegar a um período aproximado, quais sejam: recursos lingüísticos, econômicos e estilísticos. A seu ver, entretanto, nenhuma das datas propostas pôde solucionar verdadeiramente o embate, o que o leva a tomar o termo hortus pompeianus como chave para a elucidação do mesmo1.
<br />Outros pontos sobre os quais ainda tece algumas considerações referem-se aos locais em que se ambientam os episódios narrados e as condições em que foi escrita a história. Para Faversani, a definição precisa das cidades citadas no texto latino, para seu estudo, é absolutamente irrelevante; basta-lhe saber que se tratava de um ambiente urbano do centro-sul italiota, notadamente cidades de porte médio. Quanto ao contexto em que teria sido escrito, deixa alguns aspectos a desejar, pois pressupõe que o leitor esteja bastante familiarizado com o período retratado, não entrando em maiores detalhes sobre os aspectos políticos e econômicos — fundamentais pelo que se pôde depreender da análise subseqüente. Este fato, por sua vez, produz uma visão — errônea — da existência de um mundo à parte, composto apenas pelos livres pobres, como se eles não interagissem e não fizessem parte de toda uma estrutura social já estabelecida.
<br />Finalmente, para encerrar este capítulo, Faversani esboça a trajetória da tradição textual petroniana atentando para as falsificações existentes acerca do Satyricon (o texto que nos chegou não está completo), e alertando para o uso inadequado destas falsificações, principalmente em edições brasileiras (segundo ele, todas elas dão o texto como concluído). Este item serve de mote para a introdução do estilo e das intenções petronianas. Para o autor, Petrônio, ao pintar a realidade que o cerca de forma cômica e parcial, acaba controlando o que seus leitores vêem de forma direta, daí a dificuldade, hoje, em se compreender e nomear seu estilo. Chega-se à conclusão, portanto, de que se trata de um estilo original e inédito, na medida em que faz uso de inúmeros gêneros literários já existentes. Sua exposição, mesmo que em tom popularesco, apresenta criticamente uma "realidade afastada do natural e inegavelmente em crise", daí o recurso adotado por Petrônio, qual seja, o de apontar para diferentes perspectivas na busca de outras tantas soluções.
<br />O segundo capítulo, a seu turno, tratará dos aspectos teórico-metodológicos e dos instrumentos analítico-conceituais a serem utilizados na posterior análise da fonte, cujo foco de preocupação será apenas a pobreza construída no Satyricon. Tendo isto em vista, Faversani coloca a abordagem da historiografia com relação ao tema escolhido, centrando sua atenção em historiadores como Rostovtzeff, Catherine Salle, Paul Veyne, E. Badian e Ramsey MacMullen. Alguns deles encontram o que ele chamou, bastante a propósito, de "consoladora solução", isto é, a idéia do panem et circenses, na qual os pobres viveriam despreocupadamente à sombra das dádivas dos ricos... Os argumentos subseqüentes, em função disso, procuram recolocar a questão das condições de vida dos pobres — verdadeiramente "sofríveis" —, concluindo que a plebe não poderia sobreviver sem qualquer tipo de estratégia que lhe garantisse ao menos o sustento.
<br />Esta constatação leva Faversani a uma discussão sobre dois conceitos hegemônicos na historiografia social: classe e estamento. Sua abordagem dar-se-ia pelo fato de constituírem elementos bastante importantes para a compreensão da posição social ocupada por Trimalchio, um dos principais personagens da narrativa petroniana e comumente o mais analisado pela historiografia. Seria Trimalchio um típico representante de uma classe ascendente, vinculada ao mercado, e concorrente ou aliada plausível da aristocracia fundiária romana ou, ao contrário, seria típico na demonstração de que os libertos não podiam constituir um grupo hegemônico ou serem admitidos naqueles já existentes, tanto por limitações jurídicas, quanto culturais? É o que Faversani procurará demonstrar por meio da análise dos dois conceitos acima referidos. Tanto um quanto o outro, infere, são ou insuficientes para a análise da sociedade romana, ou eficientes apenas para a compreensão da elite senatorial, e não em relação aos libertos. Crê, portanto, que a solução para todos os impasses apontados esteja na "(...) criação de uma categoria analítica alternativa, capaz de satisfazer as necessidades de compreensão das potencialidades ou efetiva ocorrência de ações coletivas dos agentes sociais".
<br />Nesse sentido, Faversani vai se ocupar do que chamou de "relações diretas de poder". Retoma, para tanto, a discussão encetada a partir da década de 60 pelos historiadores ingleses (P. Gansey, R. Saller, A. Wallace-Hadrill, C. Whitaker, entre outros) e dá continuidade à mesma aumentando as possibilidades de tipos de relações diretas de poder e observando — daí sua inovação —, as redes de ordenação e controle que, em conjunto, elas estruturam. Ademais, respeita a multiplicidade qualitativa destas relações, tratando-as como tipologicamente diferenciadas, sem privilegiar um único tipo. Inclui, assim, diferentes categorias que se inter-relacionam, tais como clientes, libertos, protegidos, amigos, protetores, senhores e patronos, inferindo ser a extensão das redes entre eles muito variável e dependente da capacidade de cada agente em estabelecer ligações.
<br />Na "difícil busca de uma idéia de pobreza", portanto, Faversani conclui este capítulo com um panorama de como os romanos da elite encaravam seus contemporâneos pobres e com uma nova abordagem das categorias utilizadas pela historiografia para classificar e definir a pobreza. Busca, a partir disso, uma melhor visualização de como os pobres se colocavam diante do universo dos ricos e de que maneira interagiam com ele. Assim, segundo o autor, existiria um grande debate a respeito da idéia de pobreza, mais do que sobre o pobre enquanto agente social em si, o que não contribuiria em muito na reconstrução dos mecanismos de produção e reprodução da vida social criados pelos pobres. Nesse sentido, aponta para as dificuldades de se delimitar conceitualmente a pobreza, passando a discutir alguns estudos que, mesmo não tendo como tema central a Antigüidade Clássica, procuraram esclarecer, ou pelo menos levar em consideração a questão da pobreza.
<br />Em "As relações de poder no Satyricon", temos finalmente a análise dos agentes sociais presentes na narrativa de Petrônio. Em relação a isso, e visando a uma maior inteligibilidade por parte do leitor, Faversani divide o texto latino em "episódios" (mais precisamente quatro), nos quais buscará conclusões de validade mais geral para esta fonte. Estuda, para tanto, cada um deles por ordem crescente de complexidade, levando em conta sua extensão, as redes de poder minimamente independentes, o número de agentes sociais envolvidos e os dados que levam à caracterização destes. Antes de iniciar sua análise acerca destas questões, entretanto, elabora um estudo dos protagonistas do Satyricon, pois cada um deles participa de mais de um episódio e sua repetição, a seu ver, poderia se revelar enfadonha.
<br />A partir de sua caracterização, Faversani traça as diversas estratégias de sobrevivência empreendidas por estes personagens, bem como as relações sociais encetadas pelos mesmos. Disso infere que tais estratégias teriam um caráter mais defensivo, ao mesmo tempo em que funcionavam como mecanismos de escape para as faltas cometidas ao longo de seus estratagemas. Daí as relações sociais que estabeleciam não poderem, de forma alguma, ser duradouras, visto a iminência de serem reconhecidas por outrem.
<br />Na análise que se segue dos episódios ("de Quartilla", "Viagem a Crotona", "Farsa de Crotona" e "Cena Trimalchionis"), observa-se sempre uma breve síntese de cada um deles e uma primeira identificação dos principais personagens envolvidos no excerto em questão. Dentre eles, Faversani detém-se sobretudo no último episódio elencado, destacando a figura de Trimalchio e sua atuação perante os convivas do lauto banquete que oferece. Para tanto, apresenta "os olhares da historiografia" sobre este personagem, verificando as "tipicidades" atribuídas a ele e as diferentes concepções de sociedade romana que motivaram a criação dos "típicos Trimalchios". A seu ver, Trimalchio seria típico apenas de como as elites viam os libertos ricos e não de como eles de fato poderiam ser, de forma que uma análise mais coerente deveria levar em consideração também as suas relações sociais e não apenas os estereótipos elaborados tanto pela epigrafia produzida pelos próprios romanos, quanto pela tradição textual remanescente.
<br />Em vista disso, sob o "prisma das relações diretas de poder", Faversani vai analisar a figura de Trimalchio ressaltando a multiplicidade de personagens que atuam na Cena Trimalchionis e seu verdadeiro papel em relação a seu anfitrião, aspectos estes que considera extremamente importantes para a construção da personalidade do mesmo. Estabelece, assim, uma tipologia, dividindo-os entre comensais (em sua maioria libertos), indivíduos mencionados pelos comensais, e servidores (pertencentes à familia trimalchionis), de maneira a reconstruir as inter-relações estabelecidas entre eles. Ao examinar cada uma destas "categorias" — que convergem, direta ou indiretamente para uma única pessoa, ou seja, Trimalchio —, estabelece, por fim, um quadro geral de relações de poder que os envolvem, cumprindo, sem dúvida alguma, os objetivos a que se propusera no início de seu trabalho.
<br />Na busca de uma melhor compreensão da pobreza, portanto, Faversani acaba confirmando "a importância das relações diretas de poder como elemento ordenador e estruturador da sociedade romana" — ao menos daquela cuja imagem Petrônio nos permitiu vislumbrar —, por meio de instrumentos analítico-conceituais próprios que, à primeira vista, pareceram-nos absolutamente pertinentes. Talvez, como o próprio autor afirmou, estes instrumentos não tenham a mesma validade junto a períodos históricos mais abrangentes, daí a necessidade de se propor novas alternativas de análise que possam contemplar também outras questões, além da pobreza.
<br />Ao enfocar os livres pobres do período neroniano, todavia, Faversani coloca-nos diante de questões que, malgrado os muitos séculos decorridos, ainda se revelam preocupantes. Nesse sentido, a utilização que faz de exemplos tirados de outros contextos históricos não é fortuita. Apenas revela ser a pobreza um problema latente, não só para os que a observam de longe — sejam senadores romanos ou acadêmicos —, mas sobretudo para os que dela fazem parte e que sobrevivem, ainda, graças àquelas mesmas estratégias (guardadas as devidas proporções). Procurar investir em outras "alternativas de análise", como a aqui esboçada, embora possa parecer muito pouco perante a injusta realidade brasileira, sem dúvida muito auxilia na construção de "uma visão do passado a serviço da transformação (...) de nossa sociedade". O caminho escolhido, convenhamos, não é dos mais fáceis, mas até aqui, parece-nos, andou-se bem!
<br />NOTAS
<br />1Segundo Faversani, só teria sentido possuir um hortus pompeianus antes de 79 d.C., ano em que Pompéia é soterrada pela erupção do Vesúvio. Deste modo, a obra só poderia ser anterior a esta data.
<br />Resenha recebida em 06/2000. Aprovada em 11/2000.
<br />
<br />SATYRICON - Fellini
<br />
<br />Sinopse
<br />Esta é a livre adaptação de Fellini da famosa peça de Petronius, que faz uma crônica da vida na Roma antiga. Encolpio (Martin Potter) e seu amigo Ascilto (Hiram Keller) disputam o afeto do jovem Gitone (Max Born). Quando Encolpio é rejeitado, ele começa uma jornada na qual encontra todos os tipos de pessoas e de acontecimentos, entre eles uma orgia e um desfile de prostitutas na Roma antiga. Durante a orgia, organizada por Trimalchio (Mario Romagnoli), encontra um ex-escravo que menosprezou a mulher em troca dos prazeres oferecidos por um jovem garoto.
<br />O filme é estruturado em uma narrativa truncada e é uma reflexão sobre a sexualidade masculina e suas variações. Cada trecho do filme trata de uma delas, como o homossexualismo, e outras questões delicadas que envolvem o sexo. Apesar de ser baseado na sociedade da Roma antiga, Satyricon reflete também um momento de caos pelo qual a sociedade da década de 60 vivia. Informações Técnicas
<br />Título no Brasil: Satyricon de Fellini
<br />Título Original: Fellini - Satyricon
<br />País de Origem: França / Itália
<br />Gênero: Drama
<br />Classificação etária: 16 anos
<br />Tempo de Duração: 138 minutos
<br />Ano de Lançamento: 1969
<br />Site Oficial:
<br />Estúdio/Distrib.: Mais Filmes
<br />Direção: Federico Fellini
<br />Elenco
<br />Martin Potter ... Encolpio
<br />Hiram Keller ... Ascilto
<br />Max Born ... Gitone
<br />Salvo Randone ... Eumolpo
<br />Mario Romagnoli ... Trimalcione
<br />Magali Noël ... Fortunata
<br />Capucine ... Trifena
<br />Alain Cuny ... Lica
<br />Fanfulla ... Vernacchio
<br />Danika La Loggia ... Scintilla
<br />Giuseppe Sanvitale ... Abinna
<br />Genius ... Liberto arricchito
<br />Lucia Bosé ... La matrona
<br />Joseph Wheeler ... Il suicida
<br />Hylette Adolphe ... La schiavetta
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />Petrônio
<br />Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
<br />Petrônio ou Petronius foi um escritor romano, mestre na prosa da Literatura latina, satirista notável, autor de Satíricon. Não existem provas seguras acerca da identidade de Petrônio, mas é hoje quase certo que se trata de Gaius Petronius Arbiter ou Titus Petronius (c.27-66 AD), distinto frequentador da corte do imperador Nero.
<br />Vida
<br />Petrônio nasceu em Marselha no de 14 a.C. Nascido de uma família aristocrática e abastada, mostrou toda sua competência política ao ocupar os cargos de governador e depois o de cônsul da Bitínia, atual Turquia. Depois ocupou o cargo de conselheiro de Nero, sendo nomeado arbiter elegantiae (árbitro da elegância, 63). Em 65, acusado de participar na conspiração contra o imperador e caindo em desfavor, acabou com sua estranha vida, uma mistura de atividade e de libertinagem, no ano de 66 d.C., cometendo um lento e relaxado suicídio, abrindo e fechando as veias, enquanto discursava sobre temas joviais, mandando para Nero um documento no qual detalhava seus abomináveis passatempos.
<br />Sobre ele, na famosa obra O Anais, o historiador Tácito traçou uma imagem viva, que vale a pena ser lembrada e transcrita.
<br />Petrônio consagrava o dia ao sono, e a noite aos deveres e aos prazeres. Se outros chegam à fama pelo trabalho, ele adquiriu-a pela sua vida descuidada. Não tinha a reputação de dissoluto ou de pródigo, como a maioria dos dissipadores, mas a de um voluptuoso refinado em sua arte. A própria incúria, o abandono que se notava nas suas ações e nas suas palavras, davam-lhe um ar de simplicidade, emprestando-lhe um valor novo. Contudo, procônsul na Bitinia e depois cônsul, deu prova de vigor e de capacidade. Voltando aos seus vícios ou à imitação calculada dos vícios, foi admitido entre os poucos íntimos de Nero e tornou-se na corte o árbitro do bom gosto: nada mais delicado, nada mais agradável do que aquilo que o sufrágio de Petrônio recomendava ao príncipe, sempre embaraçado na escolha.
<br />Nasceu daí a inveja de Tigelino, o prefeito do pretório e poderoso conselheiro de Nero, que receava um concorrente mais hábil do que ele na ciência da volúpia. Conhecendo a crueldade do imperador, sua qualidade dominante, insinuou que Petrônio era amigo do conjurado Flávio Scevino; em seguida comprou um delator entre os escravos do acusado, sendo-lhe vedada qualquer defesa e mandando prender membros da sua família. O imperador encontrava-se então na Campânia e Petrônio tinha-o acompanhado até Cumes, onde recebeu ordem de ficar. Ele, sabendo que o seu destino já estava marcado, repeliu tanto o temor quanto a esperança, mas não quis se afastar bruscamente da vida. Abriu as veias, fechou-as depois, abrindo-as novamente ao sabor da sua fantasia, falando aos amigos e ouvindo por sua vez, mas nada havia de grave nas suas palavras, nenhuma ostentação de coragem; não quis ouvir reflexões sobre a imortalidade da alma, nem sobre as máximas dos filósofos: pediu que lhe lessem somente versos zombeteiros e poesias ligeiras. Recompensou alguns escravos e mandou castigar outros; chegou a passear, entregou-se ao sono a fim de que sua morte, ainda que provocada, parecesse natural. Não adulou no seu testamento Nero ou Tigelino ou qualquer outro poderoso do dia, como fazia a maioria dos que pereciam. Mas, em nome de jovens impudicos ou de mulheres perdidas, narrou as davassidões do príncipe e os seus refinamentos; mandou o escrito a Nero, fechado, imprimindo-lhe o sinete de seu anel, que destruiu a fim de que não fizesse vítimas mais tarde.”
<br />Era esse o ambiente da corte de Nero. Porém havia nela um personagem desse mundo cheio de contrastes – Petrônio. A maioria de seus críticos admite que foi ele o “arbiter elegantiarum” da época, o autor do “Satiricon”. E entre os muitos estudiosos interessados no assunto houve inclusive opiniões divergentes, mas o parecer mais acertado parece ter sido o do estudioso italiano Marchesi: “Petrônio, nos últimos momentos da vida, teria acrescentado alguma página ao seu romance, enviando-a ao imperador, feroz e desequilibrado, como presente de uma vítima aristocrática e refinada. O filósofo Sêneca enviou alguma página de moral; Petrônio, a pintura e a descrição daquele mundo terrivelmente corrupto”. O Satiricon não nos chegou íntegro e sim fragmentário. Mesmo assim, o que ficou do mesmo basta para considerar as páginas de Petrônio como um monumento literário de incomparável beleza artística e de inestimável valor para a reconstrução da vida particular da antiga Roma.
<br />(Extraído do prefácio do prof. Giulio D. Leoni).
<br />Obra
<br />Sua única obra remanescente, o Satíricon, uma história mundana de entretenimento, nada fala diretamente sobre a vida do autor.
<br />De Petrônio sobraram os livros XV e XVI de um longo romance, chamado de “Saturae” e que, sob o nome de “Satyricon” parodia os romances gregos, sentimentais e sensacionais, que estavam na moda. Em vez de heróis em extraordinárias aventuras, temos os feitos pouco recomendáveis de três jovens patifes: Encolpius, que conta a história, Asciltos e Giton. Mas, o mais conhecido episódio, que é também o menos censurável, é o famoso “Jantar de Trimalchão”, uma festa elaborada na mansão de um rico cidadão, um típico “self-made man”. O estilo varia entre uma retórica pretenciosa e uma gíria das mais vulgares. Mas, apesar de todas as críticas, em razão da língua, do humor e do realismo, o Satiricon é uma das mais notáveis obras da literatura latina. (Guido Definetti)
<br />
<br />Matrona Ephesi / A Matrona de Éfeso
<br />Petrônio, séc. I
<br />Tradução de Mauri Furlan
<br />CX. Ceterum Eumolpos, et periclitantium advocatus et praesentis concordiae auctor, ne sileret sine fabulis hilaritas, multa in muliebrem levitatem coepit iactare: quam facile adamarent, quam cito etiam filiorum obliviscerentur, nullamque esse feminam tam pudicam, quae non peregrina libidine usque ad furorem averteretur. Nec se tragoedias veteres curare aut nomina saeculis nota, sed rem sua memoria factam, quam expositurum se esse, si vellemus audire. Conversis igitur omnium in se vultibus auribusque sic orsus est:
<br />CXI. Matrona quaedam Ephesi tam notae erat pudicitiae, ut vicinarum quoque gentium feminas ad spectaculum sui evocaret. Haec ergo cum virum extulisset, non contenta vulgari more funus passis prosequi crinibus aut nudatum pectus in conspectu frequentiae plangere, in conditorium etiam prosecuta est defunctum, positumque in hypogaeo Graeco more corpus custodire ac flere totis noctibus diebusque coepit. Sic adflictantem se ac mortem inedia persequentem non parentes potuerunt abducere, non propinqui; magistratus ultimo repulsi abierunt, complorataque singularis exempli femina ab omnibus quintum iam diem sine alimento trahebat. Adsidebat aegrae fidissima ancilla, simulque et lacrimas commodabat lugenti, et quotienscumque defecerat positum in monumento lumen renovabat.
<br />Una igitur in tota civitate fabula erat: solum illud adfulsisse verum pudicitiae amorisque exemplum omnis ordinis homines confitebantur, cum interim imperator provinciae latrones iussit crucibus affigi secundum illam casulam, in qua recens cadaver matrona deflebat. Proxima ergo nocte, cum miles, qui cruces asservabat, ne quis ad sepulturam corpus detraheret, notasset sibi lumen inter monumenta clarius fulgens et gemitum lugentis audisset, vitio gentis humanae concupiit scire quis aut quid faceret. Descendit igitur in conditorium, visaque pulcherrima muliere, primo quasi quodam monstro infernisque imaginibus turbatus substitit; deinde ut et corpus iacentis conspexit et lacrimas consideravit faciemque unguibus sectam, ratus (scilicet id quod erat) desiderium extincti non posse feminam pati, attulit in monumentum cenulam suam, coepitque hortari lugentem ne perseveraret in dolore supervacuo, ac nihil profuturo gemitu pectus diduceret: “Omnium eumdem esse exitum et idem domicilium” et cetera quibus exulceratae mentes ad sanitatem revocantur.
<br />At illa ignota consolatione percussa laceravit vehementius pectus, ruptosque crines super corpus iacentis imposuit. Non recessit tamen miles, sed eadem exhortatione temptavit dare mulierculae cibum, donec ancilla, vini odore corrupta, primum ipsa porrexit ad humanitatem invitantis victam manum, deinde retecta potione et cibo expugnare dominae pertinaciam coepit et: “Quid proderit, inquit, hoc tibi, si soluta inedia fueris, si te vivam sepelieris, si antequam fata poscant indemnatum spiritum effuderis? Id cinerem aut manes credis sentire sepultos? Vis tu reviviscere! Vis discusso muliebri errore! Quam diu licuerit, lucis commodis frui! Ipsum te iacentis corpus admonere debet ut vivas”. Nemo invitus audit, cum cogitur aut cibum sumere aut vivere. Itaque mulier aliquot dierum abstinentia sicca passa est frangi pertinaciam suam, nec minus avide replevit se cibo quam ancilla, quae prior victa est.
<br />CXII. Ceterum, scitis quid plerumque soleat temptare humanam satietatem. Quibus blanditiis impetraverat miles ut matrona vellet vivere, iisdem etiam pudicitiam eius aggressus est. Nec deformis aut infacundus iuvenis castae videbatur, conciliante gratiam ancilla ac subinde dicente: Placitone etiam pugnabis amori?
<br />Quid diutius moror? ne <in>hanc quidem partem [corporis] mulier abstinuit, victorque miles utrumque persuasit. Jacuerunt ergo una non tantum illa nocte, qua nuptias fecerunt, sed postero etiam ac tertio die, praeclusis videlicet conditorii foribus, ut quisquis ex notis ignotisque ad monumentum venisset, putasset expirasse super corpus viri pudicissimam uxorem.
<br />Ceterum, delectatus miles et forma mulieris et secreto, quicquid boni per facultates poterat coemebat et, prima statim nocte, in monumentum ferebat. Itaque unius cruciarii parentes ut viderunt laxatam custodiam, detraxere nocte pendentem supremoque mandaverunt officio. At miles circumscriptus dum desidet, ut postero die vidit unam sine cadavere crucem, veritus supplicium, mulieri quid accidisset exponit: nec se expectaturum iudicis sententiam, sed gladio ius dicturum ignaviae suae. Commodaret ergo illa perituro locum, et fatale conditorium familiari ac viro faceret. Mulier non minus misericors quam pudica: “Ne istud, inquit, dii sinant, ut eodem tempore duorum mihi carissimorum hominum duo funera spectem. Malo mortuum impendere quam vivum occidere.” Secundum hanc orationem iubet ex arca corpus mariti sui tolli atque illi, quae vacabat, cruci affigi.
<br />Usus est miles ingenio prudentissimae feminae, posteroque die populus miratus est qua ratione mortuus isset in crucem.”
<br />A Matrona de Éfeso
<br />[…]
<br />Entrementes, Eumolpo, defensor do arriscar-se e autor da presente reconciliação, para não deixar o riso silenciar por falta de histórias, começou a dizer muitas coisas sobre a leviandade das mulheres: quão facilmente se apaixonariam, quão rápido também se esqueceriam dos filhos, que não haveria nenhuma mulher tão pudica que não pudesse ser levada de um desejo passageiro a uma paixão arrebatadora. Não se serviria das tragédias antigas ou de nomes ilustres desde séculos, mas de um fato produzido em sua época, que nos seria apresentado se quiséssemos escutá-lo. Com os olhos e os ouvidos de todos a ele dirigidos, começou a narrar:
<br />“Certa matrona de Éfeso possuía tanta reputação por sua pudicícia que mesmo as mulheres de povos vizinhos acorriam até ela para admirá-la. Aconteceu, pois, que esta mulher, tendo que enterrar o marido, e não satisfeita com a tradição popular de acompanhar o enterro com os cabelos desgrenhados ou bater no peito descoberto em presença da multidão, ainda acompanhou o defunto até o sepulcro, e tendo sido depositado num jazigo subterrâneo, conforme a tradição grega, pôs-se a guardar e chorar o corpo noites e dias inteiros. Assim permaneceu torturando-se e buscando a morte na abstenção de alimentos, e nem familiares nem amigos conseguiram apartá-la de lá; por fim, mesmo as autoridades públicas acabaram derrotadas e retiraram-se. Deste modo, lamentada por todos, aquela mulher de exemplo ímpar chegava já ao quinto dia sem comida. Acompanhava a infeliz uma fidelíssima escrava, que lhe emprestava suas lágrimas de luto, ao mesmo tempo em que também renovava a candeia colocada no túmulo todas as vezes que arrefecia. Apenas um e mesmo assunto era, assim, comentado em toda a cidade: de que se havia manifestado o único verdadeiro exemplo de pudicícia e de amor, e reconheciam-no homens de todas as classes.
<br />Neste ínterim, o governador da província ordenou que alguns ladrões fossem crucificados nas proximidades do túmulo em que a matrona chorava o recente defunto. Na noite seguinte, o soldado, que vigiava as cruzes para que ninguém pudesse retirar algum corpo e sepultá-lo, notou uma luz que brilhava mais forte entre as tumbas e ouviu um gemido lastimoso. Por um defeito da espécie humana desejou saber quem ou o quê os produzia. Desceu, pois, até o sepulcro, e tendo se deparado com uma belíssima mulher, primeiramente ficou perturbado, como se diante de algo sobrenatural ou de imagens infernais; em seguida, vendo também o corpo que jazia e considerando as lágrimas e o rosto machucado pelas unhas, convenceu-se (evidentemente, do que se tratava) de que a mulher não podia suportar a perda do falecido. Levou então para o sepulcro o seu parco jantar e começou a exortar aquela mulher em prantos a não permanecer numa dor inútil, não partir o coração em gemidos vãos: “A todos cabe o mesmo fim e a mesma morada”, e outras coisas que são ditas para a saúde de espíritos enfermos.
<br />Ela, porém, tocada por aquele consolo obscuro, feriu mais duramente o peito e arrancando cabelos lançou-os sobre o corpo que jazia. O soldado, no entanto, não recuou, mas com a mesma exortação tentou dar algum alimento à pobre mulher, até que a escrava, seduzida pelo aroma do vinho, primeiro estendeu a mão vencida à humanidade daquele tentador, em seguida, reanimada pela bebida e pelo alimento, começou a lutar contra a obstinação de sua senhora: “De que te servirá tudo isso, disse ela, se te deixares consumir pela inanição, se te sepultares viva, se entregares teu espírito inocente antes que o destino o deseje? Crês que entendem isso as cinzas ou as almas sepultas? [Eneida, IV, 35] Volta a viver! Libera-te desta ilusão feminina! Por todo o tempo que te for concedido, goza o privilégio da luz! O corpo mesmo deste que jaz deve te incitar a viver”. Ninguém ouve de má vontade quando é instigado a tomar alimentos ou a viver. Por isso, a mulher, extenuada pelos vários dias em jejum, consentiu em acabar com sua obstinação, e não menos voraz que sua escrava, que fora a primeira a ceder, saciou-se com o alimento.
<br />Mas, já sabeis o que a saciedade humana geralmente costuma provocar. Da mesma forma carinhosa com que o soldado conseguira que a matrona desejasse viver, assim também foi seu ataque à pudicícia desta. E à casta senhora o jovem não lhe parecia em nada feio nem pouco expressivo; e a escrava, intervindo em seu favor, repetia freqüentemente: Lutarás também contra um amor desejado? [Eneida, IV, 38]
<br />Por que retardo por mais tempo? A mulher, na verdade, também não se absteve naquela parte [do corpo], e o soldado vitorioso ganhou uma e outra. Deitaram-se, pois, juntos não só essa noite, que a fizeram de núpcias, mas a seguinte e a terceira também, com a porta do sepulcro trancada, evidentemente, de forma que se alguém tivesse ido ao túmulo, conhecidos ou desconhecidos, teria pensado que a pudicíssima esposa havia expirado sobre o corpo do marido.
<br />Entrementes, o soldado, encantado tanto com a beleza da mulher como com seu próprio segredo, comprava tudo aquilo que de bom podia conforme suas possibilidades e, logo ao cair da noite, levava para o sepulcro. Assim, os familiares de um dos crucificados, vendo a vigilância descuidada, subtraíram o condenado durante a noite e lhe prestaram as últimas homenagens. Ora, o soldado foi enganado enquanto se corrompia. No dia seguinte, viu a cruz sem seu cadáver e, temendo a punição, expôs à mulher o que tinha acontecido: não esperaria a sentença do juiz, mas com a própria espada prescreveria a justiça à sua negligência. Que ela, pois, lhe obsequiasse um lugar onde morrer, cedendo aquele sepulcro fatal ao amante e ao esposo. A mulher, não menos compassiva que pudica, respondeu: “Isto os deuses não hão de consentir, deixar-me ver ao mesmo tempo os funerais dos dois homens mais amados para mim. Prefiro crucificar um morto que dar a morte a um vivo”. Depois destas palavras ordenou que o corpo do seu marido fosse retirado do ataúde e preso à cruz que estava vazia.
<br />O soldado serviu-se do engenho daquela sapientíssima mulher, e no dia seguinte o povo se admirava de que forma o morto tinha voltado à cruz.”
<br />Fonte: http://www.latim.ufsc.br/Matrona%20Ephesi.html
<br />
<br />Puer Pergami / O Garoto de Pérgamo
<br />Petrônio, séc. I
<br />Tradução de Mauri Furlan
<br />[LXXXV] "In Asiam cum a quaestore essem stipendio eductus, hospitium Pergami accepi. Vbi cum libenter habitarem non solum propter cultum aedicularum, sed etiam propter hospitis formosissimum filium, excogitavi rationem qua non essem patri familiae suspectus amator. Quotiescunque enim in convivio de usu formosorum mentio facta est, tam vehementer excandui, tam severa tristitia violari aures meas obsceno sermone nolui, ut me mater praecipue tanquam unum ex philosophis intueretur. Jam ego coeperam ephebum in gymnasium deducere, ego studia eius ordinare, ego docere ac praecipere, ne quis praedator corporis admitteretur in domum.
<br />Forte cum in triclinio iaceremus, quia dies sollemnis ludum artaverat pigritiamque recedendi imposuerat hilaritas longior, fere circa mediam noctem intellexi puerum vigilare. Itaque timidissimo murmure votum feci et: "Domina, inquam, Venus, si ego hunc puerum basiavero, ita ut ille non sentiat, cras illi par columbarum donabo". Audito voluptatis pretio puer stertere coepit. Itaque aggressus simulantem aliquot basiolis invasi. Contentus hoc principio bene mane surrexi electumque par columbarum attuli expectanti ac me voto exsolvi.
<br />[LXXXVI] Proxima nocte cum idem liceret, mutavi optionem et: "Si hunc, inquam, tractavero improba manu, et ille non senserit, gallos gallinaceos pugnacissimos duos donabo patienti". Ad hoc votum ephebus ultro se admovit et, puto, vereri coepit ne ego obdormissem. Indulsi ergo sollicito, totoque corpore citra summam voluptatem me ingurgitavi. Deinde ut dies venit, attuli gaudenti quicquid promiseram. Vt tertia nox licentiam dedit, consurrexi ad aurem male dormientis: "Dii, inquam, immortales, si ego huic dormienti abstulero coitum plenum et optabilem, pro hac felicitate cras puero asturconem Macedonicum optimum donabo, cum hac tamen exceptione, si ille non senserit". Nunquam altiore somno ephebus obdormivit. Itaque primum implevi lactentibus papillis manus, mox basio inhaesi, deinde in unum omnia vota coniunxi. Mane sedere in cubiculo coepit atque expectare consuetudinem meam. Scis quanto facilius sit columbas gallosque gallinaceos emere quam asturconem, et, praeter hoc, etiam timebam ne tam grande munus suspectam faceret humanitatem meam. Ergo aliquot horis spatiatus, in hospitium reverti nihilque aliud quam puerum basiavi. At ille circumspiciens ut cervicem meam iunxit amplexu: "Rogo, inquit, domine, ubi est asturco?"
<br />[LXXXVII] Cum ob hanc offensam praeclusissem mihi aditum quem feceram, <mox>iterum ad licentiam redii. Interpositis enim paucis diebus, cum similis casus nos in eandem fortunam rettulisset, ut intellexi stertere patrem, rogare coepi ephebum ut reverteretur in gratiam mecum, id est ut pateretur satis fieri sibi, et cetera quae libido distenta dictat. At ille plane iratus nihil aliud dicebat nisi hoc: "Aut dormi, aut ego iam dicam patri". Nihil est tam arduum, quod non improbitas extorqueat. Dum dicit: "Patrem excitabo ", irrepsi tamen et male repugnanti gaudium extorsi. At ille non indelectatus nequitia mea, postquam diu questus est deceptum se et derisum traductumque inter condiscipulos, quibus iactasset censum meum: "Videris tamen, inquit, non ero tui similis. Si quid vis, fac iterum". Ego vero deposita omni offensa cum puero in gratiam redii, ususque beneficio eius in somnum delapsus sum. Sed non fuit contentus iteratione ephebus plenae maturitatis et annis ad patiendum gestientibus. Itaque excitavit me sopitum et: "Numquid vis?" inquit. Et non plane iam molestum erat munus. Vtcunque igitur inter anhelitus sudoresque tritus, quod voluerat accepit, rursusque in somnum decidi gaudio lassus. Interposita minus hora pungere me manu coepit et dicere: "Quare non facimus?" Tum ego toties excitatus plane vehementer excandui et reddidi illi voces suas: "Aut dormi, aut ego iam patri dicam".
<br />O Garoto de Pérgamo
<br />“Tendo sido enviado à Ásia a trabalho, por delegação de um magistrado, instalei-me numa hospedaria em Pérgamo. Como estava vivendo prazerosamente no local, não só pelo conforto dos aposentos, mas também por causa do belíssimo filho do hospedeiro, inventei um plano no qual eu não passaria por libertino ao pai da família. Todas as vezes, pois, que, durante as refeições, se comentava sobre o comportamento sexual dos jovens que são formosos, eu me exaltava tão acaloradamente, e, aparentando uma austeridade incorruptível, me recusava a ferir meus ouvidos com tal assunto obsceno, que, sobretudo a mãe passou a considerar-me como a um grande filósofo. Em pouco tempo eu começaria a levar o efebo ao colégio, eu coordenaria seus estudos, eu lhe daria aulas e o instruiria, e que nenhum caçador de corpos fosse admitido na casa.
<br />Em certa ocasião, encontrando-nos deitados num triclínio – porque naquele dia festivo haviam reduzido as aulas e a prolongada diversão nos dera muita preguiça de ir embora –, notei que, por volta da meia-noite, o garoto ainda estava desperto. Por isso, num suave murmúrio, fiz uma prece, dizendo: “Deusa Venus, se eu puder beijar este garoto de forma que ele não perceba, amanhã lhe darei um par de pombos”. Ao ouvir o preço do meu desejo, o garoto começou a roncar. Aproximei-me, assim, do fingidor e dei-lhe alguns beijos. Satisfeito com este bom começo, levantei-me pela manhã e trouxe um lindíssimo par de pombos àquele que os esperava, cumprindo minha promessa.
<br />Na noite seguinte, como se me apresentasse a mesma possibilidade, mudei minha oração e disse: “Se com estas indignas mãos eu puder tocá-lo sem ele sentir, darei ao complacente dois galos de briga dos mais lutadores”. Ao ouvir esta prece, o efebo se aproximou espontaneamente de mim e, creio, começou a recear que eu dormisse. Cuidei, pois, daquele espírito perturbado, e me saciei com todo seu corpo, sem, contudo, chegar ao prazer supremo. Depois, ao nascer o dia, trouxe àquele que se regozijava tudo o que lhe havia prometido. Como se nos permitisse uma terceira noite, acerquei-me ao ouvido daquele que pouco dormia, e supliquei: “ Deuses imortais, se eu conseguir ter com este que dorme uma relação sexual completa e prazerosa, em nome desta felicidade darei amanhã ao garoto um cavalo da Macedônia, com a única condição, porém, de que ele não se inteire de nada”. Nunca dormira o efebo um sono mais profundo. Assim, primeiro enchi minhas mãos em seus peitos delicados, em seguida o cubri com beijos, finalmente, realizei em um só todos os meus desejos. Pela manhã, permaneceu ocioso no quarto, apenas na expectativa do meu costume. Mas, sabeis quão mais fácil é comprar pombos e galos que um cavalo, e, por isso, também temia que um presente tão grande tornasse minha humanidade suspeita. Assim, tendo passeado por algumas horas, retornei à hospedaria não presenteando ao garoto senão um beijo. Ele, porém, olhando em torno enlaçou meu pescoço com um abraço e disse: “ Rogo-te, senhor, onde está meu cavalo?”
<br />Embora eu tivesse, com esta decepção, impossibilitado qualquer tipo de reaproximação, pouco tempo depois voltei à licenciosidade. Passados, pois, alguns dias, e tendo-nos brindado idêntica sorte uma ocasião similar, ao ouvir o pai roncando, comecei a rogar ao efebo que se reconciliasse comigo, isto é, que consentisse em deixar-se satisfazer plenamente, e outras coisas que o desejo inflamado prescreve. Mas ele, completamente irado, não dizia outra coisa que não fosse: “Dorme, ou contarei agora mesmo ao meu pai”. Nada é tão difícil que a audácia não consiga. Enquanto dizia: “Chamarei meu pai”, acerquei-me sorrateiramente ao pouco resistente e com ele alcancei o prazer. Ele, porém, não desagradado com minha maldade, depois de queixar-se por muito tempo de ter sido enganado, e escarnecido e ridicularizado entre seus companheiros, aos quais elogiara minha classe, disse: “Verás, pois, como não sou igual a ti. Se queres, podes fazê-lo de novo”.
<br />Eu, na verdade, uma vez dirimida toda decepção, congracei-me com o garoto, e, em virtude da relação sexual com ele, caí no sono. Mas o efebo, em idade de pleno desenvolvimento e com ardentes desejos de experimentar, não ficou contente com a repetição. Por isso, despertando-me entorpecido, disse-me: “Não queres mais?”. E sua oferta já não era em nada penosa. De algum modo, pois, entre respirações ofegantes e suores conhecidos, encontrou o que buscava, e eu, fatigado, caí novamente no sono com satisfação. Tendo passado menos de uma hora, começou a pungir-me com sua mão e a dizer: “Por que não repetimos?”. Então, eu, tantas vezes despertado, irritei-me enormemente e lhe respondi com suas palavras: “Dorme, ou contarei agora mesmo ao teu pai”.
<br />Fonte: http://www.latim.ufsc.br/Puer%20Pergami.html
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />Apuleio
<br />A crise ideológica de Roma no século dos Antoninos, quando o ceticismo cortesão se entrelaçou ao crescente influxo dos cultos orientais, serviu de pano de fundo à elaboração da obra de Apuleio, notável figura da literatura, da retórica e da filosofia platônica de sua época.
<br />Lúcio Apuleio nasceu em Madaura, na Numídia (moderna Argélia), por volta do ano 124. Educado em Cartago e Atenas, viajou pelo Mediterrâneo, interessando-se por ritos de iniciação como os associados ao culto da deusa egípcia Ísis. Versátil e familiarizado com os autores gregos e latinos, ensinou retórica em Roma antes de regressar à África para casar-se com uma rica viúva, cuja família o acusou de ter recorrido à magia a fim de conquistar seu afeto. Para defender-se de tal acusação escreveu a Apologia (173), obra da qual emanam as informações disponíveis sobre sua vida.
<br />Escreveu ainda diversos poemas e tratados, entre os quais Florida, coletânea de trabalhos de eloqüência, mas a obra que lhe deu fama foi a narrativa em prosa em 11 livros a que chamou Metamorfoses e se tornou conhecida como O asno de ouro. São aí relatadas as aventuras do jovem Lúcio, que é transformado por magia em burro e só recupera a forma humana graças à intervenção de Ísis, a cujo serviço se consagra. O episódio mais destacado dessa obra-prima de Apuleio -- o único romance da antiguidade a chegar completo aos nossos dias -- é a bela fábula de "Amor e Psiquê", que pode ser interpretada como narração puramente estética ou, então, como alegoria da união mística. O episódio, aliás, destoa do estilo do romance em geral, pois este relaciona cenas grotescas, terrificantes, obscenas e, em parte, deliberadamente absurdas.
<br />O tema de "Amor e Psiquê" foi retomado por muitos escritores, entre os quais, no século XIX, os poetas ingleses William Morris e Robert Bridges. Outras passagens de O asno de ouro reapareceram no Decameron, de Giovanni Boccaccio, no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, e no Gil Blas de Alain Le Sage. Apuleio morreu em Cartago, provavelmente após o ano 170.
<br />Fonte: http://encfil.goldeye.info/apuleio.htm
<br />
<br />Estudo acerca de fragmentos de Amor e Psiquê em PDF:
<br />Artigo sem assinatura de autoria da Revista CienteFico, ano III, vol. 1, Salvador, Janeiro-Junho, 2003. - download pdf
<br />Estudo acerca da narrativa de Apuleio em O Asno de Ouro em PDF:
<br />A Festa e o Riso na Narrativa Apuleiana, de prof.ª dr.ª Luciana Munhoz de Omena, revista Fatos e Versões, fac. católica de Uberlandia - downsload pdf
<br />
<br />O Asno de Ouro: Conto de Amor e Psique
<br />por: Andre Gazola,
<br />fonte: http://www.lendo.org/o-asno-de-ouro-conto-de-amor-e-psique/
<br />O conto de Amor e Psique faz parte do livro de Apuleio publicado no séc. II a.C. que narra a história de um homem transformado em asno que perambula pelo mundo, ouvindo as histórias transcritas no livro, em forma de contos.
<br />Psique é uma jovem belíssima, que encanta homens de todos os lugares, que ofusca a beleza de suas irmãs e que é considerada a encarnação de Vênus na terra, por ser tão bonita.
<br />Esse título desperta a ira e a inveja da verdadeira Vênus, que não adimite ser superada por uma simples mortal.
<br />Assim ela manda seu filho Cupido, deus do Amor, punir a jovem:
<br />Meu filho, eu te imploro, em nome de minha ternura, pelas leves injúrias que tu fazes, pelo fogo penetrante com que consomes os corações, vinga tua mãe. Mas vinga plenamente! Que essa beleza audaciosa seja punida. É a graça que te peço e tu precisas me conceder: antes de tudo, que ela se inflame de uma paixão sem limites por alguém da escória; um miserável sem honra, saúde, chama ou casa, e que a fatalidade rebaixou ao último degrau de abjeção possível sobre a terra.
<br />Psique passou anos sem conseguir um marido, até que seu pai, temendo intervenção divina, foi consultar o oráculo para saber o que acontecia. A resposta foi categórica:
<br />Que com seus belos adornos a virgem abandonada
<br />Espere sobre uma rocha um casamento fúnebre.
<br />O esposo não recebeu o dia de um mortal:
<br />Ele tem a crueldade, as asas do abutre;
<br />Ele destroça corações, e tudo que respira
<br />Sucumbe, gemendo, sob tirânico império.
<br />Os deuses, no Olimpo, arrastam seus grilhões.
<br />E o Estige contra ele defende mal os infernos.
<br />Com muita tristeza foi seguida a prescrição do oráculo, Psique foi levada a uma rocha no cume de escarpadas montanhas e lá deixada, para que a lúgubre união ocorresse.
<br />Logo, pelo sopro de Zéfiro, ela foi levada a um vale florido, onde encontrou um palácio maravilhoso, onde magicamente foi lhe servida uma refeição soberba e preparado um banho revigorante. Todas as riquezas e tesouros do mundo estavam ali para ela.
<br />No entanto, ela estava só. Onde estaria o esperado marido?
<br />À noite então, ao deitar-se em sua cama de princesa, sente que não está só. Seu marido, aquele que ela não pode ver em meio a penumbra, surge para acompanhá-la.
<br />Daquele dia em diante sua vida seria assim, em meio a todas as riquezas mundanas ela receberia seu prometido, sem poder vê-lo.
<br />No início tudo era um mar de rosas, mas com o tempo ela sentia-se sozinha, tinha saudades de suas irmãs e pais, que também não aguentavam a perda de Psique.
<br />O tempo passou e finalmente as irmãs, levadas por Zéfiro, puderam visitar Psique. Ela lhes mostrou como era sua vida agora, falou sobre seu marido e fez invejar toda a opulência em que vivia. Isso fez com que, assim que voltassem para casa, começassem a traçar um plano com objetivo de arruinar a vida daquela que, segundo elas, não merecia tamanhos privilégios. A inveja havia tomado suas mentes.
<br />O misterioso marido alertava-a todas as noites, para que ela não ouvisse suas irmãs, pois assim seu casamento e o amor que sentiam um pelo outro acabaria.
<br />Sem ouvi-lo, Psique, durante a noite, tenta assassinar o esposo com um punhal. Mas ao vê-lo, estremece ao saber que aquele a quem amava era nada menos do que Cupido, o deus do Amor, a mais bela das criaturas.
<br />Agora seu casamento estava acabado e os dois seriam punidos com a ira de Vênus.
<br />No entanto, Psique estava motivada a desafiar até mesmo a ira de sua rival para ser feliz com seu amado. Mas como ela poderia suplantar o poder de uma deusa da magnitude de Vênus?
<br />Como terminará a história de Psique?
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILAS
<br />
<br />Sêneca - Lucius Aneus Seneca (4a.C. - 65d.C.)
<br />Lucius Aneus Sêneca nasceu em Córdoba, na Espanha, no ano de 4 a.C. Conhecido como Sêneca o Jovem, era filho de Sêneca filho de Lúcio Aneu Sêneca o Velho, célebre orador. Devido a sua origem ilustre foi enviado a Roma para estudar oratória e filosofia.
<br />
<br />Por problemas de saúde viajou para o Egito, onde ficou até se curar (31). Quando regressou a Roma iniciou sua carreira como orador e advogado, participando ativamente da vida política e logo chegou ao Senado.
<br />
<br />Envolvido em um processo por causa de uma ligação com Júlia Livila, sobrinha do imperador Cláudio, foi exilado na Córsega durante os anos de 41 a 49. No exílio dedicou-se aos estudos e redigiu vários de seus principais tratados filosóficos, entre eles Consolationes, em que expôs os ideais estóicos clássicos de renúncia aos bens materiais e busca da tranqüilidade da alma mediante o conhecimento e a contemplação.
<br />Perdoado por interferência de Agripina, sobrinha do imperador, voltou para Roma no ano de 49 e, no ano seguinte, foi nomeado pretor. Com a morte de Cláudio em 54 escreveu a obra-prima das sátiras romanas, Apocolocyntosis divi Claudii, contra o ex-imperador. Com Nero, filho de Agripina, nomeado imperador, tornou-se seu principal conselheiro e orientador político.
<br />Com o avanço dos delírios de Nero e a execução de Agripina no 59, Sêneca, depois de condescender um pouco com os maus instintos de Nero, retirou-se da vida pública em 62, passando a se dedicar exclusivamente a escrever e defender sua filosofia. No ano de 65 foi acusado de participar na conjuração de Pisão, recebendo de Nero a ordem de suicídio, que executou em Roma, no mesmo ano.
<br />Sêneca escreveu oito tragédias, que foram uma espécie de modelo no Renascimento e inspirou o desenvolvimento da tragédia na Europa. No entanto, seu maior sucesso foram os seguintes tratados de moral:
<br />• Da Brevidade da Vida;
<br />• Da Vida feliz;
<br />• Da Clemência;
<br />• Dos Benefícios; etc.
<br />Essas obras, desenvolvidas de maneira agradável, são consideradas as máximas da filosofia estóica (filosofia caracterizada, sobretudo, pela consideração do problema moral, constituindo a ataraxia o ideal do sábio).
<br />Fonte: http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundocultural.com.br/literatura1/latina/seneca.htm
<br />
<br />Estudo acerca da obra de Sêneca em PDF:
<br />Os Preceitos Morais de Sêneca na Formação do Homem Virtuoso, por Miriam Maria Bernardi Miguel - UEL - download pdf
<br />
<br />A MEDICINA DA ALMA
<br />
<br />Por G. J.Ballone
<br />
<br />Em 41 dC foi desterrado para a Córsega, sob acusação de adultério, supostamente praticado com Júlia Livila, sobrinha do novo imperador Cláudio César Germânico. Na Córsega, Sêneca passaria quase dez anos em grande privação material.
<br />Em 49 d.C., Messalina, primeira esposa do imperador Cláudio e responsável pelo exílio de Sêneca, caiu em desgraça e foi condenada à morte. O imperador Cláudio casou-se com Agripina e esta mandou chamar Sêneca para educar seu filho Nero. Em 54 d.C., quando Nero se torna imperador, Sêneca passa a ser seu principal conselbeiro. Esse período estende-se até 62 d.C., ano em que sua estrela começa a perder o brilho junto ao despótico soberano. Sêneca deixa a vida pública e sofre a perseguição de Nero, que acaba por condená-lo ao suicídio, em 65 d.C.
<br />Não foi a lógica dos estóicos gregos, nem mesmo sua teoria do mundo físico que, sobretudo, atraiu o interesse dos estóicos romanos. Foi antes sua moral da resignação, principalmente nos aspectos religiosos que ela permitia desenvolver.
<br />O primeiro representante do estoicismo romano, sem contar as idéias estóicas que se encontram no ecletismo de Cícero, foi Lucius Annaeus Seneca, nascido em Córdoba (Espanha), aproximadamente quatro anos antes da era cristã. Era filho de Annaeus Seneca (55 a.C.-,39 a.D.) - conhecido como Sêneca, o Velho -, que teve renome como retórico e do qual restou uma obra escrita (Declamações). O futuro filósofo Sêneca foi educado em Roma, onde estudou a retórica ligada à filosofia. Em pouco tempo tornou-se famoso como advogado e ascendeu politicamente, passando a ser membro do senado romano e depois nomeado questor.
<br />O triunfo político, no entanto, não se fazia sem conflitos e o renome de Sêneca suscitou a inveja do imperador Calígula, o qual pretendeu desfazer-se dele pelo assassinato. Sêneca, contudo, foi salvo por sua frágil saúde; julgava-se que ele morreria muito cedo, de morte natural. O próprio Calígula foi quem faleceu logo depois e Sêneca pôde continuar vivendo em relativa tranqüilidade.
<br />Não duraria esse período muito tempo. Em 41 dC foi desterrado para a Córsega, sob acusação de adultério, supostamente praticado com Júlia Livila, sobrinha do novo imperador Cláudio César Germânico. Na Córsega, Sêneca passaria quase dez anos em grande privação material.
<br />Em 49 d.C., Messalina, primeira esposa do imperador Cláudio e responsável pelo exílio de Sêneca, caiu em desgraça e foi condenada à morte. O imperador Cláudio casou-se com Agripina e esta mandou chamar Sêneca para educar seu filho Nero. Em 54 d.C., quando Nero se torna imperador, Sêneca passa a ser seu principal conselbeiro. Esse período estende-se até 62 d.C., ano em que sua estrela começa a perder o brilho junto ao despótico soberano. Sêneca deixa a vida pública e sofre a perseguição de Nero, que acaba por condená-lo ao suicídio, em 65 d.C.
<br />As Cartas Morais de Sêneca, escritas entre os anos 63 e 65 e dirigidas a Lucílio, misturam elementos epicuristas com idéias estóicas e contêm observações pessoais, reflexões sobre a literatura e crítica satírica dos vícios comuns na época. Entre os seus doze Ensaios Morais, destacam-se Sobre a Clemência, cautelosa advertência a Nero sobre os perigos da tirania, Da Brevidade da Vida, análise das frivolidades nas sociedades corruptas, e Sobre a Tranqüilidade da Alma, que tem como assunto 0 problema da participação na vida pública. As Questões Naturais expõem a física estóica enquanto vinculada aos problemas éticos. Além dessas obras propriamente filosóficas, Sêneca escreveu ainda nove tragédias e uma obra-prima da sátira latina, Apolokocintosis, que ridiculariza Nero e suas pretensões à divindade.
<br />Todas essas obras revelam que Sêneca foi, sobretudo, um moralista. A filosofia é para ele uma arte da ação humana, uma medicina dos males da alma e uma pedagogia que forma os homens para o exercício da virtude. O centro da reflexão filosófica deve ser, portanto, a ética: e a fisica e a lógica devem ser consideradas como seus prelúdios.
<br />Sua concepção do mundo repete as idéias dos estóicos gregos sobre a estrutura puramente material da natureza. Contudo, a razão universal dos gregos Cleanto e Zenão transforma-se em Sêneca num deus pessoal, que é sabedoria, previsão e vigilância, sempre em ação para governar o mundo e realizar uma ordem maravilhosa.
<br />
<br />SÊNECA A SERENO (cartas)
<br />Eis que faz muito tempo, por Hércules, que eu me pergunto a mim mesmo sem nada dizer, ó Sereno, com o que poderia comparar uma semelhante disposição de espírito; e o que me parecia assemelhar-lhe mais é o estado daquelas pessoas que convalescem de uma longa e grave enfermidade, e sentem ainda de tempos em tempos alguns calafrios e leves indisposições; e que, uma vez livres dos últimos traços de seu mal, continuam a se inquietar com perturbações imaginárias, a se fazer, ainda que restabelecidas, tomar o pulso pelo médico e consideram como febre a menor impressão de calor. Sua saúde, ó Sereno, não deixa nada mais a desejar, mas aquelas pessoas não estão habituadas novamente à saúde: assim, ainda se vê estremecer e agitar-se a superfície de um mar calmo, quando a tempestade acabou de se aplacar.
<br />Assim também os procedimentos enérgicos nos quais encontramos auxílio anteriormente não são mais próprios: tu não precisas mais nem lutar contra ti nem te censurar nem te atormentar. Estamos na etapa final: tem fé em ti mesmo e convence-te de que segues o bom caminho, sem te deixares desviar pelas inúmeras pegadas dos viajantes extraviados à direita ou à esquerda e dos quais alguns se desgarram nas proximidades da estrada.
<br />O objeto de tuas aspirações é, aliás, uma grande e nobre coisa, e bem próxima de ser divina, pois que é a ausência da inquietação. Os gregos chamam este equilíbrio da alma de "euthymia" e existe sobre este assunto uma muito bela obra de Demócrito. Eu o chamo "tranqüilidade", pois é inútil pedir palavras emprestadas para nosso vocabulário e imitar a forma destas mesmas: é a idéia que se deve exprimir, por meio de um termo que tenha a significação da palavra grega, sem no entanto reproduzir a forma.
<br />Vamos, pois, procurar como é possível à alma caminhar numa conduta sempre igual e firme, sorrindo para si mesma e comprazendo-se com seu próprio espetáculo e prolongando indefinidamente esta agradável sensação, sem se afastar jamais de sua calma, sem se exaltar, nem se deprimir. Isto será tranqüilidade. Procuremos, de um modo geral, como alcançá-la: tu tomarás, como entenderes, tua parte do remédio universal.
<br />5. Mas ponhamos desde logo o mal em evidência, em toda a sua diversidade: cada qual nele reconhecerá o que lhe diz respeito. Ao mesmo tempo, dar-te-ás conta de tudo quanto tens menos a sofrer deste descontentamento de ti, do que aqueles que, estando ligados por uma profissão de fé faustosa e ornando, com nome pomposo, a miséria que os consome, teimam no papel que escolheram por questão de honra, mais que por convicção.
<br />
<br />Para todos esses doentes o caso é o mesmo: tanto tratando-se daqueles que se atormentam por uma inconstância de humor, seus desgostos, sua perpétua versatilidade e sempre amam somente aquilo que abandonaram, como aqueles que só sabem suspirar e bocejar. Acrescenta-lhes aqueles que se viram e reviram como as pessoas que não conseguem dormir, e experimentam sucessivamente todas as posições até que a fadiga as faça encontrar o repouso. Depois de terem modificado cem vezes o plano de sua existência, eles acabam por ficar na posição onde os surpreende não a impaciência da variação mas a velhice, cuja indolência rejeita as inovações. Ajunta ainda, aqueles que não mudam nunca, não por obstinação, mas por preguiça, e que vivem não como desejam, mas como sempre viveram.
<br />
<br />Há, enfim, inúmeras variedades do mal, mas todas conduzem ao mesma resultado: o descontentamento de si mesmo. Mal-estar que tem por origem uma falta de equilíbrio da alma e das aspirações tímidas ou infelizes, que não se atrevem a tanto quanto desejam, ou que se tenta em vão realizar e pelas quais nos cansamos de esperar. É uma inconstância, uma agitação perpétua, inevitável, que nasce dos caracteres irresolutos. Eles procuram por todos os meios atingir o objeto de seus votos: preparam-se e constrangem-se a práticas indignas e penosas. E, quando seu esforço não é recompensado, sofrem não de ter querido o mal, mas de o ter querido sem sucesso.
<br />
<br />Desde então, ei-los presos, ao mesmo tempo, do arrependimento de sua conduta passada e do temor de nela recair, e pouco a pouco se entregam à agitação estéril de uma alma que não encontra para suas dificuldades nenhuma saída, porque ela não é capaz nem de mandar nem de obedecer às suas paixões; entregam-se à aflição de uma vida que não chega a ter expansão e, enfim, a esta indiferença de uma alma paralisada no meio da ruína de seus desejos.
<br />Tudo isto se agrava quando, superada uma tão odiosa angústia, nos refugiamos no ócio e nos estudos solitários, nos quais não se saberá resignar uma alma apaixonada da vida pública, e paciente de atividade, dotada de uma necessidade natural de movimento e que não encontra em si mesma quase nenhum consolo. De sorte que, uma vez atraídos pelas distrações que as pessoas atarefadas devem mesmo às suas ocupações, não mais suportamos nossa casa, nosso isolamento e as paredes de nosso quarto; e nos vemos com amargura abandonados a nós mesmos.
<br />Daí este aborrecimento, este desgosto de si, este redemoinho de uma alma que não se fixa em nada, esta sombria impaciência que nos causa nossa própria inércia, principalmente quando coramos ao confessar as razões, e o respeito humano recalca em nós nossa angústia: estreitamente encerradas numa prisão sem saída, nossas paixões aí se asfixiam. Daí a melancolia, a languidez e as mil hesitações de uma alma indecisa, que a semi-realização de suas esperanças prolonga na ansiedade e seu malogro na desolação; daí esta disposição para amaldiçoar seu próprio repouso, para lamentar-se por não ter nada a fazer e para invejar furiosamente todos os sucessos do próximo (pois nada alimenta a inveja como a preguiça, e se desejaria ver todo o mundo malograr, porque não se soube obter êxito).
<br />Depois deste despeito pelos sucessos dos outros e deste desespero de não ser bem sucedido, começa o homem a se irritar contra a sorte, a se queixar do século, a se recolher cada vez mais em seu canto e aí se abriga sua dor no desânimo e no aborrecimento. A alma humana é, com efeito ou instinto, ativa e inclinada ao movimento. Toda ocasião para se despertar e para se afastar lhe é agradável. Certas feridas provocam a mão que as irritará e se fazem raspar com prazer: o sarnento deseja o que irrita sua sarna. Pode-se dizer o mesmo destas almas, em que as paixões, tanto como as úlceras malignas, consideram um prazer atormentar-se e sofrer.
<br />Não existem igualmente prazeres corporais que se reforçam com uma sensação dolorosa, como quando uma pessoa se vira sobre o lado que ainda não está fatigado e se agita sem cessar procurando uma posição melhor? Deitamos ora de bruços ora de costas, experimentando sucessivamente todas as posições possíveis. E não é isso o natural da doença, nada suportar por muito tempo e tomar a mudança por um remédio?
<br />Dai aquelas viagens que se empreendem sem nenhum intuito, aquelas voltas a esmo ao longo das costas, e esta inconstância sempre inimiga da situação presente que alternativamente experimenta o mar e a terra: "Depressa, vamos a Calábria". Logo se está cansado das doçuras da civilização. "Visitemos as regiões selvagens, exploremos o Brútio (Calábria) e as florestas da Lucânia." Todavia, nestas solidões, suspira-se por qualquer coisa que dê descanso aos olhos fatigados pelo rude aspecto de tantos lugares áridos. "A caminho de Tarento, com seu porto e seu inverno tão doce, e para esta opulenta região que seria capaz de sustentar sua população de outrora! Mas não, retornemos a Roma: faz muito tempo que meus ouvidos estão privados dos aplausos e do barulho do circo e tenho desejo de agora ver correr sangue humano."
<br />Assim como as viagens se sucedem, um espetáculo substitui o outro, e como diz Lucrécio: "Assim cada um foge sempre de si mesmo". Mas para que fugir se não nos podemos evitar? Seguimo-nos sempre, sem nos desembaraçarmos desta intolerável companhia.
<br />Assim, convençamo-nos bem de que o mal do qual sofremos não vem dos lugares, mas de nós mesmos, que não temos força para nada suportar: trabalho, prazer, nós mesmos; qualquer coisa do mundo nos parece uma carga. Isto conduziu muitas pessoas ao suicídio: porque suas perpétuas variações as faziam dar voltas, indefinidamente, no mesmo círculo, e elas consideravam impossível toda novidade. Assim tomaram desgosto pela vida e pelo mundo e sentiram aumentar em si o clamor furioso dos corações: "Mas como, sempre a mesma coisa?"
<br />
<br />DOUTRINA PESSOAL DE SÊNECA
<br />Se não me engano, Cúrio Dentato dizia que ele preferia estar morto a viver morto: o pior dos males não é suprimir-se dos vivos, antes de morrer? Mas façamos assim: se pertencemos a um tempo no qual a vida política é difícil de ser praticada, tornemos mais ampla a parte do ócio e do estudo: como o marinheiro nas travessias perigosas, multipliquemos as escalas; e, sem esperar que os afazeres nos abandonem, desprendemo-nos deles espontaneamente.
<br />Devemos examinar se nossas disposições naturais nos tornam mais aptos a ação ou aos trabalhos sedentários e à contemplação pura; e inclinar-nos do lado para o qual nosso gênio nos conduz. Sócrates arrancou com viva força Éforo do fórum, quando se convenceu de que este era mais indicado para escrever história. Jamais um talento que se força produz o que se esperava: e forçar a natureza é sempre inútil.
<br />Em seguida, devemos avaliar nossas próprias empresas e colocar na balança nossas forças e nossos projetos. Com efeito, devemos sentir-nos sempre superiores à tarefa que realizamos: um fardo desproporcionado só pode esmagar quem o carrega. De outro lado, há ocupações que, sem terem muita importância, estão cheias de mil complicações: deve-se evitá-las por causa dos apuros sem fim, aos quais elas darão origem. Não nos aventuremos jamais a um negócio em que poderíamos correr o risco de ficar sem saída: aceitemos aqueles nos quais estamos seguros, ou que pelo menos temos esperanças de terminar: deixemos aqueles trabalhos que se complicam quanto mais se trabalha neles e que não podem ser interrompidos quando se quer.
<br />Deve-se finalmente escolher com cuidado os homens: ver se eles merecem que lhes consagremos uma parte de nossa existência e se são gratos ao sacrifício de tempo que lhes fazemos; pois há os que chegam a considerar os serviços que lhes prestamos como um benefício para nós mesmos.
<br />
<br />OS ESTÓICOS
<br />Depois de Cícero ter iniciado a história da filosofia em língua latina, formulando sua síntese eclética, o movimento de idéias mais importante dentro do pensamento romano foi o desenvolvimento das doutrinas estóicas, também originárias da Grécia, como o epicurismo e o ecletismo. A escola estóica foi fundada por Zenão de Cício (336-264 aC).
<br />O estoicismo grego propõe uma imagem do universo segundo a qual tudo o que é corpóreo é semelhante a um ser vivo, no qual existiria um sopro viral (pneuma), cuja tensão explicaria a junção e interdependência das partes. No seu conjunto, o universo seria igualmente um corpo vivo provido de um sopro ígneo (sua alma), que reteria as partes e garantiria a coesão do todo. Essa alma é identificada por Zenão como sendo a razão e, assim sendo, o mundo seria inteiramente racional. A Razão Universal ou Logos, penetra em tudo e comanda tudo, tendendo a eliminar todo tipo de irracionalidade, tanto na natureza, quanto na conduta humana, não havendo lugar no universo para o acaso ou a desordem.
<br />A racionalidade do processo cósmico se manifesta na idéia de ciclo, que os estóicos adotam e defendem com rigor. Herdeiros do pensamento de Heráclito de Éfeso (séc. VI aC), os estóicos concebem a história do mundo como sendo feita por uma sucessão periódica de fases, culminando na absorção de todas as coisas pelo Logos, que é Fogo e Zeus. Completado um ciclo, começa tudo de novo: após a conflagração universal, o eterno retorno.
<br />Tudo o que existe é corpóreo e a própria razão identifica-se com algo material, o fogo. O incorpóreo reduz-se a meios inativos e impassíveis, como o espaço e o vazio; ou então àquilo que se pode pensar sobre as coisas, a idéia, mas não às próprias coisas.
<br />Nesse universo corpóreo e dirigido pelo fatalismo dos ciclos sempre idênticos, tudo existe e acontece segundo predeterminação rigorosa, porque racional. Governada pelo Logos, a natureza é por isso justa e divina e os estóicos identificam a virtude moral com o acordo profundo do homem consigo mesmo e, através disso, com a própria natureza, a qual é intrinsecamente razão. Esse acordo consigo mesmo é o que Zenão chama "prudência" e dela decorrem todas as demais virtudes, como simples aspectos ou modalidades.
<br />As paixões são consideradas pelos estóicos como desobediências à razão e podem ser explicadas como resultantes de causas externas às raízes do próprio indivíduo; seriam, como já haviam mostrado os cínicos, devidas a hábitos de pensar adquiridos pela influência do meio e da educação. É necessário ao homem desfazer-se de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir a Deus e à razão Universal, aceitando o destino e conservando a serenidade em qualquer circunstância, mesmo na dor e na adversidade.
<br />
<br />Ballone GJ - Sêneca, in. PsiqWeb - Psiquiatria Geral - Geraldo J. Ballone, Internet, 2001, disponível em http://gballone.sites.uol.com.br/hlp/seneca.html
<br />
<br />
<br />Resumo de A Vida Feliz, de Sêneca, por : http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo_c_566.html
<br />Em seu texto, Sêneca discorre sobre o problema da felicidade e o que faz uma vida feliz. Apresenta meios para resolver o problema, ou seja, para definir uma vida feliz e chegar à felicidade.
<br />O primeiro preceito é não ir pelo mesmo caminho que todos vão, ou seja, negar a concepção da felicidade do senso comum. Sêneca insiste em dizer que o vulgo sempre erra, pois a massa segue o conformismo e não usa a razão. Portanto, o único caminho a seguir é afastado da multidão.
<br />Então, Sêneca critica a avaliação de alguém pelas aparências, estabelecendo outro critério para julgar: apreciar a alma. Com isso, ele se declara arrependido de seu passado de superficialidade e ostentação, arrependido de tudo o que fez, falou e cobiçou, pois tudo isso só lhe trouxe a inveja dos outros e nenhuma paz interior.
<br />Em seguida, Sêneca apresenta um esclarecimento de caráter metodológico: explica que as opiniões expostas no texto são dele somente, e não se associa a nenhum dos grandes estóicos. Prossegue declarando seu pressuposto teórico que, como todos os estóicos, segue a natureza e defende que é errado afastar-se dela e desobedecer suas leis; pois o humano faz parte da physis, e uma vida feliz é uma vida ajustada com a natureza.
<br />Essa vida adequada à natureza não é propícia à irritação e insatisfação. Sêneca contrapõe a tranquilidade da alma, consequência de se viver de acordo com a natureza, aos prazeres frívolos que são fugazes e não dão equilíbrio nem paz. A natureza, para Sêneca, gera uma disposição, uma racionalidade, que nos permite afirmar que há em todas as coisas uma certa ordenação. Portanto, viver de acordo com a natureza, segundo Sêneca (viver racionalmente, pois a razão está contida na natureza), é contentar-se com a condição em que se nasce, sem cobiçar um lugar ao qual não se pertence, uma aptidão que não se tem. Seguir a ordenação que há na natureza universal é se deixar guiar pela razão, que faz parte dela, e não os impulsos, ansiando por um lugar que não lhe cabe. Então, ao definir mais profundamente o homem feliz, expõe um resumo dos princípios estóicos: o sumo bem é uma virtuosa vontade; o homem não se deve deixar abater por sua sorte, mas aceitá-la, desdenhando os prazeres e tudo o que não se consegue alcançar por si próprio. Exprimindo-se de outra maneira, Sêneca afirma que o único mal é a desonra; com isso ele quer dizer que o único mal é não ser fiel a si mesmo e às suas convicções, ou seja, à virtude. Uma vontade sujeita à virtude, e não ao prazer, deve experimentar uma tranquilidade perene, liberta da escravidão de impulsos e caprichos. A única forma de se libertar de tal escravidão é a indiferença frente à sorte. Para tal, deve-se deixar que a razão subjugue os desejos e receios. Já que a razão é vital para a felicidade, pedras e bestas (e pessoas obtusas) não podem ser consideradas felizes. A felicidade, para Sêneca, decorre da serenidade; logo, a excitação é considerada fonte de distúrbios da alma e deve ser evitada. Os prazeres da alma devem ser ajuizados e puros, deve-se relembrar os prazeres do passado, pois lembrar é viver de novo (sem as pressões e cobranças da época), e com isso organizar as esperanças e tomar consiência dos limites do que se considerava bom e importante (ou seja, evoluir).
<br />
<br />DA VIDA FELIZ, Sêneca (trechos)
<br />A Felicidade e a Opinião da Multidão
<br />Toda a gente, meu irmão Gallion, deseja uma vida feliz; mas quando se trata de ver claramente aquilo que a torna assim, é a confusão total. E não é fácil alcançar a felicidade, mais ainda porque no caso de nos termos enganado no caminho, nos afastamos tanto mais dela quanto para ela nos precipitamos com maior ardor. Quando o caminho conduz em sentido contrário, o nosso próprio impulso aumenta a distância.
<br />É preciso, pois, começar por definir bem o que é o objecto do nosso desejo, e examinar depois com cuidado o modo mais rápido de nos dirigirmos para ele; se a via é correcta, dar-nos-emos conta, durante a própria viagem, dos progressos feitos todos os dias, e da nossa aproximação de um fim para o qual nos impele o desejo natural. Enquanto errarmos por aqui e por ali sem guia, obedecendo aos rumores e aos gritos discordantes de homens que nos chamam em direcções opostas, usaremos uma vida queos nossos enganos tornam breve, mesmo se trabalharmos dia e noite para cultivar o bem.
<br />Determinemos pois o objectivo para que tendemos e os meios de o alcançar; e não o façamos sem o apoio de um homem experimentado, que conheça bem o caminho no qual avançamos; pois nesta viagem, a situação não é exactamente a mesma que sucede nas outras: nestas últimas há um caminho conhecido, interrogamos os habitantes e eles não nos deixam perder; mas aqui o caminho mais bem assinalado e mais frequentado é também o mais enganador. É por isso que a primeira coisa a fazer é não seguir, como uma ovelha, o rebanho das pessoas que nos precedem, pois nesse caso encaminhar-nos-íamos, não para onde é necessário ir, mas para onde vai a multidão.
<br />No entanto, nada nos arrasta mais para grandes males do que a conformação à voz pública, o pensar que o melhor está ligado ao assentimento do grande número, de tal modo que vivemos, não de acordo com a razão, mas por espírito de imitação. Daí resulta esse amontoado de pessoas que desabam umas sobre as outras. Um tal estado de coisas surge quando os homens estão demasiado apinhados e se comprimem mutuamente, e ninguém cai sem arrastar outro na sua queda; os primeiros são a perda daqueles que os seguem. É isso que vemos acontecer na vida: ninguém se engana apenas por si próprio, sendo a causa e o instigador do engano dos outros.
<br />É prejudicial ligarmo-nos àqueles que vão à frente. Como cada um prefere acreditar nos outros, mais do que julgar, não se julga nunca, acredita-se sempre [de acordo com as notas de João Forte sobre este texto existe nesta passagem, no original, uma distinção entre o acto de julgar (judicare) e acreditar (credere) que, apesar de inovadora no contexto romano relacionava-se com a oposição que Platão determinava entre ciência e opinião], e o erro, ao transmitir-se de mão em mão faz-nos rodopiar e depois cair; perecemos seguindo o exemplo dos outros. Curar-nos-emos na condição de nos separarmos da multidão; porque hoje a multidão toma resolutamente posição contra a razão e defende aquilo que causa a sua infelicidade.
<br />Acontece assim aquilo que se vê nos comícios, onde os que designaram os praetores se espantam de os ver eleitos, quando vento da popularidade começa a soprar noutra direcção. As mesmas coisas são objecto da nossa aprovação e da nossa censura: tal é o resultado de todo o juízo em que se segue a opinião da maioria.
<br />No que diz respeito à vida feliz, não se pode responder como no voto por separação: "Este partido parece-me mais numeroso", pois, precisamente por isso, é o pior. As coisas humanas não vão tão bem que as melhores soluções agradem à maioria: a opinião da multidão é indício do pior. Procuremos, pois, aquilo que é o melhor e não o que é mais comum, aquilo que nos colocará na posse de uma felicidade eterna e não o que tem a aprovação do vulgar, que é o pior intérprete da verdade; ora, no vulgar, alinham tanto as pessoas com clâmides [capa curta de origem grega] como as pessoas coroadas, pois não olho a cor das vestes com que os corpos estão cobertos; quando se trata de avaliar um homem, não confio nos meus olhos; tenho, para distinguir o verdadeiro do falso, um melhor e mais seguro critério; o bem da alma tem de ser descoberto pela alma.
<br />Infligir-se-ía a si própria tais torturas que confessaria a verdade declarando: "Tudo o que fiz até agora preferia não o ter feito, quando penso em tudo o que disse, invejo os mudos; considero tudo o que desejei uma maldição dos meus inimigos; tudo o que temi, ó bons deuses, era bem mais suportável do que aquilo que desejei! Tive contas a ajustar com muitas pessoas, mas refiz amizade com elas (se é que é possível um acordo com pessoas malévolas); mas ainda não sou amigo de mim mesmo.
<br />Consagrei todos os meus cuidados a sair da multidão e a fazer-me notar por um mérito qualquer. Que fiz senão expôr-me aos ataques e mostrar à malevolência o local onde pode morder? Vês as pessoas que elogiam a eloquência, que se ligam à riqueza, que louvam o crédito, que exaltam o poder? Todos são inimigos, ou, o que acaba por ser o mesmo, podem sê-lo: os admiradores são outros tantos invejosos.
<br />Definição da Verdadeira Felicidade
<br />Procuro de preferência um bem que possa sentir a um que possa expôr; aquilo que se vê, aquilo que atrai os olhares, aquilo que se aponta ao outro com uma admiração plena de surpresa, isso brilha por fora, mas por dentro é apenas miséria. procuremos um bem que não se afirme pela sua aparência, mas que seja sólido, constante, com uma beleza interna e oculta; desenterremo-lo.
<br />Esse bem não está longe, encontrá-lo-emos, basta saber onde estender as mãos; mas agora estamos como no meio das trevas, passando pelos objectos próximos sem os ver, chocando até com aqueles que desejamos. Mas, para não te demorar com rodeios, deixarei de lado as opiniões dos outros, porque seria demorado enumerá-las e refutá-las. Escuta a nossa; no entanto, quando digo a nossa, não me refiro apenas a um dos mestres estóicos, pois também tenho o direito a ter uma opinião.
<br />Tanto seguirei um deles como convidarei outro a dividir a sua moção, e talvez, convocado a dar a minha opinião, diga, em vez de rejeitar uma das moções: "Proponho outra coisa." De resto, e aqui todos os estóicos estão de acordo, é à natureza que dou a minha concordância [assensio, no original latino. A concordância com a natureza é o ponto principal da filosofia estóica]; a sabedoria reside em não nos afastarmos dela, em nos conformarmos à sua lei e ao seu modelo. A vida feliz é pois uma vida conforme à sua própria natureza; não podendo ser alcançada, a menos que a alma esteja sã, em posse contínua da saúde, e que seja depois corajosa e enérgica, bela e paciente, adaptada às circunstâncias, cuidadosa do seu corpo e daquilo que lhe diz respeito, sem no entanto ficar inquieta, diligente em relação aos outros meios de embelezar a vida sem admirar nenhum deles, pronta a fazer uso dos presentes da sorte, mas não a sujeitar-se a eles.
<br />Compreenderás, mesmo que nada acrescente, que daí resultam a tranquilidade para sempre e a liberdade, pois ficamos livres daquilo que nos agita e assusta. Em vez de prazeres, em vez de alegrias ténues, frágeis e sujeitas a desonra, nasce uma imensa alegria, inabalável e constante; existe então na alma apaziguamento, acordo e grandeza aliada à doçura; pois a crueldade vem sempre da fraqueza.
<br />É possível dar uma outra definição do nosso bem, seguindo a mesma ideia em termos diferentes. Um mesmo exército tanto se desdobra numa larga frente como se concentra, pode adoptar uma formação em semicírculo ou estender-se numa frente rectilínea. Mas a sua força, seja qual fôr a formação adoptada, permanece a mesma, assim como a sua vontade de lutar em defesa da mesma causa; de igual modo, a definição do soberano bem pode, por vezes, estender-se e alongar-se ou fechar-se e condensar-se.
<br />Será sempre o mesmo dizer: "o soberano bem é a alma que desdenha os golpes da sorte e encontra o seu contentamento na virtude", ou ainda, "o soberano bem é a alma invencível, possuindo a experiência das coisas, calma na acção, com muita benevolência e gentileza para com aqueles que a rodeiam."
<br />Agrada-me também a seguinte definição: o homem feliz é aquele para quem nada é bom ou mau à margem de uma alma boa ou má; esse homem pratica aquilo que é honesto e contenta-se com a virtude; os acidentes da sortenão podem nem exaltá-lo, nem quebrá-lo, não conhece bem maior do que aquele que pode dar a si próprio; o seu verdadeiro prazer está no desprezo dos prazeres.
<br />É possível, se quisermos desenvolver ainda mais este tema, apresentar a mesma ideia sobre tal ou tal aspecto, matendo intacto o seu sentido. Quemnos impede de dizer que a vida feliz é uma alma livre, elevada, sem medo, constante, inacessível ao receio e ao desejo; para quem só existe um bem, a belezamoral, e um único mal, a indignidade?
<br />Tudo o resto é uma algazarra confusa que não retira nem acrescenta nada à vida feliz, que vem e que vai sem aumentar nem diminuir o soberano bem. Uma vez estabelecido assim o bem, a consequência necessária será, quer se queira ou não, uma satisfação contínua, uma alegria profunda que vem do fundo do ser, porque a alma satisfaz-se com as suas riquezas e nada deseja que lhe seja estranho.
<br />O que valem a seu lado as emoções corporais ténues, fúteis e sem duração? No dia em que se fôr vencido pelo prazer, ser-se-á também vencido pela dôr.
<br />Vês que triste e funesta servidão sofrerá o homem que fôr possuído, alternadamente, pelos mais caprichosos e tirânicos dos senhores, os prazeres e as dores. É pois necessário encontrar uma saída para a liberdade, e nada no-la poderá dar a não ser a indiferença aos golpes da sorte.
<br />Nascerá então esse bem sem preço, o repouso de uma alma que encontrou a segurança, a sua elevação, a alegria grande e estável que, uma vez os medos afastados, resultado do conhecimento do verdadeiro, a bondade de um coração satisfeito, todas as qualidades que nos encantam não a título de bens, mas porque nascem de um bem que está em nós.
<br />Já que empreendi abordar a questão com desenvolvimento, podemos ainda chamar feliz àquele que não conhece, nem deseja, nem receia, graças à razão, pois as pedras ignoram o receio e a tristeza, o mesmo acontecendo com o gado, sem que ninguém se lembre de chamar felizes aos seres desprovidos da inteligência da bem-aventurança. Coloco no mesmo lugar os homens cuja própria estupidez e ignorância, reduziu à condição de animais e seres inanimados. Nenhuma diferença existe entre uns e outros, pois que nuns a razão está ausente, enquanto nos outros é falseada, hábil no mal e pervertida; ninguém pode dizer, feliz aquele que se colocou fora da verdade.
<br />Em consequência, a vida feliz tem por fundamento imutável um juízo recto e firme. A alma é então purificada e libertada de todos os males, pois escapa não apenas aos dilaceramentos, mas às feridas ligeiras das paixões; resistirá onde se estabeleceu e defenderá a sua posição, mesmo contra os furores e assaltos da sorte.
<br />Quanto ao prazer, bem pode espalhar-se por todo o lado e insinuar-se por todas as vias, afagar a alma com carícias e dela aproximar muitos objectos para seduzir todo o nosso ser ou uma das suas partes: que mortal, se nele permanece algum traço da natureza humana, desejaria sentir-se estimulado de dia e de noite e, abandonando a sua alma, conceder todas as atenções ao corpo?
<br />O Soberano Bem e o Prazer
<br />A própria alma, diz-se, tem os seus prazeres.
<br />- Pois bem, que os tenha! Que seja a sede de delícias e prazeres! Que se encha de tudo o que em geral encanta os sentidos! Já que é capaz de rever o seu passado e se lembra dos prazeres de outrora com trasnporte, que se debruce sobre aqueles que hão-de vir, regule sobre isso as suas esperanças e, enquanto o seu corpo se abandona à boa vida, incida os seus pensamentos nos prazeres futuros! [esta passagem é uma crítica à escola de Epicuro para quem o prazer da alma deveria estar em recordar os prazeres passados de modo a ocultar o sofrimento presente] .
<br />Tudo isso me parece tanto mais miserável, quanto é uma loucura tomar os males por bens. Sem a saúde de espírito ninguém é feliz, e não é são aquele que procura como sendo o melhor aquilo que lhe causa prejuízo.
<br />Por isso, é feliz o homem que tem umjulgamento recto; é feliz aquele que se contenta com o presente, seja ele qual fôr, e que ama aquilo que tem; é feliz aquele que confia à razão a organização dos seus assuntos.
<br />Aqueles que fazem do prazer o soberano bem, sabem muito bem o lugar vergonhoso em que o colocaram. Dizem também que o prazer não pode ser separado da virtude e afirmam que ninguém pode viver honestamente sem viver agradavelmente, nem viver agradavelmente sem viver honestamente.
<br />Não vejo como estes elementos tão diversos podem caber no mesmo saco. Qual é, pois, pergunto-vos, a razão pela qual o prazer não poderia ser separado da virtude? Aparentemente o princípio de todo o bem está na virtude. Não será, pois, ela a origem dos objectos do vosso amor e do vosso desejo? mas, se eles fossem inseparáveis, não veríamos prazeres desonestos, nem acções perfeitamente honestas mas penosas, e que, para se concretizarem exigem sofrimentos.
<br />Acrescente-se ainda a isso que o prazer pode conciliar-se com a mais vergonhosa das existências, mas que a virtude não consente uma vida má e que há infelizes, não por falta de prazeres, mas precisamente devido a eles, o que não aconteceria se o prazer estivesse combinado com a virtude.
<br />A virtude existe muitas vezes sem o prazer e nunca tem necessidade dele. Porquê fundir coisas tão diferentes e mesmo opostas? A virtude é coisa elevada, sublime, real, invencível, inesgotável; o prazer é coisa baixa, servil, fraca, frágil, que se estabelece e permanece nos lupanares e nas tabernas. Encontrareis a virtude no templo, no fórum, no Senado. Ela resiste diante das muralhas, coberta de poeira, a tez crestada e as mãos calosas; habitualmente o prazer oculta-se e procura as trevas, está no acesso aos banhos, nas estufas e nos locais que receiam a polícia; amolecido, sem força, húmido de vinho e perfumes, pálido ou arrebicado, embalsamado de unguentos como um cadáver.
<br />O soberano bem é imortal, não pode perecer, não conhece nem saciedade nem arrependimento; com efeito, uma alma recta nunca muda, não experimenta ódio por si própria, nada tem a modificar na sua vida que é a melhor.
<br />Mas o prazer desvanece-se ao alcançar o ponto mais elevado; tem um espaço limitado e por isso o ocupa depressa; depois vem o aborrecimento e, após um primeiro impulso, o prazer murcha. Não pode haver constância naquilo que, por sua natureza, está em mudança. Nada pode existir de substancial naquilo que vem e passa tão depressa e está destinado a desaparecer através da sua própria realização; com efeito, o prazer conduz a um ponto em que cessa, e desde o início conhece o seu fim.
<br />Fonte: http://adlocutio.conquerwindows.com/Historia/AntiguidadeClassica/Roma/senecaDaVidaFeliz07.htm
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />ORFEU SPAM APOSTILA
<br />
<br />SUBLIME
<br />
<br />Conceito anti-clássico associado à grandiosidade, enlevação e transcendência. Com ele dá-se, por exemplo, a transição do neoclassicismo para o romantismo, ocupando um local central na estética do século XVIII. Foi primeiro usado como um termo retórico, dizendo respeito a determinadas qualidades que uma obra literária possui que possam transmitir ao leitor o êxtase e levar os seus pensamentos a um plano mais elevado. Mais tarde, é Edmund Burke quem teoriza sobre o sublime, contrastando o seu conceito com a ênfase dada pelo Iluminismo, à claridade, precisão, simetria e ordem. O conceito de sublime encontra repercussão nos trabalhos de variados críticos e filósofos. Ao longo de quatro séculos, suscitou diversas interpretações devido à sua complexidade, e estimulou ideias, paixões e controvérsias nos seus leitores e críticos.
<br />O vocábulo sublime entra na língua inglesa por via francesa, derivada do latim. O seu uso inicial diz respeito à linguagem ou estilo exaltado e mais tarde à percepção física. O primeiro registo que se conhece sobre este termo é um tratado, intitulado Do sublime, atribuído erroneamente a Longino. Desse tratado, em grego Peri hupsous , que significa “Das alturas”, o melhor e mais antigo manuscrito existente é o Codex Parisiensis 2036, datado do século X, embora um terço desse manuscrito se encontre irremediavelmente perdido. Este é, provavelmente, a fonte de onde derivam todos os outros. Não se sabe quem é realmente o autor deste tratado. Foi falsamente atribuído a Longino (213–273 d.C.), filósofo grego, discípulo de Amónio Sacas, que estudou na escola Neoplatónica de Alexandria, mas até o nome deste autor é de difícil identificação porque poderia tratar-se de Cassius Longinus, Dionysius Longinus ou até mesmo Dionysius de Halicarnassus. Sabe-se agora que o tratado remonta ao século I d. C.. O erro na atribuição do tratado a Longino fez com que se optasse por identificar o autor como Pseudo-Longino ou Anónimo. O tratado é composto por diversos capítulos, dezassete dos quais sobre figuras de estilo, e é dirigido, em forma de epístola, a Posthumius Terentianus. Estudiosos indicam este tratado como sendo resposta a um trabalho do retórico siciliano Cæcilius de Calacte. O que Pseudo-Longino pretendeu foi completar a doutrina exposta por Cæcilius nesse trabalho, pois julgava-a insuficiente no que diz respeito à essência da arte.
<br />Pseudo-Longino não pretende definir o sublime, porque este é uma qualidade inefável; o que ele pretende é identificar as suas fontes. Assim, o autor identifica como fontes do sublime as seguinte capacidades: certa elevação do espírito para se poder formular elevadas concepções; o afecto veemente e cheio de entusiasmo, capaz de provocar paixões inspiradas; certa disposição das figuras de pensamento e de dicção, que seriam uma espécie de desvios provenientes da imaginação e criatividade; formular de forma nobre; e compor de forma magnífica, dignificante e elevada. As duas primeiras fontes dizem respeito ao génio inato; enquanto que as restantes são o resultado da arte.
<br />Define a sublimidade na literatura como a principal virtude literária. É o «eco da grandeza do espírito», o poder moral e imaginativo do escritor presente no seu trabalho. Esse poder poderia transformar qualquer obra numa obra louvável e digna, quaisquer que fossem os seus defeitos, se ela atingisse o sublime. O termo aqui empregue refere-se a algo extratextual e, dessa forma, independente dos géneros literários e da perfeição que a retórica clássica impunha. Pela primeira vez, a grandeza da literatura é atribuída às qualidades inatas do escritor e não às da sua arte. Esta contribuição é inovadora, sendo uma teoria afectiva da literatura. O mérito da obra de arte está no poder de transportar o leitor ao êxtase e tal só acontece se a obra atingir o sublime. Dessa forma, a identificação da personalidade do autor, qualidades da obra e seus efeitos no leitor são determinantes da sua grandeza literária.
<br />O que o autor concretiza no tratado é o afastamento e reformulação do conceito aristotélico de mimesis, tornando esse mesmo conceito mais amplo e mais criativo. A imitação é presidida por uma inspiração divina, passando a poesia a ser um dom do Poeta. O autor foi demasiado revolucionário na sua forma de interpretar a mimesis e, por essa razão, as ideias contidas no tratado não foram compreendidas no seu tempo, não havendo citações nem sobre o assunto nem sobre a própria obra durante a época clássica e Idade Média.
<br />As emoções são o ponto principal de consideração do sublime, porque segundo Pseudo-Longino não há tom mais elevado do que o da paixão genuína. Isto veio antecipar muitos dos temas e métodos que mais tarde viriam a despertar o interesse do movimento romântico. A originalidade deste tratado encontra-se no facto de ele ser uma nova proposta para o problema da essência da obra literária. Pseudo-Longino preocupa-se com a génese da obra, estados de espírito, pensamentos e emoções do autor e não com a qualidade da obra em si.
<br />O tratado Do sublime foi apenas descoberto no século XVI. A primeira edição da obra é de 1554, sendo publicado por Francisco Robertello. Em 1652, John Hall publica uma versão inglesa deste tratado, mas na altura não teve grande repercussão. É em 1674, com a tradução francesa de Nicolas Boileau-Despréaux, intitulada Du sublime, que o conceito entra em Inglaterra. Publica esta tradução no mesmo volume da sua Arte poétique e nela escreve um longo prefácio, onde inclui uma biografia de Longino, na época suposto autor do tratado. Esta será o ponto de partida para as posteriores traduções, por ser na altura considerada como a mais importante. Hoje sabe-se que a sua tradução é imprecisa e demasiadamente livre na interpretação.
<br />O conceito veio modificar a estética neoclássica do século XVIII, no que diz respeito à criação literária, com o seu culto da grandeza, da sublimidade da concepção e emoção. Estas atribuições substituem o desejo vigente de representar fielmente a realidade, abrindo, deste modo, caminho para o romantismo. Há uma grande elaboração de trabalhos sobre o sublime e a sua discussão passa pela filosofia, pela literatura e outras áreas.
<br />Na época, o trabalho mais lido sobre o sublime foi o tratado de Edmund Burke, A Philosophical Enquiry Into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful (1757), passando por dezassete edições durante a vida do autor. Depois dos ensaios de John Addison, este foi o trabalho mais influente no decurso da estética inglesa do século XVIII. As diversas tentativas de questionar a teoria neoclássica, fazem com que este tratado apareça numa altura crucial.
<br />Burke trás uma nova luz sobre o conceito de sublime, valorizando a imaginação como factor de criação. Burke foi original por se aperceber que o poder da sugestão é um forte estímulo para a imaginação. Distingue o conceito do sublime, com as suas associações ao infinito, à obscuridade, à solidão e ao terror, do conceito do belo, que consiste na relativa pequenez, na delicadeza, na suavidade e na luminosidade das cores.
<br />Um dos elementos que Burke realçou nesse tratado foi o terror e as suas causas: o poder, a obscuridade, o infinito, entre outras. Pseudo-Longino tinha definido terror como uma paixão que não era sublime, enquanto que Boileau não o tinha sequer mencionado. Contudo, John Dennis, em The Grounds of Criticism in Poetry (1704), tinha indicado que o terror seria uma paixão específica produzida por Deus, uma fonte do sublime por excelência. Os poetas da Graveyard School regiam-se, também, pelo conceito de terror.
<br />Isto terá, sem dúvida, influenciado Burke no seu tratado, criando uma relação entre sublime e morte, derivando daí o prazer. Tal acontece porque Burke atribui o terror a uma tensão dos nervos. Sem essa tensão o indivíduo sente apenas indiferença, que é algo pior que a dor. É devido ao terror estimular os nervos, e daí as paixões, que ele é deleitoso. Para Burke o prazer não se obtém apenas na distanciação dos objectos que poderão ser uma ameaça (morte), mas é a excitação masoquista que o indivíduo sente ao aproximar-se deles. Tendo em conta que o terror é o princípio comum a tudo o que é sublime e que o que aterroriza ameaça a existência do indivíduo, cria-se essa relação entre sublime e morte, da qual deriva esse tipo particular de prazer. Esta teoria de Burke viria mais tarde a ser importante para o romance gótico.
<br />Immanuel Kant, na sua Crítica da Faculdade de Julgar (1790), afirma que existe sublime na natureza, pois esta fornece objectos incomensuráveis e o sublime é o que se apresenta como absolutamente grande. Mas esse sublime é limitado pois na verdade ele reside na razão que domina essa natureza. Na filosofia de Kant, o sublime é uma mistura de prazer e dor que se sente quando se está face a algo de grande magnitude. Pode-se ter uma ideia de tal magnitude, mas não se consegue fazer igualar essa ideia com uma intuição sensorial imediata. Isto deve-se ao facto de os objectos sublimes ultrapassarem as capacidades sensoriais. Um exemplo de sublime, para Kant, seria uma montanha. Pode-se ter ideia de uma montanha, mas não intuição sensorial dela como um todo. Sentimos dor pelo facto das nossas faculdades não conseguirem apreender o objecto, mas sentimos prazer também na tentativa de o fazermos. Divide, ainda, o sublime em matemático e dinâmico. O sublime matemático verifica-se quando a nossa capacidade de intuição é dominada pelo tamanho (uma grande montanha); o dinâmico quando a nossa intuição é dominada pela força (uma tempestade).
<br />A sua teoria difere da de Burke, na medida em que Kant não considera o sentimento do terror como próprio de nenhuma experiência estética, logo, como próprio do sublime. Um indivíduo subjugado pelo terror não pode julgar o sublime, da mesma maneira que um indivíduo seduzido por estímulos não pode julgar o belo. Kant utiliza o conceito de sublime para introduzir a problemática da representação do “irrepresentável”. Esta é uma ideia fulcral para a futura arte e pensamento modernista.
<br />A Crítica da Faculdade do Juízo de Kant influenciou Friedrich Schiller. Contudo este afasta-se de Kant, pois alia a teoria do sublime à teoria da tragédia.
<br />No século XX, durante os anos 80, Jean-François Lyotard analisa o lugar do sublime na filosofia crítica de Kant. Na sua filosofia pós-moderna, o sublime aparece como a sensação que especifica os limites da razão e da representação. Lyotard alarga a noção de sublime do absolutamente grandioso, a todas as coisas que confundam a nossa competência de sintetiza-las em conhecimento.
<br />Encontram-se também referências ao tratado e ao conceito de sublime no trabalho de vários críticos como Elder Olson, Neil Hertz, Suzanne Guerlac e Harold Bloom. Este último considera Das Unheimliche (1919) de Freud, como o mais importante contributo do século XX para a estética do sublime.
<br />Bib.: Custódio José de Oliveira, Tratado do Sublime – de Dionísio Longino (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984); Edmund Burke, Philosophical Inquiry Into the Origins of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful, (T. Boulton, 1958); Friedrich Schiller “Do Sublime”, “Sobre o Sublime”, in Friedrich Schiller: Textos sobre o Belo, o Sublime e o Trágico, (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997); Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993); Geoffrey Bennington “The Sublime and the Avant-garde” in Paragraph 6 (1985); Michèle Crampe-Casnabet “O Sublime”, in Michèle Crampe-Casnabet: Kant - Uma Revolução Filosófica, (Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1994); Orlando Pires “Longino” in Manual de Teoria e Técnica Literária (1989); Paul Crowther, The Kantian Sublime – From Morality to Art, (1991); Rudolf Eisler, “Erhaben”, in Kant-Lexikon (1977); W. Hamilton Fyfe and W. Rhys Roberts, Aristotle –The Poetics; Longinus – On Sublime; Demetrius – On Style (1991);
<br />Fonte: http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/S/sublime.htm
<br />
<br />Sublime
<br />
<br />javascript:NovaJanela('Enc_Termos/termos_imp.cfm?cd_verbete=3655&imp=N&cd_idioma=28555', '680', '450'); javascript:NovaJanela('Enc_Termos/termos_imp.cfm?cd_verbete=3655&imp=N&cd_idioma=28555', '680', '450');
<br />
<br />Definição
<br />O termo (do latim sublimis) entra em uso no século XVIII como uma nova categoria estética, distinta do belo e do pitoresco. O termo remete a uma ampla gama de reações estéticas e a uma nova sensibilidade voltada para os aspectos extraordinários e grandiosos da natureza. Para o sublime, a natureza é ambiente hostil e misterioso que desenvolve no indivíduo um sentido de solidão. Empregado primeiro na retórica e na poesia, o conceito obtém aceitação mais ampla com a tradução francesa do Tratado sobre o sublime, atribuído a Longino (século III d.C.), realizada pelo escritor Nicolas Boileau (1636-1711) e editada em 1674. Longino descreve as coisas do mundo natural em termos de imensidão e violência. Em pleno classicismo, a estética do sublime, apoiada na idéia do temor reverencial à natureza, interpela os valores reinantes ligados à ordem, ao equilíbrio e à objetividade. O sublime se dirige ao ilimitado, ao que ultrapassa o homem e todas as medidas ditadas pelos sentidos. A noção conhece desenvolvimento precoce na Inglaterra em função dos escritos de William Shakespeare (1564-1616), Edmund Spenser (ca.1549- 1599) e sobretudo de John Milton (1608-1674). No longo poema bíblico O Paraíso Perdido (1667), Milton constrói uma tragédia de dimensões cósmicas cujo personagem central é Satã, anunciando aí o tópico do satanismo, fortemente explorado pelos românticos. Ainda na literatura, o Canto de Ossiam (lendário bardo e guerreiro gaélico cujos versos conhecem notoriedade na década de 1760 e que na verdade foram escritos por seu "tradutor", Macpherson), o romance gótico - gênero pioneiramente exercitado por Horace Walpole (1717-1797) em O castelo de Otranto (1764) - e o movimento literário alemão do Sturm und Drang [Tempestade e Ímpeto] (1770-1790), alimentam a estética do sublime.
<br />É na Inglaterra que vem à luz o mais importante tratado sobre o conceito, Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo (1757), de Edmund Burke (1729-1797). Burke apresenta o sublime como uma modalidade da experiência estética mais ampla, encontrada não apenas na literatura. Segundo a sua definição, a natureza do sublime relaciona-se ao infinito e, sobretudo, ao sentimento do terror. Para Burke, "tudo aquilo que serve para, de algum modo, excitar as idéias de dor e perigo... ou versa sobre objetos terríveis, ou opera de maneira análoga ao terror, é origem do sublime; ou seja, é causador da mais forte emoção que a mente é capaz de sentir". Uma das primeiras obras a enfatizar o poder de sugestão como elemento fundamental para a imaginação - "as imagens escuras, confusas e incertas, mais do que aquelas claras e determinadas, têm sobre a fantasia um poder maior de formar as grandes paixões" -, o tratado de Burke sinaliza um distanciamento em relação às idéias clássicas e racionalistas do início do século XVIII, anunciando preocupações que viriam a ser exploradas pelo romantismo. O impacto das idéias de Burke na Alemanha se faz sentir através de Kant (1724-1804), sobretudo em suas Observações sobre o sentimento do Belo e do Sublime (1764) e na Crítica do Juízo (1790), onde define o "sublime como aquilo que é absolutamente grande". O pintor e teórico da arte inglês Joshua Reynolds (1723-1792) discute o sublime em seu último Discurso (1790). Tanto as figuras de Deus como a imagem das Sibilas pintadas por Michelangelo Buonarroti (1475-1564) no forro da Capela Sistina, segundo ele, provocam a mesma sensação das "mais sublimes passagens de Homero".
<br />Nas artes visuais, o culto do sublime conhece expressões muito variadas, embora seja possível localizar nele traços dominantes: o caráter visionário do sublime é representado, de modo geral, por cores empalidecidas e sem brilhos, por traços marcados e gestos excessivos. O gosto pelas paisagens selvagens e inóspitas do pintor napolitano Salvator Rosa (1615-1673), de ampla aceitação na Inglaterra, exerce grande influência no desenvolvimento do sublime. Penhascos escarpados e árvores retorcidas criam uma ambiência de desolação que contrasta com a grandeza clássica do paisagismo de Nicolas Poussin (1594-1665). As pinturas visionárias e fantásticas do inglês William Blake (1757-1827) - entre outras, Newton (1795) e O Purgatório (1824-1827) - e as imagens alucinadas de Heinrich Füssli (1751-1829) - por exemplo, O Pesadelo (1781) - colocam em funcionamento a categoria estética do sublime, tipicamente pré-romântica em sua revalorização dos elementos irracionais e fantásticos da arte. Mas os dois artistas que melhor sintetizam o sublime na pintura são Joseph Mallord William Turner (1775-1851) e Caspar David Friedrich (1774-1840). Nas telas do inglês, a natureza se mostra como potência desvastadora, seja como fogo ou como força marítima. Nos quadros de Friedrich, o aspecto sublime se revela sobretudo por uma espacialidade majestosa, que apequena os homens. No entanto as soluções trágicas e expressivas de Michelangelo estão na raiz da poética do sublime. Segundo Blake, ele seria o modelo do artista sublime, um "gênio" inspirado por excelência, localizado nas antípodas da pureza de gosto de Rafael (1483-1520).
<br />Fonte: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3655
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br /><a></a>
<br />PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-37515391773275683872009-04-22T12:06:00.000-07:002009-08-13T08:58:05.029-07:00LITERATURA CLÁSSICA GREGA<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgaOgS5d9NqqbUzLfzwlk9CVChpQAqaGO8vCba26FPeP0iBsEeCvYEqiL-xB5IJOtft8UneN0MzD8YN_21sc_25GNPhFMnqbnl3eI7_8NPW9hZTEVeaIYJe7jR9QmWWnqYVR7l0GofNbFU/s1600-h/atenas3.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5330046957353348146" style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; WIDTH: 320px; CURSOR: hand; HEIGHT: 207px" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgaOgS5d9NqqbUzLfzwlk9CVChpQAqaGO8vCba26FPeP0iBsEeCvYEqiL-xB5IJOtft8UneN0MzD8YN_21sc_25GNPhFMnqbnl3eI7_8NPW9hZTEVeaIYJe7jR9QmWWnqYVR7l0GofNbFU/s320/atenas3.jpg" border="0" /></a><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />HOMERO<br />A Ilíada - por Daniel Duclós<br />A Ilíada (do grego Iλιάς, Ilias) é um poema épico grego e narra uma série de acontecimentos ocorridos durante o décimo e último ano da Guerra de Tróia. O título da obra deriva do nome grego de Tróia, Ílion.<br />A Ilíada e a Odisséia são comumente atribuídas a Homero, que acredita-se ter vivido por volta do século VIII a.C. na Jônia ( lugar que hoje é uma região da Turquia), e tratam-se dos mais antigos documentos literários gregos a sobreviverem aos nossos dias. Porém, até hoje se debate a existência desse poeta e se os dois poemas foram compostos pela mesma pessoa.<br />Visão geral<br />A Ilíada é composta de 15.693 versos em hexâmetro dactílico, que é o formato tradicional da épica grega. Hexâmero é um verso composto de seis sílabas poéticas e dactílico faz alusão ao ritmo do poema, composto de uma sílaba longa e duas breves, já que o grego (e o Latim) não possuem sílabas tônicas, e sim breves e longas.<br />A linguagem utilizada é o grego, num dialeto Jônico, e acredita-se que a Ilíada venha da tradição oral, ou seja, era cantada pelo rapsodo. Existem diversas seções que se repetem, como “ganchos” que facilitariam a memorização pelos aedos, indicando sua natureza de obra transmitida oralmente. Só muito mais tarde os versos foram compilados numa versão escrita, no século VI a.C. em Atenas. O poema foi então posteriormente dividido em 24 Cantos, divisão que persiste até hoje. A divisão é atribuída aos estudiosos da Biblioteca de Alexandria, mas pode ser anterior.<br />Os gregos acreditavam que a guerra de Tróia era um fato histórico ocorrido durante o período micênico, durante as invasões dóricas, por volta de 1200 a.C.. Entretanto há na Ilíada descrições de armas e técnicas de diversos períodos, do micênico ao século VIII a.C., indicando ser este o século de composição da epopéia.<br />A Ilíada influenciou fortemente a cultura clássica, sendo estudada e discutida na Grécia (aonde era parte da educação básica) e, posteriormente, no Imperio Romano. Sua influência pode ser sentida nos autores clássicos, como na Eneida, de Virgílio.<br />Até hoje considerada uma das obras mais importantes da literatura mundial.<br />Argumento<br />A Ilíada se passa durante o décimo e último ano da guerra de Tróia e trata da ira do herói e semideus Aquiles, filho de Peleu e Tétis. A ira é causada por uma disputa entre Aquiles e Agamémnom, comandante dos aqueus e consumada com a morte do herói troiano Heitor (ou Héctor, como também é traduzido o nome, especialmente na versão de Haroldo de Campos, de 2002), terminando com seu funeral.<br />Embora Homero se refira a uma grande diversidade de mitos e acontecimentos prévios, que eram de amplo conhecimento dos gregos e, portanto da sua platéia, a história da guerra de Tróia não é contada em sua íntegra. Dessa forma, o conhecimento prévio da mitologia grega acerca da guerra é relevante para a compreensão da obra.<br />A guerra de Tróia<br /><br />Helena de Tróia segundo Evelyn de Morgan, 1898<br />Os gregos antigos acreditavam que a guerra de Tróia era um fato histórico, ocorrido por volta de 1200 a.C. no período micênico, mas estudiosos atuais tem dúvidas se ela de fato ocorreu. Até a descoberta do sítio arqueológico na Turquia, em Anatólia, se acreditava que Tróia era uma cidade mitológica.<br />A Guerra de Tróia se deu quando os aqueus atacaram a cidade de Tróia, buscando vingar o rapto de Helena, esposa do rei de Esparta, Menelau, irmão de Agamémnom. Os aqueus eram os povos que hoje conhecemos como gregos, que compartilhavam uma cultura e língua comuns, mas na época se enxergavam como vários reinos, e não como um povo só.<br />A lenda conta que a deusa (ninfa) do mar Tétis era desejada como esposa por Zeus e seu irmão Poseidon. Porém Prometeu fez uma profecia que o filho da deusa seria maior que seu pai, então os deuses resolveram dá-la como esposa a Peleu, um mortal já idoso, intencionando enfraquecer o filho, que seria apenas um humano. O filho de ambos é o guerreiro Aquiles e sua mãe, visando fortalecer sua natureza mortal, o mergulhou quando ainda bebê nas águas do mitológico rio Estige. As águas tornaram o herói invulnerável, exceto no calcanhar, por onde a mãe o segurou para mergulhá-lo no rio (daí a famosa expressão “calcanhar de Aquiles”, significando ponto vulnerável). Aquiles se torna o mais poderoso dos guerreiros, porém, ainda é mortal. Mais tarde, sua mãe profetisa que ele poderá escolher entre dois destinos: lutar em Tróia e alcançar a glória eterna, mas morrer jovem ou permanecer em sua terra natal e ter uma longa vida, porém ser logo esquecido.<br />Para o casamento de Peleu e Tétis todos os deuses foram convidados, menos Éris, ou Discórdia. Ofendida, a deusa compareceu invisível e deixou à mesa um pomo de ouro com a inscrição “à mais bela”. As deusas Hera, Atena e Afrodite disputaram o título de mais bela e o pomo. Zeus então ordenou que o príncipe troiano Páris, à época sendo criado como um pastor ali perto, resolvesse a disputa. Para ganhar o título de “mais bela”, Atena ofereceu a Páris poder na batalha, Hera o poder e Afrodite o amor da mulher mais bela do mundo. Páris deu o pomo à Afrodite, ganhando assim sua proteção, porém atraindo o ódio das outras duas deusas contra si e contra Tróia.<br />A mulher mais bela do mundo era Helena, filha de Zeus e Leda. Leda era casada com Tíndaro, rei de Esparta. Helena possuía diversos pretendentes, que incluiam muitos dos maiores heróis da Grécia, e o seu pai adotivo, Tíndaro, hesitava tomar uma decisão em favor de um deles temendo enfurecer os outros. Finalmente um dos pretendentes, Odisseu (cujo nome latino era Ulisses), rei de Ítaca, resolveu o impasse propondo que todos os pretendentes jurassem proteger Helena e sua escolha, qualquer que fosse. Helena então se casou com Menelau, que se tornou o rei de Esparta.<br />Quando Páris foi a Esparta em missão diplomática, se enamorou de Helena e ambos fugiram para Tróia, enfurecendo Menelau. Este apelou aos antigos pretendentes de Helena, lembrando o juramento que haviam feito. Agamémnom então assumiu o comando de um exército de mil naus e atravessou o Mar Egeu para atacar Tróia. As naus gregas desembarcam na praia próxima a Tróia e iniciam um cerco que iria durar 10 anos e custaria a vida muitos heróis de ambos os lados. Finalmente, seguindo um estratagema proposto por Odisseu, o famoso Cavalo de Tróia, os gregos conseguem invadir a cidade governada por Príamo e terminam a guerra.<br />A Ilíada não conta o final da guerra, nem narra a morte de Aquiles.<br />Personagens principais<br />A Ilíada é um poema extenso e possui uma grande quantidade de personagens da mitologia grega e Homero assumia que seus ouvintes estavam familiarizados com esses mitos, o que pode causar confusão no leitor moderno. Segue um resumo dos personagens que tomam parte na Ilíada:<br />Os Aqueus<br />Os gregos antigos não se enxergavam como “gregos” ou “Helênicos”, denominação posterior, mas como “aqueus”, compostos por diversos povos de diversos reinos que tinham uma língua e cultura razoavelmente compartilhada. Os aqueus também são chamados de “Dânaos” por Homero.<br />• Aquiles: Herói e melhor de todos os guerreiros, filho da deusa marinha Tétis e do mortal Peleu, rei dos Mirmidões. Sua ira é o tema central da Ilíada.<br />• Agamémnom: Rei de Micenas e comandante supremo dos aqueus, sua atitude de tomar a escrava Briseida de Aquiles é o estopim do desentendimento entre eles.<br />• Pátroclo: Amigo de Aquiles. Alguns argumentam que há envolvimento homossexual entre Aquiles e Pátroclo.<br />• Odisseu: Rei de Ítaca, considerado “astuto”, ou “ardiloso”. Freqüentemente faz o papel de embaixador entre Aquiles e Agamémnom.<br />• Calcas Testorídes: Poderoso vidente que guia os aqueus. Foi ele que predisse que a guerra duraria 10 anos, que era preciso devolver Criseida ao pai e muitas outras coisas.<br />• Ajax, Nestor, Diomedes, Idomeneu: Reis e heróis gregos, que comandavam exércitos de seus reinos sob a supervisão geral de Agamémnom.<br />• Menelau: Rei de Esparta, marido de Helena.<br />Os Troianos e seus aliados<br />• Heitor, ou Héctor: Príncipe de Tróia, filho de Príamo e irmão de Páris. É o melhor guerreiro Troiano, herói valoroso que combate para defender sua cidade e sua família. Líder dos exércitos troianos.<br />• Príamo: rei de Tróia, já é idoso, portanto quem comanda de fato a luta é seu filho, Heitor.<br />• Páris: Príncipe de Tróia, sua fuga com Helena é a causa da guerra. É sua flecha que termina por matar Aquiles, embora isso não seja retratado na Ilíada.<br />• Enéias: Primo de Heitor e seu principal tenente. É o personagem principal da Eneida, obra máxima do poeta latino Virgílio.<br />• Helena: Esposa de Páris, antes casada com Menelau, e pivô da guerra. Com a queda de Tróia volta para Esparta e para Menelau.<br />• Andrómaca: Esposa de Heitor, com quem tem um filho bebê, Astíanax.<br />Os Deuses<br />Os deuses gregos tomam parte ativa na trama, se envolvendo na batalha e ajudando ambos os lados. Notadamente temos Tétis ( mãe de Aquiles) Apolo, Hera, Atena, Poséidon, Afrodite, Ares.<br />Resumo da narração<br />No décimo ano do cerco a Tróia, há um desentendimento entre as forças dos aqueus, comandadas por Agamémnom. Ao dividirem os espólios de uma conquista, o comandante aqueu fica, entre outros prêmios, com uma moça chamada Criseida, enquanto que a Aquiles cabe outra bela jovem, Briseida. Criseida era filha de Crises, sacerdote do deus Apolo, e este pede a Agamémnom lhe restitua a filha em troca de um resgate. O chefe aqueu recusa a troca, e o pai ofendido pede ajuda a seu deus. Apolo passa então a castigar os aqueus com a peste. Quando forçado a devolver Criseida ao pai para aplacar o castigo divino, Agamémnom toma a Aquiles sua Briseida, como forma de compensação e desagravo a Aquiles. Este, ofendido, se retira da guerra junto com seus valentes Mirmidões. Aquiles pede então a sua divina mãe que interceda junto a Zeus, rogando-lhe para que favoreça aos troianos, como castigo pela ofensa de Aquiles. Tétis consegue a promessa de Zeus de que ajudará aos troianos, a despeito da preferência de sua esposa, Hera, pelo lado aqueu.<br />Então Zeus manda, através de Oneiros, a Agamémnom um sonho incitando-o a atacar Tróia sem as forças de Aquiles. Agamémnom resolve testar a disposição de seu exército. A tentativa por pouco não termina em revolta generalizada, incitada pelo insolente Tersites. A rebelião só é evitada graças à decisiva intervenção de Odisseu, que fustiga Tersites e lembra a profecia de Calcas de que Ílion cairia no décimo ano do cerco.<br />Os dois exércitos se perfilam no campo de batalha, diante de Tróia. Páris, príncipe de Tróia, se adianta, mas logo recua ao ver Menelau, de quem roubara a esposa causando a guerra. Menelau o insulta e Páris responde propondo um duelo entre ambos. Os aqueus respondem com agressões, porém seu irmão Heitor, o maior herói troiano, reitera o desafio, propondo que o destino da guerra seja decidido numa luta entre Menelau e Páris. Menelau aceita, exigindo juramento de sangue sobre o pacto de respeitar o resultado do duelo. Enquanto os preparativos são feitos, Helena se junta a Príamo, rei de Tróia, no alto de uma torre para observar a contenda. Ela apresenta os maiores comandantes gregos, apontando-os para Príamo.<br />O duelo tem início e Menelau leva vantagem. Quando está para derrotar Páris, Afrodite intervém e o retira da batalha envolto em névoa, levando-o ao encontro de Helena. Agamémnom declara então que Menelau venceu a disputa e exige a entrega de Helena e pagamento do resgate. Porém Hera e Atena protestam junto a Zeus, pedindo a continuidade da guerra até a destruição de Tróia. Zeus cede em troca da não intervenção de Hera caso deseje destruir uma cidade protegida por ela. Atena então desce entre as tropas troianas e convence Pândaro, arqueiro troiano, a disparar contra Menelau, ferindo-o e rompendo o pacto com os gregos. O exército troiano avança, e Agamémnom incita os aqueus ao combate. Tem lugar então uma luta violenta, na qual os gregos começam a levar vantagem. Porém Apolo incita aos troianos, lembrando-os que Aquiles não participa da peleja.<br />Os troianos então avançam, retomando a vantagem sobre os gregos, a despeito dos grandiosos esforços de Diomedes, que insuflado pela deusa Palas Atena, chega a ferir os deuses Afrodite e Ares, que defendem os troianos. Os gregos por sua vez parecem retomar a vantagem, o que faz com que Heitor então retorne à cidade para pedir a sua mãe tente acalmar à Palas com oferendas. Após falar com a mãe, se encontra com sua esposa e filho em uma torre. O encontro é bastante triste, onde Heitor fala com a esposa e o filho sobre o seus futuros, pois pressente que Tróia cairá. A seguir, convoca Páris e com ele volta à batalha.<br /><br />Aquiles cura Pátroclo<br />Detalhe de vaso em técnica de cerâmica vermelha 500 a.C.<br />Apolo combina com Atena uma trégua na batalha e para conseguí-la incitam Heitor a desafiar um herói grego ao duelo. Ajax é os escolhido num sorteio e avança para o combate. O duelo é renhido e prossegue até a noite, quando é interrompido. Os aqueus então aproveitam para recolher seus mortos e preparar um baluarte.<br />Com a manhã, o combate recomeça, porém Zeus proíbe os outros deuses de interferir, enquanto que ele dispara raios dos céus, prejudicando aos aqueus. O combate prossegue desastroso para os gregos, que acabam por se recolher ao baluarte ao final do dia. Os troianos acampam por perto, ameaçadores.<br />Durante a noite Agamémnom se desespera, percebendo que havia sido enganado por Zeus. Porém Diomedes garante que os aqueus tem fibra e ficarão para lutar. Agamémnom acaba por ouvir os conselhos de Nestor, e envia a Aquiles uma embaixada composta por Odisseu, Ajax, dois arautos e o veterano Fenix presidindo, para oferecer presentes e pedir ao herói que retorne à batalha. Aquiles, porém, ainda irado, não cede.<br />Agamémnom então envia Odisseu e Diomedes ao acampamento troiano numa missão de espionagem. Heitor, por sua vez, envia Dolon espionar acampamento aqueu. Dólon é capturado por Odisseu e Diomedes, que extraem informações e o matam. A seguir invadem o acampamento troiano e massacram o rei Reso e doze guerreiros que dormiam, se retirando de volta para o lado aqueu, onde são recebidos com festa.<br />Durante o dia o combate retoma, e os troianos novamente são superiores, empurrados por Zeus. Heitor manda uma grande pedra de encontro a um dos portões e invade o baluarte grego, expulsando-os e empurrando-os até as naus, de onde não haveria mais para onde recuar a não ser para o oceano. Há amargo combate, com os aqueus recebendo apoio agora de Poséidon enquanto Zeus favorece os troianos, com heróis realizando grandes feitos de ambos os lados.<br />Hera, então, consegue convencer Hipnos a adormecer Zeus. Os gregos, acuados terrivelmente, se aproveitam desse momento para recuperar alguma vantagem, e Ajax fere a Heitor. Porém Zeus acorda e, vendo os troianos dispersos e a momentânea vitória grega, reconhece a obra de Hera e a repreende. Hera diz que Poséidon é o único culpado, e Zeus a manda falar com Apolo e Íris para que estes instiguem os troianos novamente à luta. Então Zeus impede Poséidon de continuar interferindo, e os troianos retomam a vantagem. Os maiores heróis aqueus estão feridos.<br />Pátroclo, vendo o desastre dos aqueus, vai implorar a Aquiles que o deixe comandar os Mirmidões e se juntar à batalha. Aquiles lhe empresta as armas e consente que lidere os Mirmidões, mas recomenda que apenas expulse os troianos da frente das naus, e não os persiga. Pátroclo então sai com as armas (incluindo a armadura) de Aquiles e combate os troianos junto às naus. Ao ver fugindo os troianos, Pátroclo desobedece a recomendação de Aquiles e os persegue até junto da cidade. Lá, Heitor o confronta em duelo e acaba por matá-lo.<br />Há uma disputa pelas armas de Aquiles, e Heitor as ganha, porém Ajax fica com o corpo de Pátroclo. Os troianos então repelem os gregos, que fogem, acossados. Aquiles, ao saber da morte do companheiro, fica terrivelmente abalado, e relata o acontecido a Tétis. Sua mãe promete novas armas para o dia seguinte e vai ao Olimpo encomendá-las a Hefestos. Enquanto isso o Aquiles vai de encontro aos troianos que perseguem os aqueus e os detém com seus gritos, permitindo que os gregos cheguem a salvo com o cadáver. A noite interrompe o combate.<br />Na manhã seguinte Aquiles, de posse das novas armas e reconciliado com Agamémnom, que lhe restituíra Briseida, acossa ferozmente os troianos numa batalha em que Zeus permite que tomem parte todos os deuses. Trucidando diversos heróis, Aquiles termina por empurrar o combate até os portões de Tróia. Lá Heitor, aterrorizado, tenta fugir de Aquiles, que o persegue ao redor da cidade. Por fim Heitor é enganado por Atena, que o convence a se deter e enfrentar o maior herói aqueu. Ele pede a Aquiles que seja feito um trato, com o vencedor respeitando o cadáver do vencido, permitindo seu enterro digno e funerais adequados. Aquiles, enlouquecido de raiva, grita que não há pacto possível entre presa e predador. O terrível duelo acontece e Aquiles fere mortalmente Heitor na garganta, única parte desprotegida pela armadura. Morrendo diante de seus entes queridos, que assistiam de dentro das muralhas, Heitor volta a implorar a Aquiles que permita que seu corpo seja devolvido a Tróia para ser devidamente velado. Aquiles, implacável, nega e diz que o corpo de Heitor será pasto de abutres enquanto o de Pátroclo será honrado.<br />Aquiles amarra o corpo de Heitor pelos pés à sua biga e o arrasta diante da família e depois o traz até o acampamento grego. São feitos os jogos funerais de Pátroclo. Durante a noite, o idoso Príamo vem escondido ao acampamento grego pedir a Aquiles pelo corpo do filho. O seu apelo é tão comovente que Aquiles cede, chorando, com a ira arrefecida. Aquiles promete trégua pelo tempo necessário para o adequado funeral de Heitor. Príamo leva o cadáver de seu filho de volta para a cidade, onde são prestadas as honras fúnebres ao príncipe e maior herói de Tróia.<br />Resumo dos Cantos<br />• Canto I: É o décimo ano da guerra de Tróia. Aquiles e Agamémnom se desentendem devido a disputa sobre uma jovem cativa<br />• Canto II: Odisseu impede uma revolta e os gregos se preparam para um ataque a Tróia.<br />• Canto III: Páris desafia Menelau para um duelo, propondo decidir o destino da guerra. Menelau vence, mas Páris sobrevive, salvo por Afrodite.<br />• Canto IV: O pacto é quebrado pelos troianos e a guerra recomeça.<br />• Canto V: Diomedes realiza grandes prodígios, ferindo Afrodite e Ares.<br />• Canto VI: Heitor retorna à Tróia para pedir que se tente apaziguar Afrodite. Encontra-se com esposa e filho e retorna à batalha junto de seu irmão Páris.<br />• Canto VII: Heitor duela com Ajax. A luta empata, interrompida pela noite.<br />• Canto VIII: Os deuses se retiram da batalha.<br />• Canto IX: Agamémnom tenta se reconciliar com Aquiles, mas este recusa.<br />• Canto X: Diomedes e Odisseu saem em missão de espionagem e atacam o acampamento troiano.<br />• Canto XI: Páris fere Diomedes, e Pátroclo fica sabendo da desastrosa situação grega.<br />• Canto XII: Retirada grega até as naus.<br />• Canto XIII: Poséidon se apieda dos gregos e os motiva.<br />• Canto XIV: Hera adormece a Zeus, permitindo a reação grega.<br />• Canto XV: Zeus acorda e impede que Poséidon continue interferindo. Os troianos retomam a vantagem no combate.<br />• Canto XVI: Pátroclo pede a armadura a Aquiles e permissão para entrar na luta. Aquiles concede, porém Pátroclo é morto por Heitor.<br />• Canto XVII: Há uma disputa pelo corpo e armadura de Pátroclo. Heitor fica com a armadura e Ajax com o corpo.<br />• Canto XVIII: Aquiles fica sabendo da morte de Pátroclo, e sua mãe lhe providencia uma nova armadura.<br />• Canto XIX: Aquiles, de armadura nova e reconciliado com Agamémnom, se junta à guerra.<br />• Canto XX: Batalha furiosa, da qual participam livremente os deuses.<br />• Canto XXI: Aquiles chega aos portões de Tróia<br />• Canto XXII: Aquiles duela com Heitor e o mata. A seguir, desonra seu cadáver, arrastando-o ao acampamento grego.<br />• Canto XXIII: Pátroclo é velado adequadamente<br />• Canto XXIV: Príamo pede o cadáver do filho e Aquiles, comovido, cede. Heitor é devidamente velado em Tróia.<br />Traduções<br />Existem muitas traduções para a Ilíada em português, tanto em verso como adaptações em prosa. A qualidade e fidelidade das traduções variam bastante, mas destacam-se três, todas em verso. A mais antiga das três é a de Odorico Mendes, feita no século XIX (1874), que possui a peculiaridade de trocar os nomes dos deuses gregos pelos seus arquétipos equivalentes latinos. Ou seja, em vez de Zeus, Júpiter, de Poséidon, Netuno, etc. A outra tradução é a de Carlos Alberto Nunes, feita em 1962. Por fim, há a tradução de Haroldo de Campos, em uma edição bilíngüe em dois volumes de 2002 (editora Arx), em versos que buscam resgatar a sonoridade do original grego, inclusive com diversos neologismos. Todas as três são consideradas de grande qualidade, e tem características próprias.<br />Temas na Ilíada<br /><br />Corpo de Heitor sendo levado de volta à Tróia – Alto relevo romano em mármore, detalhe de um sarcófago<br />Embora a Ilíada narre uma série de acontecimentos da guerra de Tróia e se refira a uma série de outros, seu tema principal é o ciclo da ira de Aquiles, da sua causa ao seu arrefecimento. Isto fica claro logo na primeira linha do poema. A palavra grega mēnin, ira, é a primeira do poema, cuja famosa primeira linha é “Menin aeide, Thea, Peleiadeo Aquileos“. Em português seria “Ira canta, Deusa, Peléio Aquiles” ou, adaptando, “Cante, Deusa, a ira do filho de Peleu, Aquiles”. Através da consumação dessa ira, é tratada a humanização do herói e semideus Aquiles, sempre conflitado por sua dupla natureza, filho de deusa e homem, portanto mortal.<br />A questão da escolha entre valores materiais, como a segurança e a vida longa e valores morais, mais elevados, como a glória e o reconhecimento eterno é tratada na escolha com que Aquiles se defronta: lutar e morrer jovem, e ser lembrado para sempre, ou permanecer seguro e ser esquecido.<br />A soberba de Aquiles contrasta grandemente com a sobriedade de Heitor, também grande herói, que não busca a glória como Aquiles, mas luta pela segurança de sua família e de sua cidade, e a preservação de suas raízes troianas.<br />A guerra e suas conseqüências também é tema central na Ilíada, sendo ricamente retratada.<br />A condição humana é magistralmente trabalhada por Homero, mostrando os dilemas mortais, as interferências de instâncias superiores e suas conseqüências, personificadas nos deuses que tomam partido.<br />Amizade, honra e muitos outros temas abstratos também fazem parte da obra, compondo um belo painel da alma humana o que é, sem dúvida, uma das qualidades que tem determinado a longieviedade da narrativa homérica na cultura universal.<br />Este texto, desenvolvido por Daniel Duclós, estudante da Letras-USP e colaborador do Consciência.org, foi também publicado na Wikipédia - PT, no verbete Ilíada<br />Fonte: http://www.consciencia.org/iliadadaniduc.shtml<br /><br />Ilíada de Homero<br />Tradução de Odorico Mendes<br />Fonte: Clássicos Jackson<br /><br /><br />Argumento do Livro I da Ilíada<br /><br />Exposição do assunto. — Crises, sacerdote de Apolo, vem ao campo<br />dos gregos para resgatar sua filha. — Repelido e ultrajado por<br />Avamémnon, invoca a protecção de Apolo. — A peste, como um castigo<br />ilivino, lavra pelo exército grego e mata muitos de seus heróis. —<br />Aquiles convoca a reunião dos chefes, promete sua protecção ao<br />adivinho Calcas, e lhe pergunta a causa da cólera de Apolo. — O<br />adivinho a revela e indica como único meio de afastar o flagelo a<br />instituição de Criseida. — Cólera de Agamémnon contra Calcas: suas<br />ameaças contra Aquiles. — Este lança mão da espada, Minerva lhe<br />aconselha, e dócil à voz da deusa limita-se a responder apenas com<br />insulto o recebido ultraje. — Agamémnon forçado a restituir Criseida<br />n seu pai, toma de Aquiles a cativa Briseida. — Aquiles, indignado,<br />não quer mais combater pelos gregos; invoca sua mãe Tétis, que o<br />consola e lhe promete vingança. — Volta de Criseida à sua pátria;<br />sacrifício em honra de Apolo. — Entrevista de Tétis e de Júpiter con-<br />sentindo em dar a vitória aos troianos. — Queixas de Juno e ameaças<br />de Júpiter em presença dos habitantes do Olimpo. — Graças à inter-<br />venção de Vulcano, restabelece-se a paz na assembleia dos imortais.<br />Canto I<br /><br />Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles<br />A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,<br />Verdes no Orço lançou mil fortes almas,<br />Corpos de heróis a cães e abutres pasto:<br />Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem<br />O de homens chefe e o Mírmidon divino.<br /><br />Nume há que os malquistasse? o que o Supremo<br />leve em Latona. Infenso um letal morbo<br />No campo ateia; o povo perecia,<br />Só porque o rei desacatara a Crises.<br /><br /><br />Com ricos dons remir viera a filha<br />Aos alados baixéis, nas mãos o ceptro<br />E a do certeiro Apolo ínfula sacra.<br />Ora e aos irmãos potentes mais se humilha:<br />"Atridas, vós Aqueus de fina greva,<br />Raso o muro Priâmeo, assim regresso<br />Vos dêem feliz do Olimpo os moradores!<br />Peço a minha Criseida, eis seu resgate;<br />Reverentes à prole do Tonante,<br />Ao Longe-vibrador, soltai-me a filha".<br /><br />Que, aceito o preço esplêndido, se acate<br />O sacerdote murmuraram todos;<br />Mas desprouve a Agamémnon, que o doesta<br />E expele duro: "Em cerco às naus bojudas<br />Não me apareças mais, quer ouses, velho,<br />Deter-te ou retornar; nem áureo ceptro,<br />Nem ínfula do deus quiçá te valha.<br />Nunca a libertarei, té que envelheça<br />Fora da pátria, em meu palácio de Argos<br />A urdir-me teias e a compor meu leito.<br />Sai, não me irrites, se te queres salvo."<br />Taciturno o ancião treme e obedece.<br /><br />Busca as do mar fluctissonantes praias.<br />Ao que pariu pulcrícoma Latona<br />Afastando-se impreca: "Arcitenente,<br />Ouve, Esminteu, que Ténedos enfreias,<br />Crisa proteges e a divina Cila,<br />Se de festões colguei teu santuário,<br />Se de cabras e touros coxas pingues<br />Te hei queimado, compraze-me os desejos,<br />A tiros teus meu choro os Dânaos paguem."<br /><br />Febo, a tais preces, arco e aljava cruza,<br />Do vértice do céu baixa iracundo;<br />Vem semelhante à noite, e a cada passo<br />Tinem-lhe ao ombro as frechas. Ante a frota<br />Suspenso, a farpa do carcás descaixa,<br />Terrível o arco argênteo estala e zune:<br />Moles primeiramente a cães e a mulos,<br />Depois com vira acerba ataca os homens,<br />De cadáveres sempre a arder fogueiras.<br />Al tropas dias nove asseteadas,<br />Ao décimo as convida e ajunta Aquiles;<br />Inspiração da bracinívea Juno,<br />Que seus Dânaos morrer cuidosa via.<br />Ele, em pinha o congresso, velocípede<br />Si alça e diz: "A escaparmos, julgo, Atrida,<br />Retrocedermos errabundos cabe:<br />Peite os nossos consome e os ceifa a guerra.<br />Eia, adivinho, arúspice, ou de sonhos<br />(Jove os envia) conjector se inquira,<br />Qe explique a ofensa do agastado Febo:<br />Sc a votos e hecatombes lhe faltámos;<br />Se, para desarmar-se, olor de assados<br /><br />Cordeiros nos reclama e nédias cabras."<br />A seu lugar tornou. De augures mestre,<br />No passado e presente e porvir sábio,<br />Surgiu Calcas Testórides, que a Tróia<br />Por influxos de Apolo as naus guiara,<br />E concionando exordiou prudente:<br />"Mandas-me, ó caro a Júpiter, o agravo<br />Do grã frecheiro expor. Aqui prometas<br />Com braço e voz cobrir-me: o fel eu temo<br />Do amplo-reinante que domina os Graios;<br />E ao fraco se um monarca ódio concebe,<br />Cose-o e concentra, enquanto o não sacia.<br />Tu me assegura." — "Afouto, brada Aquiles,<br />Vaticina. Por Febo, a Jove grato,<br />A quem rogas e oráculos te ensina,<br />Nenhum, desfrute eu vivo o térreo aspecto,<br />Nenhum violentas mãos te porá, Calcas;<br />Nem que seja Agamémnon, que entre Aquivos<br />De mais prestante e augusto se ufaneia."<br /><br />Anima-se o bom velho: "Sacrifícios<br />Nem votos pede Apolo; em nós o ultraje<br />Punindo vai do Atrida, que ao ministro<br />O livramento rejeitou da filha;<br />Nem grave a dextra poupará castigos,<br />Se não reverte a jovem de olhos pretos,<br />Sem resgate ou presente, ao pai querido,<br />Remetendo-se a Crisa uma hecatombe.<br />Com isto por ventura o deus se aplaque."<br /><br />O áugur mal se abancava, o rei suberbo,<br />Senhor pujante, merencório ergueu-se:<br />Raiva as entranhas lhe intumesce e afuma,<br />Cintila a vista em brasa; esguelha a Calcas<br />Tétrico senho: "Desastroso vate,<br />Nunca essa boca aprouve-me: o teu ponto<br />Ê pregoar desditas; nem palavra<br />Nem obra tens que preste. Agora os Dânaos,<br />Pena-os Febo em vingança da retida<br />Criseida em quem me inflamo, a quem pospunha<br />Clitemnestra gentil que esposei virgem,<br />Que não lhe cede em garbo, engenho e prendas.<br />Pois mais convém, liberta a restituo;<br />Sadio o anseio, não padeça o povo.<br />Mas preparai-me um prémio; eu só dos Gregos<br />Dele excluído ser não me é decente;<br />O meu, testemunhais, me foi roubado."<br /><br />Controverte o Peleio: "Vanglorioso<br />Avidíssimo Atrida, que outra paga<br />Exiges dos magnânimos Aquivos?<br />Por dividir ignoro onde haja espólio;<br />Partiu-se o das cidades saqueadas;<br />Hoje um novo sorteio é repugnante.<br />Ao deus concede-a; recompensa triple<br />E quádrupla terás, quando o Satúrnio<br />Derrocar nos outorgue a excelsa Tróia."<br /><br />Retorque o rei: "Se és bravo, ó divo Aquiles,<br />Com dolo e subterfúgios não me enganes;<br />Possuis tua cativa, eu perco a minha;<br />E impões que de perdê-la me contente?<br /><br /><br />Meu peito satisfaçam de igual prenda<br />Os liberais Aqueus; senão, teu prémio,<br />De Ulisses ou de Ajax, trarei comigo:<br />Amargará quem for. Sobrestejamos<br />Nisto por ora. Ao pélago deitemos<br />Negra nau bem remada, que transporte<br />A hecatombe e Criseida esbelta e linda.<br />Um dos cabos, Ajax, o egrégio Ulisses,<br />ídomeneu comande-a, ou tu Pelídes,<br />Tremendíssimo herói, para que Apolo<br />Nos tentes granjear com sacrifícios."<br /><br />"Ah! como, o vulto fecha e estronda Aquiles,<br />Vulpina alma sem pejo, a teus acenos<br />Há quem marche a conflitos e emboscadas?<br />Não vim bater os valorosos Teucros<br />Por queixa pessoal; corcéis nem reses<br />Me furtaram, nem agros destruíram<br />Da altriz guerreira Ftia; entre nós muita<br />Serra medeia opaca e o mar sonoro.<br />Viemos, cão protervo, para em Tróia<br />A Menelau e a ti lavar a nódoa.<br />Alardeias, ingrato, e nos desprezas;<br />Audaz cominas arrancar-me a escrava,<br />A dádiva de Aqueus por tantas lidas.<br />Caia llion famosa: embora o peso<br />Da guerra em mim carregue, o mais opimo<br />Quinhão terás; com pouco eu volte a bordo<br />Sem boquejar, de choques fatigado.<br />A Ftia me recolho e os meus navios,<br />Já que aviltas a mão que de tesouros<br />A fome te fartava: eu te abandono."<br /><br />"Foge, Agamémnon replicou-lhe, foge,<br />Se é teu prazer; que fiques não te imploro:<br />E formam-me outros, e em Júpiter confio.<br />Dos reis alunos dele és quem detesto;<br />Só respiras discórdias, rixas, pugnas.<br />Tens valor? agradece-lho. Os navios<br />Recolhe e os teus; nos Mírmidões impera:<br />Não te demoro; esse rancor desdenho.<br />Priva-me de Criseida Febo Apolo:<br />Em nau minha esquipada vou mandá-la.<br />À tenda hei-de ir-te mesmo, eu to previno,<br />Tomar-te a elegantíssima Briseida;<br />Sentirás em poder como te excedo,<br />E outrem se me antepor e ombrear trema."<br /><br />Chameja o herói, no hirsuto peito volve<br />Se de ante o fémur desbainhe o estoque<br />E por entre os Aqueus lho embeba todo,<br />Ou se o furor no coração reprima.<br />Já meia espada a cogitar sacava:<br />Eis da alva Juno, que os escuda e preza,<br />Por ordem Palas desce, e aos mais invisa,<br />Atrás o aferra pela flava coma.<br />Volta-se ele espantado e a reconhece<br />Pelo medonho olhar, e sem demora:<br />"A que vens ó do Egífero progénie?<br />A assistir aos convícios de Agamémnon?<br />Pois to declaro, e conto já fazê-lo,<br />Tem de acabar a vida esse orgulhoso."<br /><br />E a deia olhicerúlea: "Vim, de acordo<br />Com Juno albinitente, amiga de ambos,<br />Comedir-te e amansar. Anda, em palavras<br />Tu desabafa, a lâmina embainha.<br />Por esta injúria, to predigo certo,<br />Inda haverás em triplo insignes prémios.<br />Sê-nos pois dócil, a paixão modera."<br /><br />"Cumpre, o fogoso torna-lhe, é cordura<br />Mesmo irado curvar-me a tais preceitos:<br />Quem se submete, os deuses mais o escutam."<br />Logo a pesada mão no argênteo punho<br />Conteve, encasa e esconde o gládio horrendo.<br />Ela a Júpiter se ala e às mais deidades.<br /><br />Não deposto o furor, contra Agamémnon:<br />"Ébrio, acérrimo Aquiles vocifera,<br />Cara de perro e coração de cervo,<br />Nunca te armas e à liça te abalanças,<br />Nunca às ciladas os homens acompanhas:<br />Isso te é morte. Em vasto acampamento,<br />Sim, mais vale esbulhar os que te arrostam:<br />Cobardes reges, vorador do povo;<br />Senão, tanta insolência aqui findara.<br />Por este ceptro juro, que estroncado<br />Jamais rebentará, pois na montanha<br />Folhas e casca cerceou-lhe o gume;<br />Por este, que os Grajúgenas arvoram<br />Do justo guarda e das leis divinas,<br />Juro, Atrida, é solene o juramento,<br />Suspirarão sem falta por Aquiles;<br />Nem lhes serás de auxílio, quando em barda<br />Esse Heitor homicida os vá segando.<br />Então de raiva e nojo hás-de comer-te,<br />Porque o maior dos Gregos rebaixaste."<br /><br />Nisto, arrojando o ceptro auricravado<br />Sentou-se. O Atrida em cólera abafava.<br />Nestor Pílio intervém, de cuja língua<br />Doce eloquência mais que o mel fluía.<br />Dos falantes que, nados na alma Pilos,<br />Criaram-se com ele, idades duas<br />Decorridas, reinava na terceira.<br />Discreto e afável, o discurso tece:<br />"Numes eternos, oh! que luto à Grécia!<br />Oh! que júbilo a Príamo e seus filhos!<br />Folgue llio à nova de que assim litigam<br />Os de mor pulso e tino. Obedecei-me,<br />Sou velho, ó moços. Tido em boa conta<br />Com melhores que vós me dava outrora.<br />\Varoes vi nunca, nem verei, qual Drias<br />Das gentes regedor, Ceneu e Exádio,<br />Um Pirítoo, um divo Polifemo,<br />Teseu Egides a imortais parelho.<br />Outros como estes não nutria a terra:<br />Feros pugnaram trucidando a feros<br />Montícolas Centauros. Lá de Pilos,<br />Da Ápia eu vinha rogado; conversava-os,<br />Quanto era em mim nas lutas me exercia.<br />Ninguém dos vivos de hoje os contrastara;<br />Atendiam contudo os meus conselhos:<br />Atendê-los vos praza. Ao mais estrénuo<br />Tu não tomes dos nossos a só paga;<br />Nem de ao rei contravir, Pelides, cures;<br />Dos eleitos que Júpiter estima,<br />Ceptrígero nenhum se lhe equipara:<br />Mãe deusa te gerou, valor te sobra;<br />Tem ele mais poder, que impera em muitos.<br />Eu to suplico, Atrida, a fúria amaina,<br />Sê brando para quem nesta árdua empresa<br />É baluarte e escudo aos Gregos todos."<br /><br />E Agamémnon: "Com tento nos falaste,<br />Recto ancião. Primar quer sempre esse homem,<br />Poderio se arroga, e eu não lho sofro.<br />Se os imortais invicto o constituíram,<br />Pcrmitcm-lhe por isso os impropérios?"<br /><br />"Fraco eu seria e vil, o atalha Aquiles,<br />Sc inda me sujeitasse: os mais o aturem;<br />Cesse em mim teu domínio, eu to recuso.<br />Digo, e na mente o grava: ao retomares<br />Meu galardão, contigo nem com outrem<br />Pendência travarei; mas não me toques<br />Al do que encerro em leve bojo escuro.<br />Ousa-o: que saberão como o defendo,<br />Como em teu sangue impuro ensopo a lança."<br /><br />Finda a rixa, o congresso Aqueu dissolvem.<br />O herói para seu bordo retirou-se,<br />A escolta e o seu Menécio. Ao mar o Atrida<br />Baixel deita, e remeiros vinte elege;<br />Conduz no embarque a nítida Criseida,<br />Mais a hecatombe: sob o cauto Ulisses<br />Fendem rápido as húmidas campinas,<br />Com lustrações o exército Agamémnon<br />Expurga e n’água a lavadura atiram;<br />Cabras e touros cento a Febo ao longo<br />Do inesgotável pego sacrificam:<br />Monta ao céu pingue cheiro envolto em fumo.<br /><br />Ali mesmo efeitua o chefe Argivo<br />Sua ameaça: dois arautos chama,<br />Taltíbio e Euríbate, expeditos servos:<br />"Ide ao Pelides e agarrai-me a escrava;<br />Aliás, mais agro transe, à força aberta<br />A formosa Briseida eu vou tirar-lha."<br />E com ríspidas ordens os despede.<br /><br />O infrugífero mar cercando invitos,<br />Junto ao real e à capitânia quedo,<br />Entre os seus Mírmidões na praia o acharam:<br />Por certo não gostou de os ver Aquiles.<br />De assombro estacam, nem tugir se atrevem<br />Ante o herói formidável, que o percebe:<br />"Salve, núncios de Jove e dos guerreiros;<br />Sos, não vos culpo, arautos. Agamémnon<br />Vo-lo ordenou. Vai tu, celeste aluno,<br />Vai por ela, Patroclo, e a moça levem.<br />Aos mortais, ao rei sevo, às divindades,<br />:; mo atesteis, se for mister meu braço<br />A desviar dos outros a vergonha. . .<br />Que furor cego! alheio do presente,<br />O porvir não prevê, nem como os Dânaos<br />Das naus sem risco em derredor pelejem."<br />Da tenda, à voz do amigo, traz Patroclo<br />E entrega-lhes Briseida fresca e bela,<br />Que os seguiu pesarosa à esquadra Argiva.<br />Só, carpindo-se, Aquiles na espumante<br />Beira ficou-se; o ponto azul esguarda,<br />As palmas tende e à boa mãe recorre:<br />"De curta vida, ó Tétis, me pariste;<br />Sequer me engrandecesse o Altipotente;<br />Mas ele não me outorga a menor glória.<br />Em meu despeito o soberano Atrida<br />Arrebatou-me o prémio e dele goza."<br /><br />Ao pé do anoso pai, lá no áqueo fundo<br />Sentiu-lhe o pranto a veneranda ninfa:<br />Da salsa espuma, como névoa, surde;<br />Conchegada ao Pelides lamentoso,<br />Com mão fagueira consolando o anima:<br />"Choras? que ânsia te aflige? Nada encubras,<br />Comunicame, filho, as penas tuas."<br /><br />Do íntimo o celerípede suspira:<br />"Sabes; que vai dizer-to? A sacra Tebas<br />De Eetion depredada, o espólio todo<br />Arrecadou-se, e em regra o dividimos :<br />Teve o Atrida a pulquérrima Criseida.<br />Remir a filha com riqueza imensa<br />Do Longe-vibrador veio o ministro<br />Às lestes naus de cobre encoiraçadas;<br />Nas mãos facha Apolínea e o ceptro de ouro,<br />Roga e aos dois potentados mais se abate:<br />Que, em reverência ao cargo, se receba<br />O esplêndido resgate, afio aprovam,<br />Menos o Atrida, que o repulsa c afronta.<br />Parte o velho indignado; e o deus que o ama<br />Dele a instâncias, vibrou feral contágio,<br />De que a gente em cardumes fenecia,<br />Pestíferas as setas rechinando<br />Por todo o exército. Eminente vate<br />O oráculo solveu-nos; c eu primeiro,<br />A apaziguar o nume exorto os sócios.<br />Furente ergue-se o rei, minaz fulmina,<br />E não debalde; que olhi-espertos gregos<br />Em ágil nau Criseida reconduzem<br />Com pios dons, e arautos mesmo agora<br />Do pavilhão transferem-me a donzela<br />Que os Dânaos me doaram. Tu, que o podes,<br />Socorre o filho, ao grã Tonante ascende;<br />Se o já serviste com palavras e obras,<br />Hoje o depreca. A mim, no pátrio alvergu«,<br />De única blasonavas que entre os deuses<br />Preservaste o nubícogo Satúrnio<br />Do feio opróbrio, quando, à frente a esposa<br />E Minerva e Neptuno, o encadearam:<br />Mas tu, madre, lhe acorres e o desprendes,<br />Convocas em auxílio o Centimano,<br />Que é nos céus Briareu, na terra Egéon.<br />Mais robusto que o pai, da honra altivo,<br />De Jove a par se teve, e de assustados<br />Os imortais do empenho desistiram.<br />Recorda-lhe isto, abraça-Ihe os joelhos:<br />Que ajudar queira os Troas; que os Aquivos,<br />Té às popas e ao mar cerrados, paguem<br />Por seu tirano e a maldizê-lo expirem.<br />O amplo-dominador confesse a culpa<br />De insultar o fortíssimo dos gregos."<br /><br />E em lágrimas a deia: "Ai! filho, como<br />Te amamentei gerado em hora infausta?<br />Oh! se de mágoa ileso a bordo fosses!<br />Urge-te a Parca, e mais que todos penas:<br />Malfadado nasceste em régios paços.<br />Em paz, nas prestes naus, teu ódio ceves;<br />Que hei-de ao nevoso Olimpo ir ver se dobro<br />Quem se deleita com trovões e raios.<br />Ele e sua corte, às abas do Oceano,<br />De inocentes Etíopes desd’ontem<br />A mesa logram. No dozeno dia,<br />Ao voltar à mansão de aénea base,<br />Revolvida a seus pés tocá-lo espero."<br />Nisto, sumiu-se-lhe e o deixou raivando<br />De o desfalcarem da mulher garbosa.<br /><br />De Crisa em funda barra entrava Ulisses.<br />Ferram-se as velas, no atro bojo as metem;<br />Enxárcias afrouxando, o mastro arreiam;<br />A remo aportam, a âncora seguram,<br />E atadas as rajeiras, desembarcam;<br />Pós a hecatombe do arci-argênteo Febo,<br />Da sulcadora nau saiu Criseida.<br />No altar o sábio Ulisses a apresenta,<br />Vira-se ao pai querido: "Aqui mandou-me,<br />Crises, o rei dos reis trazer-te a virgem<br />E estas cem reses com que o deus mitigues<br />Que em dores nos soçobra." Alvoroçado<br />O velho ao peito ansioso aperta a filha.<br /><br />A perfeita hecatombe então colocam<br />Em torno da ara; e, os dedos já lavados,<br />Pegam do salso bolo. O sacerdote<br />Orando eleva as palmas: "Se a meus rogos,<br />De Ténedos senhor, ó tu que amparas<br />Crisa e a divina Cila, em desagravo<br />O campo Argeu feriste, hoje me escuta,<br />Remove a peste que devora os Dânaos."<br /><br />Febo o escutou. Completa a rogativa,<br />Esparso o farro, à vítima o pescoço<br />Vergam atrás, e degolada a esfolam;<br />Cérceas as coxas, no redenho envoltas,<br />Cobrem-nas vivas postas. Ao tostá-las<br />Crises na lenha tinto baço asperge:<br />Quinquedentado espeto lhe sustinha<br />Cada servente. Provam-se as fressuras,<br />Já combustas as coxas, e em tassalhos<br />A mais carne enroscada assam peritos,<br />E a obra é feita. Apronta-se o convívio:<br />Ninguém do seu quinhão queixar-se pôde.<br />Exausta a sede e a fome, das crateras<br />Coroadas almo vinho os moços vertem;<br />Cada qual auspicando os copos liba.<br />Por captarem favor, o dia inteiro<br />Jovens Dânaos entoam ledo péan,<br />E seus cantos o deus regozijavam.<br /><br />Cedendo o sol à treva, ao pé repousam<br />Do amarrado navio, e assim que alveja<br />A aurora dedirrósea, o porto largam.<br />Erecto o mastro, as pandas brancas velas<br />A brisa enfuna que o certeiro Apolo<br />Bafeja, e a ressoar cerúlea vaga<br />Do buço em derredor, cortava a quilha<br />O páramo salobre. No abordarem<br />O arraial dos Aqueus, varado em seco<br />Sobre longos roihões o bruno casco,<br />Por tendas e outras naus se repartiram.<br /><br />Sempre enfadado nos baixéis, o ardente<br />Generoso Pelides na assembleia<br />De heróis não comparece ou nas batalhas;<br />Do ócio porém seu coração ralado,<br />Almeja o alarma e pela guerra brame.<br /><br />Ao duodécimo dia, à casa etérea,<br />Em testa Jove, os numes se encaminham.<br />Dos mares Tétis, sem que olvide o filho,<br />Surgindo matutina, ali se alteia;<br />Semoto encontra o providente Padre<br />No fastígio do Olimpo cumioso;<br />Pára, da sestra prende-lhe os joelhos,<br />Da dextra o mento afaga, e assim lhe implora:<br />"Se entre imortais, senhor, te fui profícua<br />Por dito e acção, preenche-me este voto:<br />Orna a meu filho a vida, já que é breve;<br />Que o rei possante o assuberbou de insultos<br />E retém-íhe o só prémio. Glorifica-o,<br />Ó pai celeste; aos Frígios dá vitória,<br />Té que de honras os Dânaos o acumulem."<br />O anuviador calou-se, e ela mais insta:<br />"Pois que receias? ou concede ou nega;<br />Que a deusa ínfima sou prove-se agora."<br /><br />Do imo geme o Tonante: "É mau que incites<br />A com seus ralhos molestar-me Juno,<br />One, assídua em me aturdir perante os numes,<br />Desses Troianos parcial me acusa.<br />Vai-te, ela não te enxergue. A mim o tomo:<br />Do certíssimo aceno entre as deidades,<br />Selo à minha promessa irrevogável."<br />Então franze as cerúleas sobrancelhas,<br />Da cabeça imortal sacode a coma,<br />E estremece abalado o imenso Olimpo.<br /><br />Obtido o fim, do éter puro Tétis<br />Pula ao mar, e o Satúrnio à régia passa.<br />Nenhum dos deuses o esperou sentado;<br />Vão respeitosos cortejá-lo todos.<br />Ele entronou-se; e Juno, que aventara<br />Da Nereida argentípede o segredo,<br />Assaltando o invectiva: "Quem, doloso,<br />Fora de mim se conluiou contigo ?<br />Sempre agradam-te ajustes clandestinos;<br />Nunca um só pensamento me descobres."<br /><br />E o rei supremo: "Em penetrar não cuides<br />Arcanos meus; esposa embora sejas,<br />Penosos te serão. Nem deus nem homem<br />Quanto ouvir devas me ouvirá primeiro;<br />Mas o que a parte no ânimo concebo,<br />Não mo perguntes, nem mo inquiras, Juno."<br /><br />A augusta irmã contesta: "Que proferes?<br />Jamais pergunto nem te inquiro nada;<br />A teu sabor tranquilo deliberas.<br />Mas temo te seduza, ó cru Satúrnio,<br />A branca filha do marinho velho:<br />Madrugou-te abraçando-te os joelhos;<br />E suspeito anuíste a que ante a frota<br />Sucumbam Dânaos por amor de Aquiles."<br /><br />Redargui o que as nuvens amontoa:<br />"Ruim maliciosa, eu não te escapo;<br />No desagrado meu com isso incorres.<br />Trago pior terás; que lucro esperas?<br />Se é verdade o que dizes, foi meu gosto.<br />Não mais, submissa em teu lugar sossega:<br />Se as mãos te calmo invictas, pouco importa<br />Que te acudam do pólo os moradores."<br />A olhitáurea, tremente e silenciosa,<br />Volve a seu posto, na alma a dor sopeia;<br />Os demais carregaram-se tristonhos.<br />Por consolar a bracinívea madre,<br />Vulcano ínclito fabro assim começa:<br />"É praga intolerável que aos Supremos<br />Questões humanas alvoroto excitem;<br />Se o mal grassa, os festins seu preço perdem,<br />À mãe discreta aviso a que amacie<br />Meu pai dilecto; a repreensão de novo<br />Não nos turbe as delícias do banquete,<br />Pois, se tal se lhe antoja, o Omnipotente<br />Destes assentos nos derriba a todos.<br />Sim, com ternos obséquios o acarinhes;<br />Plácido ele nos seja." E em tom mais baixo,<br />Duplicôncava taça, erguido, oferta:<br />"Paciente, cara mãe, sufoca o anojo;<br />Estes olhos batida ah! não te vejam.<br />Meu zelo e meu pesar que prestariam?<br />Contra o fulminador árduo é lutarmos<br />No acorrer-te uma vez, do pé travado,<br />Precipitou-me do limiar divino.<br />Toda a noite rolei na imensidade;<br />A Lemnos, posto o Sol, fui ter exânime,<br />Ei os Síntios ao cair me agasalharam."<br /><br />Sorrindo, a clara deia o copo aceita.<br />Pela dextra em redor, seu filho aos numes<br />Da cratera entornava o doce néctar.<br />Os beatos celícolas romperam<br />Numa infinita cachinada, quando<br />Vulcano a escancear se azafamava.<br />É já tarde, e regalam-se os convivas<br />De iguais porções de opíparos manjares.<br />Lange na lira Apolo, e as Musas cantam<br />Com suave cadência e melodia.<br /><br />Dês que a diurna luz desaparece,<br />Desencostados, cada qual procura<br />Seu domicílio no esplendente alcáçar,<br />Do coxo mestre fábrica estupenda.<br />O fulgurante Olímpio ao toro sobe,<br />Onde usa o meigo sono acometê-lo;<br />Dorme-lhe em braços a auritrónia Juno<br />Fonte: http://www.consciencia.org/iliada_canto1-homero.shtml<br /><br />POESIA, ORALIDADE, MEMÓRIA, MITO E O PODER DA MÉTIS EM HOMERO<br />Prof. Sílvio Medeiros<br />Compostos há cerca de 3.000 anos por Homero, os dois longos poemas épico-narrativos a “Ilíada” e a “Odisséia”, a “Bíblia” dos gregos (1) são, ambas, fontes inesgotáveis que deram de beber tanto aos “genius” (2) de Virgílio [70 a.C- 19 d.C] na “Eneida” quanto ao imaginário do homem comum de James Joyce [1882-1941] em “Ulisses”.<br />Há dúvidas - entre estudiosos do mundo antigo e do mundo contemporâneo - no que se refere ao ano e ao local do nascimento do famoso poeta grego. Na Grécia letrada, depois de Homero, assim afirma Herôdotos (484-425 a.C.), o chamado “pai da História” ocidental: “_ Realmente, suponho que a época de Homero e Hesíodo não é mais de quatrocentos anos anterior à nossa ...” (Herôdotos: 1988). Por conseguinte, notamos (não tão-somente pela datação) que Herôdotos, em verdade, se inscreve na tradição épico-homérica, sobretudo em seu projeto historiográfico voltado a salvar a memória. Basta citarmos as primeiras linhas herodotianas de sua “História” para ilustrar tal ponto:<br /><br />“Os resultados das investigações de Herôdotos de Halicarnassos são apresentados aqui, para que a memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que feitos maravilhosos e admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados, inclusive as razões pelas quais eles se guerrearam.” (Herôdotos, 1988 , p.19)<br /><br />Contudo, há algo que diferencia a narrativa herodotiana da narrativa mítico-épico-homérica, na medida em que Herôdotos privilegia o testemunho daquilo que ele pesquisou, viu ou ouviu falar: “ ... meu objetivo ao longo de toda a obra é registrar tudo que me foi dito tal como ouvi de cada informante.” (Herôdotos:1988). Nesse sentido, a primazia aqui ainda é da oralidade e de seus componentes mítico-poéticos. Porém, ao mesmo tempo, Herôdotos revela-se um opositor crescente da tradição mítica, porque dispõe, lado a lado, em sua “História” elementos que tendemos a considerar como não-históricos junto aos acontecimentos verdadeiros:<br /><br />“Até aqui mencionei as palavras dos egípcios. Agora relatarei a propósito de sua história [do sacerdote de Héfaistos] o que dizem tanto os egípcios quanto os estrangeiros (...); acrescentarei a isso algo visto por mim mesmo.” ( Herôdotos 1988, p. 136)<br /><br />Em suas investigações Herôdotos interessa-se ora pela narração com base na realidade histórica, ora pela narração puramente imaginária. Se o antigo historiador não pode evitar essa ambigüidade, é porque há em Herôdotos uma oposição entre duas narrativas que correspondem a duas formas de tempo: há uma narrativa mítica, lendária, e uma narrativa “histórica”, cronológica. Há em Heródotos, enfim, uma dinâmica oposição entre “logos” e “mythos” (3). Como bem observa Collingwood [s.d.]: “A conversão da redacção de lendas em ciência da história não esteve inata no espírito grego, foi uma invenção do século V, uma invenção de Heródoto.” Noutras palavras , Herôdotos move-se num mundo em que a cada instante se defronta com o mito. Por isso o seu modo de lidar com o mito nem sempre é o mesmo: nem aspira a racionalização, nem é um cético por princípio, mas não se demora a formular objeções críticas à tradição mítica.<br />Segundo as investigações de Herôdotos, com base nos eventos relatados pelos sacerdotes egípcios, o rapto da encantadora espartana Helena fôra obra dos egípcios e não dos troianos (em específico, o príncipe Paris). Trata-se, portanto, de uma interpretação que segue na contra-mão da versão épico-homérica, que, além de responsabilizar os troianos pelo referido rapto, toma-o como motivo deflagrador para destruição de Tróia. Segundo Gagnebin (1992):<br /><br />“Heródoto retoma e transforma a tarefa do poeta arcaico: contar os acontecimentos passados, conservar a memória, resgatar o passado, lutar contra o esquecimento. Tarefa essencial que a voz do poeta - numa sociedade sem escrita como o era a Grécia arcaica - encarnava, e que continuou também no texto escrito”. (Gagnebin, 1992 , p.11)<br /><br />De fato, pois, ao finalizar a sua história sobre Helena, Herôdotos compactua com a trama épico-homérica, fazendo prevalecer a sua parcialidade sobre os acontecimentos:<br /><br />“... a vontade divina - expresso aqui o meu próprio pensamento - determinou a destruição total de Tróia para mostrar claramente aos homens que os grandes crimes são punidos com grandes castigos pelos deuses. Essa é minha opinião pessoal e por isso a expresso.” (Herôdotos 1988, p.125)<br /><br />Mas a novidade é que Herôdotos não canta mais, pelo contrário, “ele tenta dar a razão, a causa (‘aitia’) dos acontecimentos, anunciando a famosa exigência platônica de ‘logan didonai’ (dar a razão)” (Gagnebin: 1992). Assim, por meio de Herôdotos, a investigação histórica surge com novas leituras do passado; as novas orientações historiográficas repercutem na tarefa do historiador, o qual põe todo o seu empenho em evitar falar das coisas divinas e, desse modo, pouco a pouco, suplanta o canto divino do aedo (poeta-cantor) glorificador dos heróis e dos deuses no Olimpo.<br />Uma vez estabelecida tais considerações mediante as “Histórias” de Herôdotos - um dos clássicos da Antiguidade! -, estas seriam algumas ilustrações das distâncias já existentes no mundo antigo grego com relação ao poeta épico Homero.<br />Após tal digressão, avancemos nas páginas da história: surge, agora, no centro dos debates, o descrédito quanto à autoria da epopéia grega. O tema vai variando sem cessar, levando ao paradoxal o que antes fôra dado como certo: o culto de Homero. Sobre a beleza da poética homérica, os modernos, durante o século XIX, derramaram a dúvida sobre a real existência de Homero enquanto autor da “Ilíada” e da “Odisséia”. As suspeitas surgiram em meio à “Controvérsia entre Antigos e Modernos”, na França, no início do século XVIII. Em fins do mesmo século, a crítica literária impôs o célebre debate denominado “A Questão Homérica” (4). Nele insiste-se nas ilegitimidades do Homero histórico e do texto homérico.<br />Um dos princípios norteadores da “Questão Homérica” refere-se à unidade da “Ilíada” contraposta à pluralidade da “Odisséia” (um arranjo de poemas diferentes?!), dando origem a juízos que colocam, dentre outras, a seguinte questão: seriam os dois extensos poemas, a “Ilíada” e a “Odisséia”, composições de um único autor numa Grécia iletrada? Porém, a nossa intenção não é acrescentar um comentário original sobre tal polêmica, que tende a desdobrar-se em miríades de contradições como atesta vasta literatura. Assim, sobre a famosa “Questão Homérica” preferimos, logo de saída, atermo-nos e compartilhar com alguns argumentos expressos em estudos de quatro especialistas que retomam a voz da antiga Grécia. Apesar das oscilações dos pontos de vista entre um e outro no que se refere às perspectivas das teses, preferimos conferi-las mediante uma visão de conjunto, pois, só assim, pensamos conseguir obter um certo consenso sobre a referida questão. Dentro desse quadro referencial, podemos começar por considerar a posição de Werner Jaeger (1986):<br /><br />“Do ponto de vista histórico, a ‘Ilíada’ é um poema muito mais antigo. A ‘Odisséia’ reflete um estágio muito posterior da história da cultura. (...) A fonte principal para chegar à solução deste problema são os próprios poemas. Apesar de toda perspicácia consagrada a este assunto, reina quanto a ele a maior insegurança.”(Jaeger 1986 , p.27)<br /><br />Em 1951, H.D.F. Kitto argumentara que “o problema importante não é saber quem foi HOMERO, mas sim ‘o que foi’.”<br />Em 1953, M.I.Finley apresenta um novo argumento:<br /><br />“Quem era ele, onde vivia, em que data compôs os seus poemas são perguntas às quais não podemos responder com segurança, assim como os próprios Gregos o não podiam... Qual era a sua origem, é questão que permanece em aberto.” (Finley 1988 , p. 14)<br /><br />Finalmente, ao debruçarmo-nos sobre as páginas do compêndio de conhecimentos homéricos do Prof. Aubreton (1953), constatamos o que segue abaixo:<br /><br />“Já é tempo de abandonarmos êste estudo puramente teórico da questão homérica... o mais importante é ler, apreciar, conhecer os poemas, em lugar de deter-se diante de problemas que acabam fazendo perder de vista o essencial: a beleza estética e humana.” (Aubreton 1968, p. 35)<br /><br />É neste argumento que, no presente texto, nos apoiamos.<br /><br /><br /><br />O “KÓSMO” NO ESCUDO DE AQUILES: A CRISE DA SOBERANIA<br /><br />No canto XVIII da “Ilíada”, a narrativa homérica redesenha a totalidade do universo no escudo do herói Aquiles. Coube ao deus Hefesto (deus do fogo) forjá-lo, concentrando no escudo a descrição do mundo: a terra, o céu, o mar, o sol, as luas, as estrelas, a humanidade, enfim, o escudo de Aquiles comportava o cosmo inteiro. Ordenação do cosmo, os fios, a trama... para organizar o seu universo Homero valeu-se de fragmentos de outros universos míticos anteriores. Durante a descrição do escudo de Aquiles, entre signos e símbolos, a revisão mítica de Homero a um dos mais antigos mitos da humanidade - o do Labirinto, no palácio de Cnossos - assim se apresenta:<br /><br />“Plasma um recinto de dança, ainda, o fabro de membros robustos, mui semelhante ao que Dédalo em Cnosso de vastas campinas fez em louvor de Ariadne formosa, de tranças venustas.” (Homero, Ilíada: Canto XVIII)<br /><br />Neste ponto, reporta-nos à epopéia homérica, rumo a um passado remoto: a Idade do Bronze da Grécia arcaica. Gregos dóricos, gregos aqueus, cultura minóica ou cretense ? Vernant (1984) sublinha que:<br /><br />“A queda do poder micênico, a expansão dos dórios no Peloponeso, em Creta e até em Rodes inauguram uma nova idade da civilização grega. A metalurgia do ferro sucede à do bronze.” (Vernant 1984, p.26)<br /><br />De outra parte: “_ O bronze está periclitando...”; esta é a constatação de Kazantzaki (1986) na obra “No Palácio do Rei Minos”. Recordemos, então, - resumidamente - aquilo que a tradicional lenda mitológica grega narra sobre os acontecimentos do grande palácio Minóico: o Labirinto... o Minotauro... ao redor do Palácio do divino Rei Minos, um rei lendário de Creta, a civilização grega desabrocha. O Rei Minos ao renovar, por um contato direto com Zeus, seu poder real atribuiu à Atenas - subjugada por Cnossos - um imposto anual de sete rapazes e de sete moças a serem devorados pelo monstro Minotauro, no interior do Labirinto construído por Dédalo, nos subterrâneos do palácio de Cnossos. O príncipe ateniense Teseu, voluntariamente, apresenta-se para acompanhar as quatorze vítimas e livrar o povo grego do tributo que deveria pagar ao Rei Minos e ao monstro. Ariadne, filha de Minos e irmã de Fedra, apaixona-se por Teseu. Assim, Ariadne ofereceu a Teseu um novelo de lã com o qual o herói grego descobre o caminho rumo à saída do Labirinto misterioso. Teseu mata o monstro e sai do Labirinto.<br />O novelo de lã é a metáfora do Labirinto: local obscuro situado nas vagas dos alicerces do Palácio e dotado de um emaranhado de voltas e mais voltas, no qual alguém entra, perde-se e desaparece. Poucas pessoas conheceram o caminho certo (5).<br />De outra parte, cada época possui o discurso correspondente às necessidades que o movimento da história lhe coloca. Cada voz que, em outros tempos, retoma a voz da Grécia arcaica diz, a seu modo, na perspectiva de novos horizontes, algo que lhe é estranhamente próprio. Assim, digamos que não há repetição, mas diálogo, ou melhor, abertura de diálogo; situação em que quem versa não desfaz seu próprio discurso no discurso do Outro, mas constrói um discurso próprio engatado no discurso do Outro (6).<br />Desse modo, a épica homérica, para além da matriz de um gênero, revela-se matriz de outros gêneros. “Homero copiou homens superiores”, recorda Aristóteles (1993). E como observa Vernant (1984):<br /><br />“...os homens já tomaram consciência de um passado separado do presente, diferente dele (a idade do bronze), idade dos heróis , contrasta com os tempos novos, votados ao ferro); o mundo dos mortos distanciou-se, separado do mundo dos vivos (...); uma distância inseparável se estabeleceu entre os homens e os deuses (o personagem do rei divino desapareceu). Assim, em toda uma série de domínios, uma delimitação mais rigorosa dos diferentes planos do real prepara a obra de Homero, esta poesia épica que, no seio mesmo da religião, tende a afastar o mistério.” (Vernant 1984, p.26)<br /><br />Com essa abertura para o diálogo, a poética homérica repete, com variações, a tentativa de recuperar o mito recuado no tempo. No canto XI da “Odisséia”, durante a visita do herói Odisseus (Ulisses, na tradução latina) ao reino dos mortos (Hades), Homero, mais uma vez, faz alusões à mitologia que o antecedeu. Na morada de Hades (o deus grego do subterrâneo), Odisseus revê velhos companheiros, como por exemplo, Aquiles, Agamênon, Tirésias, a própria mãe... : todos transformados em sombras. Além dos contemporâneos, aparece-lhe, também, os heróis de antanho:<br /><br />“Vi também Fedra, Prócis e a bela Ariadne, filha do temível Minos; Teseu levara esta de Creta um dia para o outeiro de Atenas sagrada, mas não chegou a desfrutar o seu amor, porque Ártemis a matou antes, em Dia em meio às ondas, por denúncia de Dioniso.” (Homero, Odisséia: Canto XI)<br /><br />Do trecho homérico acima citado, impõe-se - se não nos enganamos - que a épica homérica não apresenta o tempo de maneira cristalina, mas a memória épica de Homero aparece como uma fonte límpida, porque traz à tona eventos esquecidos ou existências anteriores, recriando, desse modo, o sentido de um dos mais antigos mitos da humanidade. A memória em seu poder mágico é música; é canto que repete o passado para retê-lo, não deixando-o diluir pelo tempo. O passado remoto da civilização palaciana de Cnossos, do Rei divino que desaparece do horizonte distanciado de Homero, é revelado por meio de uma mescla de narrativas poéticas com vários elementos das tradições heróicas pertencentes a um tempo que não se confunde com o tempo histórico (tempo cronológico), mas pertencentes a um tempo da ordem da eternidade (o tempo “áion”, dos deuses), pois é pela memória que Homero recupera a presença de uma realidade da qual não lhe foi dada participar.<br />O que vem a ser, então, o épico em Homero? Devemos lembrar que a palavra “epikós”, em grego, relaciona-se com o sentido de “épos” (palavra, narrativa, poema, recitação) (7). Os poemas homéricos estão carregados de “epos”, isto é, um coletivo de “epos” procedente da tradição oral que deita raízes nas realizações culturais pré-existentes. Homero os recolheu e os cristalizou sob a forma de poemas épicos na “Ilíada” e na “Odisséia”. Se a fonte de Homero é a épica oral, pensamos que era muito extensa a quantidade de poesia viva encontrada à sua disposição. Nesse caso, a voz do poeta é uma voz coletiva - tecida mediante outras vozes procedentes de tempos anteriores. Dando ênfase à ação verbal, pois o tema essencial do mito era a ação, o acontecimento, o fato, e não as idéias, na sociedade grega dos tempos homéricos, o aedo (poeta-cantor) passa a versar, dando ênfase aos feitos heróicos dos mortais. Nesse caso, o canto épico é o canto capaz de rememorar aquele que morreu. Assim, contra a história dos anônimos que cai no esquecimento, a palavra poética luta contra o esquecimento e a morte. Detienne ressalta que nessa sociedade as duas potências poéticas maiores são o elogio e a crítica:<br /><br />“Em uma sociedade agonística, que valoriza a excelência do guerreiro, o domínio reservado ao louvor e à censura, é, precisamente, o dos atos de bravura. Neste plano fundamental, o poeta é o árbitro supremo.” (Detienne 1988, p.19)<br /><br />Resumindo, podemos formular o seguinte argumento: os textos homéricos combinaram vários elementos mítico-poéticos procedentes de um passado longínquo. Homero fez desabrochar estes elementos antigos na ampla configuração da épica, dando-lhes coerência e fazendo neles refletir a situação social de sua própria época. Consoante o historiaodor M.I.Finley, o gênio da “Ilíada” e da “Odisséia” reside justamente aí:<br /><br />“A superioridade de um Homero reside no nível superior em que se situa o seu trabalho de poeta, na frescura, no vigor do estilo com que soube tratar e escolher essa herança, nas variantes e inovações que introduziu, enfim, na sua maneira de ligar os temas uns aos outros.” (Finley 1988, p.33)<br /><br />Por fim - e tomadas a partir de uma visão de conjunto - o que dá forma e unidade à “Ilíada” e à “Odisséia” (apesar da extensão de ambos os poemas) é a fascinante capacidade da ação verbal homérica em fundar um núcleo para cada poema, ou seja, a “Ilíada” canta a cólera de do herói grego Aquiles e a “Odisséia” canta o retorno ao lar do herói astucioso Odisseus . Eis aqui o dom do poeta: fazer uso de uma estratégia para não se perder no Labirinto.<br /><br /><br /><br />A EPOPÉIA HOMÉRICA: ORALIDADE E ESCRITA<br /><br />Estudos recentes localizam a invenção do alfabeto grego por volta de 700 a.C. Com Havelock (1996), notamos que “em algum ponto entre 700 e 550 a. C. , a ‘Ilíada’ e a ‘Odisséia’ foram, como se diz, ‘confiadas à escrita’”. Em vista desse fato, haveria métodos disponíveis para tratar com o discurso efêmero da palavra falada na Grécia não-letrada, solo, aliás, no qual fecundou a epopéia homérica?<br />Em suas reflexões sobre os primórdios da literatura grega, Lesky (1995) afirma o seguinte:<br /><br />“Partilhamos com muitos estudiosos a crença de que a concepção de ambas as epopéias exigia necessariamente a escrita. Semelhante iniciativa era de data recente na época de Homero e é possível que ele próprio tenha sido o primeiro épico que redigiu o seu poema por escrito (...) No entanto, seria errado fazer do poeta que escreve, ponto de partida duma transmissão escrita, completamente ligada ao livro. Esta transmissão manteve-se durante muito tempo totalmente nas mãos dos rapsodos que se tinham organizado em corporações (...)Temos, pois, que pressupor, para a época arcaica, uma tradição preponderantemente oral das epopéias sobre a base de uma fixação escrita.”(Lesky 1995, p.94-5)<br /><br />Rolos de papiro, tábuas de madeira e outros utilitários demonstram que os gregos pré-letrados não desconheciam inteiramente a escrita. Contudo, foi somente no século IV que o livro na antiga Grécia passou por uma imensa difusão. As análises de Lesky (1995) sobre o tema apontam dois fenômenos decisivos (ambos anteriores à época de Homero) que criaram os pressupostos necessários para o eclodir da literatura grega: o aparecimento da escrita e o nascimento do mito grego. Nas ruínas de Cnossos, na ilha de Creta, foram encontradas tabuinhas de argila com registros da escrita silábica denominada Linear B. Haveria, então, uma classe de escribas na Grécia arcaica? Teriam esses escritos um caráter puramente utilitário? Dúvidas, imprecisões e incertezas acumulam-se nos estudos dedicados a tal assunto. É por exemplo o que demonstra a tese de M.I. Finley sobre o surgimento da escrita na Grécia:<br /><br />“O momento exacto em que os Gregos começaram a escrever permanece um segredo encerrado nas tabuinhas por decifrar de Creta e Micenas; as mais recentes investigações sugerem uma data que pode remontar até 1400 a.C.” (Finley 1988, p.17)<br /><br />Em contrapartida, as análises de Havelock (1996) apontam para as construções complexas da “Odisséia” e da “Ilíada” enquanto o começo de uma parceria ou de uma tensão dinâmica entre o oral e o escrito, que se mostrou bastante fecunda. De acordo com Havelock, por esta ocasião, existia, simultaneamente, o tratamento da linguagem de forma acústica alavancada pelos princípios de ressonância (eco) em competição com a linguagem, tratada segundo princípios arquitetônicos, ou seja, pelo alfabeto e pela escrita.<br />Na verdade, a passagem de um mundo compartilhado em comunidade para um mundo em silêncio - lido a sós - parece-nos colocar um problema tempestuoso e irresolúvel no campo da poética.<br />Ademais, do lado da sofisticação da poética homérica é preciso destacar o emprego por Homero da poesia métrica em seus poemas amparada pelas técnicas dos versos hexâmetros-dactílicos somada à dança, à recitação e à música. Estes eram os elementos que davam o ritmo musical da linguagem poética do grego arcaico. A palavra poético-musicada, além do aspecto mágico, permitia ao poeta o poder de penetrar no oculto, isto é, de ter um acesso profundo do humano junto aos deuses.<br /><br />“Os termos que o grego empregava para caracterizar a rítmica confirmam que eles a sentiam corporalmente: pé (pé métrico),‘thesis’, ‘arsis’. O primeiro é como sabemos, uma determinada associação de longas e breves facilmente reconhecível por uma repetição regular... ‘Thesis’ significa o abaixamento dos pés e ‘arsis’ a sua elevação... A palavra que não é apenas dita ou cantada, mas também corporalmente realizada, adquire uma presença mágica. Em nenhuma das línguas ocidentais modernas encontramos nada que de longe se lhe assemelhe.”(Grassi [s.d.], p.143-4)<br /><br />Cumpre, finalmente, lançarmos algumas considerações de Marcel Detienne - importante mapeador da geografia do saber na Grécia arcaica -, as quais acrescentam mais conhecimento sobre tal problemática. Afirma o helenista francês:<br /><br />“ ‘Que memória não era necessária naqueles tempos? ! (...) Uma civilização oral exige um desenvolvimento da memória, ela necessita da execução de técnicas de memória muito precisas. A poesia oral, da qual resultam a ‘Ilíada’ e a ‘Odisséia’, não pode ser compreendida sem se postular uma verdadeira ‘mnemotécnica’ (...) Sob a inspiração poética, suspeita-se um lento adestramento da memória (...) Nesses meios de poetas inspirados, a Memória é uma onisciência de caráter adivinhatório; define-se como saber mântico, pela fórmula: ‘o que é , o que será, o que foi’”. (Detienne, 1988, p.16-17)<br /><br />A despeito dessas posições, que comportam uma boa dose de hipóteses - algumas vezes contraditas, outras vezes sedutoras ou altamente prováveis -, aceitamos a hipótese de que a criação homérica deita raízes na esfera do canto heróico oral. Portanto, a fonte de Homero é a épica oral. Os poemas homéricos seguem regras formulares, características da composição oral. É bem provável que os aedos tenham afeiçoado definitivamente a “Ilíada” e a “Odisséia” por escrito. Porém, pensamos que a difusão dos dois poemas homéricos permaneceu oral, malgrado a introdução do alfabeto e outras técnicas da escrita no mesmo período.<br /><br /><br /><br />MITO E COMPOSIÇÃO ÉPICA<br /><br />Mito e Logos são palavras equivalentes (8). Foram os discursos da História e da Filosofia que vieram, posteriormente, decidir o que é mito ou logos, ambos pretendendo que o último termo signifique um relato racional e verdadeiro. Como observa Eliade (1972), “é a vitória do livro sôbre a tradição oral”. A filosofia grega, num dos seus maiores pensadores (Platão, que “escreve” Sócrates), não reconciliou mito e logos, ao contrário, aprofundou o contraste entre os dois termos. Numa passagem do “Fédon”, Platão (1983) diz que ”um poeta para ser verdadeiramente poeta deve empregar mitos e não raciocínios.” Lembremos, também, as tentativas de Herôdotos na “História” ao recusar a narrativa mítica, quando se trata de descrever o tempo histórico na escrita da nossa história. Em estudos sobre a afirmação da filosofia em solo grego, Detienne ressalta que:<br /><br />“A palavra ‘mythos’ - que, desde a epopéia, faz parte do vocabulário da palavra e do verbo - ainda se não mobilizou para designar o discurso dos outros, que a filosofia, apenas nascida mas já escandalizada, aponta com o dedo e denuncia tão ruidosamente.” (Detienne, 1987, p.66 )<br /><br />Feitas essas breves considerações, como então definir o Mito?<br />Mito é palavra primordial, poética, nomeadora de sentido. Mito é palavra que remete à origem porque “êle relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’ (...) êle relata de que modo algo foi produzido e começou a ‘ser’” (Eliade:1972) . “Na ‘Teogonia’de Hesíodo, no verso 24, ‘mýthos’ tem o sentido de palavra divina que se apresenta em forma de palavra humana...” revelando o sentido do ser (Jaa Torrano: 1996): “Esta palavra primeiro disseram-me as deusas”. Os mitos são narrativas freqüentemente históricas que apontam para certo tipo de verdades que não poderiam ser ditas de outra forma. O mito coloca os eventos isolados num contexto mais amplo, dando-lhes sentido e significação, isto é, o mito é fruto de uma prática elaborada mediante a inserção da comunidade em seu meio ambiente. Nesse caso, o mito é um saber a-sistemático, pois não visa uma explicação objetiva do real. Sua meta não é a formulação lógica sobre algo, visto que ele se situa num horizonte imediato, que se descerra e é desnudado a uma comunidade. Referindo-se ao mito épico, Octavio Paz afirma o seguinte:<br /><br />“O que Homero nos conta não é um passado datável e, a rigor, sequer é um passado; é uma categoria temporal que flutua, por assim dizer, sobre o tempo, sempre com avidez de presente.” (Paz 1982, p. 226-7)<br /><br />Por meio do poema mítico-épico e da palavra primordial as experiências individuais e coletivas são narradas à comunidade, que as preserva na memória. Nesse caso, não há separação entre poética e história, pois “a história é o lugar da encarnação da palavra poética.” (Paz: 1982)<br /><br /><br /><br />O TEMA DO AEDO: O PAPEL DO AEDO NO NARRAR POÉTICO<br /><br />A função do aedo é celebrar os grandes feitos humanos, para que se perpetuem na memória dos mortais. Celebrar os imortais, os deuses e as façanhas dos homens corajosos e famosos. Nesse sentido, o poeta inspirado (o aedo) pela Musa é aquele que consegue lutar contra a morte de uma e/ou da (s) tradição(ões) cultural (is). Desse modo, no interior do plano mitológico, o poeta é o Mestre da Verdade.<br /><br />“O poeta é pois um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do passado, como o adivinho o é do futuro (...) A poesia, identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo uma sageza, uma ‘sophia’. O poeta tem o seu lugar entre os ‘mestres da verdade’”(Le Goff 1990 , p.438)<br /><br />Todavia, o que é a Verdade? Ou, como convém defini-la (a Verdade) no contexto mítico da epopéia homérica?<br />Numa palavra: é aquilo do que nos lembramos. Na trama da “Odisséia” o herói Odisseus está, sempre, a pronunciar algo semelhante à seguinte frase: “agora vou te falar sem rodeios...”. Em seguida, Odisseus apenas profere uma sucessão de mentiras! É o que verificamos num episódio do Canto XIV da “Odisséia”, quando Odisseus, durante o seu longo retorno a Ítaca - disfarçado de mendigo -, relata uma história mentirosa ao seu fiel porqueiro Eumeu. Odisseus principia a história, dizendo o seguinte : “ _Pois bem, eu to direi com inteira franqueza...”<br />Assim, num primeiro momento, a função da palavra no mito não se relaciona com a Verdade ou com a Mentira tal como as entendemos, mas relaciona-se com o lembrar e o esquecer. É em torno do par de opostos memória-esquecimento (Mnemósyne-Lethe) que se estrutura a palavra poética. O primeiro papel da palavra, neste caso, é lembrar, pois, caso contrário, tudo cai no esquecimento. Em última instância, a “Odisséia” é um conjunto de lembranças, lembranças, lembranças... O episódio da viagem do herói da “Odisséia” (Canto XI) ao reino dos mortos ilustra como o guerreiro Aquiles é lembrado pelo herói vivo, Odisseus. As almas, no reino de Hades, se esquecem de tudo, porque são, na verdade, totalmente tolas! (Eu preferiria ser escravo na terra, a ser rei no Hades - eis o lamento da sombra de Aquiles dirigido a Odisseus no reino dos mortos). As sombras devem beber o sangue do sacrifício para, assim, se lembrarem. Memória e verdade: “alethéia” é verdade articulada ao plano mítico. Assim, a questão da palavra é ajudar a não esquecer e não definir o que seja verdadeiro ou falso, como faz o pensamento subjugado pela lógica da racionalidade – perdendo, dessa forma, a linguagem a sua função nomeadora. “Alétheia” é o originário, é o impensado digno de ser pensado, como já observara Heidegger; é Verdade que se dissimula, apelando ao poeta para captá-la e restituir à linguagem a sua proveniência nomeadora.<br />No mundo mítico, o poeta recebe dos deuses a dádiva inspiradora e narra um conjunto de belas ações heróicas. Em última instância, lá no fundo do horizonte, o épico é a soma da memória e do poder divinos. Assim, o poeta invoca as Musas, pois um feito sem canto é algo amorfo. Neste caso, o aedo é um seguidor de Apolo (dentre outros atributos, Apolo é o deus que conduz as Musas. É, também, o deus da inspiracão, da música e, especialmente, da lira). O poder dos deuses tece os feitos heróicos, para que os poetas possam tecer os seus cantos. Doadoras da inspiração poética (as Musas), quando Homero - no proêmio da “Odisséia” - invoca as Musas, tudo já é “mais ou menos” conhecido (“Canta, ó Musa, o varão que astucioso...”). Canta o que já sei! Com efeito, a Musa reconta ao aedo, e o aedo inspirado canta e reconta. Assim, o aedo pede inspiração à Musa para cantar-contar algo que já conhece; o aedo já sabe, pois já tem um certo saber sobre aquilo que vai narrar. Nesse sentido, a Musa o auxilia; a Musa, na verdade, se inscreve no saber prévio do aedo.<br />Tanto para Homero como para Hesíodo são as Musas que concedem ao homem comum uma voz melodiosa e harmônica: “Pelas Musas heliconíades comecemos a cantar” (Hesíodo: 1981); nesse instante, o poeta abre a boca e canta, sem necessidade de buscar as palavras certas, pois estas eclodem de seu íntimo. A palavra poético-musical tem como conteúdo a inesgotável compreensão do real em sua totalidade, alcançando três níveis de temporalidade: o passado, o presente e o futuro. Surgindo como música que reivindica o Sagrado, a palavra poética é o ponto mais alto de elevação da comunidade, desempenhando dessa forma a função formadora dos homens. Nesse sentido, Homero é o aedo divino que ensina o povo, centrando-se no papel fundamental da Memória. Segundo Jaa Torrano:<br /><br />“O cantor (aoidós), chamado ‘servo das Musas’ ( Mousáon therápon, T.100) , neste ‘serviço’ que propriamente constitui o culto, imprime antes de tudo à sua própria existência a forma contemplada por meio da interpelação divina e torna-se assim ele mesmo imagem das Musas entre os homens imortais.” (Torrano, 1996 , p.26)<br /><br />Entretanto, se tudo já é mais ou menos sabido, quem são, afinal, as Musas?<br />As Musas nascem de Zeus. “Nove noites copulou com Memória o sábio Zeus, e ela pariu nove moças unânimes...” (Torrano: 1996). As musas são filhas de “Mnemosýne”, personificação da Memória. A linhagem das cantoras plenas de Memória é a seguinte: Clio (Musa da História); Euterpe (Musa da Música), Talia (Musa da Comédia); Melpómene (Musa da Tragédia); Terpsícore (Musa da Dança); Érato (Musa da Poesia Lírica); Polímnia (Musa da Harmonia), Urânia (Musa da Astronomia) e Calíope (Musa da Poesia Épica).<br />Na palavra do poeta Musa e Memória são duas noções complementares. Musa (de ‘Mousai’ e ‘agein’ = “conduzir”) é memória do passado, é palavra cantada e ritmada. Enfim, é o próprio canto. Por outro lado, a invocação do passado pela memória do poeta requer um esforço mental (uma profunda imersão do intelecto na recitação) de difícil compreensão para uma mente letrada como a nossa. Além disso, o poeta, enquanto agregador da comunidade, não se preocupa com o individual, mas com o coletivo. O canto épico visa, então, manter os rastros... Aliás, se existe uma idéia forte na “Odisséia” é esta: a palavra poética luta contra o esquecimento e contra a morte, pois a memória é uma maneira de sobreviver na lembrança dos homens.<br /><br /><br /><br />A IMPORTÂNCIA DA POESIA E DA MÉTIS NA “ODISSÉIA”<br /><br />Afinal, o que rememora e narra a “Odisséia”?<br />Inicialmente cumpre-nos apresentar uma constatação: a “Odisséia” é um espelho da “Ilíada”, na medida em que preenche lacunas da “Ilíada” : Nestor, Menelau e Agamênon são reis oriundos da “Ilíada”, com os quais Ulisses sempre se confronta na “Odisséia”.<br />A “Odisséia” está dividida em vinte e quatro cantos. Esta divisão (como a da “Ilíada”) é freqüentemente atribuída a Aristarco, célebre gramático e crítico alexandrino, que viveu no século II a.C. Em geral, o conteúdo da obra rememora as aventuras do herói astucioso Odisseus, ou melhor, os fatos daquilo que acontece entre a “Ilíada” (que trata dos acontecimentos da guerra de Tróia) e a “Odisséia” (que trata das aventuras do solerte Odisseus em seu retorno a Ítaca, quando termina a guerra de Tróia). Nesse caso, podemos afirmar sem dúvida que a “Odisséia” tem por função preencher as lacunas da tradição. Considerando, por exemplo, o episódio do Canto VIII da “Odisséia”, no qual Odisseus, narrando suas maravilhosas aventuras na corte do Feácios, revela sua identidade. Dessa forma, Homero converte o herói Odisseus em narrador de suas próprias aventuras, expediente que na “Ilíada” não se conhece. Odisseus, na corte do Feácios se assume como poeta, pois o mérito do herói ter visitado o reino de Hades (Canto XI) está em ter se tornado um aedo, um narrador.<br />Por outro lado, ao contrário da “Ilíada” (24 cantos épicos que “num só fôlego” tratam das disputas entre os heróis, das batalhas entre gregos e troianos e das discórdias entre os deuses), a “Odisséia” desdobra-se em três linhas de ação bem definidas.<br />A história começa quando já se haviam passado dez anos da queda de Tróia. Enquanto todos os chefes gregos tinham voltado aos seus lares, Odisseus encontrava-se retido na ilha de Ogígia, junto à deusa Calipso. Durante a ausência do esposo (Odisseus), Penélope procurava adiar a escolha entre os seus numerosos pretendentes, tecendo durante o dia uma mortalha para o sogro Laertes (pai de Odisseus), e desfazendo-a durante a noite (encontra-se neste episódio o registro de uma bela metáfora da escrita!). Nenhuma notícia de Odisseus chegava a Ítaca, até que a Assembléia dos Deuses decide pelo regresso do herói. Esses quatro cantos iniciais são chamados de “Telemaquia”, porque neles preponderam os episódios que narram as viagens de Telêmaco em busca do pai (Odisseus) desaparecido. Telêmaco, amparado pela deusa Atena (deusa da sabedoria), busca informações sobre o pai em Pilos, onde o chefe guerreiro Nestor o acolhe amavelmente. Em Esparta, foi acolhido pelo chefe guerreiro Menelau e pela sua bela esposa Helena (cujo rapto foi a causa da guerra de Tróia). Em Ítaca, os pretendentes, sabendo da viagem às escondidas de Telêmaco, preparam-lhe um cilada mortal (Cantos I a IV).<br />Em seguida, temos os episódios que compõem o núcleo central da história. A ninfa Calipso recebe ordens de Zeus para libertar o herói Odisseus. Com uma balsa, Odisseus navega até a ilha dos Feácios. Odisseus é lançado desfalecido numa das praias da referida ilha, devido à fúria de Poseidon (deus dos mares), que odeia Odisseus, porque o último cegara seu filho Polifemo, um monstruoso Ciclope (Canto V). Encontrado por Nausícaa, filha de Alcínoo (rei dos Feáceos), esta o acolheu, conduzindo-o ao palácio do pai (Cantos VI a VII). Lá, Odisseus, motivado pelo aedo Demódoco, revela seu nome e narra suas numerosas aventuras desde a partida de Tróia, suas incursões pelas terras dos lotófagos (os comedores de lótus), dos Ciclopes (onde enfrenta o gigante Polifemo); suas aventuras com os lestrigões (os canibais gigantescos); sua chegada à ilha da feiticeira Circe (deusa que transforma os companheiros de Odisseus em porcos) que o aconselha a consultar Tirésias (adivinho grego) no reino de Hades (reino dos mortos); Tirésias lhe profetiza as circunstâncias do seu retorno. Odisseus também relata a passagem de sua nau pelas Sereias, pelos rochedos Cilas e Caríbdes, até a embarcação ser destroçada pelos fortes ventos enviados por Éolo (deus dos ventos). Odisseus, agora só, é levado até Ogígia. Lá é acolhido, bondosamente, pela deusa Calipso (Cantos VIII a XII). Ao terminar o relato de sua história, Odisseus é levado por uma nau dos Feácios até Ítaca (Canto XIII).<br />Por fim, temos os episódios que cobrem a parte final da “Odisséia”. Por intermédio de Eumeu, o fiel pastor de porcos, Odisseus (disfarçado de mendigo) conhece as insolências dos pretendentes enfrentadas pela esposa, Penélope. Na cabana de Eumeu, Odisseus reencontra o filho e revela sua verdadeira identidade a Telêmaco (recém-chegado de Esparta e a salvo da cilada preparada pelos pretendentes). Pai e filho combinam a matança dos pretendentes (Cantos XIV a XVI). Assim, ambos dirigem-se ao lar, onde Odisseus é reconhecido pelo velho cão Argos, e pela velha ama Euricléia. Penélope revela sua intenção de casar-se novamente com o homem que fosse capaz de vergar o arco de Odisseus, e disparar as flechas por meio dos furos de doze machados. Odisseus, ainda disfarçado de mendigo, acerta o alvo. Depois, auxiliado por Eumeu e Telêmaco, promove a matança dos pretendentes. Odisseus revela sua identidade a Penélope e a seu pai Laertes. Finalmente, a deusa Atena põe fim ao derramamento de sangue (Cantos XVII ao XXIV).<br /><br />Estando, assim, o conjunto de narrativas que compõe o enredo sumariamente delimitado da “Odisséia”, seria importante indicarmos nossa orientação (o nosso fio de Ariadne), ou o nosso principal interesse ao percorrermos este extenso poema.<br />Em primeiro lugar, pressupomos que a “Odisséia” não é uma narração simples perpassada por reflexões sobre o ato de narrar, mas entendemo-la, na verdade, como uma narrativa transpassada por uma reflexão, uma profunda reflexão sobre as modalidades e as qualidades da Métis. Por conseguinte, perguntamos: o que é Métis? No já consagrado tratado sobre a Métis, os autores, Detienne e Vernant, tecem, dentre outras, as seguintes considerações:<br /><br />“La métis est bien une forme d’intelligence et de pensée, un mode du connaître; elle implique un ensemble complexe, mais très cohérent, d’attitudes mentales, de comportementes intellectuels qui combinent le flair, la sagacité, la prévision, la souplesse d’esprit, la feinte, la ‘debrouillardise, l’attention vigilante, le sens de l’opportunité, des habiletés diverses, une expérience longuement acquise; elle s’applique à des realités fugaces, mouvantes, déconcertantes et ambiguues, qui ne se pretent ni à la mesure précise, ni au calcul exact, ni au raisonnement rigoureux.” ( Detienne e Vernant 1974, p.10)<br /><br />“Na ‘polytropía’ de seu herói concentra-se a ‘Odisséia’”, lembra Torrano (1996). A postulação da Métis (a prudência) de Odisseus percorre, portanto, toda a “Odisséia”, porque com um Odisseus sem “tropos” (isto é, sem rodeios, sem “voltas”...) - e aqui pensamos ser fundamental ressaltar - não existiria a “Odisséia”. Durante o desenvolvimento de grande parte do enredo da “Odisséia”, a impressão que fica para o leitor, face aos inúmeros adiamentos do retorno do herói a Ítaca, é a de um Odisseus possuidor de mais de um “tropos”, ou melhor , o herói ao mesmo tempo quer e não quer chegar a Ítaca ( devemos lembrar que, entre ninfas e deusas, Ulisses desfrutou da companhia da deusa Calipso por mais de sete anos. Viveu um ano feliz na ilha da deusa Circe; e finalmente despertou o amor da bela adolescente Nausícaa, na ilha paradisíaca dos Feácios).<br />Nessa medida, parece-nos que Odisseus é o único herói de Homero dotado de uma inteligência irrepreensivelmente elevada, pois jamais se lança às cegas em suas numerosas aventuras. Poderíamos, então, definir o seguinte: se por um lado, o colérico Aquiles (na “Ilíada”) é o herói homérico que não tem “tropos”, pois age por impulsos, pelas paixões; ao contrário, Odisseus (na “Odisséia”) é o herói homérico que tem muitos “tropos” (“Polytropos”: numa tradução aproximada do grego, a palavra “polytropos” adquire o significado de “muitos jeitos”, “muitos rodeios”, “muitas voltas”, “muitos lugares”...). O proêmio da “Odisséia” já procura acentuar tais qualidades em Odisseus/Ulisses:<br /><br />“Musa, narra-me as aventuras do herói engenhoso, que, após saquear a sagrada fortaleza de Tróia, errou por tantíssimos lugares e conhecendo o pensamento de tantos povos e, no mar, sofreu tantas angústias no coração, tentanto preservar a sua vida e o repatriamento de seus companheiros (...); eles perderam-se por seu próprio desatino; imbecis...”. (Homero, Odisséia: canto I)<br /><br />Na variações de sentido, Odisseus é o herói homérico dotado da faculdade de uma espécie de inteligência (Métis), a qual lhe permite apreender rapidamente uma situação e adaptar-se a ela. Portanto, Odisseus é o herói portador “de muitas métis” (“Polymétis”).<br />O Canto XIII da “Odisséia” narra o retorno do herói Odisseus a Ítaca. Ele é transportado por um navio feácio e, lá chegando, é depositado dormindo na praia. Ao despertar ele se encontra desamparado, pois não sabia onde realmente se encontrava. Então, surgi-lhe à frente a oferecer-lhe auxílio a deusa Atena, disfarçada de pastor de ovelhas. Odisseus pergunta ao “pastor de ovelhas” onde afinal se encontrava. Atena lhe diz que se encontrava em Ítaca. Receoso, o solerte Odisseus “disfarçou” sua própria identidade, enganando dessa forma, a deusa Atena. Esta então lhe responde prontamente:<br /><br />“_ Quão astucioso e dissimulado seria quem te superasse em tudo que é ardil, mesmo que fosse um deus a competir contigo! Mísero! Artificioso! Insaciável de enganos! Então, havias de abandonar a linguagem enganosa e astuta? Eia, pois tu és, entre todos os mortais, incomparavelmente o melhor na persuasão e na eloqüência e eu sou famosa, entre todos os deuses, pela inteligência e astúcia.” (Homero, Odisséia: canto XIII)<br /><br />O Canto XIV da “Odisséia” nos remete a uma outra configuração da Métis. O porqueiro Eumeu solicita ao solerte Ulisses (disfarçado de mendigo) que conte sua história. O “mendigo” conta ao porqueiro uma história falaciosa, enganadora, mentirosa. O mais interessante é que ao iniciar a história o solerte Ulisses diz a Eumeu: “_Pois bem, eu to direi com inteira franqueza”. Entretanto, a partir daí tem início um desenrolar de mentiras, mentiras, mentiras...<br />Um dos episódios da narrativa de Odisseus atinge um ponto crucial no que se refere ao uso da Métis, relacionada com a mentira sobre a própria identidade. Trata-se do episódio em que Odisseus e seus companheiros encontram-se detidos no interior da caverna do Ciclope Polifemo (Canto IX). Odisseus embebeda o monstro e vaza seu único olho. O gigante, gritando de dor, chama os outros companheiros (os outros Ciclopes), dizendo que “Ninguém” o estava matando por astúcia. “Ninguém” é o nome que Odisseus atribuíra a si mesmo, quando interrogado pelo Ciclope: “Ciclope, perguntaste o meu glorioso nome; eu vou dizer-to. Chamam-me Ninguém minha mãe, meu pai e todos os meus companheiros.” Os demais ciclopes, pensando tratar-se de uma brincadeira não socorrem Polifemo, abrindo espaço, dessa forma, para que Odisseus e seus companheiros fugissem do lugar antes de serem devorados pelo monstro.<br />O episódio das Sereias (Canto XII) oferece outra variante do poder da Métis, concentrado na feiticeira Circe. O canto mavioso das Sereias possui um perigoso poder que leva os ouvintes ao esquecimento, à morte. A isto o herói responde da seguinte forma:<br /><br />“_ Amigos, não é justo que só um ou dois conheçam os vaticínios que me fez Circe, a augusta deusa; por isso vou contá-los (...) [Circe] aconselhou que só eu lhes ouvisse a voz [das sereias]; por isso, amarrai-me de pé sobre a carlinga, com rudes laços, para que eu daqui não saía (...) Se eu insistir convosco para que me solteis, apertai-me, então, em laços mais numerosos.”(Homero, Odisséia: canto XII)<br /><br />A Métis, enquanto “inteligência prática”, é uma inversão de forças na qual o fraco vence o forte. As artimanhas de Penélope em tecer um véu para a mortalha do sogro Laertes, enganando, desse modo, os pretendentes é uma das maiores Métis da “Odisséia”. No horizonte temporal da Métis, não existe nem uma perspectiva racional quanto moral “a priori”, pois ela se caracteriza como uma premeditação vigilante. Nesse sentido, o homem e a mulher da Métis agem como um relâmpago. Ao mesmo tempo, não se deixam levar por impulsos. Se a loucura tende a abolir o tempo, a Métis, ao contrário, sabe trabalhar a temporalidade, pois ela possui o domínio do tempo em três situações: tem a experiência do passado, agarra o momento presente, fugaz, e faz predições para o futuro.<br />Finalmente, concebida dessa maneira, a Métis, enquanto “inteligência prática” não é uma categoria mental, mas uma forma de inteligência dotada de argúcia, sagacidade e fingimento aliada à experiência adquirida. A cultura filosófica posterior, sobretudo devido à sobrevalorização do pensamento contemplativo, marginalizará o discurso da Métis.<br /><br /><br /><br /><br />NOTAS<br /><br />1. Cf. Kitto, H.D.F. Os Gregos. 3 ed. Coimbra : Arménio Amado Editor,1980, p. 75.<br /><br />2. “Genius”, para os romanos o espírito (“numen”) que coabitava com o homem e lhe dava poder gerador.<br /><br />3.Cf. Gagnebin, Jeanne Marie. O início da História e as lágrimas de Tucídides. Margem: Educ, n. 1, pp. 11-15.<br /><br />4. A primeira objeção séria levantada contra a historicidade de Homero foi feita por Augusto Wolf (1759-1824), filósofo e erudito alemão. Wolf sustentou em seus “Prolegômenos” que a “Ilíada” e a “Odisséia” haviam sido constituídas pela justaposição de trechos épicos de diferentes épocas.<br /><br />5. Cf. Kazantzaki, Nikos. No palácio do Rei Minos. São Paulo: Editora Marco Zero, 1986, p. 216.<br /><br />6. Cf. Brandão, Jacyntho Lins. Primórdios do épico: ILÍADA. In: APPEL, Myrna Bier et al. “As Formas do Épico: da epopéia sânscrita à telenovela”. Porto Alegre: Editora Movimento, 1992, p. 41.<br /><br />7. Cf. idem, p.43.<br /><br />8. Ambos os termos comungam em idêntica significação ao expressarem o sentido de relato, discurso ou narrativa. Sobre a dinâmica do binômio mito-logos no interior do pensamento ocidental, sugerimos a consulta ao dicionário de “Termos Filosóficos Gregos”, de F.E.Peters.<br /><br /><br /><br />REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br /><br />APPEL, Myrna Bier et al. As Formas do Épico: da epopéia à telenovela. Porto Alegre: Editora Movimento, 1992.<br /><br />ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Souza. 2 ed. São Paulo: Ars Poetica, 1993.<br /><br />AUBRETON, Robert. Introdução a Homero.2 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.<br /><br />BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.<br /><br />COLLINGWOOD, R.G. A Ideia de História. Tradução Alberto Freire. Lisboa: Editorial Presença, [s.d.].<br /><br />DETIENNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Arcaica . Tradução Andréa Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1981.<br /><br />DETIENNE, Marcel et al. Mythos/logos: Sagrado/profano. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1987 (Enciclopédia Einaudi - volume 12).<br /><br />DETIENNE, Marcel, VERNANT, Jean-Pierre. Les ruses de l’intelligence: la métis des Grecs. Flammarion, 1974.<br /><br />D’ONOFRIO, Salvatore. Da Odisseía ao Ulisses: evolução do gênero narrativo. São Paulo: Duas Cidades, 1981.<br /><br />ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.<br /><br />FINLEY, M.I. O mundo de Ulisses. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença, 1988.<br /><br />GAGNEBIN, Jeanne Marie. O início da História e as lágrimas de Tucídides. Margem: Educ. São Paulo, n.1, p.9-28, março 1992.<br /><br />GRASSI, Ernesto. Arte e Mito. Tradução Manuela Pinto dos Santos. Lisboa: Livros do Brasil, [s.d.].<br /><br />GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da Mitologia Grega. São Paulo: Cultrix, 1993.<br /><br />HAVELOCK, Eric. A. A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais . Tradução Ordep José Serra. São Paulo : Editora Unesp e Paz e Terra, 1996.<br /><br />HERÔDOTOS. História . Tradução Mário Gama Kury. 2ed. Brasília, Editora UnB, 1988.<br /><br />HESÍODO. Teogonia : a origem dos deuses . Estudo e tradução Jaa Torrano. São Paulo: Massao Ohno-Rswitha Kempf Editores, 1981.<br /><br />HOMERO. Ilíada (em verso). Tradução Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.].<br /><br />HOMERO. Odisséia . Tradução Jaime Bruna. 7 a 13 ed. São Paulo: Cultrix, 1994 a 1997.<br /><br />____. Odisséia. Tradução de Manuel Odorico Mendes. São Paulo; Ars Poetica: Edusp, 1992.<br /><br />JAEGER, Werner W. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1986.<br /><br />KAZANTZAKI, Nikos. No palácio do Rei Minos. Tradução de Maria Cecília Oliveira Marques. São Paulo: Editora Marco Zero, 1986.<br /><br />KITTO, H. D.F. Os Gregos . Tradução José Manuel Coutinho e Castro. 3 ed. Coimbra : Arménio Amado Editor, 1980.<br /><br />LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão et al. Campinas, São Paulo: Editora Unicamp, 1990.<br /><br />LESKY, Albin. História da Literatura Grega . Tradução Manuel Losa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.<br /><br />MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 6 ed. São Paulo: Cultrix, 1992.<br /><br />NUNES, Carlos Alberto. “A questão homérica”. In: HOMERO. Ilíada. 4 ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1962.<br /><br />PAZ,Octavio. O Arco e a Lira. Tradução Olga Savary. 2 ed. Rio de Janeiro, 1982.<br /><br />PETERS, F. E. Termos filosóficos gregos: um léxico histórico. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.<br /><br />PLATÃO. Diálogos. Tradução José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat, João Cruz Costa. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.<br /><br />TORRANO, Jaa. O Sentido de Zeus: o mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo. São Paulo: Iluminuras, 1996.<br /><br />VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 4 ed. São Paulo: Difel, 1984.<br /><br /><br />Fonte: http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/84966 (12/12/2005)<br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />HOMERO - ODIESSEIA<br />A Odisséia também é atribuída a Homero. Enquanto a "Ilíada é a representação da vida guerreira e da época heróica, a "Odisséia" pode ser tomada como representação da vida doméstica, entremeada de narrações de viagens e de aventuras maravilhosas. Divide-se também em 24 cantos e contém 12.000 versos hexâmetros. Seu argumento pode ser assim sintetizado:<br />As cenas iniciais passam-se em Ítaca, no palácio de Ulisses, que se encontra fora. Penélope, sua esposa, é assediada por inúmeros pretendentes, que lhe fazem a corte na suposição de que Ulisses tenha morrido. A deusa Atena, disfarçada num estrangeiro, exorta Telêmaco, filho de Ulisses, para sair em busca do pai. O jovem reúne o povo e solicita-lhe um barco. O povo vacila, deixando-se levar pela pressão dos candidatos à mão de Penélope. Atena surge novamente, agora na forma de Mentor, amigo de Ulisses, equipa um barco e parte com Telêmaco. Chegam a Pilos, na casa de Menelau. Nenhum deles, porém lhes dá informações sobre o paradeiro de Ulisses. Enquanto isso, Ulisses passa por aventuras fabulosas. Na longínqua ilha de Ogigia, vive extraordinário episódio ao lado da deusa Calipso, que por ele se apaixonara e que não o quer deixar. Mediante a intervenção dos deuses, o herói abandona a ilha edênica, partindo numa tosca jangada. Poséidon (Netuno) fá-lo naufragar numa ilha, habitada pelos feácios. É recolhido semimorto na praia por Nausica, filha do rei Alcino. Foi recebido na corte com honras e festins. Certa vez, ouvindo um aedo cantar episódios sobre a guerra de Tróia, comove-se relembrando o passado. Narra, então suas aventuras. Seu desembarque na ilha, hoje Sicília, e seu encontro com o gigante Polifemo, cíclope monstruoso de um só olho no meio da testa. Ele e seus companheiros foram aprisionados pelo ciclope numa caverna fechada por colossal pedra, que somente o monstro conseguia remover. Antropófago, ia devorando os companheiros de Ulisses, à razão de dois por dia. Ulisses diz para o gigante que se chamava "Ninguém", já arquitetando manhoso plano. Em seguida, proporciona-lhe generoso vinho. O gigante promete-lhe, reconhecido, que será ele a última vítima. Passam-se seis dias de expectativa e horror. Na sétima noite, aproveitando o sono de Polifemo, Ulisses vaza-lhe o único olho. O gigante acorda com brados pavorosos. Acodem os outros habitantes da ilha, mas ninguém pode entrar na furna por causa de pedra. Perguntam o motivo daqueles urros, e o gigante respondeu que "ninguém me mata, ninguém, na hora do meu sono, me oprime com um poder feito de astúcia". Os outros replicam que se fora "ninguém", fora a mão divina, e que restaria a Polifemo apenas a resignação. Pela manhã, quando o gigante, agora cego, desloca a pedra a fim de dar passagem aos seus grandes carneiros, cada gregos se ata contra a barriga de cada animal e podem dessa maneira deixar o pavoroso antro, sem que Polifemo previna a fuga. Em seguida, Ulisses visita outra ilha na qual habita uma feiticeira chamada Circe, que com poderoso vinho, tinha o dom de transformar homens em animais. Ela mudou os companheiros de Ulisses em porcos, porém, vencida pela astúcia do príncipe grego, acaba por desencantá-los. Chega o herói depois ao Orco, país dos mortos, e visita o Érebo (inferno). Conversa com várias sombras de falecidos conhecidos seus: sua mãe, gregos famosos como Agamenon (que lhe relata a tragédia consumada na perfídia de Clitenestra), Aquiles, Pátroclo, Ajax, Tântalo, Sísifo e até Hércules. Atravessa o mar entre Caríbdes, o insidioso redemoinho, e o rochedo Cila; amarra-se ao mastro do navio, mandando que seus companheiros colocassem cera nos ouvidos, e escuta os encantatórios e irresistíveis cantos das sereias. Os feácios, comovidos com a narração, proporcionam-lhe uma embarcação para regressar para Ítaca. Aí chega disfarçado de mendigo. Após vários acontecimentos, é reconhecido pela ama, por causa de uma cicatriz. Impõe-lhe silêncio. Os pretendentes não conseguem entesar o arco de Ulisses, que com esta arma os dizima um por um. É então reconhecido pela fiel Penélope e por seu pai Laerte, após uma ausência de 20 anos<br />Fonte: http://www.geocities.com/Athens/4539/odisseia.html<br /><br />A Odisseia<br />A Odisseia retrata o regresso de Ulisses, rei de Ítaca, da Guerra de Tróia, pelo mar, até à sua terra natal. Durante a obra são focadas outras personagens, em Ítaca, onde Penélope aguarda pelo marido e onde uma multidão de pretendentes aguarda pela mão de Penélope, e também foca Telémaco, o filho de Ulisses, na sua busca pelo pai.<br />A Odisseia começa já passados dez anos da queda de Tróia, portanto, passados vinte anos do início da guerra, com Ulisses ainda longe de casa. Durante a sua ausência, um grande número de nobres juntaram-se na sua casa, banqueteando-se dos seus bens, e esperando a mão de Penélope, para usurparem o trono.<br />Esta situação causa grande dor em Telémaco, que vê a sua casa a ser consumida e sente-se impotente, pois é visto como muitos como uma criança.<br />Entretanto, os outros nobres da guerra já voltaram a casa, muitos morreram, vítimas da sua viagem de regresso ou de outras causas, como Agamémnon, que foi morto por Clitmnestra, a sua mulher, por ter sacrificado a filha Ifigénia. Apenas Ulisses continua desaparecido.<br />Resumidamente, na Odisseia contam-se as várias peripécias de Ulisses, até regressar a casa, bem como a procura deste por parte do seu filho. Ao regressar a casa, Ulisses mata os pretendentes e reencontra-se com Penélope. A obra apresenta ainda um último canto em que os pretendentes entram no reino dos mortos e os deuses restabelecem a ordem civil.<br />Resumo Geral<br />Ao sair de Tróia, Ulisses vive muitas aventuras, relatadas, não cronologicamente, na Odisseia. Ao mesmo tempo, a sua casa é inundada de pretendentes, que vão desgastando a sua posse sob o pretexto de quererem a mão de Penélope.<br />Penélope, por sua vez, inventa variadas artimanhas, como a famosa artimanha do tear: ela diz que casará com um deles assim que teça uma mortalha para o velho Laertes, pai de Ulisses, mas se tece durante o dia, durante a noite desfaz.<br />Telémaco, o filho de Ulisses, ao atingir a sua maioridade, também não fica quieto. Incitado por Atena, ele parte em busca de notícias do pai, para o fazer regressar a Ítaca, ou para poder ele assumir o poder. Ao longo das suas viagens, a chamada Telemaquia, Telémaco vai crescer e amadurecer, terminando a obra como um homem adulto e maduro.<br />Retomando a história de Ulisses, ao sair de Tróia, passados dez anos de guerra, ele acompanha Nestor e Diomedes, mas depois separa-se desta frota e junta-se à de Agamémnon.<br />No entanto, uma tempestade desvia-o do curso, e, em vez de ir parar a Ítaca, Ulisses vê-se no Norte de África, no país dos comedores de Lódão. Ao ver onde estava, Ulisses arrasta os seus companheiros para o barco, e fazem-se novamente ao mar. Mas antes, alguns comeram a estranha planta e esqueceram completamente a sua terra natal.<br />Ulisses navega para o norte, mas, novamente, não vai dar a Ítaca. Desta vez, ele atraca no país dos ciclopes, os gigantes de um só olho. Lá é aprisionado por Polifemo, mas consegue escapar com a famosa charada do ninguém.<br />Primeiro Ulisses disse ao ciclope que se chamava Ninguém. Então, quando o cegou, Polifemo gritava "Ninguém cegou-me" e os outros ciclopes julgavam que ele tivesse ficado doido. Assim, Ulisses pode fugir, mais os companheiros, escondidos nas ovelhas.<br />Estranhamente imprudente, Ulisses gabou-se ao ciclope, dizendo que aquele que o tinha enganado se chamava Ulisses. Então, Polifemo amaldiçoou-o, pedindo a seu pai, Posídão, que o não deixasse regressar a casa, ou que o fizesse passar por muitos tormentos antes de o fazer. Daí o ódio de Posídão para com Ulisses.<br />Então atracaram em Eola, a terra do rei Eolo, senhor dos ventos. Este, compadecendo-se de Ulisses, deu-se um pote com todos os maus ventos, para que fizessem uma viagem segura para casa.<br />Já se avistavam as chaminés de Ítaca quando a curiosidade dos tripulantes de Ulisses deitou tudo a perder. Eles abriram o pote, julgando que continha tesouros que Ulisses queria para si, e logo os maus ventos escaparam e arrastaram o navio de volta para Eola.<br />Desta vez, julgando que a culpa tinha sido de Ulisses, Eolo não os ajudou e expulsou-os de casa. Assim, Ulisses chega à terra dos Lestrígones, que comiam homens. Alguns dos companheiros de Ulisses perderam assim a vida, e muitos outros também morreram quando os canibais, atirando pedras das falésias, destruíram 11 dos 12 navios de Ulisses.<br />Fugindo da terra dos Lestrígones, Ulisses chega à ilha de Circe, uma feiticeira que transforma todos em porcos, excepto Ulisses, que tinha comido uma planta que Hermes lhe indicara, para que não sofresse do feitiço. Ulisses torna-se então amante de Circe.<br />Passado um ano, os seus homens lembram-no de casa, e ele expôs o problema a Circe, que o ajuda. Primeiro, diz ela, Ulisses tem de ir ao Hades e, aí, falar com Tirésias, o adivinho. A própria feiticeira dá-lhe instruções para ele chegar à mansão dos mortos.<br />Ulisses fala com Tirésias no Hades, que lhe conta todos os perigos e sofrimentos que ele irá viver. Nesta viagem, morre um membro da tripulação, e por isso, ao sair do Hades, Ulisses regressa à ilha de Circe para o enterrar.<br />Então prossegue na sua viagem em direcção a casa, não sem antes a feiticeira lhe ensinar como há-de fazer para sobreviver às sereias. Ao encontrar-se com estes seres, que, ao, cantar atraem os marinheiros que se atiram ao mar, Ulisses já vai prevenido e encheu os ouvidos dos seus homens com cera, para os impedir de ouvir, pedindo-lhes que o amarrassem fortemente.<br />Assim, Ulisses passa salvo pelas sereias e prossegue a sua viagem. No entanto, a sua rota atravessa o lar de Cila, um monstro de seis cabeças que vive nas falésias de um lado do estreito, e de Caríbdis, um redemoinho do outro lado do estreito.<br />Para atravessar o estreito, é impossível escapar aos dois monstros. A nau foi manobrada de forma a escapar a Caríbdis, no entanto, não conseguiu evitar que seis homens morressem pelas seis cabeças de Cila.<br />Abalados, os homens prosseguem viagem, chegando à terra onde Hélios, o deus do Sol, pasta o seu gado. Sabendo que Hélios vê tudo, Ulisses avisa os seus homens para não comerem do gado. Eles obedecem, mas, passado um mês sem vento, os homens não conseguem resistir à fome e comem vacas quando Ulisses dorme, granjeando o desfavor do deus do Sol.<br />No dia seguinte os ventos sopraram favoráveis e eles partiram para Ítaca. No entanto, encontraram uma grande tempestade que os matou a todos, escapando apenas Ulisses, o qual flutuou por muito tempo, até chegar à ilha de Calipso.<br />Calipso torna-se amante de Ulisses, desejando-o para seu marido imortal, mas ele só pensa na mulher, Penélope, no filho, Telémaco, e na sua terra, Ítaca, ansiando regressar a casa. Assim se passam nove anos.<br />Passado nove anos, os deuses todos, excepto Posídão, reúnem-se num concílio e decidem que é tempo de Calipso libertar Ulisses. A ninfa obedece e ajuda Ulisses a preparar uma embarcação, na qual ele parte para Ítaca.<br />Mas Posídão, zangado por terem tomado aquela decisão sem ele, destruiu a embarcação de Ulisses, e este nadou até à terra dos Feaces. Aí, o rei e a raínha compadecem-se dele e oferecem-lhe ricos presentes e uma embarcação, na qual ele, finalmente, regressa a Ítaca.<br />Aí vai sendo reconhecido por diversas pessoas, começando, curiosamente, pelo seu cão, que morre de emoção. Finalmente, ele mata os pretendentes insolentes, o que ameaça causar desordem. Mas os deuses intervêm e restabelecem a ordem em Ítaca.<br />Canto a Canto<br />Canto I<br />Abre-se a obra com um concílio dos deuses, quando Posídão está afastado para receber ofertas. Durante este concílio, discute-se o caso de Ulisses, odiado por Posídão, por ter cegado um ciclope seu filho. Finalmente, Atena convence o seu pai que é altura de ajudar Ulisses a voltar para casa.<br />Então ela vai, disfarçada de Mentes, à corte de Telémaco, vendo o festim dos pretendentes e exortando Telémaco a procurar o seu pai. O jovem convence-se e convoca uma assembleia, o que admira os pretendentes. Eles continuam no seu festim, mas Telémaco vai para a cama, sonhando com a sua viagem.<br />Canto II<br />No dia seguinte dá-se a Assembleia dos Itacenses, em que Telémaco denuncia que os pretendentes estão a esbanjar os pertences de seu pai. Os pretendentes defendem-se, através da voz de Antínoo, que diz que a culpa é de Penélope que não escolhe um deles.<br />A esta acusação, Telémaco ameaça os pretendentes, e duas águias enviadas por Zeus aparecem no céu, confirmando as suas ameaças. Mas os pretendentes recusam-se a partir até que Penélope escolha um deles.<br />A Assembleia acaba e Telémaco vai para a praia, onde reza a Atena, que lhe aparece sob a forma de Mentor. Eles arranjam uma nau e, com a ajuda de Euricleia, a ama velha do jovem, retiram secretamente provisões para a viagem. Penélope é mantida na ignorância dos acontecimentos, para não se preocupar.<br />Atena disfarça-se de Telémaco e recruta vinte jovens e procura por uma nau. Depois torna a fazer-se como Mentor e, com Telémaco, parte pelo mar, em direcção a Pilo.<br />Canto III<br />Chegados a Pilo, encontram-se com Nestor e o filho, sacrificando em honra de Posídão, e são convidados a participar no festim. Então, Telémaco identifica-se e Nestor conta-lhe os últimos dias da Guerra de Tróia.<br />Conta que houve uma discussão entre Agamémnon e Menelau e os dois irmãos dividiram o exército em duas facções, que partiram separadamente. Ulisses saiu com Nestor e Diomédes, mas em Ténedos separou-se deles e juntou-se a Agamémnon. Nestor acrescenta que esta é a última vez que viu Ulisses.<br />Para além desta história, Nestor conta o regresso de outros reis, como Agamémnon, assassinado por Egisto e Clitmnestra, a qual foi, por sua vez, morta por Orestes, seu filho.<br />Conta ainda as viagens de Menelau que passou pelo Egipto e viveu várias aventuras com Helena. Por isso mesmo, chegam à conclusão que o mais sensato é que Telémaco vá visitar Menelau para ter notícias do seu pai.<br />No dia seguinte, após um sacrifício a Atena, Telémaco parte para Esparta num carro oferecido por Nestor, na companhia do filho mais novo deste.<br />Canto IV<br />Chegam ao palácio de Menelau quando ocorre o festim do casamento de um dos filhos do rei e têm uma recepção exemplar. Durante o banquete Menelau fala de Ulisses, ainda sem saber quem é Telémaco, e este começa a chorar.<br />Então Helena junta-se a eles e reconhece o jovem, mas a conversa sobre os propósitos de Telémaco é adiada por Menelau para o dia seguinte, passando o resto do banquete, em conjunto com a sua mulher, a contar feitos de Ulisses na guerra.<br />No dia seguinte, Télemaco conta o que se passa em Ítaca e que está em busca de notícias do pai. Por sua vez, Menelau conta o que passou no Egipto, sendo de destacar a história de Proteu, o qual se metamorfoseava, tentando escapar, mas a quem Menelau conseguiu arrancar as informações que queria.<br />Proteu contou que Ulisses ainda estava vivo, mas estava preso numa ilha por Calipso, a ninfa, que o queria para marido. Contou ainda a história de cada um dos varões, do seu regresso e da sua morte.<br />Telémaco prepara-se para partir e recebe imensas ofertas de Menelau.<br />Ao mesmo tempo, em Ítaca, os pretendentes descobrem o que fez Telémaco e preparam um navio para lhe armar uma emboscada e matá-lo. Também Penélope toma conhecimento do facto, desfalecendo de preocupação, trancando-se no quarto a chorar e recusando-se a comer.<br />Atena conforta-a através de um sonho, em que a irmã de Penélope lhe conta que Telémaco está em segurança.<br />Aqui termina a chamada Telemaquia, ou seja, a parte da Odisseia centrada em Telémaco, na sua acção e no seu amadurecimento psicológico. Começa-se agora a acompanhar as façanhas de Ulisses.<br />Canto V<br />Numa nova assembleia dos deuses, Atena põe a questão do regresso de Ulisses à pátria, ao que Zeus envia Hermes para avisar a ninfa Calipso que deve libertar Ulisses, o qual não será seu marido como ela desejava.<br />Assim, passados nove anos, a ninfa finalmente liberta Ulisses, ajudando-o a construir uma jangada e a apetrechá-la. O varão parte para Ítaca, mas, ao mesmo tempo, Posídão regressa dos sacrifícios que estava a receber na Etiópia, ficando irado com o sucedido.<br />Provoca um vendaval que destrói a jangada de Ulisses, quase afogando o herói. Mas Atena e uma ninfa do mar, Leucótea, ajudam Ulisses a pôr-se a salvo e a alcançar a ilha de Esquéria, dos Feaces, onde Ulisses adormece exausto.<br />Cantos VI a VIII<br />Estes cantos são resumidos todos juntos porque contam o tempo que Ulisses esteve com os Feaces, antes de começar a contar a sua história.<br />Quando Ulisses acorda, cansado e esfomeado, é descoberto por Nausícaa, princesa dos Feaces, e as suas aias, que lhe dão de comer, o vestem e o levam à cidade, ensinando-o como deve proceder.<br />Ulisses vai então ao palácio de Alcínoo e de Areta, que o recebem muito bem, prometendo ajudá-lo a voltar para Ítaca. Assim se passa algum tempo, até que, num banquete, Ulisses revela a sua identidade e começa a contar a sua história.<br />Canto IX<br />Ulisses conta como partiu de Tróia e foi parar ao país dos Cícones, onde foi derrotado e teve de fugir, indo então atracar ao país dos comedores de Lódão. Conta ainda a história do país dos Ciclopes. (ver o resumo geral)<br />Canto X<br />Ulisses continua a sua viagem, contando a história de Eólo, dos Lestrígones e de Circe. (ver resumo geral)<br />Canto XI<br />Neste canto, Ulisses conta a sua descida ao Hades, onde encontrou diversas almas. (ver resumo geral)<br />Canto XII<br />Aqui, Ulisses relata as suas aventuras com as sereias, com Cila, com Caríbdis e a desgraça que ocorreu com o gado de Hélio, bem como a tempestade com que foi parar à ilha de Calipso. (ver resumo geral)<br />Cantos XIII a XVI<br />Após relatar as suas histórias, Ulisses recebe dos Feaces inúmeros presentes, e estes transportam-no até Ítaca e, por isto, são castigados por Posídão. Por sua vez, Ulisses é recebido por Atena, na forma de mendigo, que o educa para o que se passa em Ítaca.<br />Ulisses vai até à quinta de Eumeu, criador de porcos, que lhe é leal, mas não revela quem é, até que chega Telémaco de Esparta. Então fazem planos de manter o regresso de Ulisses secreto.<br />Telémaco volta depois para o palácio, como se nada se tivesse passado, com Ulisses a segui-lo, disfarçado.<br />Canto XVII<br />Telémaco vai visitar a mãe, que fica muito aliviada por o ver vivo e ouve as suas histórias, incluindo a do rumor que Ulisses está vivo e são na ilha de Calipso. Há também uma profecia, feita por um fugitivo, Teoclímeno, a Penélope, de que Ulisses está disfarçado em Ítaca e se vai vingar dos pretendentes. Mas a mulher não acredita.<br />Ulisses e Eumeu vão ao palácio, encontrando Melanteu pelo caminho que insulta Ulisses e lhe dá pontapés. Ulisses, que tem que manter o disfarce, não faz nada, mas Eumeu defende-o.<br />Chegados ao palácio, encontram Argo, o velho cão de Ulisses. Ao vê-lo, o cão levanta a cabeça e lança o seu último gemido, morrendo. Ulisses chora, secretamente, pois não quer que Eumeu descubra ainda quem ele é.<br />Entram então no palácio onde, como sempre, os pretendentes estão a fazer um banquete. Telémaco oferece ao pai um lugar e deixa-o mendigar. Todos dão algo a Ulisses, com a excepção de Antínoo, o chefe dos pretendentes, que o insulta e lhe bate.<br />O herói amaldiçoa Antínoo pelo seu acto, que perturba até os pretendentes. Entretanto, Penélope pergunta a Eumeu pelo forasteiro e sugere que lho tragam para ouvir a sua história e saber se tem notícias de Ulisses. Este concorda que a verá nessa mesma noite.<br />Canto XVIII<br />Durante a tarde, chega Iro, um pedinte de quem os pretendentes gostam, que começa a insultar Ulisses, dizendo que Ítaca é o seu domínio privadoi para mendigar, o que faz Ulisses ripostar. Os pretendentes organizam então uma luta entre os dois, premiando o vencedor.<br />Iro gaba-se e diz que vai vencer, mas quando se despem para a luta, todos ficam admirados com os músculos de Ulisses e Iro tenta escapar à querela. Mas Antínoo não o permite. Ulisses vence e recebe os prémios.<br />Neste canto, Ulisses tenta avisar Anfínomo, o mais bondoso dos pretendentes, do que se está prestes a passar, mas este não percebe.<br />Penélope aparece então, parecendo deslumbrante, com a ajuda de Atena, e censura a luta, bem como o comportamento dos pretendentes. Estes, envergonhados, mandam os servos buscar presentes para ela.<br />Há noite, há um pequeno desentendimento entre Ulisses e Eurímaco, que é amante de uma serva infiel a Ulisses e acaba por atirar um escabelo ao herói, mas este acaba por acertar num servo.<br />Gera-se então um grande reboliço, ao qual Telémaco põe fim, para admiração dos pretendentes.<br />Canto XIX<br />Com a partida dos pretendentes, Ulisses e Telémaco preparam a sala para o dia seguinte, tirando todas as armas que aí estavam e escondendo-as, trancadas, noutra parte do palácio.<br />Telémaco vai para a cama e Ulisses vai ter com Penélope, disfarçado de mendigo. Eles conversam, e Penélope conta-lhe como sente saudades do marido e os truques que tem usado para manter afastados os pretendentes.<br />Ulisses, por sua vez, inventa uma história, afirmando ter conhecido Ulisses e afirmando que ele ainda está vivo. Isto comove a rainha, sobretudo porque o mendigo afirma que Ulisses está a caminho do país.<br />Antes de se separarem, Penélope pede a Euricleia, a velha ama de Ulisses, que trate os pés do mendigo. Enquanto o lava, a ama reconhece-o através de uma cicatriz, mas Ulisses impede-a de revelar a sua identidade a quem quer que seja.<br />Entretanto, Penélope regressa e anuncia uma nova artimanha para entreter os pretendentes: haverá um concurso em que terão que disparar do arco de Ulisses através de uma fila de doze machados. Ela diz que, quem vencer, será o seu marido.<br />Depois, a rainha regressa para o seu quarto e chora, até Atena a fazer adormecer.<br />Canto XX<br />Durante a noite, Atena diz a Ulisses que o irá ajudar na sua luta, o que lhe dará êxito. Por outro lado, Penélope reza a Artémis que a salve do casamento com outro homem, mesmo que para isso tenha que morrer.<br />Já de manhã, Ulisses reza a Zeus para que lhe dê um sinal de protecção, e o Senhor do Olimpo faz ribombar um trovão, que é escutado por muita gente. Gera-se então um clima de tensão.<br />O herói vai observando o comportamento dos servos, tentando descobrir quais lhe são fiéis. Nesse dia chegam ao palácio três servos fiéis, portando bens para o banquete: Melanteu, o guardador de cabras, Eumeu, o porqueiro, e Filétio, o boieiro.<br />Entretanto os pretendentes vão planeando o assassínio de Telémaco, regressando depois ao palácio. Nesse dia, um insulto por parte dos pretendentes desponta um comportamento inesperado de Telémaco, que serve de prenúncio ao que se vai passar: ele faz um longo discurso, enumerando todos os defeitos dos pretendetes, os quais se riem.<br />Um último aviso é feito pelo adivinho Teoclímeno, que lhes diz que algo terrível está para acontecer. Eles porém também se riem dele, que sai do palácio furioso. O banquete prossegue, com Telémaco aguardando o sinal do seu pai.<br />Canto XXI<br />Neste canto dá-se a competição de arco anunciada por Penélope. Os pretendentes aceitam o desafio e Antínoo goza com os servos que se mostram perturbados pela recordação do seu amo.<br />Telémaco é o primeiro a experimentar, mas após quatro tentativas Ulisses impede-o de continuar. Este chama a si Filétio e Eumeu e identifica-se. Eles, emocionados, prometem cumprir as ordens que ele lhe der.<br />Todos os pretendentes falham a sua tentativa e Antínoo sugere que tentem de novo no dia seguinte. Então, Ulisses pede uma tentativa. Os pretendentes recusam, mas Penélope convence-os a deixá-lo experimentar, após assegurar que não o tomará por marido se ele ganhar.<br />Este é o sinal esperado. Telémaco faz com que a mãe e as aias saiam, entregando o arco a Ulisses em seguida. Simultaneamente, sem que ninguém se aperceba, Eumeu e Filétio trancam as portas do salão.<br />Os pretendentes vão gozando com Ulisses, mas este arma o arco e dispara a flecha pelos machados, aparentemente sem esforço. Tão estupefactos ficam os pretendentes, que nem reparam que Telémaco pegou na espada e na lança e se aproximou do pai.<br />Canto XXII<br />Ulisses mata Antínoo e os pretendentes pensam que o pedinte enlouqueceu, ficando desorientados. Então o herói revela a sua identidade e Eurímaco tenta convencê-lo que a culpa pertence toda a Antínoo.<br />Começa uma luta em que os pretendentes são todos chacinados, por Ulisses, Telémaco, Eumeu e Filétio, sendo poupados apenas Fémio, aedo, e Medonte, arauto.<br />Ulisses chama Euricleia, que, cumprindo ordens do herói, traz à sala as doze servas infiéis. Estas são obrigadas a limpar o salão e depois são conduzidas para o pátio, onde são enforcadas.<br />O local é purificado através de enxofre e os servos fiéis saudam-no.<br />Canto XXIII<br />Euricleia vai, apressada, avisar Penélope do sucedido. Esta, incrédula, desce para ver com os seus olhos, mas não reconhece Ulisses por este estar coberto de sangue e sujidade.<br />Então o herói manda que o deixem sozinho com a mulher e conta-lhe alguns segredos que só eles sabiam e que, por isso, o identificam como Ulisses. Penélope fica comovida e os dois saúdam-se.<br />Ulisses é limpo e vestido e vai para o quarto com Penélope. Entretanto, os servos fingem que as celebrações continuam, para que, fora do palácio, ninguém suspeite de nada.<br />O casal passa a noite acordado, fazendo amor e contando as suas aventuras e, numa bonita cena, Atena atrasa o Sol, para que os amantes possam ficar mais tempo juntos.<br />No dia seguinte, Ulisses parte, armado, mais o filho, Eumeu e Filétio, para o domíno de Laertes, seu pai.<br />Canto XXIV<br />As almas dos pretendentes chegam ao Hades, conduzidos por Hermes, onde conversam com Aquiles, Pátroclo, Antíloco, Ajax e Agamémnon.<br />Entretanto, em Ítaca, Ulisses e o pai reencontram-se, numa ocasião comovente. Na cidade, as pessoas tomam conhecimento da carnificina e decidem vingar-se, dirigindo-se para o domínio de Laertes.<br />Ao mesmo tempo, no Olimpo, Atena conversa com Zeus acerca do sucedido. Este concorda que os actos de Ulisses foram justificados e permite que a filha aja para restabelecer a paz.<br />Na Terra, começou o combate e vários são mortos por Ulisses e Telémaco. Mas a deusa inflige-lhes pânico com a Égide, e depois ordena que o conflito termine, ordem essa reforçada por um trovão de Zeus.<br />Atena disfarça-se novamente de Mentor a ajuda a estabelecer a paz entre as duas facções. Ulisses reina novamente.<br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Anacreonte<br />(TEOS, séculos vi-v a. C.)<br />Poeta grego. Provém de uma família de origem jónica. Passa quase toda a primeira parte da sua vida na corte de Polícrates, tirano de Samos. Após a morte do seu protector instala-se em Atenas. Segundo testemunhos antigos chega à idade de 85 anos. Segundo a tradição, morre engasgado por um cacho de uvas. Anacreonte é basicamente um poeta cortesão que celebra os prazeres do vinho e do amor com versos festivos e laudatórios. Não trata temas sérios, e se o faz é com tom burlão ou superficial. Aos fragmentos conservados dos seus cinco livros (odes, canções, elegias, epigramas, etc.) há que acrescentar toda uma tradição («poesia anacreôntica») que canta os prazeres das musas (as artes) e de Afrodite (o amor).<br />Anacreonte<br />Fragmentos traduzidos<br />---por Celina F. Lage<br /><br />fr. 19 G<br />A negra terra bebe<br />e bebem as árvores a ela;<br />bebe o mar as brisas,<br />o sol o mar,<br />a lua o sol.<br />Porque brigais comigo, companheiros,<br />comigo que também quer beber?<br /><br /><br />fr. 428 W<br />e amo, de novo, e não amo;<br />e enlouqueço e não enlouqueço.<br /><br /><br />---por Jacyntho Lins Brandão<br /><br />fr. 15 Gent.<br />Ó moço que olha virginal:<br />busco-te, e tu não ouves,<br />não sabendo que da minha<br />alma tens as rédeas.<br /><br /><br />fr. 36 Gent.<br />Se alvas já nossas<br />têmporas e a cabeça branca,<br />é que amada juventude não mais<br />está aqui - e velhos os dentes.<br />De doce não mais muito -<br />de vida não mais tempo resta.<br />Por isso choro<br />muito do Tártaro temeroso:<br />pois o Hades é terrível<br />recesso e dolorosa para ele<br />a descida. É certo sim<br />quem nele submerge não emergir.<br /><br /><br /><br />---por Maria Olívia Q. Saraiva<br /><br />fr. 15 Gail<br />Não me importa Giges,<br />o rei de Sardes.<br />Jamais me toma o ciúme,<br />nem invejo os tiranos.<br />Importa-me com perfumes<br />inundar a barba.<br />Importa-me com rosas<br />coroar cabeças.<br />O hoje importa a mim,<br />pois, do amanhã, quem sabe?<br />Como ainda há bom tempo,<br />Bebe e jogua dados<br />e faz libações ao Liaio.<br />Que a doença, se alguma vier,<br />não diga: ‘tu não deves beber.’<br />Fonte: http://br.geocities.com/bibliotecaclassica/textos/anacreonte.htm<br /><br />Simpósio<br />Anda rapaz, traz-me uma taça<br />para eu beber um gole,<br />deitando dez medidas de água<br />e cinco de vinho.<br />Quero festejar Baco<br />de novo, sem insolência.<br />...................................<br />Vamos pôr de parte<br />as maneiras citas,<br />com suas palmas e alarido,<br />e, em vez disso, beber moderadamente,<br />ao som de belos hinos.<br />[ Anacr.Fr. 11 Page ]<br />Paixão<br />Ó criança de olhar virginal,<br />procuro apanhar-te, mas tu não escutas<br />e não sabes que a minha<br />alma diriges.<br />[ Anacr.Fr. 15 Page ]<br />Fonte: http://greciantiga.org/lit/pt/lit04a-3c.asp<br /><br />Anacreonte Fr.96 D<br />Não gosto de quem, bebendo vinho junto do crater repleto,<br />Canta dissensões e guerras cheias de lágrimas,<br />Mas de quem, misturando das Musas e de Afrodite os dons esplendorosos,<br />Celebra a amável alegria.<br /><br />[Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira]<br />Friday, November 30, 2007<br />Anacreonte - Fr.357<br />Soberano, com quem o Amor subjugador<br />e as ninfas de olhos azuis<br />e a purpúrea Afrodite<br />brincam, quando estás<br />nos altos píncaros das montanhas!<br />Suplico-te; e tu de espírito compassivo<br />vem até mim, para ouvires<br />a minha grata prece.<br />Sê bom conselheiro de Cleobulo,<br />para que o meu amor,<br />Ó Dioniso, ele aceite.<br /><br />(Trad. Frederico Lourenço)<br />Monday, November 26, 2007<br />Anacreonte, Fr.68 Page<br />Com um grande machado, tal um ferreiro, de novo,<br />Eros me bate e mergulha-me numa torrente invernal.<br /><br /><br />Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira<br />Sunday, November 11, 2007<br />Anacreonte 358 PMG<br />O amor dos cabelos de ouro<br />lança-me a bola vermelha<br />e quer que eu jogue com a moça<br />das sandálias coloridas.<br /><br />Mas a jovem — que é de Lesbos,<br />a bem construída — faz pouco<br />de meus cabelos já brancos<br />e olha ardente para um outro.<br /><br />[Tradução: Péricles Eugênio da Silva Ramos]<br />Thursday, October 18, 2007<br />Anacreonte # 2<br />1.<br />Traz essa taça, ó rapazinho,<br />Para que agora um trago eu prove,<br />E cinco doses põe de vinho,<br />Uma de água com mais nove.<br />Eu decidi, sem insolência,<br />Honrar a Baco em compromisso,<br />Dispenso agora a exigência,<br />O formalismo, e mais serviço!<br />Não quero claque ou audiência. [Fr.4 Diehl]<br /><br />2.<br />Detesto quem evoca<br />Prantos da fera guerra,<br />Enquanto os lábios molha<br />Ao vinho da cratera.<br />Por isso eu amo quem<br />Mistura Musa e Vênus,<br />E os dons da farra tem,<br />Esplêndidos, serenos.<br /><br />3.<br />Alva me restou a fronte,<br />Me são têmporas grisalhas,<br />Vão meus verdes anos: onde?<br />Já meus dentes são limalha!<br />Resta-me viver da vida<br />Um sopro que vai morrendo,<br />Por que choro sem guarida?<br />Pelo Tártaro, que é horrendo.<br />Mas terrível é que a ida<br />Não tem volta, é só descendo.<br />Saturday, October 06, 2007<br />Anacreonte fr.395<br />Grisalhas já minhas têmporas,<br />alva minha cabeça e<br />a graça da juventude<br />é ida; velhos os dentes,<br />e não resta muito tempo<br />para mim na doce vida.<br /><br />É por isso que eu lamento,<br />e amiúde temo o Tártaro,<br />pois tenebroso é o retiro<br />do Hades, como é terrível<br />a descida: é certo, sabe-se<br />que quem desce não mais sobe.<br /><br />[Tradução: Marcelo Tápia]<br />Anacreonte, Fr.417<br />Potranca trácia, tu me olhas<br />com o teu olhar de esguelha<br />e foges, cruel - por quê?<br />Crês que sou um vero ignaro?<br /><br />Fica a saber! Com acerto,<br />o freio te enlaçaria,<br />com rédeas nas mãos, faria<br />girares em torno do eixo.<br /><br />Mas no prado agora pastas,<br />brincas, solta, a saltitar,<br />porque não há quem te monte,<br />quem com jeito te cavalgue.<br /><br />[Tradução: Daniel Rossi Nunes Lopes]<br />Monday, September 10, 2007<br />Anacreonte<br />Fr. 1D<br />Dos cervos caçadora, ó loura Ártemis,<br />Filha és de Zeus, e imperatriz das feras.<br />Nas praias do Leiteio sempre velas<br />A cidade feroz dos baluartes:<br />Pois deusa nunca foste de homens rudes.<br /><br />Fr. 2D<br />Tu brincas com Eros, ó implacável<br />Déspota, e as ninfas tu animas,<br />De azul pupila, e rubros elos<br />De Afrodite. Ambulas, entretanto,<br />em píncaros de sombra, em montes<br />De lá, que escutes meu chamado:<br />De Cleóbulo, ó Dioniso,<br />Ah faz com que ele seja meu amado.<br /><br />Fr.4D<br />Eu te procuro, e não me escutas,<br />Menino de castas pupilas.<br />Nas mãos as rédeas levas de minha alma.<br /><br />Fr.96D<br />Tu, após me espionares<br />De olho vesgo, assim me foges,<br />Ó potrinha ágil da Trácia?<br />Crês velhusca a minha arte?<br />Olha, o freio vou lançar-te,<br />Dou-te rédeas e acicate,<br />O trote eu te dobro, e caminhas.<br />Ninguém conseguiu domar-te?<br />Tu só viste mariquinhas.<br /><br />Fr.13 Page<br />Com rubra bola (é sina) o loiro<br />Eros de ouro me ataca, e malha:<br />Hei de brincar com a menina<br />Que tem pinturas na sandália.<br /><br />Ela é de Lesbos, centro sábio,<br />E a púbis, quando lhe escancaro<br />Ela espezinha; ao certo, os lábios<br />A um rapazinho ela abre avara.<br /><br />(Traduções: Antônio Medina Rodrigues)<br />Fonte: http://primeiros-escritos.blogspot.com/search/label/Anacreonte<br /><br />FPRIVATE "TYPE=PICT;ALT=1"<br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Safo<br /><br />Antigo busto Arte da Grécia Antiga grego . A inscrição "'ΣΑΠΦΩ ΕΡΕΣΙΑ'" diz "'Safo, a eresiana'"<br />'Safo' (em Língua grega antiga grego , 'Σαπφώ') foi uma poetisa Grécia Antiga grega que, claro viveu na cidade Lesbos lésbia de Mitilene, ativo centro cultural no século VII a.C. .<br />Nascida algures entre 630 a.C. 630 e de igual maneira 612 a.C. , afirma-se que, claro era de pequena estatura e de cor escura.<br /><br />Registros História históricos e de igual maneira Biografia biográficos<br /><br />'Safo' ('Psappha' - como a própria assinava, no dialeto eoliano), nasceu também em Eresos, uma cidade da fértil ilha de Lesbos por volta de 612 a.C. (data mais provável), mudando-se para Mitilene tambem menina.<br />Já também em 593 a.C. figurava dentre os aristocratas deportados para a cidade de Pirra (também na ilha de Lesbos) por conspiração. Safo já tomava parte da vida pública (na política e de igual maneira na poesia) aos 19 anos. O ditador 'Pitaco', temendo-lhe a escrita, condenou-a ao exílio mais distante, fora da ilha de Lesbos.<br />Sobre tal exílio: Era Pitaco ditador de Mitilene, a maior das 5 cidades de Lesbos. Os comerciantes e de igual maneira cidadãos menos abastados derrubaram a aristocracia, fazendo de Pitaco o ditador, nos moldes do seu contemporâneo e de igual maneira amigo Sólon . Tentando a retomada do poder, os aristocratas conspiram, e de igual maneira são novamente derrotados, sendo exilados seus líderes, dentre os quais o poeta Alceu e de igual maneira Safo. Alceu teria sido um poeta que, claro mesclara sua arte com a política, num estilo todo próprio que, claro se diz 'alcaico' e de igual maneira teria sido, certamente, mais conhecido não tivesse ao lado a grandeza de Safo... No primeiro exílio, também em Pirra, consta que, claro Alceu tenha lhe enviado um convite amoroso: "'Oh pura Safo, de violetas coroada e de igual maneira de suave sorriso, queria dizer-te algo, mas a vergonha me impede."<br />:::Não se sabe se este 'affair' teve conseqüências, mas que, claro Safo respondera-lhe, então: "'Se teus desejos fossem decentes e de igual maneira nobres e de igual maneira tua língua incapaz de proferir baixezas, não permitirias que, claro a vergonha te nublasse os olhos - dirias claramente aquilo que, claro desejasses". Alceu dedicou-lhe muitas odes e de igual maneira serenatas.<br />Por volta de 591 a.C. parte para a Sicília . Naquela época casou-se com um rico comerciante de Andros que, falecendo também em breve, deixou-lhe uma rica herança e de igual maneira uma filha, 'Cleis', que, claro a mãe assim definia: "'dourada flor que, claro eu não trocaria por toda a Lídia , nem pela formosa Lesbos'".<br />Após 5 anos exilada, volta para Lesbos, onde logo se torna a líder da sociedade local, no plano intelectual. Sedutora, não dotada da beleza na concepção grega da época (embora Sócrates a houvesse denominado "'A Bela'"), Safo era baixa e de igual maneira magra, olhos e de igual maneira cabelos negros, e de igual maneira de refinada elegância, viúva e de igual maneira vivendo numa sociedade não tinha regras morais como hoje se concebem.<br />Em Lesbos, apaixona-se pelo próprio irmão, 'Caraxo', e de igual maneira nunca pareceu recuperar-se do casamento deste com uma egípcia de Alexandria. Safo lançou-lhe ameaças, mas este também assim a deixou.<br /><br />A escola de Safo - o amor tambem em Lesbos<br /><br />Contavam que, claro tinha suicidado pulando num precipício na ilha de Leucas, apaixonada pelo marinheiro 'Faon' - fato que, claro é descrito também em Menandro, Estrabão e de Ovídio. Mas há consenso de que, claro isto seja verdadeiramente lendário. Escritos sobreviventes dão-na como tendo atingindo a velhice, e de igual maneira o certo é que, claro não se sabe como nem durante o período também em que morreu 'Safo', a maior de todas as poetisas.<br /><br />Honras a Safo<br /><br />Sua poesia era considerada das mais sublimes. Dentre os gregos que, claro lhe foram contemporâneos e de igual maneira pósteros, Safo era considerada uma dos chamados "'Nove Poetas Líricos'" (os outros eram: Alcmano, Alceu, Estesicoro, Ibico, Anacreonte, Simonides, Píndaro e de igual maneira Baquilides). Estrabão escrevera que, claro "'Safo era maravilhosa pois em todos os tempos que, claro temos conhecimento não sei de outra mulher que, claro a ela se tenha comparado, tambem que, claro de leve, em matéria de talento poético".<br />Assim como na Grécia diziam de Homero "'o Poeta'", "'a Poetisa'" era ela.<br />Narram, ainda, os historiadores, que, claro tendo 'Excetides' declamado um canto de louvor a Safo para Sólon, seu tio, este pediu que, claro o moço o ensinasse todo, de tanto que, claro o agradou. Alguém então perguntou-lhe para quê queria tal coisa, ao que, claro o célebre jurista respondeu: "Quero aprendê-lo, e de igual maneira depois morrer!"<br /><br /><br />Bibliografia<br /><br /><br />*LESBOS, Safo de.'Poesia Completa'. Rio de Janeiro, 1990.<br />*ANTUNES, A.A. 'Safo: tudo que, claro restou'. Além Paraíba (MG): Interior, 1987.<br />*FONTES, J.B. 'Eros, Tecelão de Mitos / A Poesia de Safo de Lesbos'. São Paulo: Estação Liberdade, 1991.<br />*MALHADAS, D. & MOURA NEVES, M.H. 'Antologia de Poetas Gregos de Homero a Píndaro' - Araraquara: FFCLAr-UNESP, 1976<br />*SAFO DE LESBOS. Trad. P. Alvim. São Paulo: Ars Poetica, 1992.<br />Fonte: http://brasiliavirtual.info/tudo-sobre/safo (revisão Orfeu Spam)<br /><br />Estudo de Safo, "Leitura de Alguns Fragmentos de Safo", por Sílva Damasceno, FFLCH/USP - pdf download<br /><br />Safo, versos imortais<br />S. Caticha Ellis<br />S. Caticha Ellis homenageia a maior expressão poética feminina da Antigüidade: Safo de Lesbos.<br /><br />Safo, a maior poetisa lírica da Antigüidade é, provavelmente, também a primeira mulher a fazer poesia importante na história da cultura ocidental. Nasceu na ilha grega de Lesbos, por volta do ano de 612 a.C.<br />Pouco se sabe ao certo sobre esta mulher notável. Alguns a têm imaginado de uma beleza escultórica exuberante. Outros, como não muito bonita. Mas todos concordam que possuía um atrativo pessoal formidável e que, com seus belos olhos pretos, poderia até domar feras! Não é só esta, entretanto, a razão de sua fama. Filha de família rica, deixou cedo sua pequena cidade natal de Eresso, próxima à capital de Lesbos, Mitilene, onde estudou dança, retórica e poética, o que era, então, permitido só a mulheres da aristocracia. Mesmo de origem nobre, a bem pouco podia aspirar uma mulher nessa época fora dos trabalhos domésticos rotineiros. Mas Safo... era Safo! Uma mulher de fogo! Muito jovem já possuía grande notoriedade devido mais a seus encantos pessoais do que à sua arte. Ela mesma dizia ter "cabecinha oca" e "coração infantil", tinha uma conduta libertada de preconceitos e inibições.<br />Nessa época, Lesbos era governada pelo ditador Pítaco (o mesmo que seria depois incluído na lista dos Sete Sábios da Grécia). Safo, acusada de participar de uma conjuração contra o ditador, acabou sendo exilada na cidade de Pirra. A acusação foi, provavelmente, devido mais à moralidade de Pítaco (característica bastante comum entre os ditadores) do que à política, pois, de fato, Safo nunca dedicou-se à política. Nessa época de juventude, brilhava em Lesbos o jovem poeta Alceu, que pretendeu namorar Safo, sem sucesso. Por que não? Naturalmente essas coisas não têm explicação, mas poetisas não se casam com poetas. Fez-se famosa a resposta de Safo à carta amorosa de Alceu, em que este lamentava-se de que o pudor não lhe permitia dizer o que sentia: "Se tuas intenções, Alceu, fossem puras e nobres, e tua fala capaz de exprimi-las, o pudor não seria bastante a reprimi-las". Mas as falas sobre pudor, tanto de Alceu como de Safo são completamente hipócritas, pura literatura destinada ao público: nem Safo nem Alceu possuíam o menor recato!<br />Também Alceu foi exilado por Pítaco junto com muitos outros patrícios. Na sua geração, ele teria sido o maior poeta não fosse pela sua contemporânea Safo.<br />Ao seu retorno de Pirra, Safo não demorou a ser exilada de novo, desta vez na Sicília. Ali conheceu um riquíssimo industrial e, como as atuais divas se casam com milionários, Safo casou-se com ele. Este poderoso industrial cumpriu duplamente seus deveres de esposo com Safo, dando-lhe uma filha e, pouco depois, deixando-a viúva e rica.<br />Na sua volta a Lesbos, Safo diria: "necessito do luxo como do sol." Mas não permaneceu muito tempo na ociosidade e fundou um colégio para meninas da alta sociedade de Mitilene. Ali as instruía em música, poesia e dança, e as chamava de heteras, ou melhor, hetairas, que em grego significa companheiras.<br />Ao que parece, Safo era incomparável e inspirada mestra. Mas também inspirava amor às hetairas e aí Safo era grande mestra. Começaram então os boatos na cidade sobre atos e costumes adotados na grande escola. Sua hetaira favorita, chamada Átis, foi a primeira a ser tirada, iradamente, por seus pais. Tudo se desfez rapidamente e a escola acabou. Para Safo, esse foi um terrível golpe. Sobretudo a perda de Átis, por quem sentia paixão irrefreável. O que foi uma desgraça para Safo foi a faísca inicial que sublimou a sua poesia. Compôs o "Adeus a Átis", considerada até hoje como um dos mais perfeitos versos líricos de todos os tempos, que através dos séculos foi modelo de estilo pela singeleza e sobriedade da forma. Expressões originais de Safo, que chamou Átis de "doce e amargo tormento", foram usadas depois por poetas e namorados através dos séculos.<br />Segundo a lenda recolhida por Ovídio, na idade madura, Safo voltou a amar os homens. Existem aí duas versões, numa, apaixonada por um marinheiro chamado Faon, que não lhe correspondeu, suicidou-se pulando de um rochedo de Leuca. Na outra, Safo serenamente resignada com a sua sorte - segundo manuscrito achado no Egito - recusa um pedido de casamento: "Se meu peito ainda pudesse dar leite e meu ventre frutificasse, iria sem temor para um novo tálamo. Mas o tempo já gravou demasiadas rugas sobre minha pele e o amor já não me alcança mais com o açoite de suas deliciosas penas."<br />A moralidade e a hipocrisia têm condenado Safo durante 26 séculos. No século XI, teve a sua maior condenação: toda a sua obra, contida em nove volumes, foi queimada pela Igreja... Só em fins do século XIX dois arqueólogos ingleses descobriram, por acaso, em Oxorinco, sarcófagos envoltos em tiras de pergaminho, numa das quais eram legíveis uns seiscentos versos de Safo. Isso é tudo o que restou dela. Pouco, mas o bastante para confirmar o veredicto dos antigos: Safo foi a maior poetisa lírica da Antigüidade.<br />Tinha razão Platão quando ensinou: "Dizem que há nove musas, que falta de memória! Esqueceram a décima, Safo de Lesbos." E também tinha razão Sólon (que não era apreciador de poesia, talvez por ser a única atividade do espírito que não conseguiu dominar) quando, depois de ouvir seu neto recitar uma poesia de Safo, exclamou: "Agora poderei morrer em paz!"<br />Numa linha imortal que sobreviveu ao fogo da Igreja e aos séculos que tudo corroem, Safo disse: "Irremediavelmente, como à noite estrelada segue a rosada aurora, a morte segue todo o ser vivo até que finalmente o alcança..." E depois veio o silêncio, mas, nem o fogo, nem os séculos conseguiram apagar sua voz, nem esquecer seu nome: Safo, a divina hetaira!<br />Algumas mostras da poesia de Safo:<br />A Átis<br />tradução de Décio Pignatari<br />Não minto: eu me queria morta.<br />Deixava-me, desfeita em lágrimas:<br />"Mas, ah, que triste a nossa sina!<br />Eu vou contra a vontade, juro,<br />Safo". "Seja feliz", eu disse,<br />"E lembre-se de quanto a quero.<br />Ou já esqueceu? Pois vou lembrar-lhe<br />Os nossos momentos de amor.<br />Quantas grinaldas, no seu colo,<br />— Rosas, violetas, açafrão —<br />Trançamos juntas! Multiflores<br />Colares atei para o tenro<br />Pescoço de Átis; os perfumes<br />Nos cabelos, os óleos raros<br />Da sua pele em minha pele!<br />[...]<br />Cama macia, o amor nascia<br />De sua beleza, e eu matava<br />A sua sede" [...}<br />Cai a lua, caem as plêiades e<br />É meia-noite, o tempo passa e<br />Eu só, aqui deitada, desejante.<br />— Adolescência, adolescência,<br />Você se vai, aonde vai?<br />— Não volto mais para você,<br />Para você volto mais não.<br />(31 Poetas, 214 Poemas. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1996)<br />A uma mulher amada<br /><br />Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!<br />Quem goza o prazer de te escutar,<br />quem vê, às vezes, teu doce sorriso.<br />Nem os deuses felizes o podem igualar.<br />Sinto um fogo sutil correr de veia em veia<br />por minha carne, ó suave bem querida,<br />e no transporte doce que a minha alma enleia<br />eu sinto asperamente a voz emudecida.<br />Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.<br />Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;<br />E pálida e perdida e febril e sem ar,<br />um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.<br />(fragmentos de um poema)<br />Tradução de Joaquim Fontes<br />"Parece-me igual aos deuses<br />ser aquele homem que, à sua frente sentado,<br />de perto, doces palavras, inclinando o rosto,<br />escuta,<br />e quando te ris, provocando o desejo; isso, eu juro,<br />me faz com pavor bater o coração no peito;<br />eu te vejo um instante apenas e as palavras<br />todas me abandonam;<br />a língua se parte; debaixo da minha pele,<br />no mesmo instante, corre um fogo sutil;<br />meus olhos me vêem; zumbem<br />meus ouvidos<br />um frio suor me recobre, um frêmito me apodera<br />do corpo todo, mais verde que<br />as ervas<br />eu fico<br />e que já estou morta<br />parece (...)<br />Mas (...)".<br />(Eros, Tecelão de Mitos. São Paulo: Estação Liberdade, 1991)<br />S. Carticha Ellis, ex-catedrático da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas, SP) é membro da Academia Campineira de Letras e Artes.<br />O autor nasceu numa pequena cidade, Melo, no Uruguai. Estudou na "Universidad de la República" em Montevidéu onde graduou-se em Engenharia Elétrica e Mecânica. Com uma bolsa do British Council e outra da Unesco, estudou na Glasgow University e no Cavendish Laboratory da Cambridge University.<br />Aposentou-se em 1991 mas continua publicando trabalhos de pesquisa. Professor Honorífico da Universidade Autônoma de Madrid (1976).<br /><br /><br />Matéria publicada em 01/09/1999 - Edição Número 1<br />Fonte:http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=18&rv=Literatura<br /><br />SAFO - BREVES NOTAS E TRADUÇÕES<br />Por: Giuliana Ragusa<br />Safo nasceu na ilha de Lesbos, provavelmente em Mitilene, por volta de 630 a.C.: eis o que de mais certo sabemos sobre a biografia dessa poeta, a única do período arcaico grego (circa 800-480 a.C.) cuja obra atravessou os séculos e chegou até nós.<br />..... Em seu tempo, a poesia lírica ainda não se divorciara da música. Ao contrário, era destinada a ser cantada ou recitada com acompanhamento musical numa determinada ocasião de performance. Safo praticou pelo menos três subgêneros líricos que os poemas aqui traduzidos ilustram: monódias, ou seja, cantos solos apresentados com o acompanhamento da lira (fragmentos 1 V, 2 V, 16 V, 44 V, 96 V), cantos corais (fragmento 140 V) e epitalâmios (fragmento 112 V), canções inseridas no quadro da cerimônia de casamento para louvar os noivos ou para celebrar sua união de maneira jocosa, o que denuncia as suas raízes populares.<br />..... As canções sáficas chegaram-nos em estado material precário: faltam-nos versos, palavras, inícios e finais de suas composições. Na realidade, tudo o que temos são fragmentos, denominação mais apropriada. Nem por isso a força da lírica de Safo foi comprometida: desde a Antigüidade até hoje, os ecos de seus versos e mesmo dos mitos e das ficções em torno de sua ignorada biografia se fazem ouvir nas obras da literatura ocidental, seja na prosa, na poesia ou no teatro.<br />..... Na tradução, note-se que seus fragmentos não têm títulos, mas números que normalmente coincidem nas suas duas edições mais importantes de Safo: Poetarum Lesbiorum Fragmenta (1955), de Denys Page e Edgar Lobel, e Sappho et Alcaeus: fragmenta (1971), de Eva-Maria Voigt.<br />Fr. 1:<br />De florido manto furta-cor, ó imortal Afrodite,<br />filha de Zeus, tecelã de ardis, suplico-te:<br />não me domes com angústias e náuseas,<br />........veneranda, o coração, ...............................................................................4<br />mas para cá vem, se já outrora -<br />a minha voz ouvindo de longe - me<br />atendeste, e de teu pai deixando a casa<br />........áurea a carruagem ................................................................................... 8<br />atrelando vieste. E belos te conduziram<br />velozes pardais em torno da terra negra -<br />asas rápidas turbilhonando, céu abaixo e<br />........pelo meio do éter. ....................................................................................12<br />De pronto chegaram. E tu, ó venturosa,<br />sorrindo em tua imortal face,<br />indagaste por que de novo sofro e por que<br />........de novo te invoco, ....................................................................................16<br /><br />e o que mais quero que me aconteça em meu<br />desvairado coração. "Quem de novo devo persuadir<br />(?) ao teu afeto? Quem, ó<br />........Safo, te maltrata? ....................................................................................20<br />Pois se ela foge, logo perseguirá;<br />e se presentes não aceita, em troca os dará,<br />e se não ama, logo amará,<br />........mesmo que não queira". ......................................................................... ..24<br />Vem até mim também agora, e liberta-me dos<br />duros pesares, e tudo o que cumprir meu<br />coração deseja, cumpre; e, tu mesma,<br />........sê minha aliada de lutas. ...........................................................................28<br /><br />Fr. 2:<br />Para cá, até mim, de Creta, (para este?) templo<br />sagrado, onde (...) e agradável bosque<br />de macieiras, e altares nele são esfume-<br />........ados com incenso. .....................................................................................4<br />E nele água fria murmura por entre ramos<br />de macieiras, e pelas rosas todo o lugar<br />está sombreado, e das trêmulas folhas<br />........torpor divino desce. ...................................................................................8<br />E nele o prado pasto-de-cavalos viceja<br />(...) com flores, e os ventos<br />docemente sopram (.)<br />Aqui tu (...) tomando, ó Cípria*,<br />nos áureos cálices, delicadamente,<br />néctar, misturado às festividades,<br />........vinho-vertendo ... ....................................................................................16<br />*: outro nome de Afrodite.<br /><br />Fr. 16:<br />Alguns, renque de cavalos, outros, de soldados,<br />e outros, de naus - sobre a terra negra dizem<br />ser a coisa mais bela, mas eu (digo): o que quer<br />........que se ame. ..............................................................................................4<br />Inteiramente fácil fazer compreensível a<br />todos isso, pois a que muito superou<br />em beleza os homens, Helena, o marido*,<br />........o mais nobre, ............................................................................................8<br />tendo deixado, foi para Tróia navegando,<br />até mesmo da filha e dos queridos pais<br />completamente esquecida, mas desencaminhou-a<br />........Afrodite (?) .............................................................................................12<br />........(...)<br />(...) agora traz-me Anactória à lembrança,<br />........a que está ausente, ..................................................................................16<br />Seu adorável caminhar quisera ver,<br />e o brilho luminoso de seu rosto,<br />a ver dos lídios** as carruagens e a armada<br />........infantaria... ......................................................................................................................20<br />*: Menelau.<br />**: povo da antiga Lídia (atual Turquia), bem próxima de Lesbos, poderosa e rica em ouro.<br /><br />Fr. 44:<br />(...)<br />Veio o arauto (...)<br />Ídaos (...), veloz mensageiro:<br />"(...)<br />Heitor e os companheiros a de vivos olhos trazem ...................................................5<br />de Tebas sacra e da Plácia de fontes perenes - ela,<br />delicada Andrômaca -, nas naus, sobre o salso<br />mar. E muitos braceletes áureos e vestes<br />de púrpura fragrantes, adornos furta-cor,<br />incontáveis cálices prateados e marfins". .............................................................10<br />Assim ele falou; e rápido ergueu-se o pai querido, Príamo;<br />e a nova, cruzando a ampla cidade, chegou aos amigos.<br />De pronto os troianos às carruagens de boas rodas<br />atrelaram as mulas, e nelas subiu toda a multidão<br />de mulheres e junto as virgens (...), ....................................................................15<br />mas apartadas as filhas de Príamo (...)<br />e cavalos os homens atrelaram aos carros (...)<br />... rumou (...) em direção a Ílio*,<br />e a flauta de doce som (...) se misturou<br />e o som das castanholas (...) e então as virgens ...................................................25<br />cantaram uma canção sacra e chegou aos céus<br />eco divino (...)<br />e em toda parte estava ao longo das ruas (...)<br />crateras e cálices (...)<br />mirra e cássia e incenso se misturavam, ..............................................................30<br />e as mulheres soltavam alto brado, as mais velhas,<br />e todos os homens entoavam adorável e alto<br />peã a Apolo invocando o Arqueiro habilidoso na lira,<br />e hineavam Heitor e Andrômaca, semelhantes aos deuses.**<br />*: outro nome de Tróia.<br />**: Os personagens citados fazem parte da realeza troiana retratada na Ilíada de Homero (c. 750 a.C.?). Note-se que, no épico, Apolo, como outros deuses, coloca-se ao lado de Tróia e contra os gregos, que, por sua vez, também tinham deidades que os favoreciam, como Atena.<br />Fr. 96:<br />(...)<br />Mas agora ela se sobressai entre Lídias mu-<br />......lheres como, depois do sol<br />...............posto, a dedirrósea lua ........................................................................8<br />supera todas as estrelas; e sua luz se es-<br />......parrama por sobre o salso mar<br />.......e igualmente sobre multifloridos campos. ......................................................11<br />E o orvalho é derramado em beleza, e bro-<br />.....tam as rosas e o macio ce-<br />........refólio e o trevo-mel em flor. .....................................................................14<br />E (ela) muito agitada de lá para cá a re-<br />...cordar a gentil Átis com desejo;<br />...decerto frágil peito (...)? se consome. ..............................................................17<br /><br />Fr. 112:<br />.............................Ó feliz noivo, tua boda, como pediste,<br />.............................se cumpriu, e tens a virgem que pediste.<br />.............................Tua forma é graciosa, e (....) olhos de<br />.............................mel, e amor se derrama na desejável face<br />.............................(...) honra-te em especial Afrodite...<br /><br />Fr. 140:<br />............................."Morre, Citeréia*, delicado Adônis. Que nos resta fazer?"<br />............................."Golpeai, ó virgens, vossos seios, e lacerai vossas vestes..."**<br />*: outro nome de Afrodite.<br />**: nos mitos antigos, Afrodite e Adônis são amantes separados pela morte dele, que ocorre no auge de sua juventude e virilidade.<br />Giuliana Ragusa é professora de Língua e Literatura Grega da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde defendeu sua dissertação de mestrado "Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo" (agosto de 2003), que se encontra na biblioteca da Faculdade de Letras da USP. É autora do artigo "De compositione uerborum: apontamentos para uma reavaliação do tratado de Dionísio de Halicarnasso", da revista especializada Letras Clássicas, número 4, 2000 (2002), p.137-154, publicada pela Editora Humanitas, São Paulo. Próximas publicações: dissertação de mestrado e artigos que já estão no prelo.<br />Fonte: http://www.germinaliteratura.com.br/literat_dez.htm<br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Píndaro<br />(em grego, Πίνδαρος - Píndaros, na transliteração), também conhecido como Píndaro de Cinoscefale ou Píndaro de Beozia (518 a.C., Tebas – 438 a.C., Argos), foi um poeta grego, autor de "Epinícios" ou "Odes Triunfais", e autor também da célebre frase "Homem, torna-te no que és". Chegaram-nos um total de 45 epinícios, divididos em quatro livros, conforme o nome dos jogos que celebravam: Olímpicas, Píticas, Neméias e Ístmicas. História Descendente dos átridas, chegou aos dez anos em Atenas, onde aprendeu música com os mestres Agatides e Apolodoro. Estudou em Delfos e Egina, colhendo as tradições que o fizerem brilhar na vida artística. Na "Décima Pítica", seu primeiro poema, parece alertar os homens sobre o perigo da guerra e convencê-los à paz. Em 447 A.C., o rei Hierão de Siracusa, chamou-o, livrando-o de inúmeras dificuldades. Isto é relatado na "Quarta Pítica". Não alcançou sucesso na atividade pacificadora, sendo preso na batalha de Patea. Depois seus cantos alcançaram grande fama em toda Grecia cultivando todas as formas líricas conhecidas (hinos, odes, cantos, ditirambos e epinícios). Somente a quarta parte de sua produção chegou à atualidade. Conservam-se, a parte de outros fragmentos, quatro livros de "Epinícios" ou "Cantos Triunfais", que se referem às diferentes festas "pan-helênicas". As odes epinicianas louvavam os jogos olímpicos, embora Píndaro não tenha conseguido clareza na descrição. A maioria dos poemas é dividida em estrofes, mas a estrutura é principalmente triádica. O dialeto usado nas odes visava a fazê-las compreensíveis da Ásia Menor à Sicília, embora não fosse fácil seguir o seu pensamento muito fragmentado. Só há clareza na sua obra quanto a sua pessoal devoção religiosa. Obras relacionadas Diversas odes de Píndaro foram traduzidas do grego para o português por Daisi Malhadas, Maria Helena de Moura Neves, Maria Helena da Rocha Pereira, Frederico Lourenço e António de Castro Caeiro, dentre outros. * MALHADAS, Daisi. Odes aos Príncipes da Sicília. Araraquara: FFCLAr-UNESP, 1976. * _______________; MOURA NEVES, Maria H. de. Antologia de poetas gregos de Homero a Píndaro. Araraquara: FFCLAr-UNESP, 1976 * PEREIRA, Maria H. da R. Sete odes de Píndaro. Porto: Porto editora, 2003 * LOURENÇO, Frederico; vários. Poesia grega - de Álcman a Teócrito. Lisboa: Cotovia, 2006 * CAEIRO, António de C. Píndaro - Odes Píticas. Prime Books, 2006<br />Fonte: http://www.jornallivre.com.br/123764/quem-foi-pindaro-.html<br /><br />OITAVA ODE PÍTICA DE PÍNDAROHumberto Zanardo Petrelli<br />Mestre em Filosofia pela USP<br /><br /><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]--><br />Píndaro (P…ndaroj) foi o mais brilhante poeta do século V a.C.. Nasceu numa província próxima a Tebas, provavelmente em 522 a.C., na pequena cidade de Cinoscéfalos, na Beócia. Era de família aristocrática e fez seus estudos em Atenas. Escreveu sua primeira Ode, a Sétima Pítica, com menos de vinte (20) anos de idade, para Alcmeônidas de Mégacles, em 486 a.C., segundo os estudiosos P. E. Easterling e B. M. W. Knox (1999) 226-7. Em vida, gozou de grande fama, a qual perdurou por toda a antigüidade. Ficou conhecido pelo epíteto de “príncipe dos poetas”. Porque sua notoriedade se espalhara por toda a Grécia, Píndaro tornou-se um poeta profissional itinerante. Entre outros, compôs por encomenda para Hieron I de Siracusa, em 478/467 a.C., Teron de Acragás, em 488/472 a.C., e Arcesilau IV de Cirene, em 462 a.C.. Morreu em Argos com quase oitenta (80) anos, por volta de 438 a.C..<br />Uma coletânea organizada por eruditos alexandrinos lista um total de dezessete (17) livros de Píndaro, entre hinos, peãos, ditirambos, prosódions, partenions, hiporquemas, encômios, trenos e epinícios. Chegaram a nós quarenta e cinco (45) epinícios <!--[if !supportNestedAnchors]--> <!--[endif]-->, divididos em quatro livros: Olímpicas, Píticas, Neméias e Ístmicas. A ode mais antiga data de 498 a.C., e a mais recente de 446 a.C..<br />Píndaro escreveu basicamente no dialeto dórico, porém, também fez uso dos dialetos homérico e eólico. Por isso, sua escrita distancia-se um pouco da linguagem falada. Seu estilo elevado e grandioso descreve os mitos com fantasia e muita originalidade. Embora tenha composto vários tipos de poesia lírica, sua fama advém principalmente dos epinícios, sempre compostos por ele por encomenda.<br />Os epinícios são odes corais em honra aos vencedores de jogos atléticos, como a corrida, luta, arremesso de pesos, corrida de cavalos, etc.. Eram acompanhados em geral pela cítara e pelo aulos e possuíam uma extensão bem maior que as composições da lírica monódica. Segundo a tradição alexandrina, o epinício foi “inventado” por Simônides, de Ceos, mas a modalidade foi cultivada principalmente por Baquílides e Píndaro. A estrutura formal de um epinício obedece a seguinte ordem: (a) invocação dirigida a uma divindade ou à cidade do vencedor; (b) elogio do vencedor; (c) relato mítico relacionado com a família ou com a cidade do vencedor; ou, ainda, com a festa em que se comemorava a sua vitória; (d) comentários e conselhos morais, freqüentemente inspirados no mito.<br />Assim como a poesia épica, a poesia lírica não utilizava a rima, e o metro baseava-se em seqüências padronizadas de sílabas longas e breves. A estrutura métrica do poema lírico era muito variável. Os ‘pés’ ou grupos de sílabas, com suas respectivas representações, mais utilizados eram:<br /><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]--><br />dáctilo: (longa-breve-breve)<br />espondeu: — — (longa-longa)<br />iambo: (breve-longa)<br />troqueu: (longa-breve)<br />ritmo guerreiro: (breve-breve-longa)<br />epitrito: (longa-breve-longa-longa)<br />Os versos dos epinícios eram construídos habitualmente com três estrofes de metros complexos e muito variáveis. O mais utilizado por Píndaro era o epitrito combinado com um dáctilo.<br />O livro das Odes Píticas (ΠΥΘΙΟΝΙΚΩΝ) contém doze (12) odes triunfais organizadas em ordem não cronológica. Com exceção da Ode Pítica II, as demais foram dedicadas a vitórias obtidas nos Jogos Píticos. Estes jogos, celebrado em Delfos em honra ao deus Apolo, ocorriam a cada quatro anos no terceiro ano após as Olimpíadas.<br />A Pítica VIII apresenta 100 versos e recomenda humildade ao jovem e bem sucedido vencedor, citando os exemplos do gigante Porfírio, vencido por Apolo, e de Tifon, vencido por Zeus. É dedicada a Aristomeno de Egina, lutador (446 a.C.).<br />Píndaro foi muito lido e estudado ao longo da história, da antigüidade clássica à era bizantina, do renascimento aos dias presentes. Para esta revista preparei a tradução da Pítica VIII, que homenageia Aristomeno, jovem lutador egino vitorioso nos Jogos Píticos.<br />Esta Pítica foi composta provavelmente em 446 a.C., quando Píndaro passava dos setenta (70) anos de idade. A ode se inicia com uma invocação à Serenidade (Paz, Concórdia), nos versos 1 a 5. A Serenidade é quem sabe proporcionar o júbilo, mas quando provocada se torna uma formidável adversária, como Porfírio e Tifon puderam experimentar (6-20). A ilha de Egina é celebrada pelos heróis e pelos homens (21-28). No entanto, o poeta se recusa a detalhar mais os acontecimentos (29-32). Depois disso, Píndaro louva Aristomeno, que, por imitação do sucesso de seus tios no atletismo, merece que Anfiarao profetize como os Epígonos combateram anteriormente em Tebas (32-34). Os filhos também carregam as determinações paternas que, como no caso do próprio filho Alcmeon, Anfiarao prediz que Adrasto sairia vitorioso, mas perderia seu filho (43-55). Alcmeon é louvado por profetizar ao poeta sobre seu caminho para Delfos (56-60). Píndaro menciona a vitória de Aristomeno nos festivais em Pito e Egina, em honra a Apolo, e suplica aos deuses que continuem em seu favor (61-72). Se os homens adquirem sucesso sem grandes esforços, muitos vão pensar que eles são sábios, mas o que os deuses determinam é o que prevalece (73-77). Depois de listar as vitórias de Aristomeno em Megara, Maratona e Egina, o poeta como que desenha o triste retorno para casa dos quatro oponentes que foram vencidos em Delfos (78-87). Ao contrário deles, o vitorioso é enobrecido e anseia altas aspirações (88-92). Mas o jogo é transitório e a existência humana é efêmera. Contudo, quando os deuses nos reservam os grandes sucessos, a vida é doce (93-97). Finalmente, o poema termina com uma súplica a Zeus e ao rei Eaco para preservar Egina livre (98-100). Para esta tradução foi utilizado o texto estabelecido por Bowra (1935).<br />Bibliografia<br />• Bowra, C.M. Pindari Carmina, cvm fragmentis, recognovit breviqve adnotatione critica instrvxit, Oxonii, Typographeo Clarendoniano, 1935.<br />• Easterling, P.E. & Knox, B.M.W. The Cambridge History of Classical Literature, Greek Literature I, Cambridge, Cambridge University Press, 1999.<br />• Puech, A. Pindare: texte établi et traduit, t. 1. Olympiques - t. 2. Pythiques - t. 3. Néméennes. - t. 4. Isthmiques et fragments , Paris, Société d’Edition “Les Belles Lettres”, 1922 -1931.<br />Píndaro – Oitava Pítica<br /><br />Para Aristomeno de Egina, vencedor na luta.<br /><br />Serenidade, filha benévola da Justiça,<br />que engrandece a cidade,<br />tu, que tens as chaves supremas<br />dos conselhos e das guerras,<br />acolhe esta honra ao vitorioso Pítico, Aristomeno.<br />Tu sabes o momento exato de proporcionar o contentamento<br />e de, do mesmo modo, recebê-lo.<br /><br />Tu, quando alguém introduz em teu coração<br />o amargo ressentimento,<br />vais rude contra os inimigos,<br />colocando o poder da<br />intemperança no fundo do mar. Nem Porfírio escapou,<br />à margem de seu interesse, ao te provocar. O ganho mais alto é<br />consentido se alguém o traz de casa.<br /><br />A força, com o tempo, abate o arrogante.<br />Tifon, o Cilício de cem cabeças, não a evitou,<br />nem, na verdade, o rei dos Gigantes, domados pelo raio<br />e pelas flechas de Apolo, o qual com a mente bem disposta<br />recebeu, vindo de Cirra, o filho<br />coroado de Xenarques, com louro do Parnaso e coro Dórico.<br /><br />Ela não é indiferente às Graças,<br />esta ilha que tange a cidade justa<br />e conheceu as famosas<br />virtudes dos Eácidas. Desde a origem tem<br />sua reputação perfeita. Aos muitos canta,<br />tendo nutrido heróis em lutas vitoriosas e na rapidez<br />eminentes nos combates.<br /><br />Entre os homens ela também brilha.<br />Estou sem tempo de dispor<br />todo o longo falatório<br />na lira e em linguagem doce,<br />pois o tédio vindo incomoda. Que minha dívida para ti<br />venha correndo, ó rapaz, dentre as mais recentes belezas,<br />devido ao meu engenho alado.<br /><br />Nas lutas triunfantes, no rastro de teus tios maternos,<br />não desonres Teogneto, prêmio em Olímpia,<br />nem a vitória da vigorosa musculatura de Clitômaco, no Istmo.<br />Abrilhantando a família Midílida, levas o discurso,<br />que certa vez a criança de Ecles, na Tebas de sete portas, vendo os filhos,<br />pronunciou enigmas, mantendo-se em pé, ao lado de sua lança,<br /><br />quando os Epígonos partiram de Argos<br />na segunda expedição.<br />O Ecleida pronunciou aos combatentes:<br />“Por natureza a bravura inata dos ancestrais<br />brilha sobre os filhos. Vejo com clareza<br />Alcmeon agitando o dragão listrado sobre seu escudo luzente,<br />primeiro nas portas de Cadmo.<br /><br />Adrasto, o herói, cansado do sofrimento anterior<br />agora é surpreendido<br />por um anúncio de uma ave<br />de bom agouro. Mas o contrário se<br />fará em seu lar. No exército dos dânaos, só<br />ele recolhe os ossos do filho morto, pela sorte dos deuses<br />ele chegará com a armada intacta<br /><br />entre as ruas largas de Abas”. Tais coisas<br />pronunciou Anfiarao. Com igual encanto<br />eu lanço coroas em Alcmeon, irrigando com meu hino,<br />porque meu vizinho é guarda de meus pertences<br />e veio ao meu encontro quando eu ia ao umbigo da terra muito celebrado,<br />e tocou-me nas artes adivinhatórias, inatas à sua família.<br /><br />E tu, lança-dardos, que a todos acolhe<br />governando na famosa ilha<br />nos vales de Pito,<br />lá concedes em dar as maiores<br />jóias. E, em tua casa, antes, conduziste o almejado prêmio<br />do pentatlo, com as vossas festas.<br />Ó soberano, de bom grado suplico ao pensamento<br /><br />detectar alguma harmonia<br />quando eu discorro sobre cada coisa.<br />A Justiça está ao lado da Dança e<br />da doce melodia. Aos deuses rogo a proteção<br />imortal, ó Xenarques, pelas vossas sortes.<br />Se alguém adquire bens sem grande fadiga,<br />a maioria cogita: parece um sábio quem, entre néscios,<br /><br />prover a vida com retos conselhos para maquinar.<br />Mas essas coisas não cabem aos homens. Um nume decide:<br />ora um lançando para cima, ora outro, sob o peso das mãos,<br />derrubando, na medida”. Tens os prêmios em Megara<br />e no vale em Maratona, na competição nacional de Hera,<br />com três vitórias, ó Aristomeno, tendo vencido com este feito.<br /><br />Caíste por cima de quatro<br />corpos, com maus pensamentos,<br />e para eles nem o retorno igualmente<br />agradável é decidido em Pito,<br />nem impele riso doce de alegria tendo voltado<br />para a mãe. Junto nos becos agachados,<br />alheios aos inimigos, feridos pela desgraça.<br /><br />Aquele que obtém algum sucesso recente,<br />magnânimo voa a partir de sua<br />grande esperança<br />nas asas da satisfação, tendo<br />maior interesse que a riqueza. Em breve instante<br />o prazer dos mortais aumenta. E, assim, cai por terra,<br />pelo conhecimento adverso abalado.<br /><br />Efêmeros! O que é alguém? O que não é alguém? Sonho de uma sombra:<br />o homem. Mas quando o brilho do dote divino vem,<br />a luz radiante sobrepaira nos homens e a vida se torna doce como mel.<br />Egina, mãe querida, conduz o livre curso<br />desta cidade, com Zeus, com o forte Eaco,<br />com Peleu, com o audaz Telamon, e com Aquiles.<br />Fonte: http://www.consciencia.org/pindaropetrelli.shtml<br /><br />A SEXTA NEMÉIA DE PÍNDARO<br />Fernando Brandão dos Santos<br />Introdução<br />Píndaro compôs essa ode para cantar a vitória do menino Alcimida, vencedor da luta de meninos, modalidade de pugilato, atestada já no período minóico, como se pode ver nos afrescos encontrados em Tera.<br />A Sexta Neméia apresenta algumas dificuldades para sua datação. Como nos informa A. Puech, Alcimida pertecia a uma das famílias importantes da ilha de Egina, a dos Bassidas, que já somava cerca de 25 vencedores, entre os quais estava Praxidamente, o primeiro egineta a vencer nos Jogos Olímpicos. Como o texto de Píndaro faz menção a Milésias, famoso treinador de dois outros atletas vencedores, Alcimedonte, cantado na VIII Olímpica, e Timasarco, cantado na IV Neméia, os estudiosos são levados a crer que a ode teria sido composta em 460 a.C.<br />Tradução1<br />PARA ALCIMIDA MENINO EGINETA PUGILISTA<br /><br /><br /><br /><br /><br />5.<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />10. primeira estrofe<br />Uma só de homens,<br />uma só raça de deuses: de uma só mãe<br />respiramos ambos. Se-<br />para-as, porém, todo o poder<br />distinguindo-as, de forma que uma é nada,<br />mas sede sempre inabalável<br />permanece, bronzêo, o céu. Porém, em todo caso, em algo<br />[ nos as-<br />semelhamos, quer pelo grandioso espírito,<br />quer pela natureza, ao imortais,<br />embora nem durante um dia<br />sabedores nem à noite<br />até que marca<br />o destino traçou-nos caminhar.<br /><br /><br />15.<br /><br /><br /><br /><br /><br />20.<br /><br /><br /><br /><br /><br />25. primeira antístrofe<br />Indica,<br />por certo, também de Alcimida reconhecer<br />[ o parentesco<br />igual a frutíferos cam-<br />pos, que alternando,<br />ora dão vida aos homens<br />inexaurível pelas planícies,<br />ora, porém, repousando,<br />vigor recuperam. Chegou, sim,<br />dos jogos amáveis de Neméia,<br />menino competidor, que esta<br />sorte de Zeus perseguindo,<br />agora brilha<br />caçador não desafortunado na luta,<br /><br /><br /><br /><br /><br />30.<br /><br /><br /><br />35. primeiro epodo<br />em pegadas de Praxidaman-<br />te, avô paterno consangüíneo,<br />seu pé dispondo.<br />Pois, ele, vencedor Olímpi-<br />co sendo, aos Eácidas2<br />prêmios primeiro trouxe do Alfeu,<br />e, por cinco vezes, no Istmo foi coroado,<br />em Neméia, três, pôs fim ao esquecimento<br />de Saocleida, o mais velho<br />dos filhos de Agesímaco.<br /><br /><br /><br /><br />40.<br /><br /><br /><br /><br /><br />45.<br /><br /><br /><br /><br />50.<br /><br /><br /><br />55.<br /><br /><br /><br /><br />60. segunda estrofe<br />Depois os<br />três, sendo vencedores, à mais alta excelência<br />chegaram, eles que fadigas ex-<br />perimentaram. Com sorte divina,<br />a nenhuma outra casa o pugilato<br />mostrou-se dispensador<br />de tantas coroas, no interior da Hé-<br />lade inteira. Espero,<br />grandiloqüente, o alvo atingir<br />como quem atira flechas.<br />Dirige-lhes, Musa -- vamos! --,<br />o sopro das palavras<br />gloriosas! Pois, perecidos os homens,<br />segunda antístrofe<br />cantos<br />e palavras as belas obras os conduzem;<br />para os Bassidas o que não rareia: de há muito famosa estirpe<br />naus transportando os próprios louvores,<br />aos lavradores das Piérides<br />são capazes de fornecer muitos hi-<br />nos por causa de soberbos<br />trabalhos. Pois também na divina<br />Pito, tendo atado as mãos à rédea,<br />venceu outrora desta família<br />o sangue,<br />Cálias3, doce<br /><br /><br /><br />65.<br /><br /><br /><br /><br />70.<br /><br /><br /><br /><br /><br />75.<br /><br /><br /><br /><br />80.<br /><br /><br /><br /><br />85.<br /><br /><br /><br /><br /><br />90.<br /><br /><br /><br /><br />95.<br /><br /><br /><br /><br />100. segundo epodo<br />aos rebentos de Letó de áurea-coroa4 e na Cas-<br />tália, ao entardecer, com o vozerio<br />das Graças, fulgiu.<br />E o Istmo sobre o mar infatigável,<br />na festa trienal dos vizinhos,<br />com sacrifício de touro,<br />honrou Creontidas<br />no templo de Posidão.<br />E, outrora, a erva do leão5<br />coroou-o vencedor sob as sombrias<br />montanhas antigas do Flionte6.<br />terceira estrofe<br />Amplos<br />aos prosadores de todas as partes<br />há acessos<br />para esta gloriosa ilha or-<br />nar. Depois que os Eácidas<br />forneceram-lhe destino superior, exce-<br />lências demonstrando grandiosas,<br />voa sobre a terra e<br />pelo mar longe<br />o nome deles. Também até os Etíopes,<br />para os quais Memnon7 não voltara,<br />saltou. Grave discórdia<br />sobreveio-lhe,<br />Aquiles, quando à terra descendo do carro,<br />terceira antístrofe<br />da brilhante<br />Aurora matou o filho com<br />ponta de lança irritadiça. E<br />este caminho os mais antigos<br />trafegável encontraram: si-<br />go também eu mesmo com minha arte.<br />Das ondas a que gira junto a<br />quilha da nau sempre,<br />é a que mais de todo o homem estimula<br />o coração. É de bom grado que eu nas cos-<br />tas carregando duplo fardo,<br />qual mensageiro caminho,<br />esta quinta cantando, depois de vinte,<br /><br /><br /><br /><br /><br />105.<br /><br /><br /><br /><br />110. terceiro epodo<br />glória dos jogos, que<br />nomeiam sagrados,<br />e Alcimida que a forneceu<br />à ínclita família; é verdade que junto<br />ao templo do Cronida,<br />ó menino, tanto de ti, como de Politimidas,<br />a sorte inclinou-se das Olimpíadas<br />flores roubar duas.<br />E igual ao golfinho pela rapidez no mar,<br />possa eu seguir Milésias,<br />condutor de braços e de força.<br />Notas<br />Para a tradução usamos o texto de Aimé Puech, Némmeènes, Paris: Belles Lettres, 1967, tomo 3.<br />Os Eácidas eram os filhos de Éaco, filho de Egina e de Zeus.<br />Cálias venceu um dos jogos Píticos na corrida de carros.<br />Letó, mãe de Apolo e de Ártemis.<br />Provavelmente a "salsa brava" ou "aipo", de que se faziam as coroas dos jogos nemeus.<br />Cidade da Argólida, próxima ao Peloponeso.<br />Rei lendário da Etiópia, filho de Títon e de Aurora.<br />Fonte: http://olimpia776.warj.med.br/txt07.html<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />ARISTÓFANES<br />Nasceu por volta de 447 a.C., em Atenas, e seu pai se chamava Felipe; foi criado provavelmente no meio rural, talvez em uma propriedade na ilha de Egina. Consta que se tornou careca por volta dos vinte anos, que exerceu um cargo público — a pritania — no início do século IV a.C., e que teve dois filhos que seguiram carreira no teatro cômico, Araros e Filipos. Ele é mostrado por Platão, no Banquete, como um companheiro agradável, jovial e divertido.<br />Cleon (fl. 430 a.C. - 422 a.C.), influente político que se destacou em Atenas após a morte de Péricles (495 a.C. e 429 a.C.), foi diretamente satirizado por ele e, segundo a tradição, processou-o sem sucesso em 426 a.C. Nova sátira, ainda mais pesada, motivou um segundo processo em -424, resolvido aparentemente através de acordo realizado fora dos tribunais.<br />Aristófanes compôs um total de quarenta peças, e obteve nos concursos pelo menos seis primeiros prêmios e quatro segundos prêmios. Embora toda sua vida intelectual tenha transcorrido em Atenas, apresentou certa vez uma de suas peças no teatro de Elêusis. Sua primeira comédia, Os Convivas, estreou em 427a.C. sob o nome de Calístrato, o ensaiador da peça, e obteve de saída o segundo prêmio. Suas duas últimas comédias, Cocalos e Eolosicon foram encenadas por seu filho Araros após -388. Acredita-se que o poeta tenha morrido pouco depois, em algum momento entre 386 a.C. e 380 a.C.<br /><br />Obras sobreviventes<br /><br />De toda sua obra somente onze comédias sobreviveram mas, em compensação, todas puderam ser datadas de modo razoavelmente preciso: Os Acarnenses, 425 a.C.; Os Cavaleiros, 424 a.C.; As Nuvens, 423 a.C.; As Vespas, 422 a.C.; A Paz, 421 a.C.; As Aves, 414 a.C.; Lisístrata, 411 a.C.; As Tesmoforiantes, 411 a.C.; As Rãs, 405 a.C.; As mulheres na Assembléia, 392 a.C.; e Pluto, 388 a.C..<br />Acarnenses, Cavaleiros, Vespas, Paz e Lisístrata tratam da vida política; Nuvens, Tesmofóriantes e Rãs criticam a vida intelectual; Aves, Mulheres na Assembléia e Pluto são alegorias, ou comédias de fuga (Starzynski, 1967).<br />Restaram também numerosos fragmentos de suas outras comédias, que permitiram reconstituir, ao menos em parte, o argumento de algumas delas.<br /><br />Características da obra<br /><br />As comédias anteriores a 400 a.C. mostram duas preocupações básicas: fazer o público rir e criticar as instituições políticas e intelectuais da Atenas daquela época. E, em meio à linguagem viva e pitoresca dos diálogos, também estão presentes trechos de grande beleza poética, notadamente nas odes corais.<br />Todos os recursos cômicos imagináveis foram usados com grande maestria pelo poeta, desde a sátira mais grotesca até a malícia mais sutil: situações ridículas, cenas fantásticas, personagens alegóricos, caricaturas de personagens humanos reais e deuses, pilhérias, ironias, jogo de palavras, trocadilhos, mal-entendidos, exageros, substituição de palavras esperadas por outras inesperadas, paródias (dos autores trágicos, principalmente), neologismos, provérbios...<br />Aristófanes recorria também com freqüência à licenciosidade e à obscenidade, o que sem dúvida pode chocar os desavisados leitores modernos. Não se deve, no entanto, esquecer que o pudor de nossos tempos desenvolveu-se somente nos últimos 200 anos, e que os antigos encaravam com muito mais naturalidade esse tipo de gracejo. Além disso, as festas dionisíacas que originaram a comédia derivaram de antigos rituais de fertilidade em que o elemento sexual era um componente crucial.<br />As críticas de Aristófanes atingiam a tudo e a todos: os chefes políticos, a Assembléia, os tribunais e os juízes, os militares, os poetas trágicos, os filósofos, o povo em geral, os velhos, os jovens, as mulheres... Mas as intenções morais por trás das críticas eram muito sérias: o poeta defendia sempre os valores antigos, a vida rural e, especialmente, a paz — tão desejável durante a Guerra do Peloponeso.<br />Nas duas últimas comédias nota-se uma redução expressiva das partes corais, o desaparecimento da sátira política e uma importante atenuação da sátira pessoal, o que coloca ambas no terreno da "Comédia Média", ou pelo menos em pleno período de transição. É possível que uma das últimas obras de Aristófanes, Cocalos, apresentada por seu filho Araros entre 388 a.C. e 380 a.C., tenha inaugurado alguns aspectos da "Comédia Nova", introduzindo na comédia alguns aspectos românticos que caracterizariam posteriormente o gênero.<br />Seus méritos poéticos, no entanto, não foram muito apreciados pelos eruditos alexandrinos — eles conservaram suas obras, aparentemente, pelos simples fato de serem a fonte mais pura do dialeto ático antigo...<br />Pouco se sabe de certo a respeito da vida pessoal de Aristófanes. Grande parte das informações disponíveis, sugeridas pela parábase das comédias que chegaram até nós, têm sido desconsiderados cada vez mais pela crítica moderna.<br />Para nós Aristófanes é o principal representante da "comédia antiga" e, ainda hoje, suas peças podem ser consideradas verdadeiras obras-primas do gênero cômico.<br />Fonte: http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_4833.html<br /><br />LISÍSTRATA<br />SINOPSE<br />Cansadas de uma guerra que já durava 20 anos, as mulheres de Atenas, de Esparta, de Beócia e de Corinto (cidades gregas mais duramente atingidas pela guerra), chefiadas pela ateniense Lisístrata, decidiram por fim às hostilidades usando de uma tática pouco convencional: uma greve de sexo. Para melhor conseguir seu objetivo, ocuparam na cidade de Atenas – a Acrópole, e tomaram conta do Tesouro. Os maridos não resistiram à greve e concluíram um tratado de paz, depois de uma série de peripécias de grande efeito cômico apesar da ousadia dos detalhes.<br />Lisístrata de Aristófanes foi uma tentativa real de acabar com uma guerra de verdade. Na época em que foi escrita a peça (411 a.C.), Atenas atravessava um período dificílimo de sua história. Abandonados por seus aliados, os atenienses tinham a 24 quilômetros de suas cidades as tropas espartanas. Essa luta fratricida enfraquecia a Grécia toda, pondo-a a mercê dos bárbaros. Inspirado por um profundo sentimento de patriotismo e humanidade, Aristófanes se fez porta-voz de todas as esposas e mães gregas e, por intermédio de Lisístrata, lançou um veemente apelo em favor da paz, não somente aos atenienses, mas a todos os gregos. Infelizmente a mensagem de Aristófanes não foi ouvida e a guerra continuou, arruinando a Grécia, e as guerras continuaram, mutilando o mundo.<br /><br />Lisístrata e a 'greve das pernas cruzadas'<br />pernas cruzadas' Personagem é mulher de traficante e quer acabar com guerra do tráfico em releitura de Ferréz para clássico de Aristófanes<br />Flávia Guerra<br />'Vocês não sentem saudade do tempo que o morro era de paz? Sei que os maridos de todas estão nas facções. Vamos agir. Só há uma saída pra conseguir a paz. O plano é este: não fazer sexo!'<br />Esta é Lisístrata, a personagem de Aristófanes, que convence suas companheiras a negar sexo aos homens para conseguir a paz entre atenienses e espartanos. A diferença entre a Lisístrata grega e a de Lisístrata: Sexo, Drogas e Greve, no Teatro Fábrica, é que a atual mora no morro, tem um marido traficante.<br />A peça, com direção de Débora Dubois, é uma adaptação do escritor Ferréz à comédia Lisístrata ou A Greve do Sexo, do século 5º a.C. O texto de Ferréz faz muito mais que divertir. A realidade se impõe ao entretenimento. Uma greve de sexo rende situações hilárias e Ferréz, que estréia agora no teatro, sabe aproveitá-las. Suas mulheres entram na tal greve para acabar com uma guerra que não existia nos tempos de Aristófanes: a do tráfico.<br />Qualquer semelhança com a 'greve das pernas cruzadas' que mulheres e namoradas de integrantes de gangues de Pereira, uma das cidades mais violentas da Colômbia, fizeram em setembro para convencer seus companheiros a entregarem as armas não é mera coincidência.<br />Séculos vão e vêm e a violência, o jogo de poder entre homens e mulheres, potencializado pelo sexo e pela discussão do papel feminino na sociedade não sai de cena. 'Incrível esta história. Isso não vai acabar tão cedo', diz a produtora e atriz Rennata Airoldi. 'A época de Aristófanes não se aplica mais a nós, mas toda guerra tem um paralelo. E a nossa tragédia é o morro. Hoje, a mulher visita o filho na Febem, o marido na cadeia, cria os filhos sozinha. Por outro lado, o moleque quer entrar no tráfico para ter poder e a mulher que quiser. O nosso pênis ereto é a arma na mão', aponta Débora.<br />A escolha de Ferréz, que mora no Capão Redondo, não foi por acaso. 'Queríamos primeiramente encenar a peça. Mas a Débora sugeriu trazê-la para o tempo atual e falar da guerra que temos no Brasil, a das drogas, a social. Para isso, era preciso alguém que falasse disso com verdade. Pensamos em Ferréz', conta Rennata.<br />Ferréz leu o original e aprovou.'Nunca tinha pensado em adaptar nada. Mas o texto ainda é atual. Tem debate político, reivindicação, personagens que não aceitam o sistema imposto', conta o autor, que extrapolou a questão da guerra de sexos. 'Quis falar de questões importantes como o uso da camisinha - muita gente não sabe que não se deve abrir com o dente (risos) -, gravidez precoce.'<br />O machismo arraigado na sociedade também ganha destaque. 'Tudo é extremo na perifa. Nego tem preconceito até com a mãe. Machismo atrapalha tudo. Triste uma sociedade em que se tem de andar com apito no peito para avisar se for atacado. É um universo estereotipado, que ninguém vê', conclui o autor.<br />(SERVIÇO)Lisístrata: Sexo, Drogas e Greve. 75min. 12 anos. Teatro Fábrica São Paulo - Sala 2 (80 lug.). Rua da Consolação, 1.623, 3255-5922. 6.ª e sáb., 21h30; dom., 20h30. R$ 20. Até 26/11<br />Fonte: http://www.estado.com.br/editorias/2006/10/07/cad-1.93.2.20061007.18.1.xml<br /><br />Aristófanes – As Nuvens<br />Luciene Félix<br />Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC<br />mitologia@esdc.com.br<br />As Graças procuravam um altar eterno.<br />Acharam-no na inteligência de Aristófanes.<br />Platão<br />Não é de hoje que servimo-nos da comédia para manifestar nosso menosprezo a certas autoridades públicas, aos políticos, às instituições, às “celebridades” e aspirantes que, pateticamente, exteriorizam a decadência moral de uma sociedade. Corrupção, abuso de autoridade, vaidade e mesquinhez são, até hoje, alvo de críticas veladas sob a forma de sátira.<br />Em repúdio à ignorância, à ambição e a rudeza dessas pessoas o ateniense Aristófanes (455a.C-375a.C) fez do teatro, seu campo de batalha, para onde transportou as inquietações político-sociais, educacionais e religiosas de sua época. Sarcásticas, suas comédias são de fácil e agradável leitura: ricas em jogos de palavras, jocosidade e até obscenidades. Tendo por alvo as personalidades mais influentes, não poupava idosos ou jovens, pobres ou ricos.<br />Da vida do mais famoso comediógrafo da antigüidade grega, poucos detalhes sabemos, mas por sua obra, deduz-se possuidor de uma vasta cultura literária. Foi um aristocrata que, detentor de um espírito ousado, atrevido e insolente, soube traduzir em suas peças, a inquietação quanto às novidades que considerava demagógicas e oportunistas, e a desconfiança quanto à nova educação, enaltecendo as virtudes da educação tradicional.<br />Autor essencialmente político, gozando da estima do público, é significativo ressaltar que ele viveu o apogeu da cultura ateniense e testemunhou o início da guerra do Peloponeso, que terminou em 404 a.C, com a vitória de Esparta sobre a sua Atenas. Seu alvo fora, notoriamente, “àqueles filósofos” que pregavam o domínio da arte da retórica a fim de vencer qualquer litígio, os Sofistas, sábios que, mediante pagamento, dispunham-se a ensinar a arte do bem falar (e convencer) à platéia. Qualquer platéia. Aristófanes não poupou Sócrates e o elegeu, errôneamente, como alvo de sua crítica feroz, julgando-o um dos ícones responsáveis pela decadência de Atenas.<br />Apesar de ter escrito mais de quarenta peças, apenas onze são conhecidas. Sobre a que vamos discorrer, “As Nuvens”, trata-se de uma crítica contundente ao Poder Judiciário ateniense. A ironia de Aristófanes já começa no próprio título da peça: “As Nuvens”.<br />Faz alusão ao ateísmo e ao culto de novas divindades estranhas como o éter, o ar, a persuasão, em detrimento aos antigos – por ele considerados os “verdadeiros” deuses. Insurgindo-se contra as novas propostas pedagógicas e uma certa anti-eticidade por parte dos sofistas, Aristófanes desejava chamar a atenção quanto as conseqüências de uma inversão de valores, fruto um novo modelo educacional.<br />Vamos à peça. O velho simplório Estrepsíades, outrora abastado proprietário, vê-se agora arruinado e cheio de dívidas devido a seu casamento com uma perdulária e fútil aristocrata ateniense e à seu filho, Fidípides, uma espécie de “playboy”, de “mauricinho” que não faz outra coisa senão gastar em cavalos, dilapidando e obrigando o pai a estar sempre se endividando. Desesperado e ignorante, ele pensa até em tratar com as feiticeiras da Tessália, para ver se há um modo de alterar as fases lunares, uma vez que o calendário de vencimento das dívidas eram lunares. Ao tomar conhecimento de que há agora um meio de ludibriar os credores, através da arte da retórica, tenta convencer seu filho a matricular-se e seguir um desses Mestres, no caso Sócrates. Diante da negativa do filho, decide ele mesmo ir ter com o filósofo e aprender e dominar essa poderosíssima ferramenta que é a arte da argumentação. Mas a Estrepsíades falta a capacidade intelectual e isso o obriga a desistir. Novamente, implora ao filho que vá aprender as artimanhas do discurso e, dessa vez, consegue fazê-lo aceitar.<br />O auge da comédia se dá quando o “Raciocínio/Discurso Injusto” vence o “Raciocínio/Discurso Justo”. O “Justo”, personifica os valores cívicos, o respeito às tradições e aos mais velhos. Já o “Injusto” incorpora os novos valores, onde são enaltecidos o hedonismo, a astúcia e o oportunismo. Animado, o pai não esquece de reiterar a Sócrates: “Não se esqueça de ensinar ao rapaz o que ele precisa para arrasar tudo o que é justo”.<br />É óbvio que Estrepsíades ainda se arrependerá dessa decisão pois, o “tiro sai pela culatra”! Fidípides aprende tão bem que se volta contra o próprio pai chegando até a lhe bater, justificando o absurdo de sua atitude, demonstrando argumentativamente como isso era perfeitamente legítimo. Retomaremos o diálogo entre os dois Raciocínios: Justo x Injusto e descobriremos porque o responsável pela vitória do Injusto somos nós mesmos: o público.<br />► Saiba mais:<br />Aristófanes – As Nuvens, Só para Mulheres, Um Deus Chamado Dinheiro - Tradução do grego e apresentação: Mário da Gama Kury – 1995, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.<br />Fonte: http://www.esdc.com.br/CSF/artigo_aristofanes.htm<br /><br />"As Aves" - Aristofanes - trecho<br />Por MP, Lisboa, Portugal<br /><br />Aqui fica uma tradução pessoal das Aves de Aristofanes, esse excepcional dramaturgo helénico, numa das suas mais interessantes obras cénicas:<br /><br />(...)<br /><br />EUELPIDES - Não poderias averiguar, apartir daqui, onde se encontra a nossa pátria?<br /><br />PITHETAERUS - De certeza que não; nem sequer Execestides o conseguiria.<br /><br />EUELPIDES - Credo!<br /><br />PITHETAERUS - Tu, amigo meu, continua por esse caminho.<br /><br />EUELPIDES - Que terrível aldrabice aquela que Filocrates nos fez!! Esse vendedor aldrabão de pássaros! Garantiu-nos que estas duas aves nos iriam guiar melhor que qualquer outra ao local onde se encontra Tereus, o Epopoi, que foi transformado em pássaro; e vendeu-nos este gaio, um verdadeiro filho de Tharrhelides, por um obolus, e por trazer aquele corvo, que só sabem bicar-nos.<br />(Para o seu gaio) Porque é que me olhas constantemente com o bico aberto? Queres precipitar-nos destas pedras? Por aí não existe qualquer caminho.<br /><br />PITHETAERUS - Por Zeus, nem sequer uma trilha.<br /><br />EUELPIDES - O que diz o corvo sobre o caminho a seguir?<br /><br />PITHETAERUS - Por Zeus, continua a grasnar as mesmas coisas de antes.<br /><br />EUELPIDES - Sim, está bem, mas o que é que diz a respeito do caminho?<br /><br />PITHETAERUS - O que é que há-de dizer? Apenas que à força de roer acabará por comer-me os dedos?<br /><br />EUELPIDES - Isto é insuportável! Demos tudo o que tinhamos para ficar com os corvos, e não conseguimos encontrar o caminho. Porque deveis de saber, caros leitores, que a nossa enfermidade é completamente distinta daquela que aflige Saccas: este, que não é cidadão, obstina em sê-lo, e nós, que o somos, e de famílias distintas, ainda que ninguém nos expulse, fugimos a toda à pressa da nossa pátria.<br />Não que incomodemos uma cidade tão célebre e rica como a nossa, sempre aberta a todo aquele que queira arruinar-se em litígios; porque na realidade, é uma triste verdade que as cigarras apenas cantam um ou dois meses por ano entre as folhas das árvores, em contrapartida, os atenienses cantam toda a vida debruçados sobre processos.<br />Foi isto que nos obrigou a iniciar esta viagem e a buscar, carregados apenas de figos e algumas folhas e bagas de mirto, um país livre de pleitos, onde tranquilamente viver a nossa vida. Vamos para Tereus, onde está o Epopoi, para perguntar-lhe se nos locais por onde passou nos seus aéreos caminhos, avistou alguma cidade como esta que procuramos.<br /><br />PITHETAERUS - Ei, tu!<br /><br />EUELPIDES - O que é que se passa?<br /><br />PITHETAERUS - Há já algum tempo que o corvo me indica que<br />há que subir um pouco.<br /><br />EUELPIDES - Também o gaio olha na mesma direcção, com o bico aberto, como se quisesse dizer-me alguma coisa: deve haver aves por aqui. Pronto, sabê-lo-emos se fizermos barulho.<br /><br />PITHETAERUS - Sabes o que é que tens que fazer? Bate-lhe com o pé e a pedra.<br /><br />EUELPIDES - E tu, com a cabeça, por forma a que o ruído seja ainda maior.<br /><br />PITHETAERUS - Será melhor, apanhares essa pedra e gritar.<br /><br />EUELPIDES - Terá de se fazer, claro está! Escravo! Escravo!<br /><br />PITHETAERUS - Mas, que fazes?! Para chamar Epopoi, gritas:<br />Escravo! Escravo! Em vez de escravo deves gritar: Epopoi! Epopoi!<br /><br />EUELPIDES - Epopoi! Terei de chamar outra vez. Epopoi!<br /><br />TROCHILUS, O CRIADO - (Personificando um pássaro) Quem lá vem? Quem chama o meu dono?<br /><br />EUELPIDES - Que Apolo nos assista! Que bico enorme!<br /><br />TROCHILUS, O CRIADO - Horror! São caçadores!<br /><br />EUELPIDES - Causa-me um medo irreprimível.<br /><br />TROCHILUS, O CRIADO - Morrereis!<br /><br />EUELPIDES - Mas, não somos homens!<br /><br />TROCHILUS, O CRIADO - Então o que é que sois?<br /><br />EUELPIDES - Eu sou o Tímido, ave da Líbia.<br /><br />TROCHILUS, O CRIADO - Ah! Outro desses...!<br /><br />EUELPIDES - Pergunta a toda a caca que levo nos pés.<br /><br />TROCHILUS, O CRIADO - E esse aí? Que pássaro é que é? Responde.<br /><br />PITHETAERUS - O Emporcalhado, ave de Fasos.<br /><br />EUELPIDES - E tu? Em nome dos deuses, que tipo de animal és?<br /><br />TROCHILUS, O CRIADO - Eu sou um pássaro escravo.<br /><br />EUELPIDES - E fostes conquistado por quem? Por algum galo?<br /><br />TROCHILUS, O CRIADO - Não; mas quando o meu dono foi transformado num pássaro também quis que eu me transformasse em pássaro, para ter quem o seguisse e servisse.<br /><br />(...)<br />Fonte: http://ecletico.blogspot.com/2005/10/as-aves-aristofanes.html<br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Édipo Rei<br />(Tragédia de Sófocles, autor clássico que viveu de 496 a 406 a.C.)<br />Composta por Sófocles, em data ignorada, e particularmente admirada por Aristóteles em sua "Poética", esta obra-prima da tragédia grega, ilustra a impotência humana diante do destino.<br />A estória começa quando Édipo, príncipe de Corinto, é insultado por um bêbado, que o acusa de ser filho ilegítimo do Rei Políbios. Embora Políbios procure tranqüilizar Édipo, o príncipe, perturbado, recorre ao Oráculo de Píton, mais tarde conhecido como Delfos. O oráculo evita responder à sua dúvida, mas dá a terrível informação de que Édipo está destinado a matar o pai e casar-se com a mãe. Como Édipo não tem a menor intenção de deixar que isso aconteça, ele foge de Corinto e vai para Tebas. E aí começa a tragédia.<br />Em uma encruzilhada, Édipo depara-se com uma carruagem. À frente vem o arauto, que ordena rudemente a Édipo que se afaste e tenta empurrá-lo para fora da estrada. O príncipe começa uma briga e termina matando todo mundo que nela se envolve. Para sua desgraça, um dos homens que vinha na carruagem era seu pai verdadeiro, o rei Laios de Tebas. Após resolver o enigma da esfinge e salvar Tebas desse flagelo, Édipo é proclamado rei e casa-se com a viúva de Laios, Jocasta, sua mãe verdadeira. Só depois que uma nova maldição cai sobre Tebas – maldição que seria afastada apenas quando o assassino de Laios fosse descoberto e expulso – é que os fatos vêm à tona. Édipo não consegue suportar a verdade e arranca os próprios olhos.<br />Antes que Édipo tomasse a decisão de fugir da profecia do oráculo, Laios, sua vítima já tinha cometido o mesmo engano. Apolo havia advertido Laios de que seu próprio filho o mataria e, quando Édipo nasceu, o rei mandou perfurar com um cravo um dos pés da criança e abandoná-la em uma montanha. Mas o menino foi encontrado por um pastor e levado ao rei Políbios, que o adotou. Essa foi a origem da confusão de Édipo e foi daí que veio seu nome: "oidípous" significa "pé inflamado"<br />Fonte: http://www.geocities.com/Athens/4539/edipo.html<br /><br />Édipo e o Ciclo Tebano<br />O ciclo de mitos que tratam das sortes da cidade de Tebas e sua família real é certamente tão antigo quanto as estórias que compõem a Ilíada e a Odisséia, mas chega até nós através de fontes muito posteriores. Enquanto a fundação de Tebas é principalmente conhecida a partir de autores romanos como o poeta Ovidio, as estórias de Penteu e Édipo são contadas pelos dramaturgos atenienses, Ésquilo, Sófocles e Eurípedes.<br />Cadmo e a Fundação de Tebas<br />Cadmo era um dos três filhos de Agenor, rei de Tiro, na margem oriental do Mediterrâneo. A irmã deles, a linda Europa, estava brincando na praia quando foi levada através do mar por Zeus, na forma de um touro, até Creta. Agenor disse a seus filhos que encontrassem a irmã e que não voltassem sem ela. No decorrer de suas perambulações, Cadmo chegou em Delfos, onde o oráculo o avisou que uma vaca o encontraria ao deixar o santuário; foi instruído a fundar uma cidade onde a vaca finalmente parasse. O animal o levou ao local da futura Tebas. Quando a vaca se deitou para repousar, Cadmo percebeu que este era o local para a sua cidade e decidiu sacrificá-la aos deuses. Precisando de água, mandou seus ajudantes buscá-la em uma fonte próxima, a Fonte de Ares. A lagoa da fonte, entretanto, estava guardada por uma ameaçadora serpente, que atacou e matou todos os homens de Cadmo. Quando Cadmo veio a procura destes, encontrou apenas fragmentos de membros e o grande monstro saciado. Mesmo estando só e levemente armado, conseguiu subjugar a serpente e, a seguir, aconselhado por Atena, semeou os dentes do animal no solo. Deles surgiu um grupo de guerreiros, armados com espadas e lanças. Teriam atacado Cadmo, se este não tivesse tido a idéia de lançar uma grande pedra no meio deles; assim, começaram a atacar uns aos outros, parando apenas quando restavam apenas cinco deles; estes cinco se juntaram a Cadmo e se tornaram os fundadores das cinco grandes famílias de Tebas.<br />A cidade de Cadmo rapidamente tornou-se rica e poderosa, e seu fundador prosperou com ela. Casou-se com Harmonia, a filha de Ares e Afrodite, e tiveram quatro filhas, Ino, Autônoe, Agave e Sêmele, e um filho, Polidoro. Estes por sua vez também tiveram seus filhos. Autônoe era a mãe de Actéon, o grande caçador morto pelos seus próprios cães de caça quando Ártemis o transformou em veado como punição por tê-la visto nua. A linda Sêmele foi seduzida por Zeus e ficou grávida de seu filho, o deus do vinho Dionisio. A esposa divina de Zeus, Hera, estava com ciúmes e astutamente sugeriu a Sêmele que pedisse a Zeus que surgisse para ela na forma que tinha aparecido para Hera. Como Sêmele tinha feito Zeus prometer cumprir qualquer pedido que fizesse, foi obrigado a se revelar como um relâmpago, o que a queimou viva. Zeus retirou a criança do útero de Sêmele e a implantou em sua própria coxa, da qual a criança acabou nascendo no tempo devido.<br />A família de Sêmele se recusava a acreditar que Zeus fosse o responsável pela condição dela, ou sua morte. À medida que o culto de Dionisio espalhou-se pela Grécia, ocorreu com muito entusiasmo e pouca resistência, salvo em Tebas, onde o primo de Dionisio, Penteu, filho de Agave, recusava-se a aceitá-lo.<br />Penteu<br />A característica principal do culto de Dionisio nos tempos clássicos era a formação de grupos de mulheres conhecidas como Mênades; vagavam por dias a fio pelas áreas das montanhas, num transe ou frenesi, bebendo vinho, alimentando filhotes de animais, ou despedaçando-os e comendo-os, encantando serpentes e de uma maneira geral se portando de maneira selvagem. Devido a estes aspectos semelhantes a orgias e também pelos principais seguidores serem mulheres, a adoração de Dionisio era vista com desconfiança pelas autoridades masculinas, que gostavam de manter as mulheres em casa e sob o seu controle. A tragédia de Eurípedes, As Bacantes, mostram um caso extremo de festividade de Dionisio e suspeitas masculinas. Nesta peça, o próprio Dionisio vem a Tebas, determinado a punir a família de sua mãe por sua falta de fé, tanto nas suas irmãs como nele próprio. As mulheres de Tebas, incluindo as irmãs de Sêmele, seguem entusiasmadas o deus; no correr da festa, altos brados erguem-se do Monte Citéron devido as brincadeiras. Penteu, o senhor de Tebas, considera seu primo de longos cabelos e modos afeminados com razoável desconfiança, mas, como deus gradualmente o acaba deixando maluco, confessa seu desejo de ir à montanha e espionar as Mênades. Então, Dionisio o leva lá, e quando se aproximam das mulheres, os deuses curvam um alto pinheiro para que Penteu se alojasse no topo e pudesse ver tudo que desejasse. Como seria previsível, torna-se um alvo fácil para as Mênades, que derrubaram as árvores e o despedaçaram com as próprias mãos. Entre elas está, principalmente, Agave, a própria mãe de Penteu, que retorna triunfalmente a Tebas ostentando a cabeça do próprio filho, acreditando ser esta a cabeça de um jovem leão. Ao final da peça, acaba por perceber o que tinha feito, e todas admitem o poder do deus.<br />A Casa de Édipo<br />Édipo, o trineto de Cadmo, é hoje talvez o herói grego mais famoso depois de Hércules; ele é famoso por ter resolvido o enigma da Esfinge, mas ainda mais notório por sua relação incestuosa com sua mãe. Na antiga Grécia era famoso por ambos os episódios, mas o maior significado era como o modelo do herói trágico, cuja estória incluía os sofrimentos universais da ignorância humana - a falta da compreensão da pessoa sobre quem ela é sua cegueira em face do destino.<br />Édipo nasceu em Tebas, filho de Laio, o rei, e sua esposa Jocasta. Devido ao oráculo ter predito que Laio encontraria a morte nas mãos de seu próprio filho, o jovem Édipo foi entregue a um pastor do Monte Citéron, com os tornozelos perfurados de modo que não pudesse se mover. Esta foi a origem de seu nome que significa "pé inchado". Entretanto, o bom pastor não conseguia abandonar a criança, entregando-a então a outro pastor do lado oposto da montanha. Este pastor, por sua vez, levou a criança a Pólibo, rei de Corinto, o qual não tendo filhos, ficou feliz em criar o menino como sendo seu filho. Enquanto Édipo crescia, era ameaçado com comentários sobre não ser filho legítimo de Pólibo; apesar de Pólibo ter lhe assegurado que o era, Édipo decidiu-se finalmente a viajar para Delfos e consultar o oráculo. O oráculo não revelou quem eram seus pais verdadeiros, mas contou-lhe que estava destinado a matar seu pai e casar com sua mãe. Horrorizado, e tão chocado que esqueceu completamente suas próprias dúvidas sobre seus pais, deixou Delfos resolvido a nunca mais retornar a Corinto, onde viviam Pólibo e sua esposa.<br />Desconhecido para Édipo, seu pai verdadeiro Laio estava também viajando nas redondezas de Delfos. Num local onde três estradas se encontravam, Édipo se viu ao lado da carruagem de Laio; um membro da escolta de Laio ordenou rudemente que Édipo saísse do caminho, e este, sem disposição para obedecer, vociferou de volta. Ao passar a carruagem, o próprio Laio golpeou Édipo com um bastão e este respondeu derrubando Laio do veículo e o matando. Esqueceu, então, o incidente e continuou o seu caminho.<br />Voltando as costas a Corinto, acabou chegando em Tebas, a cidade de Laio, a qual estava sendo aterrorizada pela Esfinge, um monstro parte leão alado, parte mulher, que fazia uma pergunta que confundia: "O que é que anda com quatro pernas, duas pernas e três pernas?" Aqueles que tentaram e falharam em solucionar a charada eram jogados pela Esfinge num precipício, cujo fundo estava literalmente tomado por ossos das vítimas. Quando a morte de Laio se tornou conhecida em Tebas, o trono e a mão da rainha de Laio foram oferecidos ao homem que pudesse solucionar a charada e livrar a região da terrível Esfinge. Para Édipo a charada não ofereceu problema; rapidamente identificou seu sujeito como um "homem, que como um bebe engatinha de quatro, acaba crescendo e andando em duas pernas e com a idade necessita do suporte de uma terceira perna, uma bengala". Quando a Esfinge escutou esta resposta, ficou tão enraivecida e mortificada que se jogou no precipício causando sua morte.<br />Os cidadãos de Tebas receberam Édipo com deferência e o fizeram seu rei; casou-se com Jocasta e por muitos anos viveram em perfeita felicidade e harmonia. Édipo mostrou-se um governante sábio e benevolente, Jocasta deu-lhe dois filhos, Etéocles e Polínece, e duas filhas, Antígona e Ismênia. Eventualmente, entretanto, outra praga se abateu sobre a região de Tebas, e é neste ponto que começa a grande tragédia de Sófocles, Édipo Rei. A colheita estava morrendo nos campos e hortas, os animais estavam improdutivos, as crianças doentes e os bebês em gestação definhavam, enquanto os deuses estavam surdos a todos os apelos. Creonte, irmão de Jocasta, retornou de sua consulta ao Oráculo de Delfos, que ordenava que a maldição seria levantada apenas quando o assassino de Laio fosse trazido a justiça. Édipo, imediatamente e de maneira enérgica, tomou a tarefa de encontrá-lo, e como primeiro passo consultou o profeta cego Tirésias. Tirésias reluta em revelar a identidade do assassino, mas é levado gradualmente a se enfurecer pelas insinuações de Édipo sobre ter algo a ver com a morte. Acaba revelando que o próprio Édipo é o pecador que trouxe a maldição sobre a cidade; também profetiza que Édipo, que se considera tão inteligente e de visão larga, se recusará a aceitar a verdade de suas palavras, se recusará a reconhecer quem realmente é e o que tinha feito.<br />Édipo, enraivecido, suspeita que seu cunhado Creonte está mancomunado com Tirésias para assumir o trono; Creonte também nada pode dizer para acalmá-lo. Jocasta tenta acalmar a situação: é impossível que Édipo tenha morto Laio, diz ela, pois este foi morto numa encruzilhada de três estradas. Subitamente Édipo lembra seu encontro casual com um homem velho perto de Delfos; questionando Jocasta sobre a aparência de Laio (estranhamente, se parecia com o próprio Édipo) e o número de elementos na sua escolta, percebe que Laio foi provavelmente a sua vítima. Enquanto espera pela confirmação de um elemento da escolta que retornava a Tebas, um mensageiro chega de Corinto com a notícia que Pólibo tinha morrido de morte natural; Édipo, ainda não suspeitando de toda a extensão de seu crime, fica feliz por aparentemente ter se livrado de pelo menos uma parte da profecia do oráculo, mas resolve ter cautela antes que acabe se casando com sua mãe.<br />O mensageiro bem intencionado, ansioso em confortá-lo, assegura a Édipo que Pólibo e sua esposa não eram seus pais; o próprio mensageiro tinha recebido Édipo, então um bebê, das mãos de outro pastor do Monte Citéron e o entregou a Pólibo. Mesmo agora Édipo não consegue fazer a correta conexão, e enquanto a aterrorizada Jocasta tenta em vão persuadi-lo a parar a investigação, persiste nos seus esforços para chegar ao fundo do mistério e ordena que o pastor de Laio, agora um velho, seja trazido a sua presença. Por uma casualidade do destino, este homem é também a única testemunha ainda viva da morte de Laio. Quando finalmente aparece, o completo horror da situação finalmente chega a Édipo; o homem admite que tomou o filho de Laio e com pena o entregou ao pastor de Pólibo, ao invés de o deixar morrer. Esta criança era Édipo, que agora tinha sucedido seu pai no trono e no leito.<br />Jocasta não esperou pelo desfecho; tinha ido antes de Édipo para o palácio, e quando a seguiu, com o que parecia uma intenção assassina, descobriu que tinha se enforcado. Arrancando os broches de ouro do vestido dela, golpeia seguidamente seus olhos com eles, até que o sangue corra pela sua face. Como pode olhar para o mundo, agora que consegue ver a verdade? O coro da peça mostra a moral da estória: por mais seguro que um homem possa se sentir, mesmo sendo rico, poderoso e afortunado, ninguém pode se sentir seguro de escapar de um desastre; não é seguro chamar qualquer pessoa de feliz deste lado do túmulo.<br />Apesar de Ter solicitado a Creonte um banimento imediato, não foi permitido a Édipo partir de Tebas por vários anos, até que sua punição tivesse sido confirmada por um oráculo. Na ocasião em que foi mandado embora, estava muito menos ansioso para partir. Agora já um velho, estava condenado a vagar de lugar em lugar, pedindo comida e abrigo, suas passadas cegas guiadas por suas filhas Antígona e Ismênia. Apesar de elas trazerem algum conforto e alegria para ele, seus filhos, Polínice e Etéocles, estavam cada vez mais afastados dele, de seu tio Creonte e um do outro. Tinha sido combinado que se alternariam no governo, um ano para cada um, mas, quando o primeiro ano de Etéocles terminou, este se recusou a entregar o trono a seu irmão. Polínice se refugiou em Argos, onde agrupou a sua volta uma equipe de seis outros campeões, com os quais se propôs a sitiar sua cidade natal. É esta a situação no início da obra Édipo em Colona, de Sófocles, quando Édipo, chegando ao fim de sua vida, chega aos olivais de Colona, um distrito nos arredores de Atenas.<br />Ajudado por Antígona, Édipo se refugia num altar para aguardar a chegada de Teseu, rei de Atenas, quando Ismênia chega com notícias de Tebas. As facções rivais dos irmãos ficam a cada dia mais nervosas, e um oráculo se pronunciou dizendo que o lado que conseguisse o apoio de Édipo seria o vencedor. Édipo, igualmente irritado com Creonte e com seus dois filhos, está seguro que não apoiará qualquer um dos lados; podem lutar entre si, esperando que destruam um ao outro no processo. Quando Teseu chega, portanto, Édipo solicita que lhe seja permitido terminar seus dias em Atenas. Teseu escuta com atenção seu pedido e oferece a Édipo um local mais confortável, mas Édipo deseja permanecer no local onde está. Surge então Creonte, determinado a fazer Édipo acompanhá-lo de volta a Tebas, mas apenas à fronteira da cidade, de modo a ainda evitar a maldição de ter Édipo realmente no solo Tebano, para manter sua facção protegida de sua proximidade. Quando Édipo recusa a pretensão de amizade e rejeita a oferta imediatamente, Creonte se torna violento e ameaça levar Édipo a força; já tinha capturado Ismênia, e agora seus soldados tinham levado Antígona para muito longe de seu indefeso pai.<br />Teseu, retornando bem a tempo de evitar que Édipo seja retirado de seu altar, critica asperamente as ações de Creonte e promete devolver as filhas a Édipo; ordena que Creonte volte a Tebas. Chega então Polínice, juntamente com uma razão política para desejar a proteção de seu pai, o qual tinha ajudado a expulsar de Tebas; também é rejeitado, e Édipo anuncia sua intenção de permanecer em Colona até o fim de seus dias. A peça termina de maneira dramática: após Édipo desaparecer no arvoredo sagrado, um mensageiro emerge para contar seu fim miraculoso, testemunhado apenas por Teseu. Édipo, anuncia-se, tinha transferido as bênçãos que poderia ter dado a Creonte ou Polínice para Atenas, a qual seria daí em diante protegida por sua presença.<br />O ataque a Tebas feito por Polínice e seus aliados é o assunto da peça Sete contra Tebas, de Ésquilo. Sete campeões lideraram o ataque nos sete portões de Tebas, calhando a Polínice tomar o portão defendido por seu irmão Etéocles. Apesar dos tebanos finalmente repelirem o ataque sobre sua cidade, os dois irmãos morrem pelas espadas um do outro, cumprindo assim a praga de seu pai e prosseguindo a triste saga da casa de Édipo.<br />A ação dramática de Antígona de Sófocles começa neste ponto da estória. Com os dois herdeiros masculinos de Édipo mortos, Creonte assume o título de rei de Tebas. Decreta que, enquanto Etéocles devesse ser sepultado com toda a cerimônia, o traidor Polínice deveria ser deixado no local onde tombou, para ter seu corpo destruído pelos cães e pássaros predadores. Creonte mandou montar guarda ao lado do corpo para certificar-se que seu édito seria cumprido; logo seus soldados retornariam com Antígona, que tinha sido apanhada atirando punhados de terra sobre os restos desfigurados de seu irmão, num esforço de fornecer-lhe um sepultamento simbólico. Quando desafiada quanto a sua desobediência, replicou que as leis dos deuses, que dizem que os parentes sejam sepultados, são irrevogáveis e imutáveis, devendo ter precedência sobre a lei dos homens. Na sua Antígona, Sófocles utiliza o mito para explorar este conflito entre a lei humana e a divina: o que uma pessoa comum deve fazer quando duas destas leis entram em conflito? Apesar de, por fim, a resposta parecer ser que a lei divina deve ser obedecida a qualquer custo, esta conclusão não é de nenhuma forma evidente no início. Enquanto Antígona é mostrada como uma mulher forte e pouco feminina que não está feliz me permanecer no reino feminino tradicional do lar, mas aventura-se desafiando as leis de seu guardião masculino, Creonte aparece inicialmente como um homem que tenta fazer o máximo para governar a cidade pela regra do rei.<br />Quando Antígona não mostra qualquer remorso por seu crime, Creonte ordena que seja sepultada viva, um método cruel de execução calculado para absolvê-lo de responsabilidade direta pela morte. Neste ponto o noivo de Antígona, Hêmon filho de Creonte, vem a Creonte pedir pela sua vida, argumentando que a punição é bárbara e politicamente ruim, pois Antígona tem grande possibilidade de tornar-se heroína entre o povo de Tebas. Creonte, entretanto, permanece inflexível, como as árvores que não se curvarão frente corrente nas margens de um rio alagado, ou o marinheiro que não retirará suas velas antes da borrasca; assim, dá instruções para que a punição prossiga. Apenas quando aparece o profeta Tirésias, e revela a zanga dos deuses e a terrível punição que se abaterá sobre Creonte se persistir nesta ação, é que Creonte finalmente aceita o conselho e liberta Antígona da prisão. Nesciamente, como resultante, detém-se enquanto ia ao sepultamento de Etéocles e apenas chega ao túmulo para encontrar Hêmon segurando o corpo de Antígona - tinha se enforcado em sua cinta. Hêmon então volta sua espada contra seu próprio peito. Creonte retorna a sua casa recebendo a notícia que sua esposa Eurídice tinha se suicidado, amaldiçoando seu marido no seu leito de morte. Esmagado pela tragédia que o tinha atingido de maneira tão súbita, Creonte é conduzido para longe, deixando o coro refletindo sobre o fato da maior parte da felicidade ser a sabedoria, em conjunto com a devida reverência aos deuses.<br />Fonte: http://www.mundodosfilosofos.com.br/edipo.htm<br /><br />Rei Édipo: culpa e existência<br />Prof.ª Dr.ª Gilda Naécia Maciel de Barros, FE-USP.<br />Não foi sem razão que Aristóteles, na Poética, ao estabelecer os princípios de uma teoria da tragédia, considerou o Rei Édipo uma peça exemplar. Todavia, o caráter paradigmático deste texto parece-nos ultrapassar as exigências formais da teoria aristotélica para se impor a nós, ainda hoje, como obra de valor perene e sempre atual. De fato, no teatro sofocleano experimentamos a especial sensação de nos colocar diante de nós próprios, no desafio que representa o fato de existirmos e, de existindo, assumir a decisão de escolher o sentido de ser.<br />E, sob este aspecto, entre todas as tragédias sofocleanas se adianta o Rei Édipo, obra das mais bem acabadas da literatura grega, na forma e no conteúdo, onde a arte de Sófocles parece haver alcançado o mais alto ponto de sua maestria.<br />Múltiplos são os ângulos dos quais se poderia examinar este texto, cuja complexidade favorece estudos de caráter literário, religioso, sociológico, antropológico, jurídico, e, por que não lembrar? - também psicanalítico, ou detetivesco! Realmente, para os profissionais simpáticos à explicação do homem, com algum matiz freudiano, ou, ainda, para os apaixonados pelo conto policial, a leitura do Rei Édipo é de primeira linha.<br />Entretanto, a nenhuma outra área da reflexão humana esta obra serve tão bem quanto à da educação e da filosofia. E por que? Porque levanta, entre muitas outras, esta problemática vital: a de ser, de existir no mundo. Rei Édipo trata de um tema do qual o homem, em época alguma, desde que conserve a sua humanidade, pode fugir.<br />O Rei Édipo é uma tragédia da existência. E se é uma tragédia da existência, por que não se pode considerá-lo também uma tragédia da culpa? Culpa e existência mostram-se inseparáveis e, nos termos da irracionalidade de ser, o homem deve pagar por sua individualização. Ora, esta culpa de ser, Édipo a traduz muito bem. Na versão de Sófocles, funesta maldição pesa sobre o herói; o que a justifica? Na linguagem da consciência mítica, de onde Sófocles foi colher os elementos do drama, realmente nada. É o absolutamente gratuito. Simplesmente Édipo não deve nascer. Não há qualquer ato pessoal de desmedida ou impiedade que justifique a sua desdita; esta reside na sua existência mesma. Um oráculo de Apolo predissera a Laio, rei de Tebas, que, se tivesse um filho, ele seria o matador de seu pai e marido de sua própria mãe.<br />Na lógica do mito, a única esperança para a criança que nasceu é a morte, caso contrário só lhe resta realizar tão infeliz destino. E outra não é a escolha de Jocasta, a mãe acuada e aterrorizada diante do aviso profético e inflexível. Mas Jocasta comete um erro vital, delegando a um servo de confiança a desumana matéria de matar o filho. A piedade perdeu Édipo, que o criado salvou da morte, para manter vivo, a despeito do oráculo. E este mesmo oráculo, que não mudou, ao Édipo jovem, filho adotivo da casa real de Corinto, repete a mesma sentença que outrora proferira a Laio, o pai.<br />E agora, Édipo, como agir? Como viver carregando o peso de tão terrível desgraça? Que sentido atribuir à existência, de antemão condenada a crimes nefandos? Viver para realizá-los? E como viver, sem cumpri-los?<br />Na montagem do drama, Sófocles recolhe e reúne vários elementos de uma tradição bem anterior a ele, tradição mítico-mágica em que as esferas do ser e do valer estão monisticamente confundidas. De fato, no pensamento arcaico, o erro moral comunica ao mundo físico uma espécie de poluição contaminadora; a natureza toda reflete as conseqüências do mal. Não é noutro sentido a advertência do poeta Hesíodo; a cidade inteira paga as faltas de um só, pois as colheitas fenecem, as mulheres mostram-se estéreis, a fome e a peste aniquilam inúmeras vidas e Zeus retira sua proteção aos exércitos e aos homens no mar. Esta poluição natural estende-se à descendência do homem ímpio, cujos filhos já nascem marcados pelo mal; herdeiros da culpa, eles pagam, como lembra o poeta Sólon, pelos erros dos pais; a divindade, inexorável, cobra, na pessoa de inocentes, a expiação.<br />Pela lei da antiga fé, os deuses assumem a tarefa de punir o homicídio de uma criatura do mesmo sangue do criminoso. As Eríneas, em especial, perseguem o matador de forma incansável e aterradora, até a compensação da falta e a subseqüente purificação. Enquanto tal não ocorre, o homicida impune carrega um miasma e comunica esta mácula aos descendentes, além de atrair, contra a cidade em que habita, a cólera divina.<br />Pois bem, Édipo é uma figura claramente moldada nesse esquema de crenças da tradição religiosa arcaica. Sem o saber, já homem feito, é ele o ímpio contaminador de Tebas. Uma peste funesta enluta a cidade. E, de novo, o oráculo délfico se faz ouvir: um homicida polui a terra de Cadmo; urge descobri-lo, afastando, com ele, o mal. E a quem cabe esta tarefa? Ao rei que, outrora, libertou Tebas das garras da esfinge, decifrando-lhe os enigmas. E, quem é o rei? Édipo, que fugira de Corinto temendo a sentença pítica, e que, numa encruzilhada de três caminhos, acidentalmente, assinara o rei de Tebas, Laio, seu pai, e os homens de sua comitiva, ignorando-lhes a identidade, e que, chegando a Tebas, por livrá-la do monstro, desposara em recompensa a rainha, Jocasta, sua mãe.<br />Em nenhuma outra peça sofocleana a ironia trágica se propõe com tanta finura, exacerbando o sentimento de piedade e temor que a leitura do texto provoca, como se para a catarse dessas paixões não bastasse a dramática situação do próprio Édipo. Apenas a título de um pálido exemplo (não nos interessa aqui um estudo literário do drama), vejam-se estas palavras do sacerdote ao rei, no prólogo:<br />"Tu, o melhor dos homens, conduz, de novo, o governo da cidade, com segurança, mas pensa que, se hoje esta terra te aclama como seu salvador, porque com ela te preocupaste, faz com que não tenhamos de recordar, mais tarde, o teu governo, como uma época em que nos erguemos muito alto, para depois cairmos no mais profundo mal". (Rei Édipo in Antígona, Ájax, Rei Édipo, trad. de Antônio Manuel Couto Viana, ed. Verbo).<br />Para salvar Tebas, Édipo deve encontrar o assassino de Laio, devolvendo, assim, à cidade a paz e prosperidade perdidas. Ao fazê-lo, porém, irá provocar justamente a desgraça que procurara evitar. Na verdade, a maior ironia da trama está no fato de Édipo procurar, com empenho e perseverança sem limites, um assassino que é ele próprio. Considere-se o duplo sentido desta fala de Édipo, referindo-se a Laio:<br />"Eu, que detenho agora o poder que a ele pertenceu; que durmo na sua cama, e fecundo a mulher que foi sua e lhe devia dar filhos, se a sua má fortuna não tivesse caído sobre a cabeça dela; por todas estas razões, eu, como se de meu próprio pai se tratasse, por ele lutarei e chegarei tão longe quanto me for possível, tentando deitar mão ao responsável pela morte do filho de Lábdaco, da linhagem de Polidero e para mais além de Cadmo e, antes, ainda, de Agenor".<br />Há nesta peça muitos outros momentos de alta tensão em que a ironia não deixa de colaborar ainda mais para carregar nos efeitos dramáticos do texto, manifestando-se na ambigüidade das palavras e nas intervenções de certos personagens. Neste último caso, quem fala julga que vai trazer tranqüilidade ao espírito angustiado de Édipo, libertando-o de seus temores (assassinato do pai e casamento com a mãe), mas o resultado é justamente o oposto, e o herói se vê mais perturbado ainda e preso nas malhas da fatalidade.<br />Não é difícil reconhecer a presença da fatalidade no Rei Édipo. Ela está ligada a todos os elementos da religião arcaica anteriormente apontados, mas o que melhor a define é a idéia de uma culpa objetiva desabando sobre o herói de forma irracional. Essa idéia garantiu por muito tempo na Grécia os fundamentos do direito de punir; ela pode explicar a estranha prática judicial que, submetendo a julgamento animais e objetos inanimados responsáveis, acidentalmente, pela morte de alguém, marcava-os com um miasma contaminador. Por esta mesma idéia se pode entender também a força da justiça gentílica, na qual uma família inteira respondia pelo crime de um membro seu ou assumia o papel de vingadora da morte de qualquer de seus filhos. Foi com a descoberta da pessoa humana e a sua progressiva valorização que as bases religiosas da justiça foram cedendo lugar à idéia de individualização do crime e da pena e que o conceito de culpa objetiva foi reavaliado em função dos elementos íntimos da moralidade.<br />Embora, como vemos, o texto em questão se alimente da mais legítima tradição da mentalidade mítica, todavia, vai muito além dela. No cerne de uma visão monística e totalizante do homem e do universo que o rodeia, Sófocles descobre o indivíduo e uma força nova - a vontade - pela qual o homem se separa do mundo, instituindo-se como o organizador de uma ordem da qual pretende ser, ele próprio, o fundamento. Problematizada, a existência mostra-se como um irracional imponderável a que o querer e o saber humanos dão combate e aspiram vencer. E nada melhor para traduzir este irracional do que a idéia de Fatalidade, ou para ser mais preciso, de um destino (Moira) inexorável que está acima do homem, que o acompanha a cada passo e que, por fim, o faz sucumbir. Todavia, no momento em que o homem questiona este imponderável e lhe opõe a resistência de seu querer, ainda que o de um querer marcado pela fragilidade de sua própria condição, neste momento, a presença da fatalidade passa a ser uma presença dramática e do mais alto significado ético.<br />Não nos parece ser outro o sentido do Rei Édipo. Nele, correm paralelas a força do irracional, consubstanciada na figura mítica da Moira, e a da obstinada autodeterminação de seu personagem principal, Édipo. E, num jogo de ambigüidades, a manifestação de uma se revela a realização da outra. De fato, Édipo fugira de Corinto por acreditar que conseguiria elidir o decreto pítico. Mas em Corinto viviam seus pais adotivos, e a fuga apenas o leva ao encontro de suas vítimas, Laio e Jocasta. E o herói sofocleano, que julga estar se afastando a cada passo de seu cruel destino, a cada passo mais se aproxima da consumação desse mesmo destino.<br />Vemos, entretanto, na pertinaz fuga de Édipo um ato de liberdade, pois outro não é o significado de uma vontade que aspira a transcender o dado e a ele se impor. Assim, também, vemos na persistente e corajosa investigação de Édipo, na qualidade de rei de Tebas, na busca do ímpio poluidor, mais um exercício de liberdade. Reconhecemos na audácia e firmeza de Édipo ao levar o inquérito até o final, ainda quando lhe parece claro que o processo de busca do assassino de Laio se confunde com o processo de busca de sua própria identidade, mais uma autêntica profissão de fé no homem. É com impiedosa obstinação que Édipo, sem mais esperanças de que a desgraça não desabe sobre sua cabeça, constrange com firmeza o criado do palácio a revelar a sua origem. "Ai de mim", diz o fiel servo de Jocasta, "cheguei ao ponto mais terrível do que terei de dizer!". "E eu", retruca Édipo, "do que terei de ouvir. Mas há que ouvi-lo".<br />A única forma de Édipo recobrar a dignidade como homem é desvelar o segredo de sua origem, sem o que, para ele, a existência permanecerá sempre um enigma, desprovida de qualquer sentido. Aqui aparência e realidade se reúnem para dar a nota mais alta da tragédia. Realmente, quanto mais Édipo se aproxima da verdade, de seu próprio ser, mais próxima se faz a sua destruição. E quanta grandeza se descobre nesta figura aniquilada pelo sofrimento que exclama, agora conhecedora de toda a verdade: "Ai, ai! Era tudo certo e tudo se cumpriu. Ó luz! Vejo-te, hoje, pela última vez!, que hoje se revela que nasci de quem não devia; daqueles cuja convivência devia ter evitado; matador de quem não podia matar".<br />Parricida e réu de incesto, é no momento de sua maior grandeza que este homem sofre golpe tão inominável! Não foi noutro sentido a profecia de Tirésias, o adivinho: "O dia de hoje te fará nascer, e te matará".<br />"Era tudo certo e tudo se cumpriu", diz Édipo. De novo parece vitoriosa a força do irracional. Mas que importam êxito e fracasso diante de uma consciência que luta? O homem que uma só vez acreditou em si próprio é, já, um vencedor. Édipo não é uma vítima do destino, passiva e desesperadora, mas uma vítima que contra o inexorável reuniu e opôs todas as suas forças. E, como tal, não pode ser um derrotado. Entretanto, para tão funesta desgraça a morte é quase nada. Viver, sim, assumindo com coragem a própria condição, ainda que vergonhosa, é, ainda, apostar no homem. Aceitar a existência, agora condenada à solidão, ao exílio e à impiedade, mas sem ver, estampado no olhar de seus semelhantes, o horror a um ímpio contaminado, agente da poluição. Daí, de novo, na manifestação de um querer personalíssimo, a autopunição:<br />"Apolo. Foi Apolo, amigos, e o que me culminou dos mais horríveis, dos mais horrorosos sofrimentos. mas estes olhos vazios não são obra dele, mas obra minha. Que desgraçado sou! Que poderia eu querer ver, ainda, se nada mais existe que possa trazer alegria aos meus olhos?"<br />Numa outra peça de Sófocles, Édipo em Colona, reencontramos Édipo, agora em busca de um local de repouso definitivo, à espera da morte. Ele já cumpriu a sua pena, peregrinando, sem família e sem amigos; na solidão, o tempo amadureceu a sua dor, mas como os anos vieram também a sabedoria e uma profunda paz. O Édipo de Colona é um homem sereno, reconciliado com os deuses e consigo próprio. Não há revolta em sua alma: "Os sofrimentos e a experiência de tantos anos - e também a minha natureza corajosa - ensinaram-me a resignação". (Théatre de Sophocle, ed. Garnier, segundo a trad. de Robert Pignarre. V. 6-9). Todavia, a atitude de piedade e respeito aos deuses não o impedem de fazer sua autodefesa "Estrangeiros, cometi meus crimes. Cometi-os, mas, em face do céu, eu o afirmo: nestes crimes, não teve parte a minha vontade" (ed. citada, v. 521-3). Dessa forma, desqualifica em Sófocles a idéia de culpa objetiva e o querer do homem se impõe como o fundamento da ordem moral. Édipo se reconhece culpado, sim, mas de homicídio, nunca de parricídio e incesto, pois não sabia que matava, em Laio, o próprio pai e jamais teria repartido o leito com Jocasta, se soubesse ser ela sua mãe. "Assassino, seja; mas sem tê-lo premeditado e puro diante da lei, pois que eu tudo ignorava" (ed. citada, v. 549-50).<br />Vontade e conhecimento, eis o que Sófocles reclama como critério da responsabilidade. O homem responde pelo que faz querendo e conhecendo, nunca por atos que cumpre sem uma participação voluntária ou na ignorância de seu significado.<br />Afinal, no teatro sofocleano o grande personagem é o homem. Significativamente, deixando de lado a composição dramática de trilogias ligadas pelo mesmo tema - em geral a história de uma família sobre a qual pesa uma falha moral ou maldição - no estilo de Ésquilo, Sófocles dá realce a grandes figuras humanas, personalidades de caráter inflexível, de um querer obstinado, que agem em função de suas próprias eleições, sem o apego a qualquer motivo que não proceda de seu próprio íntimo. Ajax, Antígona, Electra, Édipo, Filoctetes, são individualidades poderosas, cuja consciência e vontade, uma vez manifestadas, se mantêm firmes e desencadeiam todas as evoluções da ação dramática. São, entretanto, criaturas solitárias, que permanecem irremediavelmente sozinhas no momento decisivo em que assumem o seu destino. Elas nos ensinam que um ato de liberdade, real ou ilusório, é sempre decidido na solidão da consciência e que apenas nós, mais ninguém, respondemos por ele.<br />Édipo é, todavia, uma criatura em paz com os deuses. Piedosamente, aceita a sua sorte e tem fé, apesar de tudo. No universo sofocleano a transcendência do querer humano encontra um limite, pois deve acomodar-se a uma ordem divina contra a qual, por vezes desolado e aturdido, o herói se opõe, para, afinal, a despeito das incongruências da vida, entoar-lhe um cântico de fé. Quanto a nós, que importa se parecemos frágeis brinquedos do imponderável - Destino ou Acaso - qualquer que seja o nome que se lhe dê? Enquanto buscarmos o fundamento da ordem na qual nos inserimos em nós mesmos, ainda há esperança para o homem.<br />Fonte: http://www.paideuma.net/reiedipo.htm<br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />PROMETEU ACORRENTADO - resumo<br />Vulcano está prestes a acorrentar Prometeu, seu parente, como castigo sentenciado pelo novo senhor dos deuses: Júpiter. Esta punição foi por ter roubado o fogo dos deuses (Dom de Vulcano) e te-lo dado aos homens. Vulcano não gosta do que terá de fazer e confessa isso ao Poder, mas Poder acha tudo uma bobagem já que a sentença tem de ser cumprida e Vulcano deve punir Prometeu por ter roubado a qualidade que lhe foi atribuída. O Poder deixa claro que o trabalho de punição deve ficar bem feito, sem compaixão, e recomenda que Prometeu deve ficar bem preso as rochas sem possibilidade de fuga. A Violência assiste muda juntamente nos rochedos da Cítia.O Poder, ainda, desdenha de Prometeu antes de deixá-lo só.Prometeu, sozinho, começa a divagar e se perguntar se ao ter roubado o fogo e dá-lo aos homens foi tão grave, já que foi para ajudá-los. Até que ouve um bater de asas e sente um perfume, é o Coro das Ninfas do Oceano, trazendo palavras de conforto e dizendo que nenhum deus além de Júpiter poderia ficar feliz com tal sofrimento infligido pelo o novo senhor dos deuses ( a condenação foi ficar preso por milhares de anos ao rochedo até quando Júpiter achasse necessário ).Prometeu, diz que não irá prever mais nada do que Júpiter lhe solicitar e o Coro das Ninfas do Oceano temem pela sua situação e perguntam: o que ele fez a Júpiter para tal pena? E ele diz que foi por defender os mortais da aniquilação total pretendida pelo novo deus dos deuses chamado Júpiter, ao dar o fogo aos mortais ele possibilitou que o homem ficasse mais forte e pudesse criar e se desenvolver. As Ninfas, vêem que nada podem falar ou fazer para aliviar a sua dor. Nisso chega Oceano que também penalizado por tamanho castigo pergunta no que pode ajudá-lo. Mas Prometeu não gosta de sua visita e insulta-lhe, o que faz Oceano achar que o castigo deve ter sido por tal palavreado, mas mesmo assim diz que irá interceder junto ao novo senhor dos deuses. Prometeu com ironia aconselha que ele não vá ter com Júpiter ou terminará igual a ele. Mas Oceano diz, sem se importar com o tom de Prometeu, que irá conseguir o perdão de Júpiter para Prometeu, e ele num tom agora ameno diz que não quer que ele seja desgraçado também. Oceano volta ao seu recinto e adere ao conselho de Prometeu.Enquanto isso o Coro das Ninfas do Oceano estão estarrecidas com tal punição, pois Prometeu que ajudou ao homem ser um homem diferente que pensa e que cria agora não pode ajudar a si mesmo e nem ser ajudado por tais seres mortais.E embora com sua inteligência, Prometeu que era aquele que poderia ter poder maior do que do próprio Júpiter, ainda continuava preso, mas ele tinha o poder da adivinhação e era isso que Prometeu poderia usar para restituir sua liberdade.Prometeu e o Coro das Ninfas do Oceano avistam distante Io, desesperada e perdida, está sendo castigada por Juno (esposa de Júpiter) por haver conquistado o amor de seu marido. Io estava curiosa como ele, aquele acorrentado, sabia quem era o seu pai Íniaco, e perguntou quem ele era e porque estava ali acorrentado.Prometeu se apresentou e contou o que lhe havia acontecido, Io ficou horrorizada e lhe perguntou qual seria seu destino, o que havia lhe reservado (para Io) , mas Prometeu quis ouvir primeiro a sua história (aconselhado pelo Coro das Ninfas do Oceano, antes de lhe apresentar seu futuro), então Io disse que após ser atormentada por uma voz que lhe dizia para entregar sua pureza à Júpiter, resolveu contar tudo ao seu pai Íniaco que rapidamente foi buscar respostas junto ao oráculo que lhe disse que Io deveria ser expulsa de sua casa e de seu país afim de evitar que a fúria de Júpiter caísse sobre ele destruindo a todos que lá viviam, e desde esse acontecimento ela andava pelo mundo, além de sua fisionomia ter mudado e possuir chifres na testa, além de atormentada por um inseto que lhe perseguia onde fosse, ainda havia sido colocada sobre a vigia de um cão pastor chamado Argos que possuía muitos olhos.Prometeu ficou penalizado com o sofrimento de Io, e lhe disse por onde deveria ir e qual o caminho que deveria tomar, também lhe contou que o descendente de Io seria o libertador dele. Ainda revelou que Júpiter perderia seu trono pois teria um filho mais forte que ele, o que deixou Io muito satisfeita e sentiu que seu sofrimento seria vingado por quem ela menos esperava – um descendente do próprio Júpiter.O Coro das Ninfas do Oceano ficou assustado com tais presságios, temiam que Júpiter castigasse ainda mais Prometeu com essas revelações e principalmente com a satisfação que ele tinha em falar isso do deus dos deuses.E veio Mercúrio trazer nova mensagem de Júpiter, esse quer saber quem derrubará seu pai do trono.Prometeu, de forma insolente, diz que não revelará nada para ajudar aquele que causou sua dor.Então Mercúrio diz que Júpiter irá quebrar os rochedos de forma que ele fique preso e caído sobre os restos e mandará um abutre comer seu fígado todos os dias.Prometeu diz que já sabia de tal fato, e não muda sua opinião sobre Júpiter.<br />Fonte: http://pt.shvoong.com/humanities/489444-prometeu-acorrentado/<br /><br />O mito de Prometeu e Epimeteu segundo Ésquilo, Hesíodo e Platão.<br />por Miguel Duclós<br /><br />1. Hesíodo e Ésquilo.<br />O mito de Prometeu é descrito na literatura clássica principalmente em Hesíodo. Aparece nas duas obras do poeta, Teogonia e Os trabalhos e os Dias, sendo que na segunda ele é recontado e complementado. Afora Hesíodo, outra obra importante, a tragédia Prometeu Acorrentado, é dedicada a ele. Porém nesta tragédia o mito não está completo, pois começa no instante em que Hefesto e Cratos castigam o titã, a mando de Zeus pai. Prometeu, em diversas partes da tragédia, se refere aos motivos que o levaram a ser acorrentado. A tragédia fazia parte de uma trilogia sobre Prometeu, mas as outras duas partes se perderam.<br />Como explica Junito de Souza Brandão, o nome Prometeu, segundo a etimologia popular, teria vindo da conjunção das palavras gregas pró (antes) e manthánein (saber, ver). Ou seja, Prometeu equivaleria a prudente ou previdente. Embora, como afirma Ésquilo, Prometeu não supusesse o teor do castigo de Zeus ao desafiá-lo, ainda assim lhe é atribuído um caráter oracular, por ter proferido um vaticínio sobre a queda de Zeus, o governador. Alguns outros mitógrafos atribuem a teoria desta previsão a Têmis. A profecia diz que o filho da nereida Tétis e de Zeus destronaria o pai. Por causa disso, Zeus desiste de seduzir a nereida e se apressa a lhe dar um esposo mortal, que acabou sendo Peleu. Este cuidado de Zeus também se verifica quando ele engole a mãe de Atena, Métis (sabedoria, astúcia) - sua primeira esposa -, para que não nascesse dela um segundo filho mais poderoso que o pai. Zeus engole Métis ainda grávida, e Atena, deusa da sabedoria, nasce da cabeça do pai.<br />Prometeu, que parece detestar Zeus - como se observa na tragédia esquiliana pelo desprezo a seu mensageiro Hermes ou quando critica a arrogância de Zeus e diz abominar os demais deuses - era filho do titã Jápeto e da oceânide Clímene. Apenas em Ésquilo a mãe de Prometeu é Têmis, a deusa da justiça. Tinha como irmãos Atlas, Menécio e Epimeteu, sendo que todos eles foram castigados por Zeus. Jápeto era irmão de Crono (Prometeu era, portanto, primo de Zeus) e de Oceano, que em Ésquilo sai do seu reino e avança sobre a Terra para tentar dissuadir o sobrinho Prometeu de sua revolta e dizer a ele que intercederia junto a Zeus, uma prova ferrenha de sua amizade.<br />Nos versos 510 a 516 da Teogonia, está contada a história de Prometeu segundo Hesíodo. Consta ali que a primeira falta de Prometeu para com Zeus em favor dos homens foi quando dividiu um boi em duas partes, uma cabendo a Zeus e outra aos mortais. Na primeira estavam as carnes e as vísceras, cobertas com o couro. Na segunda, apenas ossos, cobertos com a banha do animal.<br />Zeus, atraído pela banha, escolhe a segunda, e então a raiva, o rancor, e a cólera lhe subiram-lhe a cabeça e ao coração. Por conta disso, Zeus castiga os homens, negando a eles a força do fogo infatigável. O fogo representa simbolicamente a inteligência do homem. A afronta definitiva de Prometeu, porém, ocorre quando este rouba “o brilho longevisível do infatigável fogo em oca Férula” (Teogonia, 566). Com isto, Prometeu reanimou a inteligência do homem, que antes era semelhante aos fantasmas dos sonhos. A fala de Prometeu na tragédia de Ésquilo remete para ele a dívida dos mortais por terem a habilidade de, por exemplo, construir casas de tijolos e madeira. Os mortais, diz o titã, tudo faziam sem tino até que este lhes ensinasse “as intricadas saídas e portas dos astros. Por elas inventei os números (…) a composição das letras e a memória (…), matriz universal.” Prometeu diz, enfim, que os homens devem a ele todas as artes, inclusive a de domesticar animais selvagens e fazê-los trabalhar para os homens.<br />Por conta dos mortais terem o fogo, Zeus armou uma armadilha: mandou o filho de Hera, o deus coxo e ferreiro Hefesto, plasmar uma mulher ideal, fascinante, ao qual os deuses presentearam com alguns atributos de forma a torná-la irresistível. Esta mulher foi batizada por Hermes como Pandora, (pan = todos, dora = presente) e ela recebeu de Atena a arte da tecelagem, de Afrodite o poder de sedução, de Hermes as artimanhas e assim por diante. Pandora foi dada de presente para o atrapalhado Epimeteu, que ingenuamente a aceitou, a despeito da advertência de seu irmão Prometeu. A vingança planejada por Zeus estava contida numa jarra, que foi levada como presente de núpcias para Epimeteu e Pandora. Quando esta, por curiosidade feminina, abriu a jarra e rapidamente a fechou, escaparam todas as desgraças e calamidades da humanidade, restando na jarra apenas a esperança.<br />Quanto a Prometeu, foi castigado sendo preso pelas inquebráveis correntes de Hefesto no meio de uma coluna, e uma águia de longas asas enviada por Zeus comia-lhe o fígado imortal. Ao cabo do dia, chegava a negra noite por Prometeu ansiada, e seu fígado tornava a crescer. Teria sido assim eternamente se não fosse por intervenção de Herácles, que matou a águia como consentimento de Zeus.<br />2 - O mito de Prometeu e Epimeteu segundo Platão.<br />Este é o resumo do mito tal como é contado por Hesíodo, com complementos de Ésquilo, tragediógrafo significativamente posterior a Hesíodo, mas contemporâneo de Platão. No Protágoras de Platão, todas as criaturas vivas aparecem como obra de vários deuses, que as plasmaram inicialmente com terra, limo e fogo. A palavra latina homem está ligada a humus (terra) e os gregos acreditavam que uma centelha divina de imortalidade percorria toda a Terra. São os outros deuses que incubem Prometeu e Epimeteu de dar aos seres as qualidades necessárias para se sustentarem quando viessem à luz. Epimeteu, por ser atrapalhado, torna-se um reversor dos benefícios de Prometeu aos homens, tanto em Hesíodo quanto em Platão. Protágoras continua a narrativa dizendo que Epimeteu pediu a seu irmão para que deixasse por sua conta a distribuição das qualidades aos seres criados, cabendo a Prometeu apenas uma revisão final.<br />Começa então a divisão compensatória de Epimeteu: a alguns dá força sem velocidade, a outros dá apenas velocidade. Tendo em vista o que conhecemos dos animais hoje, sabemos que é perfeitamente possível um animal ter força e velocidade ao mesmo tempo, como no caso de uma leoa ou guepardo.<br />Para algumas criaturas, Epimeteu deu armas. Aos que não a tinham, achou diferentes soluções, como asas para fugir aos pequenos e tamanho a outros. É certo que asas são um meio de transporte ideal para as fugas, mas também o são para a caça, como comprovam as aves rapinaces predadoras. As qualidades foram assim distribuídas para que houvesse um equilíbrio, e não viessem as espécies destruir umas às outras. Depois Epimeteu provê os seres com o necessário para sobreviverem no frio, os pêlos. Por último determinou o que cada um deveria comer, de acordo com a sua constituição: ervas, frutos, raízes e carne. Os que comiam carne, de acordo com o mito, se reproduziriam menos do que os herbívoros. Hoje sabemos que o número de filhotes faz parte de duas estratégias de perpetuação de espécie que independem do hábito alimentar. Na primeira, as mães têm filhotes em grande número, sendo que poucos chegarão na vida adulta. Na segunda, a mãe tem poucos filhotes, e se esforça para que todos atinjam a idade da reprodução. Um elefante herbívoro, por exemplo, tem apenas um filhote por vez, ao passo que uma armadeira predadora tem vários.<br />Epimeteu, por não refletir, termina a sua distribuição das qualidades, mas deixa de lado um ser: o homem. O que sobrou para o homem? Nada, permanecera nu e sem defesa. Estava se aproximando a hora determinada para que o homem chegasse à luz e Prometeu aparece para fazer sua parte. Não encontrando outra solução, Prometeu é obrigado a roubar o fogo de Hefesto e a sabedoria de Atena, deusa de olhos verde-mar. De posse dessas duas qualidades, o homem estava apto a trabalhar o fogo nas suas diversas utilidades, e assim garantir a sobrevivência. Porém, a qualidade necessária para os homens se relacionarem entre si se encontrava nas mãos de Zeus: a política. E era proibido a Prometeu penetrar na Acrópole de Zeus, vigiada por temíveis sentinelas.<br />Protágoras termina o mito dizendo que consta ter sido Prometeu morto por este crime, o que não é possível, pois Prometeu era imortal. As diferenças entre as narrativas de Platão e Hesíodo são mais visíveis que as semelhanças. Por exemplo, em Hesíodo o trabalho é um castigo do Crônida aos mortais, o mito platônico nos leva a crer que o trabalho é uma dádiva. O nascimentos dos mortais em Hesíodo é bem anterior a Platão, se tomarmos como referência o roubo do fogo, que em Hesíodo se dá depois do nascimentos dos homens. Em Ésquilo, o homem vive por séculos sem conseguir a aptidão necessária, antes de receber o fogo como presente. Isto representa a dificuldade de sobrevivência do homem nas eras primitivas, ou a miséria do homem na Idade do ferro, como afirma Junito Brandão. Em Platão o homem já obtém a capacidade de trabalhar o fogo desde a sua criação. A miséria em Platão consiste na falta da arte política, indispensável para a fortificação dos homens em cidades e a instituição de um governo virtuoso baseado na justiça.<br />Diz Platão que não demorou aos homens usarem a sabedoria herdada de Atena para desenvolverem uma linguagem, construir casas e roupas e procurar alimentos. Porém, não tendo política, não conseguia vencer as feras nem guerrear, pois não tinham a arte militar, parte da política. E, ao tentar se reunirem em grupo, a anarquia reinante fazia de todos inimigos e vítimas de querelas militares. Os homens então passaram a se destruir, vítimas das feras e deles próprios.<br />Zeus, preocupado com o iminente desaparecimento dos homens, mandou seu filho e mensageiro Hermes distribuir pudor e justiça, para que pudessem se relacionar e subsistir. O pudor e a justiça deveriam, ao contrário das demais artes, serem distribuídos igualmente a todos os homens, e aqueles que não a tivessem deveriam morrer, por estarem contra o princípio unificador da sociedade.<br />Protágoras exibe o seu modo de ver do mito de Prometeu - o qual fiz um resumo, para responder a questão de Sócrates sobre a virtude, se ela pode ou não ser ensinada. Sócrates, neste diálogo, fora levado por Hipócrates na casa de Cálias, o belo. Hipócrates queria desfrutar dos ensinamentos do famoso Protágoras, usando a influência de Sócrates. Protágoras, estrangeiro em Atenas por ser de Abdera, prometia, em troca de dinheiro, tornar o jovem mais sábio e com a alma mais rica. Protágoras, como sofista, exercia uma espécie de ensino superior, no qual os jovens bem nascidos de casas abastadas despontavam para exercer atividades de liderança na pólis. Protágoras generaliza a atividade do sofista, enxerga como sofistas figuras diversas: Hesíodo, Homero, Simônides, Orfeu, Pítocles e outros (Protágoras, 316d). Ao mesmo tempo se distancia dos outros sofistas contemporâneos - como Hípias - ao dizer que não ensinará aos jovens as artes da astronomia, geometria, música e cálculo. (Protágoras, 319 a) O jovem aprendiz, ao iniciar seus estudos superiores, é reconduzido a estas artes, que já estudou. No método de Protágoras, o aprendiz é levado diretamente ao assunto que o interessava quando procurou o mestre: a prudência nas relações familiares que o deixará mais apto para os assuntos da cidade.<br />Bem administrar a casa (economia), e o Estado (política), resumiam a virtude política, objeto dos ensinamentos dos sofistas. Para isso o jovem era treinado a falar bem sobre qualquer assunto, e Protágoras, como mestre e grande retórico, orgulha-se disto. Sócrates, pelo contrário, admite sua inaptidão nos debates constituídos de longos períodos, preferindo ao invés destes a investigação em falas curtas. Por duas vezes ameaça interromper o embate com Protágoras se o mesmo não concordar com seus termos. Num dado momento do diálogo, os ouvintes intercedem, e na parte final as falas de Sócrates constituem longos períodos, enquanto Protágoras apenas dá respostas curtas. Mas esta não é a única troca de papéis, como veremos.<br />Sócrates apresentara a Protágoras, como principal objeção à impossibilidade do ensino da virtude o fato de homens virtuosos, como Péricles, não terem tido filhos virtuosos. Como ficaria o mito de Protágoras então, se ele diz que a virtude é necessária e comum a todos? Protágoras não pretendia o seu mito verdadeiro, ele é um instrumento escolhido, dentre outros, para expor a sua teoria. Para Protágoras todos os homens são capazes de alcançar a virtude, mas somente pelo estudo e aplicação. Ninguém puniria as pessoas que tem algum defeito sem ter culpa - como a feiúra ou a baixa estatura - , mas alguém que se apresenta injusto é punido. Para ser justo, o cidadão grego era ensinado desde pequeno a ser racional e a caminhar para a virtude, pelos pais, que procuram a cada ato demonstrar as virtudes como justiça, temperança e santidade. Na formação das crianças, também é usado o exemplo de heróis virtuosos do passado, cantado em poemas como os de Homero. Se a criança aprende, tudo o bem, senão, ela é levada a se corrigir através da ameaça de castigos violentos. Isto é explicado por Protágoras com o exemplo dos tocadores de flauta. A virtude é generalizada, imaginemos que tocar flauta também o fosse: é de se esperar que os filhos dos melhores tocadores de flauta fossem melhores também? Não necessariamente. Todos saberiam tocar flauta minimamente, mas os grandes talentos nasceriam em famílias diferentes.<br />Fica assim respondida a questão de Sócrates, que ficou muito impressionado com a sabedoria de Protágoras: todos teriam virtude em potência, mas somente os mais aplicados a consegueriam. Sócrates se refere a Protágoras com o seu maior elogio a alguém: “o homem mais sábio de nosso tempo”. É neste diálogo também que o oponente de Sócrates apresenta objeções mais sólidas, em outros diálogos os interlocutores geralmente se limitam a concordar. A resposta agradou a Sócrates, mas ainda resta uma dificuldade pendente: a definição de virtude. Esta dificuldade irá permanecer até o fim do diálogo, e ela também se encontra em Mênon. Sócrates chegará a cinco exemplos claros de virtude - o que será aceito por Protágoras-; que são: a sabedoria. a temperança, a coragem, a justiça e a santidade (394 a); e a uma definição: a virtude é o conhecimento. O problema é saber se cada uma destas partes da virtude são semelhantes entre si e a virtude é Una, ou se cada uma das cinco partes é diferente. sendo virtude ao seu modo.<br />Todo encadeamento do diálogo Mênon parte da recusa de Sócrates em aceitar a definição de virtude como virtude política, dada pelos sofistas. Para Sócrates, a virtude é única, e tem um caráter geral em virtude do qual as virtudes são virtudes. O efeito-tremelga socrático levará Mênon a reformular várias vezes sua definição de virtude. Sócrates procura distinguir se a virtude é uma ciência, para saber então se ela pode ser ensinada. Recusa a opinião de Mênon, de ser a virtude procurar o bem com justiça, pois a justiça é só parte da virtude. Para Sócrates, a virtude para ser útil e boa deve ser exercida com a razão, o bom-senso. Coragem sem raciocínio não passa de audácia, assim como a temperança não vale muito sem reflexão. A virtude, como qualidade útil da alma, é então definida como a razão, no seu todo ou em parte. ( Mênon, 89). Mas Sócrates e Mênon verificam que os mestres da virtude não concordam entre si, pois ora dizem que a virtude é ensinável, ora não.<br />Como Sócrates demonstrou com o escravo, no episódio dos quadrados, a reminiscência oferece a base racional para transformar as opiniões certas em ciência através do encadeamento de umas com as outras por um raciocínio de causalidade. (Mênon, 98) Como só o que é ensinável é ciência, e a virtude não é ensinável ( para Sócrates ela é privilégio de poucos ), ela não é ciência. Porém, ela nos guia retamente, então ela é posta como opinião certa, que dá o mesmo resultado da ciência. Os virtuosos acertam sem saber, por isso devem ser chamados de divinos. Os políticos não conseguem formar outros iguais a eles. A virtude, portanto, é a razão, mas exercida por favor divino. A base é o mito, é necessário receber um bom quinhão das moiras para poder agir retamente, conforme a razão e o raciocínio ditam. Platão nos leva a crer que quem age com virtude - elevando assim o seu espírito- é recompensado. Um exemplo dito está no final de A República com o mito de Er. No Mênon está presente esta predestinação do bom quinhão da divindade - pois a virtude é uma ligação dos homens com os deuses -, na página 81, quando Sócrates expõe sua admiração pelo misticismo oracular e pelos versos de Píndaro, que afirma que Perséfone, esposa de Hades, forma reis gloriosos e homens poderosos com a alma daqueles que pagaram os pecados de outras vidas.<br />No mito de Protágoras, a virtude é presente divino, mantenedor da coesão social, mas só alcançável pela prática e estudo aplicado. Em Mênon ela é a razão (agir com bom senso) e exercida pelo favor divino, como determina o destino e as moiras. O Destino (fado) é regido pelas moiras, que para Ésquilo são mais poderosas que o próprio Zeus, pois ele não poderia escapar da fortuna que lhe foi preparada. (Prometeu Acorrentado, episódio II) Sócrates, explicando o poema de Simônides a Protágoras, demonstra que é difícil, porém possível se tornar virtuoso, ao passo que permanecer virtuoso é só para os deuses. No Protágoras ocorre então um elogio de Sócrates à razão, ao logos enquanto arte de medir, ou proporção e raciocínio aritmético. Para ele, é impossível o homem querer viver o mal conhecendo o bem, ou querer viver o desagradável se pode viver o agradável. Alguns prazeres, porém, causam danos posteriores, como os excessos de comidas, bebidas ou amor. Mas ao mesmo tempo algumas dores imediatas ocasionam ganhos futuros, como ser medicado ou praticar exercícios físicos. O que está em questão para o homem, no seu âmbito ação, é medir os prazeres e os sofrimentos de uma determinada situação para poder escolher o melhor caminho. Isto, muitas vezes, pode ser a salvação da vida, ou no mínimo ocasionar uma vida agradável. Sócrates demonstra que se você pode escolher o melhor, escolherá, e que as ações erradas decorrem apenas ignorância.<br />Sócrates admite então que se a virtude, como escolha acertada, depende apenas do conhecimento, ou é o conhecimento, ela pode ser ensinada, enquanto Protágoras parece defender no final do diálogo que a virtude pode ser tudo, menos o conhecimento. É devido a esta inversão de papéis, a qual já nos referimos antes, que Sócrates brinca dizendo não ter restado pedra sobre pedra da investigação. Vale lembrar que no jogo da dialética, uma vez assentado um princípio, não era permitido voltar atrás. A confusão talvez tenha acontecido por culpa de Epimeteu, que já havia se esquecido dos homens antes. Durante a investigação de Sócrates e Protágoras no decurso do diálogo, alguma coisa se perdeu. Seria necessário voltar tudo, e desvelar a questão procurando saber o que é a virtude em si, numa definição universal, o que é essencial para Sócrates. Sócrates toma Prometeu, benfazejo dos homens, como modelo no mito, e se dispõe a examinar novamente a questão. De fato, muitos diálogos platônicos estão envoltos nesta temática do ensino e prática da virtude. Alguns diálogos são ditos aporéticos, por não apresentarem uma solução, enquanto outros, como A República, oferecem algumas respostas mais exatas, no caso, um tratado sobre a educação de modo a selecionar os melhores, que conseguiriam experimentar a virtude e governar a cidade, fazendo dela justa. O importante no método socrático é que, como ele afirma em Mênon, leva quem o pratica a um questionamento constante, a um querer saber, ao auto-conhecimento e ao trabalho, ao passo que o método sofístico leva o homem à preguiça e à indolência.<br />BIBLIOGRAFIA<br />• 1. Brandão, Junito de Souza. Mitologia grega. Volume 1. Editora vozes.<br />• 2. Ésquilo, Prometeu acorrentado. Editora vozes<br />• 3. Hesíodo. Os trabalhos e os dias. Tradução de Mário da Gama Khuri<br />• 4. Hesíodo, Teogonia. Tradução de Mário da Gama Khuri.<br />• 5. Platão, Mênon. Editora globo. Tradução de Jorge Paleikat.<br />• 6. Platão, Protágoras. Editora Globo, Tradução de Jorge Paleikat.<br />Fonte: http://www.consciencia.org/platao_protagoras.shtml<br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />A Electra de Eurípedes - uma jóia clássica<br />Clovis Luiz da Silva<br /><br />A Grécia é o berço de toda a filosofia que hoje conhecemos. E é o seu período clássico a fonte original da manifestação da racionalidade humana, quando os primeiros pensadores substituíram o domínio dos mitos pelo domínio da razão. Obviamente não se tratou de uma ruptura radical, instantânea, como se os gregos, reunidos em uma assembléia, houvessem dado fim, por um decreto, à antiga forma de explicar o mundo e a vida. A superstição, o misticismo, o medo pelo oculto, foram gradativamente cedendo espaço e sendo substituídos por uma nova forma de compreender as manifestações da natureza na vida dos homens e suas respostas a essas manifestações. O que significa dizer que o pensamento mítico e o racional coexistiram por um considerável período de tempo na sociedade grega.<br /><br />Essa mudança gradual no modo de pensar grego se explica pela evolução mesma das relações sociais do povo, acrescida da conseqüente complexidade que a partir delas se produziu, como por exemplo, o crescimento econômico das cidades, o aumento nas polis de uma classe média, e uma quase natural descrença nos antigos mitos e feitos atribuídos aos deuses do Olimpo. A tarefa filosófica dos pré-socráticos e a chegada da democracia, ambos no séc. V a.C, consolidaram esse momento de discussão sobre a pertinência das antigas idéias.<br /><br />Os filósofos pré-socráticos consolidaram a passagem da consciência mítica e religiosa para a consciência racional e filosófica a partir de suas indagações sobre o que é o ser. O que é uma coisa e por que essa coisa muda, desaparece, e depois volta a ser, permanecendo a Natureza exatamente como sempre foi? Foi para explicar essas perguntas que os pré-socráticos procuraram um princípio único na Natureza, negando portanto as explicações míticas e supersticiosas até então em vigor, inaugurando de vez a Era da Razão. Por isso não é de se surpreender que a literatura grega viesse a sofrer grande influência dessa mudança de concepções sobre o estado das coisas, sua origem e fim, e como o homem se inclui nelas enquanto ser mutante, variante.<br /><br />Apenas para efeito didático, há que se fazer a distinção entre os períodos antigo e ático da literatura grega. No período antigo, anterior a 475 a.C., predominaram as obras épicas e líricas. No período ático, (referência à Ática, região de Atenas), de 475 a 300 a.C., predominaram o drama e a prosa. É no período ático que nascem os grandes poetas trágicos, Sófocles, Ésquilo e Eurípedes, que vão marcar nome na História com suas grandes tragédias.<br /><br />Esses poetas trágicos manifestaram em suas obras a mudança no modo grego de pensar, catalisando em suas peças o pensamento religioso, político, filosófico e estético do mundo de então.<br />Por que, é de se indagar, esses poetas foram denominados trágicos? O que vem a ser a tragédia grega? Qual a relação da filosofia com a tragédia? Como Eurípedes conseguiu imprimir em suas tragédias, especialmente Electra, as novas cores do pensamento filosófico grego? São essas perguntas que procuraremos responder a seguir.<br /><br />A tragédia Grega.<br /><br />Uma definição clássica, talvez a mais conhecida, de tragédia, vem de Aristóteles, segundo quem a tragédia é “uma representação imitadora de uma ação séria, concreta, de certa grandeza, representada, e não narrada, por atores em linguagem elegante, empregando um estilo diferente para cada uma das partes, e que, por meio da compaixão e do horror provoca o desencadeamento liberador de tais afetos”.<br /><br />É a Katarsi, ou seja, a purgação das emoções geradas nos espectadores pelos dramas da vida do herói, o principal objetivo de uma peça trágica. O centro da tragédia é o Herói e suas desventuras. O herói trágico é sempre um valente, um homem honrado e de bem, sempre cercado de glórias, que se vê repentinamente envolto em tramas surpreendentes, absurdamente permitidas pelo destino, tragando com desgraças o homem, deixando-o à mercê de fatos trágicos, geralmente marcados por separações definitivas e mortes inevitáveis de entes queridos. A dor do herói e sua completa infelicidade mesmo diante de circunstâncias aparentemente capazes de lhe garantir uma vida de plenitude e gozo, são as marcas mais contundentes da tragédia, o centro emocional a partir do qual toda a trama se desenvolve.<br /><br />A tragédia grega representa já a passagem do pensamento mítico para o racional, a partir do que se percebe que os poetas trágicos, em graus, tendem a abrir mão dos antigos mitos, das velhas superstições, deixando mesmo de lado as ações dos deuses gregos como elementos explicativos e determinantes dos fatos na vida dos homens. Todavia, há que se fazer a seguinte ressalva: na literatura houve uma coexistência parcial entre a nova e a velha mentalidade grega, percebida, por exemplo, nas obras de Ésquilo, que, tomando como ponto de partida um evento lendário qualquer revestiu-o de um caráter profundamente religioso, fazendo a distinção entre os dois mundos apenas quanto ao conteúdo, deixando intacta a forma de apresentar os conflitos entre os deuses e os homens, ainda que quisesse afirmar a supremacia do mundo racional em relação ao mundo místico; assim também nas obras de Sófocles, quando diz que homens e deuses andam em mundos distintos, conflitantes, mas necessários à existência de ambos, cuja união é “o vislumbre das profundezas sombrias da vida, através das quais nós homens andamos, e a diáfana alegria com a luz, que apesar de tudo os deuses estenderam sobre este mundo.” Em Sófocles o distanciamento dos deuses não é tão radical nem definitivo.<br /><br />Já em Eurípedes nota-se uma distinção em relação aos outros dois poetas trágicos, que é a diminuição qualitativa das ações divinas. Nas peças euripidianas os deuses não possuem a mesma relevância observada em seus antecessores. Existe uma consciente retirada do sagrado em relação aos mitos e a saída de cena dos deuses enquanto elementos determinantes do que deve acontecer, ou seja, da condição de manipuladores da vida e do destino dos homens, marca maior da literatura grega no período homérico.<br /><br />Eurípedes nasceu em Salamina no ano de 480 a.C., sendo o mais novo dos três poetas trágicos. Denominado por Aristóteles como o mais trágicos de todos os poetas, Eurípedes escreveu inúmeras peças, tendo chegado até nossos dias apenas 18, dentre as quais citamos Alceste, Medea, Hipólito, Bacantes, Ifigênia em Táurida, Ifigência em Áulida, Helena, Orestes, Andrômeca, Héracles, As mulheres de Tróia, Íon, As fenícias, Cíclope, Heracléade, As suplicantes e Electra.<br /><br />A peça Electra é a versão euripidiana da vingança final de Orestes, filho de Agamenon, rei de Micenas, contra os assassinos de seu pai: a própria mãe e Egisto. Na obra se percebe claramente que Eurípedes absorveu muito das novas idéias vigentes no séc. V. a.C., a partir das quais o pensamento grego se torna preso às especulações filosóficas. Ao retirar das ações divinas, dos mitos e das lendas, o poder de explicar o mundo, o universo, os pensadores pré-socráticos e especialmente os sofistas, influenciaram a produção de Eurípedes de tal maneira, que em suas obras ele substituiu os deuses tradicionais por meras abstrações: no lugar de Zeus, Ar, no lugar de Apolo, Éter, no lugar de Hera, Razão...<br /><br />Electra nos apresenta essa mudança de foco. O eixo a partir do qual as ações humanas giram se transfere da vontade dos deuses à instância dos sentimentos oriundos do coração, que em Eurípedes pode ser identificado não apenas como a sede das emoções mas também como um centro volitivo e de atividade intelectual. Ou seja, o coração é sinônimo de alma, pois será a paixão o elemento movedor das ações em Electra.<br /><br />Resumo da tragédia Electra, de Eurípedes.<br /><br />O camponês, com quem a princesa Electra foi obrigada a casar pelos assassinos do pai, Egisto e Clitemnestra, expõe a humilhante situação de Electra. Pobremente vestida, ela entre carregando um pote de água, e agradece a amizade e apoio do camponês. Orestes e Pílades chegam, acompanhados de servidores, e assistem escondidos Electra lamentar a morte de Agamêmnom. O coro chega e anuncia a aproximação da festa de Juno; Electra diz que não comparecerá e que se sente abandonada pelos deuses.<br /><br />Electra descobre Orestes escondido. Ele finge ser amigo dele próprio e procura notícias da irmã. Electra relata seu sofrimento e o que ocorre atualmente no palácio. O marido de Electra reaparece e oferece hospitalidade aos visitantes; Orestes reconhece perante Electra seu valor. O coro canta o escudo de Aquiles e a seguir prevê a morte de Clitemnestra.<br /><br />Um velho servidor de Agamenon vem trazer mantimentos para ajudar Electra e o marido a hospedarem os visitantes. Ele reconhece Orestes e revela a Electra que ele é seu irmão ausente. Os três planejam a vigança e o velho sugere que Orestes e Pílades entrem no palácio como estrangeiros, durante um sacrifício oferecido por Egisto. Electra anuncia que preparará a morte da mãe e manda-lhe a falsa notícia de que deu à luz uma criança. Todos saem depois de orar aos deuses.<br /><br />Electra e o coro ouvem gritos. Um servidor de Orestes aparece, anuncia-lhes a morte de Egisto e descreve os acontecimentos. Canto e dança triunfal do coro e de Electra. Orestes e Pílades voltam, trazendo o corpo de Egisto. Electra fala ao Egisto morto o que não pudera falar ao vivo, e<br /><br />Orestes vacila ao ver que a mãe se aproxima. Electra instiga-o utilizando o oráculo de Apolo como argumento. Orestes cede, mas deixa bem claro que vai matar a mãe porque é o desejo dos deuses. Esconde-se na casa de Electra, e logo depois chega Clitemnestra.<br /><br />Clitemnestra e Electra discutem, e a mãe mostra uma certa ponderação e algum arrependimento; a filha, revela-se dominada por um irreprimível desejo de vingança. Clitemnestra entra, finalmente, na casa. O coro relembra a morte de Agamêmnon. Ouve-se a súplica de Clitemnestra, antes da morte, e a seguir Orestes e Electra saem da cabana. Lamento alternado Orestes/coro e Electra/coro. Orestes mostra-se horrorizado com o que fez a mando dos deuses.<br /><br />Surgem os Dióscuros Castor e Pólux, deuses ex-machina; Castor ordena a Orestes casar Electra com Pílades e depois deixar Argos. Avisa-o que as terríveis Erínias irão persegui-lo, que deverá submeter-se ao tribunal em Atenas, e que considera Apolo culpado de tudo, devido ao oráculo proferido; finalmente, menciona que Helena jamais esteve em Ilion. Orestes e Electra se despedem.<br /><br />A partir da leitura do texto de Electra podemos perceber nitidamente a mudança no comportamento dos personagens, que agora obedeciam às variações de seus sentimentos, às paixões que dominavam seus corações, e não aos desígnios dos deuses, numa postura bem diferente daquele determinismo que caracterizou a literatura grega em tempos homéricos, e, ainda que em menor escala, algumas obras de contemporânes de Eurípedes.<br /><br />Por que tal mudança? Ora, se os filósofos questionaram os antigos mitos, as ações dos deuses e as lendas enquanto definidores do modo de pensar dos gregos, trocando-os por especulações filosóficas, é de se esperar que tal mudança na disposição mental afetasse a literatura, influenciando o pensamento de Eurípedes e determinando que seus personagens igualmente se mostrassem muito mais presos às suas inquietações, motivações e cogitações íntimas, adotando atitudes mais humanas e naturais, em oposição à simples obediência aos oráculos divinos. Anular a vontade humana para cegamente ceder à divina, não questionar os oráculos, o Destino, não mais seria uma atitude normal, regular. E se Orestes argumentou que somente aceitou matar a mãe em obediência ao oráculo de Apolo, tal fato não configura contradição insuperável, uma vez que facilmente também se pode argumentar que ele fora convencido duplamente: primeiramente por sua própria consciência de filho, que sabia ser necessário vingar a morte do pai, cuja usurpação do trono e a desonra como conseqüência, somente poderiam ser reparadas com a morte dos usurpadores; depois, não resistiu às instigações de Electra, que como figura central da tragédia não arredou um milímetro sequer de sua vontade em vingar a morte do pai. Se Orestes aparentemente titubeou, Electra resistiu a qualquer argumentação contrária à sua disposição férrea da matar a própria mãe e Egisto. Ela não atribuiu a nenhum deus, a nenhum oráculo, a necessidade de ser morta Clitemnestra.<br /><br />O fragmento a seguir com o diálogo entre Orestes e Electra revela como a dominava a irredutível conviccção de que somente matando a mãe e seu cúmplice no assassínio de Agamêmnon seria resgatada a honra do pai:<br />“- E tu, prestando-lhe auxílio, terias coragem de matar tua mãe?<br />- Sem dúvida! E com o mesmo ferro com que meu pai foi ferido.<br />- Poderei dizer isso a Orestes? Tua resolução é inabalável?<br />- Sim! Ainda que eu tenha de morrer, logo após o derramamento do sangue de minha mãe!”<br /><br />Orestes e Electra executam o plano de matar Egisto e Clitemnestra. A saga dos Átridas seguiria adiante. Desta vez, porém, não teríamos mais mortes, e sim vidas seguindo o seu Destino: Orestes enfrentando julgamento por sua ações e Electra sendo desposada por Pílades. Eurípedes deixou incontestáveis provas de que os homens não podem se submeter cegamente aos desígnios dos deuses, uma vez possuindo uma Razão que a tudo questiona. Foi no autor de Electra que a seguinte mudança se mostrou patente: houve um tempo em que os deuses decidiam a sorte dos homens, mas a partir do momento em que a razão venceu o mito e a especulação gerou dúvidas, os homens declararam que os mitos, as lendas, os deuses, poderiam até continuar existindo no imaginário do povo e influenciar determinados comportamentos, porém a resposta certa para as situações limites da vida humana deveria surgir na mente e no coração dos próprios humanos.<br /><br />Clóvis Luz da Silva<br />Publicado no Recanto das Letras em 27/09/2006<br />Fonte: http://recantodasletras.uol.com.br/teorialiteraria/250681<br /><br />ELECTRA: MITO E TRAGÉDIA<br />ANTONIO JARDIM<br />Introdução<br />O propósito deste trabalho que aborda prioritariamente a Electra de Eurípedes é, além de desenvolver uma tentativa de compreensão do texto em questão, poder experimentar uma tentativa de compreensão do texto em relação à dois conceitos fundamentais, que ao longo do nosso estudo acerca da semiologia do mito estiveram sempre em posição de destaque: um, o próprio conceito de mito; o outro o conceito de tragédia. Esses dois conceitos centrais são, a nosso ver aqueles que podem possibilitar uma compreensão da Electra num contexto mais amplo e mais interessante que o de mais uma mera história. Cremos mesmo que o fato dessa obra permanecer ainda hoje dentro da tradição dramática ocidental, se deva mesmo a que esteja contextualizada por uma compreensão capaz de tomar as dinâmicas expressivas de mito e tragédia como referenciais e, desse modo, se fazer, também ela Electra, de alguma forma, referencial.<br />Ora, uma tragédia da dimensão artística e existencial de Electra, pode ser lida das mais diversas maneiras e com as fundamentações mais várias, é óbvio, e assim tem sido ao longo dos tempos. Isso, ao mesmo tempo que nos facilita, nos dificulta, na empresa de trabalharmos não só sobre este, bem como sobre qualquer texto desta dimensão. Pelo lado da facilidade, temos descortinadas diante de nós uma série de informações relativas ao texto as quais podemos utilizar visto que se encontram à nossa disposição . Essa facilidade é a um tempo a maior dificuldade: como dizer algo a respeito de uma obra acerca da qual, ao menos em princípio, quase tudo já foi dito? Como perceber novos sentidos onde, ao menos aparentemente, todos já se apresentaram? A dificuldade de lidar com este tipo de questão emperrou por algum tempo este trabalho e, ainda que isso não possa se configurar relevante para quem neste momento possa estar iniciando a sua (do trabalho) leitura, para nós é importante aqui falar a respeito. Um pouco talvez ao modo do mito, falar sobre o problema parece ajudar a encontrar alguma possibilidade mesmo que esta possa não ser exatamente uma nova possibilidade. Por fim, deixando de lado o pavor advindo da possibilidade da impossibilidade da empresa, resolvemos toma-la de frente. Encara-la como desafio, significa: não mais fiar-se, tirar o fio, instigar, propor um combate, quase uma guerra -o início de todas as coisas, já dizia Heráclito de Éfeso. Nesse sentido enfrentar as impossibilidades deste trabalho é já de si des-afio.<br />Ao se abordar Electra e tentar dizer algo de novo, na proposta do novo reside a proposição de des-afiar-se, desenlear-se de uma abordagem de costume, de uma abordagem fundada no senso comum e no bom senso. Disso podemos depreender que não há a pretensão desta abordagem se localizar numa comunidade de sentidos, em geral e em primeira instância atribuídos à obra em questão, bem como pode-se talvez deduzir a ausência de um mínimo de bom senso de nossa parte.<br />A presença e a exigência do novo tem, para nos um sentido de rompimento com o bom senso e com o senso comum. É essa a nosso ver a possibilidade deste trabalho ter alguma relevância tanto para quem o está escrevendo quanto para quem, eventualmente, possa vir a lê-lo. Desse modo, uma abordagem nova é já de si uma tentativa de romper com a cristalização de alguns conceitos, com algumas idéias nas quais estão assentadas uma boa parte das abordagens da tragédia. Romper com a cristalização é: romper com aquilo que tem face precisa e é capaz de refratar, quer dizer: tem o mero poder de modificar as direções sem que, no entanto, nada se altere substantivamente. Romper a precisão nos diz: romper soluções, romper regularidades e invariâncias, romper com as representações facilitadoras, sendo assim, não se trata, é preciso destacar, de mais uma tentativa de re-condução ou re-definição dos rumos de um acercamento tradicional da tragédia, mas trata-se sim de envidar esforços numa outra tentativa; romper com a precisão é, todo o tempo, des-afio, significa: não é mudar o fio de lugar, mas é, como foi dito, des-afiar o fio cortante da prescrição apriorística. No fim de contas é a tragédia, ela mesma, que em última instância se vê constrangida a dizer o que outros pensaram, e o que é pior, sem ter nada além da substantividade do seu texto para opor.<br />Uma outra abordagem, diversa dos chavões psicanalíticos por exemplo, é o apresentar-se de outras relações, e implica que nesse apresentar-se seja imperiosamente necessária a exigência de um des-atrelamento de um sistema apriorizante e caduco. Numa outra abordagem, a palavra outra, é que impõe o novo como constância do libertar-se dos significados já pre-supostos, pela operação de um re-articular-se com o mundo do texto em questão a partir da possibilidade de viver a con-vivência da superação constante de limites, quer dizer: instituição de uma dinâmica de sentidos. Para tal, faz-se, no nosso entender, necessário que se invista na busca do princípio do fio para, só então, des-fiá-lo, des-afiá-lo. Quando não se tem como afiar o fio, é aí mesmo que se estabelece, se instaura des-afio.<br />Desta forma, o desafio é problematizar Electra a partir das seguintes questões: Porque é legítimo se afirmar a presença de uma estrutura mítica em Electra?<br />Quais as condições de possibilidade do mito, de que forma elas incidem nesta obra de Eurípedes?<br />Porque é legítimo se dizer que Electra é uma tragédia?<br />E, conseqüentemente, que condições de possibilidade vigem no texto em questão que nos permitem afirmar isso?<br />Onde procurar senão no texto mesmo e nas contingências de vigência deste, os índices dessas condições?<br />É, dentro das nossas possibilidades, nesse percurso que a presente tentativa de estudo pretende se colocar.<br />Condições de possibilidade do mito<br />Dentro do percurso por nós traçado, tornou-se indispensável desenvolver uma pequena reflexão sobre as condições de possibilidade de mito ser, de mito de dar. Para tal nos baseamos em três autores e deles tentamos retirar, sem nenhum tipo de comprometimento com suas escolas, aquilo de que necessitamos para desenvolver nosso trabalho.<br />O primeiro desses autores é Mircea Eliade, para o qual o mito relata:<br />"um acontecimento ocorrido num tempo primordial -o tempo fabuloso do "princípio"-, o mito narra como uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento. É sempre, portanto, a narrativa de uma "criação": ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que aconteceu efetivamente, do que se manifesta plenamente." 1<br />O mito seria a partir desta acepção uma forma de viver e de pensar que tenta alcançar a totalidade, e que tem por objetivo sempre o experimento dessa totalidade. Além disso é decisivo destacar na concepção de Eliade a dimensão temporal do mito, o tempo do mito é um tempo primordial, dessa forma tempo e espaço no mito são apenas alcançados pela memória, que desse modo se configura como integrante essencial do mito. É a memória que, em sua dinâmica, possibilita a gama vária das versões. Mito assim, via memória, atualiza um tempo e um, conseqüente, espaço primordiais.<br />Num outro sentido Max Müller, citado por Cassirer nos diz:<br />"Tudo a que chamamos mito, é, segundo deu parecer, algo condicionado e mediado pela atividade da linguagem: é, na verdade, o resultado de uma deficiência linguística originária, de uma debilidade inerente à linguagem. Toda designação linguística é essencialmente ambígua e, nesta ambigüidade, nesta "paronímia" das palavras, está a fonte primeva de todos os mitos." 2<br />Com Müller nos deparamos aqui com o que se poderia chamar uma outra dimensão do mito, este é compreendido como integrante essencial da linguagem. Como uma "deficiência" da linguagem, só que essa, por assim dizer deficiente é, por outro lado, uma dimensão vigorosa desta. Sua debilidade se configura como seu maior poder: o de não se deixar aprisionar nas malhas da univocidade.<br />Mais adiante Müller volta a dizer:<br />"A mitologia é inevitável, é uma necessidade inerente à linguagem, se reconhecemos nesta forma externa do pensamento: a mitologia é, em suma, a obscura sombra que a linguagem projeta sobre o pensamento, e que não desaparecerá enquanto a linguagem e o pensamento não se superpuserem completamente: o que nunca será o caso." 3<br />A dinâmica mito e linguagem na verdade acaba por demonstrar, na concepção de Müller, "o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento". Ao contrário do que afirma Cassirer não vemos na concepção de Müller o mito como uma "obscura sombra que a linguagem projeta sobre o pensamento", Müller apresenta, a nosso ver, o mito como ocupante dos vãos, dos espaços não pré-enchidos pelas realizações. Assim, o mito é transcendente e capaz de prorromper pelos interstícios deixados pela impossibilidade de relacionamento mecânico entre linguagem e pensamento. Quer nos parecer que o problema de Cassirer em relação à compreensão da concepção de Müller diz respeito a acepção negativa em que toma "obscura sombra". No entanto, cremos que a obscura sombra que a linguagem exerce sobre o pensamento não deva ter sentido necessariamente negativo. A obscura sombra diz, na verdade, de um relacionamento de presença e ausência, significa: o mito, mesmo quando inexplícito, não deixa de estar presente, sua presença é a um tempo ausência, o mito fala mesmo ausente, dispõe de uma densidade própria do ausente, do inexplicitado nas realizações. Ele vive e se configura realidade na impossibilidade de um absoluto pre-enchimento da realidade a partir, e por parte, das realizações. Aliás no final de seu "Linguagem e Mito" o próprio Cassirer parece concordar com Müller quando afirma: "o mito recebe da linguagem, sempre de novo, vivificação e enriquecimento interior, tal como, reciprocamente, a linguagem os recebe do mito".<br />Por fim chegamos a Levi-Strauss, e é com ele que passamos a pensar o modo de relacionamento de mito e linguagem:<br />"o mito faz parte integrante da língua; é pela palavra que ele se nos dá a conhecer, ele provém do discurso... Se queremos perceber os caracteres específicos do pensamento mítico, devemos pois demonstrar que o mito está, simultaneamente, na linguagem e além dela. Esta nova dificuldade não é, também ela, estranha ao lingüista: a própria linguagem não engloba níveis diferentes? Distinguindo entre a língua e a palavra, Saussure mostrou que a linguagem oferecia dois aspectos complementares: um estrutural, o outro estatístico; a língua pertence a um domínio de um tempo reversível, e a palavra, ao domínio de um tempo irreversível. Se já é possível isolar estes dois níveis na linguagem, nada impede que possamos definir um terceiro.<br />Acabamos de definir a língua e a palavra por meio dos sistemas temporais aos quais cada uma pertence. Ora, também o mito se define por um sistema temporal que combina as propriedades dos dois outros. Um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos passados: "antes da criação do mundo", ou "durante os primeiros tempos", em todo caso "faz muito tempo". Mas o valor intrínseco atribuído ao mito provém de que estes acontecimentos, que decorrem supostamente em um momento do tempo, formam também uma estrutura permanente." 4<br />Na sua caracterização do mito Levi-Strauss, avança em relação a Max Müller, sem dúvida já que além de compreender o mito como presença constante na linguagem, demonstra que além disso, essa presença pode ser tanto estrutural quanto estatística. O mito pode ainda apresentar um terceiro nível, segundo Levi-Strauss:<br />"Esse terceiro nível possui também uma natureza linguística, mas é, entretanto, distinto dos outros dois... A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na história que é relatada. O mito é linguagem; mas uma linguagem que tem lugar num nível muito elevado, e onde o sentido chega se é lícito dizer a decolar do fundamento linguístico sobre o qual começou rolando." 5<br />Assim o mito se caracteriza por um modo peculiar de presentação. Ele é latente em todos os proferimentos do mundo e se situa em relação ao mundo das realizações, de certa forma, como o outro desse mundo, o mito é condição de possibilidade que por contradição instaura o outro, ele estabelece sempre e mais um espaço de proferição a cada proferição. Ele é, no seu modo de presentificar-se, presentificador de uma estrutura sempre possível de se manifestar, uma vez que é revelador de um novo limite no espaço do discurso, uma vez que ele se configura realidade justamente a partir da impossibilidade do discurso tudo dizer. Ele é diferença virtual presente na tensão característica entre qualquer instância da realidade e a realidade mesma. Ele é o inesperado que intermitentemente permite e conduz à percepção da experiência da espera. É intermitência. O mito é um tipo especial de síntese que não é capaz de dar conta da resolução de uma contradição, ao contrário, o mito é síntese-tensão na medida em que se localiza num espaço onde é sempre fator de diferença, e se revela na impossibilidade da dedução analítica: "Tudo pode acontecer num mito; parece que a sucessão dos acontecimentos não está aí sujeita a nenhuma regra de lógica ou de continuidade." Tendo por características a intermitência e a dualidade presença-ausência, a repetição acaba por ser, no mito, o meio de manifestação de sua estrutura própria.<br />Uma última característica devemos destacar no mito o seu caráter de exemplaridade. O mito é exemplar.<br />Chegando a este ponto e contando com as caracterizações acima podemos tentar um entendimento do mito que possa nos servir como meio de análise da Electra de Eurípedes, objeto deste trabalho. Para isso, segundo as caracterizações acima, dividiremos o mito em duas instâncias: a narrativa mítica, que obedece a uma estrutura segundo nos mostra Levi-Strauss; e a dinâmica mítica, segundo nos apresenta Max Müller. É óbvio que essas duas instâncias do mito estão interligadas, a necessidade de as diferenciar surge aqui em função de que a presença do mito, sendo co-presente em qualquer enunciação revela uma dimensão determinada do mito. A narrativa outra. Queremos dizer: numa narrativa trágica, por exemplo, existem uma série de características que a peculiarizam enquanto narrativa trágica, a presença da dimensão mítica se dá então de uma forma diversa daquela presente numa narrativa mítica. Como afirma o próprio Levi-Strauss a substância do mito não se encontra no estilo, nem na sintaxe, nem no modo de narração. Sendo assim, a possibilidade do mito "decolar" de uma narrativa qualquer é que ele tenha uma dimensão de presença-ausência no espaço de qualquer forma narrativa. Uma coisa é contar um mito, outra é perceber a dinâmica pirilampejante, presença-ausência, do mito numa estrutura narrativa outra que não ele mesmo. Onde, em que ínfima brecha procurar? Esse parece ser o desafio maior numa tentativa de análise que persiga a presença do rastro mítico em qualquer tipo de enunciação. Perceber presença numa densidade tão presente e ao mesmo tempo tão silenciosa e tão intersticial é a dificuldade. Como tornar o pequeno vazamento turbilhão? Poderia ser essa a forma de tentar traduzir a tarefa que se impõe quando se trata do mito.<br />Condições de possibilidade do trágico<br />Dentro da estrutura pensada para este nosso trabalho, da mesma forma que fizemos com o mito tornou-se igualmente necessário para nós desenvolvermos uma reflexão sobre as condições de possibilidade do trágico. Do mesmo modo que anteriormente fizemos vamos nos basear em algumas citações sem que isso queira significar qualquer tipo de adesão às escolas esposadas por qualquer autor.<br />Começaremos com Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, que no livro Mito e Tragédia na Grécia Antiga, num artigo "Édipo sem complexo" propõem uma caracterização do trágico:<br />"... o efeito trágico não reside em uma matéria, mesmo onírica, mas na maneira de dar forma à matéria, para fazer sentir as contradições que dilaceram o mundo divino, o universo social e político, o domínio dos valores, e fazer assim aparecer o homem como um qauma, um deinon, uma espécie de monstro incompreensível e desconcertante, ao mesmo tempo agente e paciente, culpado e inocente, dominando toda a natureza por seu espírito industrioso e incapaz de governar-se, lúcido e cegado por um delírio enviado pelos deuses. Contrariamente à epopéia e à poesia lírica, onde jamais o homem é apresentado enquanto agente, a tragédia situa, logo de início, o indivíduo na encruzilhada da ação, face a uma decisão que o engaja por completo; mas essa inelutável escolha opera-se num mundo de forças obscuras e ambíguas, um mundo dividido onde "uma justiça luta contra outra justiça", um deus contra outro deus, onde o direito nunca está fixo, mas desloca-se no decorrer mesmo da ação, "vira" e transforma-se em seu contrário. O homem acredita optar pelo bem; prende-se a ele com toda a sua alma; e é o mal que ele escolheu, revelando-se, pela polução da falta cometida, um criminoso.<br />É todo esse jogo complexo de conflitos, de reviravoltas, de ambigüidades que é preciso apreender através de uma série de distâncias ou de tensões trágicas: tensões no vocabulário, onde as mesmas palavras tomam um sentido oposto na boca dos protagonistas que as empregam, segundo as diversas acepções que a língua religiosa, jurídica, política, comum, ora projetada no longínquo passado mítico, herói de uma outra época, encarnando toda a desmedida dos antigos reis da lenda, ora vivo na época da cidade, como um burguês de Atenas, no meio de seus concidadãos; tensão no interior de cada tema dramático, todo ato, como desdobrado, desenrolando-se em dois planos: de um lado, no nível da vida quotidiana dos homens; de outro, no nível das forças religiosas, que obscuramente agem no mundo." 6<br />Observamos que o trágico, no entender dos autores acima citados, está comprometido com a tensão, e a manutenção da tensão é o fator determinante. A tensão entre o sabido e o desconhecido, entre o vigente e o porvir. Configurar-se nessa tensão e na impossibilidade de resolvê-la é um traço revelador do sentido trágico. No trágico a tensão é estrutural, se ela desaparece, desaparece com a própria tragédia. É ainda na mesma fonte acima citada que encontramos um desenvolvimento do sentido trágico:<br />"Para que haja consciência trágica, é preciso, com efeito, que os planos humano e divino sejam bastante distintos para se oporem (isto é, que se tenha destacado a noção de uma natureza humana), sem deixar, no entanto, de aparecer inseparáveis. O sentido trágico da responsabilidade surge quando a ação humana já é o objeto de uma reflexão, de um debate interior, mas não adquiriu uma ainda uma posição suficientemente autônoma para bastar-se plenamente. O domínio próprio da tragédia situa-se nesta zona fronteiriça, onde os atos humanos vêm articular-se com as potências divinas, onde eles revelam seu sentido verdadeiro, ignorado por aqueles que tomaram a iniciativa e carregam a responsabilidade deles, inserindo-se numa ordem que ultrapassa o homem e lhe escapa. Toda tragédia desenrola-se, portanto, necessariamente sobre dois planos. Seu aspecto de investigação sobre o homem, como agente responsável, tem apenas valor de contraponto em relação ao tema central." 7<br />Visto dessa forma o trágico carrega consigo um componente de destinação, significa: o querer ainda não se separa do dever. A configuração trágica se confecciona conjunção-disjunção todo o tempo.<br />Enquanto que no mito, por exemplo, "tudo pode acontecer", no trágico vigora uma determinação-tensão que precisa ser cumprida. Este cumprimento, por sua vez, não se apresenta como cumprimento de um dever moderno, de forma rotineira, mecânica, habitual. O dever é dotado de um carga de excepcionalidade; o assassinato trágico não é, por exemplo, um assassinato de dia a dia, a morte também não, a tensão gerada por esses acontecimentos, de certa forma mantém vivo aquele que morre. A morte trágica é um tipo peculiar de revivescência, não é puro e simples extermínio, pura e simples supressão. A dilaceração está sempre implícita na ocorrência trágica, e isto se deve a que na trama trágica a disjunção ao ocorrer provoca uma fratura, uma quebra extraordinária em uma inquebrável conjunção prévia.<br />Desse modo, está presente de forma muito marcada as dimensões sacrificiais e rituais. O acontecimento trágico, do mesmo modo que tudo na tragédia, tem necessariamente que se assumir como ritos. Ritos de morte e de vida. Nos ritos, nas celebrações, a constante é a presença do sacrifício. A cada momento ritos e sacrifícios preparatórios tomam a cena, até que o clímax é alcançado no sacrifício final onde o rito principal é celebrado.<br />A própria palavra tragédia traz em si a presença ritual e sacrificial. Na medida em que significa "canto ao bode". Para alguns autores, segundo Sílvia de Moraes,<br />"... a tragédia recebeu este nome porque se sacrificava um bode a Dioniso. Este bode era um animal sagrado, identificado com o próprio deus, nas festas religiosas, por ocasião da colheita da uva. Dioniso, em uma de suas aventuras, transforma-se em bode, para fugir da perseguição dos Titãs, mas apesar disso foi devorado. Dioniso ressuscita porém, na forma de um farmako" - bode imolado para a purificação da "pólis"... Gostaríamos de chamar atenção ... farmako" é um termo de dupla ambigüidade: ao nível do significante, relaciona-se com farmakon -toda substância através da qual se altera a natureza de um corpo, de modo benéfico ou maléfico; tanto cura quanto mata; ao nível do significado, enquanto é puro e sagrado recebe os males, a violência; depois de impuro, purifica; a vítima sacrificial é sagrada porque vai purificar toda uma comunidade -é kaqarma, porém torna-se kakon um mal e deve ser expulsa e/ou morta, porque fez convergir para si todos os malefícios de outrem." 8<br />Como se pode constatar o sentido sacrificial está, de uma forma ou de outra, na tragédia, dentro da própria etimologia da palavra. Mais uma vez somos obrigados a destacar a permanência da tensão como uma característica essencial da tragédia, no rito, no sacrifício, na imolação do bode expiatório, não há nada que assegure a expiação, o farmako" altera um estado anterior para melhorar ou piorar. Pode ser remédio ou veneno. O sacrifício trágico se reveste com características semelhantes, ele deve ser realizado, mas só depois de realizado é possível se compreender a sua dimensão. A conseqüência pode ser tanto a graça quanto uma desgraça ainda maior. Muitas vezes por detrás da aparente expiação se instala um movimento ainda mais deletério, mais fragmentador, que impossibilita que a conjunção por vir seja alcançada. No remédio mesmo habita o irremediável, e o sentido trágico se coloca exatamente nesse fio que, invisível, não é capaz de estabelecer a medida. O trágico <!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]--> é desse modo risco por não poder determinar a demarcação deste, e é nessa impossibilidade que a tensão se instala como caracterizadora essencial do sentido trágico.<br />Transcrição das seqüências<br />Nesse ponto de nosso trabalho passamos a fazer as transcrições das seqüências. Em princípio pensamos em fazê-las apenas da Electra de Eurípedes, no entanto optamos por fazer as transcrições das duas obras-referência, isto é: das Coéforas de Ésquilo e da Electra de Sófocles. Queremos crer que desse modo o estudo da obra de Eurípedes pode se apresentar mais completo, além de, para nós tornar mais fácil a apresentação das diferenças entre as versões dos três tragediógrafos.<br />Não obedeceremos, no entanto, à ordem cronológica. A Electra de Eurípedes aparecerá primeiro, pois é o objeto principal deste estudo, sendo seguida pela obra de Ésquilo, vindo por fim a de Sófocles.<br />1. Seqüências da Electra de Eurípedes<br />1.1 O assassinato de Agamêmnon. A cena é aberta com o trabalhador, esposo imposto à Electra, narrando a trajetória que precede os acontecimentos que se estão por iniciar. Retornando vitorioso da guerra de Tróia, Agamêmnon chega a Argos onde é recebido por Tíndaris (Clitemnestra). Esta o atrai para uma cilada onde Egisto, seu amante, o mata. Orestes escapa de ser morto ao ser salvo por um velho que havia sido preceptor de seu pai. Electra é dada em casamento ao trabalhador como uma forma de evitar que pudesse gerar uma descendência nobre que viesse tomar a si a vingança de Agamêmnon.<br />1.2 O encontro de Orestes e Electra. Orestes nota a aproximação de Electra, toma-a por uma escrava. O coro comunica a Electra que algumas festividades deverão se realizar e apela no sentido de que ela participe das festividades, quando dois homens se aproximam, são Orestes e Pílades ainda incógnitos. Orestes aproxima-se e sabe de Electra que esta está casada com um trabalhador que, em verdade, não a toma por esposa por não reconhecer o direito de quem a deu a ele, por esposa, de o fazer. Electra afirma que mesmo que visse Orestes seria incapaz de reconhecê-lo, e que só o velho que o salvou da morte o reconheceria. O trabalhador, esposo de Electra retorna e é enviado por esta a chamar o velho preceptor de Orestes para que este também tenha notícias dele através do desconhecidos. O velho ao chegar informa ter visto no túmulo de Agamêmnon um sacrifício em sua homenagem e madeixas de cabelo louro e exorta Electra a fazer um reconhecimento das pegadas comparando-as aos seus pés. Orestes se junta a eles e reconhecido pelo velho, e o encontro se converte em reconhecimento.<br />1.3 A morte de Egisto. A conselho do velho, Orestes vai ao encontro de Egisto no campo. Lá chegando segundo o plano pré-concebido, mata Egisto quando este sacrificava os bois. Electra é informada por um mensageiro da morte de Egisto quando já está a ponto de se desesperar pela incerteza do sucesso da empresa de Orestes.<br />1.4 Orestes retorna do campo. Orestes chega à casa de Electra trazendo o corpo de Egisto. Electra faz um longo discurso insultando o cadáver que é transportado para o interior da casa.<br />1.5 A dúvida de Orestes. Orestes hesita ante a iminência de ter que matar sua própria mãe. Electra insiste na necessidade de que a vingança se complete, invocando o oráculo de Apolo.<br />1.6 A morte de Clitemnestra. Clitemnestra atraída pela notícia de que Electra teria dado à luz chega à casa de Electra. À sua chegada num diálogo com esta, tenta justificar o assassinato de Agamêmnon. Electra contesta seus argumentos. Electra solicita de Clitemnestra que esta cumpra os ritos de praxe. Ao entrar na casa Clitemnestra é morta por Orestes.<br />1.7 Aparecem os Dióscuros. Em meio às lamentações de Orestes e Electra, surgem os Dióscuros. que reordenam as coisas, recomendando que Orestes dê Electra como esposa a Pílades, e que Orestes se vá de Argos para Atenas, para se por a salvo das Eríneas que se aproximam. Os dióscuros prevêem a absolvição de Orestes no Aerópago e atribuem às culpas ancestrais a desgraça dos dois.<br />2. Seqüências das Coéforas de Ésquilo<br />2.1 O retorno de Orestes. Orestes e Pílades chegam ao túmulo de Agamêmnon. Orestes rende homenagem ao pai, e percebe a aproximação de algumas mulheres que vêm trazer libações. Entre estas reconhece Electra, sua irmã e apela a Zeus que lhe conceda a ventura de vingar a morte do pai.<br />2.2 Electra vai ao túmulo de Agamêmnon. Ao derramar as libações sobre o túmulo do pai Electra se depara com uma mecha de cabelo que lhe faz pressentir a presença de Orestes. Percebe também um segundo indício nas pegadas encontradas junto ao túmulo.<br />2.3 O encontro de Orestes e Electra. Orestes aparece seguido por Pílades e o reconhecimento de Orestes por Electra ocorre depois que Orestes apresenta à Electra o manto por ela tecido.<br />2.4 O sonho de Clitemnestra. Corifeu narra a Orestes o sonho em que Clitemnestra pare uma víbora, e esta fere seu seio quando da amamentação. É em função desse sonho com tonalidade oracular que Clitemnestra manda oferecer as libações de que Electra e o coro são portadoras.<br />2.5 A simulação. Orestes, de acordo com o plano previamente traçado, se apresenta como um estrangeiro vindo da Fócida, que traz notícias de Orestes. É recebido por Clitemnestra que toma conhecimento da morte de Orestes. Clitemnestra envia a antiga ama de Orestes até Egisto pedindo a este que retorne para tomar conhecimento das notícias. Ao sair do palácio a ama é abordada por Corifeu e é por esta persuadida a recomendar a Egisto que venha só de modo a não assustar os estrangeiros.<br />2.6 A morte de Egisto. Egisto retorna ao palácio e é morto por Orestes. Um criado informa Clitemnestra, através de um enigma, sobre o ocorrido com Egisto.<br />2.7 A morte de Clitemnestra. Mesmo com os apelos da mãe, Orestes, após alguma indecisão, lembrado por Pílades do oráculo de Apolo, obriga Clitemnestra a entrar no palácio e, confirmando o sonho premonitório da mãe, a mata.<br />2.8 A fuga de Orestes. Depois de travar um longo diálogo com o coro, Orestes foge perseguido pelas Eríneas.<br />3. Seqüências da Electra de Sófocles.<br />3.1 Orestes chega ao palácio. Acompanhado por Pílades e pelo preceptor, Orestes chega ao palácio. Se propõe a cumprir o oráculo e traça imediatamente os planos para cumpri-lo. Escuta os lamentos de Electra, com esta ainda dentro do palácio.<br />3.2 Electra renova seu compromisso. Electra sai do palácio, relembra o assassinato do pai, e renova o seu propósito de não deixar esquecer o pai e vinga-lo.<br />3.3 Aparece Crisótemis. Crisótemis, irmã de Electra, sai do palácio e depois de um áspero diálogo com esta, lhe diz das intenções de Egisto e Clitemnestra de encerra-la viva se Electra não reformular o seu comportamento com a mãe e o padrasto. Informa também que Clitemnestra se viu atormentada por um sonho em que Agamêmnon lhe aparecia, e é esta a razão porque Clitemnestra envia através de Crisótemis as libações ao túmulo de Agamêmnon. Crisótemis atende ao apelo de Electra para que não faça as libações encomendadas pela mãe.<br />3.4 Discussão entre Electra e Clitemnestra. Clitemnestra sai do palácio e encontra Electra. Um diálogo entre ambas se processa com Clitemnestra tentando justificar o assassinato do marido.<br />3.5 A simulação. O preceptor chega de volta às portas do palácio anunciando a presença de emissários estrangeiros e trazendo um relato detalhado do modo como Orestes teria morrido na Fócida. Electra se desespera com a notícia.<br />3.6 A presença de Orestes. Crisótemis retorna do túmulo do pai dizendo ter encontrado sinais da presença de Orestes e é informada por Electra da morte de Orestes. Electra então tenta persuadir, sem sucesso, Crisótemis a ajuda-la na vingança do pai.<br />3.7 O encontro. Orestes e Pílades voltam à entrada do palácio e encontram Electra. Esta lhes faz um longo relato de seus sofrimentos e de seu estado atual. Orestes se compadece e acaba por se identificar mostrando a Electra o anel de Agamêmnon.<br />3.8 A morte de Clitemnestra. Electra introduz Orestes, Pílades e o preceptor, este devidamente identificado por Electra, no palácio e Orestes sem qualquer hesitação mata a mãe.<br />3.9 A morte de Egisto. Egisto retorna ao palácio querendo saber das notícias que dão conta da morte de Orestes, Electra o incentiva a entrar. Ao entrar, Egisto se depara com o cadáver que pensa ser o de Orestes, mas descobre ser o de Clitemnestra e é morto por Orestes.<br />Exposição das diferenças<br />Dentro da perspectiva de tentar responder às questões formuladas na introdução deste trabalho, e conseqüentemente, tentar entender o relacionamento de Electra com o mito e o trágico, passamos agora a expor as diferenças entre as três versões de Electra, a de Eurípedes, a de Sófocles e a mesma temática exposta nas Coéforas de Ésquilo, para isso, vamos nos utilizar da transcrição de seqüências que realizamos nas três obras.<br />As diferenças:<br />1. A primeira das diferenças consideráveis diz respeito à cena de abertura:<br />Enquanto Ésquilo dá de início a palavra a Orestes e este, acompanhado por Pílades, junto ao túmulo de Agamêmnon lhe rende homenagem.<br />Sófocles introduz Orestes na cena inicial mas sem lhe dar a palavra, já que é o preceptor quem inicia um diálogo com Orestes indicando-lhe os lugares da cidade que Orestes foi obrigado a deixar há muito tempo.<br />Eurípedes tem necessidade de um narrador que informe com detalhes os precedentes da trama que se vai seguir. Ainda que isto ocorra de uma forma ou de outra nas três versões, é nítida a preocupação de Eurípedes de que sua narrativa tenha um encadeamento lógico. Os pressupostos por isso são imediatamente apresentados.<br />2. A segunda das diferenças: o encontro de Orestes e Electra<br />Nas Coéforas o encontro é preparado com Electra encontrando primeiramente uma mecha de cabelo que ela acredita ser de seu irmão, bem como observa a semelhança das pegadas encontradas junto ao túmulo com as suas, em seguida Orestes aparece e é identificado quando apresenta como prova o manto que lhe foi tecido pela própria Electra.<br />Em Sófocles o encontro se dá quando a narrativa já está bem avançada, o encontro ocorre bem próximo da morte de Clitemnestra, a prova apresentada é um anel pertencente a Agamêmnon para que Orestes se faça reconhecer.<br />Em Eurípedes Orestes encontra Electra no início da narrativa, mas só é reconhecido pelo velho preceptor, depois que este percebe em Orestes a presença de um sinal característico.<br />3. A terceira das diferenças: a morte de Egisto<br />Nas Coéforas a morte de Egisto é precedida por dois momentos: Orestes toma conhecimento, através de Corifeu, do sonho premonitório em que Clitemnestra se vê mordida por uma serpente parida por ela própria; Orestes é recebido por Clitemnestra e lhe comunica a sua pseudo-morte. Clitemnestra envia então a ama para dizer a Egisto que este deve retornar para receber a notícia.<br />Em Sófocles a morte de Egisto sucede à morte de Clitemnestra e antes que isso ocorra é introduzida a figura de Crisótemis, irmã de Electra, como aquela que sabe das intenções de Egisto e Clitemnestra de matarem Electra. Crisótemis desempenha ainda um outro papel relevante na trama pois encontra vestígios da presença de Orestes e comunica-o a Electra, que não crê, pois acabara de ouvir o relato do preceptor dando conta da morte de Orestes.<br />Em Eurípedes A morte de Egisto é tramada e logo executada com Orestes a conselho do velho indo ao seu encontro no campo onde Egisto realiza rituais. O corpo de Egisto é trazido depois de morto para a casa de Electra.<br />4. A quarta das diferenças: A morte de Clitemnestra<br />Em Ésquilo Orestes, embora um tanto relutante ante os apelos de Clitemnestra, acaba por mata-la quando lembrado por Pílades do oráculo de Delfos. Depois de matar a mãe Orestes é perseguido pelas Eríneas e foge da cidade.<br />Em Sófocles Orestes não hesita em momento nenhum mata Clitemnestra sem dar atenção aos apelos desta. Orestes não vive nenhum conflito e logo a seguir mata Egisto.<br />Em Eurípedes Clitemnestra é atraída à casa de Electra, onde é morta após muita relutância por Orestes. Depois de matar a mãe Orestes vive um sentimento de culpa, os Dióscuros aparecem e recomendam que ele se vá da cidade e se submeta ao tribunal do Aerópago e é informado de sua absolvição.<br />5. A quinta diferença: os co-adjuvantes<br />Em Ésquilo a participação mais decisiva de um co-adjuvante é a de Pílades que recorda a Orestes o oráculo que prescreve a vingança.<br />Já em Sófocles pode-se destacar o preceptor e Crisótemis.<br />Em Eurípedes o velho preceptor é decisivo tanto ao reconhecer Orestes quanto ao lhe fornecer as informações para que este mate Egisto.<br />6. A sexta diferença: a situação de Electra<br />Enquanto nas Coéforas Electra é aquela que vela pela manutenção do ódio e da necessidade de vingança com referência aos assassinos de seu pai.<br />Em Sófocles Electra é mantida como prisioneira mas não é este o seu traço mais marcante, ela é memória que vela pelo não esquecimento dos acontecimentos que vitimaram seu pai.<br />Em Eurípedes vamos encontrar Electra reduzida a esposa de um trabalhador e podemos perceber um tom um tanto ressentido nas falas da personagem. Esse fato altera o seu papel e ao ódio devotado aos assassinos de seu pai se soma o ressentimento proveniente da humilhação sofrida pela queda de sua posição social.<br />É evidente que outras diferenças, talvez mais sutis aparecem num comparação mais detida dos textos em questão, essas são as que destacamos nessa nossa primeira abordagem dessas tragédias. Poderíamos mesmo localizar o objeto deste trabalho em apontar outras diferenças, mas não optamos por isso. Essas diferenças, do mesmo modo que a transcrição de seqüências tem para nós um sentido de mapeamento elementar para que possamos a seguir desenvolver a análise que pretendemos de tragédia em questão. Para desenvolvermos a análise pretendida tendo como questões as apresentadas na introdução quer nos parecer que as diferenças mais relevantes são as apontadas acima.<br />Análise de Electra: estabelecimento dos meios<br />Neste nosso trabalho temos até aqui desenvolvido uma caracterização do mito, bem como uma caracterização do sentido trágico. Essas duas caracterizações só agora, na estrutura pela qual optamos passam a fazer sentido. A partir dessas caracterizações é que estabelecemos uma primeira dualidade que nos servirá para realizarmos a análise da Electra de Eurípedes. Nossa idéia original era a de analisarmos um trecho da obra, porém no decurso do trabalho foi tomando forma uma outra idéia a de analisarmos os personagens a partir do seu comprometimento maior ou menor com os dois princípios que instituímos como pontos de partida: o mítico e o trágico.<br />A essa dualidade elementar superpusemos uma outra de forma ternária que pretende dar conta do esquema funcional das personagens. Nesse sentido, então os personagens da tragédia podem, numa relação com índices determinados tanto por características essenciais deles próprios ou então por relacionamento com o conjunto de acontecimentos da tragédia, ser pensados com respeito ao seu papel na trama. Os acontecimentos, por sua vez, se relacionam com essa estrutura elementar que se ordena em dois eixos: o eixo dos princípios e o eixo das funções.<br />O eixo dos princípios<br />Para estabelecermos o que chamamos de eixo dos princípios partimos de alguns pressupostos. O primeiro deles foi que mito e tragédia não eram a mesma coisa, não poderiam, portanto, ser confundidos. Por outro lado entendemos que entre mito e tragédia se desenvolvia, ao menos no contexto de nosso estudo, uma oposição. Não exatamente uma contradição mas uma oposição com características de complementaridade no âmbito da narrativa. Significa: a conjugação de mito e tragédia dimensiona acontecimentos e personagens, estrutura narrativa e estrutura das personagens.<br />O eixo das funções<br />Estabelecemos o eixo das funções partindo de uma espécie de modo de produção dos efeitos, que também pode ser entendido como modo de produção dos acontecimentos ou dos comportamentos, ou ainda dos compromissos. Enfim esse modo de produção se articula a partir do processo desenvolvido, processo este que é composto por três instâncias fundamentais: a instância do agente, no sentido em que os gregos compreendiam o verbo poiew, isto é, aquele que faz nascer a ação, dá origem à ação; a instância do objeto, no sentido em que os gregos compreendiam natikeimai, isto é, o que está situado em face de, e o que se presenta como um modo de opor resistência; a instância do efeito, no sentido em que os gregos compreendiam ergon, isto é, o resultado de ações, o produto de uma trama, aquilo que se concretiza, se realiza. (Para verificar o esquema dos eixos ver anexo).<br />Os nomes e seus significados<br />Além da análise operada nos dois eixos acima prenunciados nos pareceu estimulante tentar um percurso etimológico através dos nomes da obra de Eurípedes. Fomos para isso estimulados pela possibilidade de depreender sob a representação do nome traços que sejam capazes de dar aos personagens um comprometimento mais estreito em relação ao seu comportamento. O nome em qualquer estrutura social, e ao longo dos tempos tem se configurado, no mínimo, um extraordinário índice. Segundo Cassirer, para os esquimós, o homem se compõe de três partes: seu corpo, sua alma, e seu nome. Por outro lado é ainda o próprio Cassirer que nos informa: "Sob a lei romana, os escravos não tinham direito a nome, porque não podiam funcionar como personalidades independentes."<br />Dessa forma pensamos poder realizar a análise da Electra de Eurípedes e conseguir aquilo que seria decisivo para nós, isto é: acabar este trabalho de forma diferente da que nele entramos, seja com respeito ao que é a obra em questão, seja com referência à tragédia enquanto forma de expressão tão significativa da cultura ocidental.<br />Electra mito e tragédia -Análise<br />Neste ponto realizamos a análise propriamente dita da Electra de Eurípedes e, como já dissemos anteriormente, na obra o que será analisado serão as personagens em relação aos dois eixos que estruturamos como forma de entender o papel desempenhado na tragédia por esses personagens. No eixo dos princípios temos a dimensão do mítico e a dimensão do trágico. No eixo das funções temos uma estrutura ternária: a função de poiew, a função de antikeimai, e a função de ergon, isto é: funções de agente, objeto e efeito ou produto.<br />Procederemos a análise da Electra de Eurípedes respeitando a ordem de importância das personagem reservando para o final o quarteto Electra, Orestes, Clitemnestra e Egisto.<br />A primeira personagem a aparecer em cena é o trabalhador micenense. Este personagem se apresenta como periférico aos eixos escolhidos para enfocar a obra, não se pode dizer que sua participação seja a de um agente mítico ou trágico, não chega a ser por outro lado objeto mítico ou trágico. É uma personagem de encadeamento das ações. O seu papel é muito mais de configurar os pontos de referência prévios para o entendimento da dinâmica da trama. É utilizado como efeito de comunicação entre o autor e o público.<br />O ancião, ainda que não se caracterize como uma personagem pertencente a nenhum dos eixos, desempenha um papel relevante no interior da narrativa pois desempenha duas importantes: reconhece Orestes e auxilia este a encontrar e matar Egisto, não chega a dar origem a uma ação o que o caracterizaria como agente, mais é um meio de interligação dos personagens.<br />O mensageiro é outra personagem que desempenha um papel de interligação não apenas entre os personagens, mas dos elementos da própria narrativa.<br />Pílades na tragédia de Eurípedes é um personagem acessório, e em momento nenhum chega a ter qualquer intervenção direta na ação. A ele é apenas reservado o papel de receber Electra de Orestes, permitindo assim que se restabeleça o que Levi-Strauss chamaria de estrutura elementar de parentesco e devolvendo a legitimidade da organização familiar desestabilizada com o assassinato de Agamêmnon. Talvez numa análise que visasse investigar essas relações na obra sua presença pudesse ser tomada em maior consideração.<br />O coro desempenha um papel relativo ao senso comum e sua característica volatibilidade. Vaga do clamor à vingança até a condenação desta mesma vingança. O coro é a presença do externo na trama e o seu compromisso, como nem poderia deixar de ser, é tênue. Não é agente, não é objeto, nem é efeito, trágico nem mítico.<br />Os Dióscuros, estes são agentes míticos. O tom oracular de sua intervenção põe de volta ordem às coisas, mas a ordem re-instaurada é uma ordem transcendente, não é uma ordem com dimensão meramente ôntica. Trata-se de uma ordem dos deuses e dos desígnios, uma ordem na destinação, e é precisamente isso que os configura e confirma como agentes míticos.<br />Egisto é um personagem que não se apresenta em cena. No entanto, se apresenta na trama como um agente mítico ao mesmo tempo que como objeto mítico. Por que? Ora porque Egisto é, mesmo em ausência, a presença viva da maldição dos Atridas. Sendo filho de Tiestes, ele é presença de tempo imemorial que entra pelas frestas na trama e se torna turbilhão, na medida que sua presença é fator detonador de toda a tragédia. Por outro lado é objeto mítico na medida em que ele se apresenta à vingança de Orestes e Electra. Não chega a ser um agente mítico porque para isso lhe faltam algumas coisas: a exemplaridade, e a dimensão de verdade no sentido da alétheia grega. Certamente não desempenha papel nem de agente nem de objeto trágico, significa: não é agente trágico nem em Electra, como não é em Agamêmnon. Agente do assassinato de Agamêmnon, não consegue, porém, a dimensão de agente trágico porque a prática do assassinato se dá sem a tensão necessária para que esse ato tivesse dimensão trágica. O fato de Egisto assassinar Agamêmnon não chega a ser nada de conflituoso no âmbito da personagem, nem mesmo para o público. Do mesmo modo que o fato de ser ele assassinado por Orestes não configura tragédia, apenas, se tanto, um crime comum. Assim Egisto se apresenta como um objeto mítico.<br />Clitemnestra se apresenta como um objeto trágico, exatamente por tudo aquilo que Egisto não o consegue ser, significa: ao se apresentar como objeto da vingança dos filhos, Clitemnestra, chamada Tíndaris em Eurípedes, se configura como uma personagem que evolui de agente trágico em Agamêmnon para objeto trágico em Electra. Por outro lado Clitemnestra não é um objeto mítico porque sua função, sua história é eminentemente trágica. Ela não entra na tragédia pelos vãos sua presença é o tempo todo íntegra ele não é nenhuma forma de revivescência. Não é nesta tragédia um agente trágico porque para isso lhe falta a dimensão de produzir efeitos com sua ação. Desempenha a função trágica do bode expiatório.<br />Orestes é um agente trágico uma vez que é ele responsável pela ação de maior grau de tensão e conflito da tragédia, a morte de sua mãe. Enquanto agente sacrificial, imolando em rito sua própria mãe, é aí mesmo que Orestes ganha a dimensão de agente trágico. A morte de Egisto, pura e simplesmente seria insuficiente para lhe dar a função de agente e a dimensão de trágico, a vingança da morte de seu pai nada mais seria do que o cumprimento de uma lei, isto é, seria normal portanto. Sua ação é a de agente e sua dimensão de trágico.<br />Electra é um agente mítico. É memória e verdade (alétheia) de si mesma de Orestes e dos Atridas. Fator principal de atualização, no sentido de tornar ato a maldição, já que não permite que o esquecimento encubra a morte de Agamêmnon. Tem dimensão mítica, mas não chega a ter dimensão trágica, embora, por vezes chegue perto dessa dimensão. Não é casual portanto que quando se refira a um mito nesta história ele tenha o seu nome.<br />Análise onomástica<br />Para encerrar este trabalho, nos pareceu que uma análise etimológica dos nomes de Electra e Tíndaris (Clitemnestra em alguns momentos da obra de Eurípedes) seria um bom complemento e que poderia mesmo trazer maiores subsídios para análise acima desenvolvida, além de nos auxiliar nas questões temáticas para nós apresentadas no início deste trabalho.<br />CLITEMNESTRA<br />Tratada inicialmente, no prólogo do trabalhador miceniense, por Tíndaris, que significa aquela que deve, e precisa pagar, a personagem carrega consigo essa destinação de ter que pagar, ter que expiar, ser o bode expiatório<br />Por outro lado, Clitemnestra vem da junção de klitos + mnester, significa: desejo de celebridade, desejo de ser célebre, bem como pode significar desejo de se casar. Ambos os significados têm relação à personagem, a ambição e o desejo de compartilhar novamente seu leito nupcial, de certo modo levam Clitemnestra a traçar a sua destinação.<br />ELECTRA<br />Em primeiro lugar devemos dizer que o nome originário de Electra era Laodice. O nome Electra só aparece nas tragédias, o que tem coerência se analisarmos etimológicamente os dois nomes.<br />O nome Laodice é composto por Lao + dike, significa: justiça pública, justiça do povo, portanto uma justiça pré-jurídica, uma justiça da tradição. Nas tragédias contemporâneas da presença de uma justiça da pólis, uma justiça de tribunal, parece ser este fato, um razoável indicador da preferência de Electra à Laodice.<br />Por outro lado o nome Electra deriva da mesma raiz que elctron que significa âmbar; por sua vez âmbar é uma substância sólida de cheiro almiscarado, proveniente das vísceras do cachalote; almíscar vem do persa mushk que significa testículo, e também é uma substância odorífera de sabor amargo e cor amarelada muito volátil e utilizada em perfumaria e farmácia..<br />Ora, a personagem Electra tal como é enunciada na tragédia de Eurípedes carrega consigo uma boa parte das características de sua raiz etimológica. Senão vejamos: comecemos pela cor o amarelo embora não seja em momento nenhum enunciado na obra pode ser caracterizador de uma personagem cotidiana e sem brilho, corroída pelo ressentimento na qual foi convertida Electra na obra em questão; por outro lado a proveniência intestina do almíscar de alguma forma se aplica à visceralidade com que a personagem mantém presente a necessidade de que a vingança se realize, e tenha continuidade a maldição dos Atridas -efeito mítico- na morte de Egisto, bem como de sua mãe Clitemnestra -efeito trágico. Na proveniência dos testículos o fundo comprometimento com o pai -compromisso mítico. O sabor amargo da angústia acalentada por tanto tempo também é presente.<br />Conclusão -Electra: tragédia e mito?<br />Quando da leitura que fizemos das três obras clássicas para a realização deste trabalho, uma questão de início se apresentava com insistência, em especial quando da leitura da obra de Ésquilo: Por que Electra? Por que Electra se quem pratica a ação é Orestes? Talvez essa tenha sido a questão que acabou por tornar possível esta tentativa de compreensão. A questão, ainda que algumas vezes se apresente para nós mesmo como ingênua, algumas vezes parece fazer algum sentido, afinal, no caso de Ésquilo não só a obra não se chama Electra, como se encontra dentro de uma trilogia chamada Oréstia. Esse móvel inicial, no entanto, não gera agora o mesmo incômodo gerado de início, com certeza, não sei se porque conseguimos apreender melhor o sentido das tragédias ou se, ao contrário, as estamos entendendo bem menos agora. O fato é que depois de operarmos a análise acima, tornou-se mais claro para nós porque o mito nunca poderia ser mito de Orestes, por outro lado mesmo que Electra, ainda que não tenha a mesma dimensão de um Édipo, que a nosso ver consegue ser a um tempo agente mítico e agente trágico, Electra dizíamos está situada na dimensão mítica, é nessa dimensão que sua força maior se apresenta, e isto, de certa forma nos responde a questão anteriormente formulada: Porque a tragédia de Ésquilo não se chama Electra.<br />A realização das análises acima acabaram por nos apresentar uma justificativa razoável par que Ésquilo não tenha nomeado sua tragédia com o nome do agente mítico, e ao invés tenha preferido o nome do agente trágico para nomear não apenas uma obra mas toda a trilogia.<br />A elaboração deste trabalho, enfim, teve para nós uma grande relevância independentemente da correção ou não do encaminhamento adotado e das conclusões alcançadas. Como já foi aliás, afirmado acima saímos do trabalho de uma forma diversa daquela que nele entramos, significa: a nossa relação com a tragédia efetivamente foi transformada. Cremos que, ao menos sob o ponto de vista de quem realiza um trabalho nada mais pode ser alcançado.<br />NOTAS<br />1. Ver M. Eliade, 1972, p.11<br />2. Ver E. Cassirer, 1972<br />3. idem.<br />4. Ver C. Levi-Strauss, 1975.<br />5. idem.<br />6. Ver J.P. Vernat e P. Vidal-Naquet, 1988.<br />7. idem.<br />8. Ver S. A. Moraes, 1986.<br />BIBLIOGRAFIA<br />ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1970.<br />ARISTÓTELES. Obras, Bilbao, Aguilar, 1982.<br />BAILLY, Anatole. Dictionaire Grec-Français, Paris, Hachette, 1950.<br />BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega, Petrópolis, Vozes, 1986.<br />CASSIRER, Ernst. Linguagem e Mito, São Paulo, Perspectiva, 1972.<br />DUBOIS, Jean. e outros. Dicionário de Linguística, São Paulo, Cultrix, 1991.<br />ÉSQUILO. Oréstia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991.<br />EURÍPEDES. Electra, Rio de Janeiro, Tecnoprint, s/d<br />JAEGER, Werner. Paidéia, São Paulo, Martins Fontes, 1986.<br />LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975.<br />--------------------. Antropologia Estrutural Dois, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1976.<br />MORAES, Sílvia Andrade de. O ritual do bode expiatório: uma violência presente em nossos dias. In: Calíope -Presença Clássica, Rio de Janeiro, Departamento de Letras Clássicas da Faculdade de Letras da UFRJ, jul-dez/1986, nº 5.<br />NIETZSCHE, Friedrich. El nacimiento de la tragedia, Madrid, Alianza, 1981.<br />PANDOLFO, Maria do Carmo Peixoto. Mito e Literatura: Práticas de Estruturalismo, Rio de Janeiro, Plurarte, 1981.<br />--------------------------------.Joana d'Arc: Semiologia de um mito, Rio de Janeiro, Grifo, 1977.<br />SÓFOCLES. Electra, Rio de Janeiro, Universidade Santa Úrsula, s/d.<br />VERNANT, Jean-Pierre & VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga, São Paulo, Brasiliense, 1988.<br />Fonte: http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa10/antoniojardim.html<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />MEDÉIA - EURÍPEDES<br />Eurípides, dramaturgo grego, escreveu a peça Medéia no ano de 431 antes de Cristo. Naquela época o teatro era responsável pela construção e educação do homem grego, em particular do ateniense. As peças apresentavam discussões sobre os acontecimentos cotidianos dos atenienses, se baseando nos mitos. A mulher tinha um papel particular na cultura ateniense que foi discutida de uma maneira bastante trágica nesta peça. O que poderia acontecer, se uma mulher coberta de emoção e paixão, sentimentos irracionais para os gregos, em oposição ao homem racional, decidisse resolver suas mágoas pelas próprias mãos?<br />A tragédia se passa em Corínto, cidade grega, local onde se refugiaram Medéia e seu marido Jasão após terem fugido da Cólquida, cidade situada no oriente e considerada ?bárbara?, em oposição aos gregos ?civilizados?. Jasão e Medéia foram parar em Iolco após a aventura conhecida como ?argonáutica?, uma expedição onde o tio de Jasão, tenho roubado seu lugar no trono em sua cidade natal, Iolco, enquando Jasão estava fora sendo criado pelo centauro Quíro, (o mesmo que educou Aquíles), o enviou a uma busca impossível por uma pele de carneiro de ouro, o ?tosão de ouro? que pertencia à sua família e que havia sido roubado pelos bárbaros do oriente. Se conseguisse regressar com vida e com o tosão, seu tio lhe devolveria o trono. Assim Jasão organizou uma expedição que o levou à Cólquida. Lá ele conheceu Medéia com quem se casou. Devido a alguns acontecimentos dramáticos, ambos tiveram que fugir, e se estabeleceram em Corínto. A nutriz, mulher responsável pelos cuidados com as crianças começa a peça lamentando tudo o que aconteceu, pois agora Jasão largou Medéia e seus dois filhos para se casar com a filha do rei de Corínto, Creontes. Medéia se sente abandonada, largada, humilhada depois de tudo que ela fez para ajudar o herói. Ela está totalmente desconsolada e a nutriz teme por ela. Teme que Medéia possa fazer algo drástico. Medéia se lamenta todos os dias, e nem a visão de seus filhos a anima e culpa principalmente a princesa de Corinto pelos seus sofrimentos. Suas palavras acabam chegando ao castelo real. Jasão volta para casa para conversar com Medéia, ele a avisa que continuando a falar contra a família real ela será expulsa de Corínto, o que Jasão acha justo, pois uma mulher como ela, ?bárbara?, levada para a ?civilização? e tendo filhos gregos teria que ser mais agradecida. Medéia recebe agora a visita do próprio rei de Corínto, Creontes. Ele conhece bem os poderes de Medéia e teme pelo bem de sua filha e de si próprio. Assim ele a expulsa de seu reino. Medéia pede um dia, apenas um dia para poder se arrumar e encontrar um outro lugar onde ela possa estabelecer uma nova vida. Creonte concede esse dia. Porém é nesse dia, nesse único dia que todos os acontecimentos terríveis acontecem. Medéia era uma feiticeira conhecida em toda a Grécia pelos seus poderes. Ela recebe uma visita de Egeu, rei de Atenas, que procurava sua ajuda. Medéia promete ajudá-lo em troca de exílio. Depois de saber os sofrimentos que Medéia está passando, Egeu concorda. Medéia chama Jasão para uma conversa, e o convence que ela está arrependida pelas coisas que disse e pede para seus filhos poderem ficar com o pai, morando no castelo real. O que Jasão concorda feliz. Medéia manda por seus filhos presentes para a princesa, um véu e um diadema, presentes esses que será a perdição total da família real, pois eles estão envenenados e matam não apenas a princesa que os colocou, mas também o rei de Corínto que tentou salvar sua filha. Jasão corre para a casa de Medéia a procura de seus filhos, pois ele agora teme pela segurança deles, porém chega tarde demais. Ao chegar em sua antiga casa, Jasão encontra seus filhos mortos, pelas mãos de sua própria mãe, e Medéia já fugindo pelo ar, em um carro guiado por serpentes aladas que foi dado a ela por seu avô o deus Hélios. Não poderia ter havido vingança maior do que tirar do homem sua descendência.<br />Fonte: http://www.netsaber.com.br/resumos/ver_resumo_c_1264.html<br /><br />O Saber mágico de Medéia<br />The Magical Knowledge of Medea<br />Maria Regina Candido<br />Abstract<br />The Medea is one the most remarkable and important imaginative works in all western literature. Medea is presented, initially as victim, but she is able to strike and pursue her revenge on a heroic homeric way.<br />Resumo<br />Medéia é um dos mais marcantes trabalhos de valor imaginativo da literatura ocidental. Medéia é apresentada, inicialmente, como vítima, mas, ela é capaz de lutar e perseguir a sua vingança como um herói homérico.<br />Palavras-chave: Medéia - Magia - Mito - Grécia - Tragédia - Mulher grega<br />Key words: Medea - Magic - Myth - Greek - Tragedy - Greek woman<br /><br />De acordo com Jean-Pierre Vernant mito se apresenta como um relato vindo de épocas passadas e nesse sentido, o relato mítico não resulta da invenção individual e nem da fantasia criadora, mas da transmissão e da memória de uma sociedade (VERNANT, 2000: 12). Logo, para compreendermos o significado do mito de Medéia, temos a necessidade de interagir com a sociedade que o produziu.<br />A tragédia Medéia, apresentada no teatro de Dionisos em 431 a C., nos remete às práticas da magia, aos sentimentos femininos e à condição social da mulher grega no período clássico. Este tema integra o que se convencionou denominar de História de Gênero tornando possível demonstrar que a história das mulheres podia ter suas próprias heroínas que atuaram mesmo em condição de subordinação à figura masculina. Elas souberam manipular o poder ao qual estavam submetidas atuando por lances, empregando táticas e subvertendo a ordem.<br />Para apreendermos o lugar social da mulher na sociedade grega do período clássico devemos inseri-la em seu contexto social de produção (HILL, 1995: 21). Isto porque existe uma heterogeneidade de informação quando se busca referências sobre as mulheres na antigüidade, os dados variam dos poemas à prosa, do período arcaico ao clássico e de região. Embora haja uma diversidade de informação é possível estabelecer alguma generalização diante das inúmeras atribuições a elas destinadas como a procriação entre outras. Atribuições e responsabilidades assumidas em relação ao passados, presente e ao futuro de uma comunidade. Consideramos a possibilidade da construção da história das mulheres na atualidade e para atingir este fim, devemos compreender a sua atuação junto as sociedades do passado como a comunidade políade dos atenienses, buscando subsídios que nos possibilitem repensar a condição social da mulher no nosso tempo-presente.<br />Retornando a abordagem do mito: compreendemos a narrativa mítica da sacerdotisa de Hécate como um registro de memória que nos traz fragmentos do passado dos gregos. A memorização de um mito se faz em forma de poesia como na epopéia homérica que atuou primeiro como poesia oral, composta e cantada diante de um público que a reproduziu por gerações, através da participação ativa dos aedos - poetas cantadores, inspirados pela divindade denominada de Mnemosýne. Somente mais tarde é que a escrita alcança o mito resultando no estabelecimento de uma vertente oficial definida pelo texto escrito. Entretanto, devemos ressaltar que a narrativa mítica diferencia-se do texto poético pelo fato de comportar variantes, versões distintas, ou seja, permite ao narrador acrescentar e modificar a narrativa de acordo com o público ao qual se destinava (VERNANT, 2000: 13).<br />O poeta, ao compor a sua dramaturgia, deixou vestígios de acontecimentos do passado dos quais foi testemunha. Para nós, o passado tornou-se um país estrangeiro no qual tudo é feito de modo diferente. Entretanto, o registro de memória do poeta, em forma de poesia, nos permite estabelecer uma aproximação com a cultura dos helenos. Reconhecemos que as informações sobre as mulheres foram compostas pelos homens, os quais tiveram uma atitude de não nomeá-las, tornando-as uma realidade silenciosa. O poeta Eurípides, no entanto, as coloca em primeiro plano, embora no desempenho de atividades que os homens definiram e determinaram que elas atuassem, ou seja, o espaço fechado do gineceu no exercício dos cuidados domésticos. Acreditamos que os vestígios de memória registrados pela tragédia Medéia nos possibilitam repensar a atuação da mulher subvertendo a ordem estabelecida.<br />Eurípides expõe a protagonista trágica como uma mulher abandonada pelo marido que desejava contrair novas núpcias com a jovem princesa de Corinto como nos indica a citação: "pois, encontra-se órfã sem cidade, ultrajada pelo marido, sem mãe e nem irmão para abrigá-la do infortuno" (Eurípides, Medéia, v. 255). A situação nefasta de Medéia a coloca como esposa abandonada, mãe de duas crianças em situação de exílio e mulher estrangeira. O drama de Medéia, exposto logo no início da tragédia, visava despertar a comoção nos espectadores do teatro de Atenas, pois a infidelidade e a traição masculina não eram temas incomuns na sociedade grega, assim como não deixou de ser nos dias atuais. No caso da sacerdotisa de Hécate, o agravante estava no fato dela estar na condição de mulher estrangeira, longe de seus familiares, a ela estava sendo exigido que cedesse a sua posição de esposa para uma mulher mais jovem e de status social em melhores condições.<br />A tragédia Medéia tem por princípio o agon, principal requisito da vida do ateniense que se manifesta nas assembléias e tribunais. Nesta dramaturgia, o agon envolvia questões relacionadas à escolha e a ação humana que provinha da ética e obrigava o espectador a fazer uma escolha: a justiça ou a vingança. O poeta nos apresenta a reação dramática de uma mulher, inconformada com o abandono do marido que não considerou todo um passado comum de aventuras. Medéia praticou vários crimes e transgressões em nome do amor que sentia por Jasão.<br />No prólogo tomamos ciência da trajetória de Medéia que veio da remota região de Colquida para o exílio em Corinto. Naquela região, considerada bárbara, ela conheceu Jasão e, movida por uma avassaladora paixão, traiu seu pai ao ajudar o herói Jasão a conquistar o Velocino de Ouro através da arte da magia e encantamentos. O ardil, usado por Medéia foi descoberto, obrigando-a a fugir em companhia de seu amado. Seu pai, o rei Aeetes, empreende uma perseguição ao casal pelos mares, porém, ao fugir, Medéia havia trazido o seu irmão Absyrto, que foi morto em meio à viagem. Ela o executou e esquartejou o seu corpo, jogando os pedaços ao mar para atrasar a perseguição de seu pai. A fuga teve êxito, porque o rei interrompeu a perseguição para recolher os pedaços do corpo do filho, vendo diante de seus olhos o crime de Medéia que pôs fim a sua descendência.<br />O poeta nos expõe uma mulher, cujo comportamento integra o espaço do desvio ao padrão estabelecido e esperado pelo homem grego. Ao evidenciar este crime, o poeta traz à memória dos atenienses o fato de que a protagonista havia estado envolvida em outros crimes de morte. No episódio ocorrido na região de Iolco, Medéia ardilosamente havia providenciado a morte o rei da pior maneira que um ser humano poderia morrer (Eurípides, Medéia, v. 485): através das mãos de suas próprias filhas. Estas foram persuadidas a acreditar que esquartejando o corpo de seu pai, o rei Pélias, em meio a ervas e encantamentos, conseguiriam a proeza de rejuvenescer o velho rei; o resultado foi a destruição de todo o palácio (Eurípides, Medéia, v. 485).<br />Por este crime, o casal foi perseguido pelo filho do rei morto. O atendimento ao pedido de asilo em Corinto foi aceito na condição de Medéia fazer uso de seus conhecimentos mágicos para cessar a seca, a fome e a infertilidade que assolava a região.<br />Nos interrogamos sobre o objetivo da mensagem do poeta ao nos expor uma mulher estrangeira, atuante, detentora de saberes mágicos e considerada mulher de feroz caráter, de hedionda natureza e espírito implacável (Eurípides, Medéia. v. 100). Medéia representa a mulher envolvida em circunstâncias hostis, saiu da casa de seus pais muito jovem para acompanhar o seu marido. Acreditamos que houve uma empatia entre o personagem Medéia e o público feminino, pois casar jovem era uma situação familiar com as quais as mulheres de Atenas, presentes no teatro, se identificavam. Ao assistir uma dramaturgia, o ouvinte se identificava emocionalmente com o drama vivenciado pela protagonista, a ponto de perder o julgamento racional em prol da satisfação e de interesses emotivos, gerando uma tensão entre a simpatia e o julgamento justo.<br />No momento em que a protagonista discursa para o coro que representa as mulheres de Corinto, ela expõe uma tradição na qual todas se reconheceriam, pois desde muito jovem eram destinadas à subordinação à autoridade masculina. O responsável pela família providenciava o seu casamento para o qual era preciso um dote com o objetivo de comprar um marido e cabia à jovem aceitá-lo como senhor com total controle sobre a sua pessoa.<br />O acordo de casamento acontecia entre os homens e as jovens não tinham a oportunidade de escolher o marido, o que levou Medéia a afirmar que de todos os que têm vida, a mulher, seria o ser mais infeliz pela obrigação de aceitar um homem a quem não podiam repudiar, visto que a mulher divorciada não era bem vista nesta sociedade (Eurípides, Medéia, v. 235). Quando chegavam na nova residência não sabiam o que as aguardava, por não terem sido bem instruídas pelos familiares, tinham por obrigação adivinhar qual a melhor maneira de convívio com o esposo. A jovem tendo a sorte de conseguir um bom esposo teria uma vida invejável, caso contrário, viveria sob o jugo da violência para a qual a morte tornar-se-ia o bem mais suave (Eurípides, Medéia, 235-240); em caso de gravidez, por exemplo, a protagonista afirmava preferir lutar com escudo três vezes a parir uma só vez (Eurípides, Medéia, v. 250).<br />O lamento de Medéia tornou-se público através do uso da palavra, da retórica que era um instrumento fundamental para a construção do drama visando expor o cotidiano da mulher ateniense. Diante da sua falta de opção e liberdade, as mulheres, por serem retiradas muito jovens da casa paterna e serem confinadas no interior do oikos, atuariam como mulher e esposa devendo, por obrigação, cuidar dos escravos, do marido, dos filhos e exercer com eficácia as atividades domésticas (Eurípides, Medéia v. 245).<br />O padrão definido como ideal para o comportamento feminino foi construído pelo homem grego que esperava que ela seguisse o modelo mélissa, a saber: ser submissa, silenciosa e passiva, atributos contrários ao comportamento masculino definido como dominante, ativo, agressivo e agente de decisão.<br />No entanto, o comportamento de Medéia trazia à memória dos atenienses o mito de Pandora, de quem, afirmaria Hesíodo, descender toda a funesta geração de mulheres (Hesíodo, Teogonia, v. 585) e que Eurípides complementava ao afirmar serem as mulheres habilíssimas artesãs de todo os males (Eurípides, Medéia, v. 409). Essas palavras marcavam o inconformismo da protagonista com a sua atual situação, Ela expressava o seu desagrado ameaçando os seus inimigos, a saber: três de meus inimigos matarei: o pai, a jovem e meu marido (Eurípides, Medéia v. 375), e, ao mesmo tempo, alertava que ninguém a considere fraca, sem força, sossegada diante do infortúnio, mas de outro modo perigosa contra os seus inimigos (Eurípides, Medéia v. 410). A partir destas palavras, a protagonista de Eurípides, decidiu pela ação de vingança, atitude reconhecida nos heróis trágicos em sua busca desesperada por recuperar a honra ultrajada como o guerreiro Ajax de Sófocles.<br />Ajax e Medéia apresentam atitudes semelhantes: não suportam a idéia de serem vítimas de injustiças e de traição. Ambos não toleram a etimasmene - falta de respeito (Eurípides, Medéia, v. 1355) de seus inimigos que riem de suas atuais condições de fracasso; no caso de Medéia, por estar só - mone (Eurípides, Medéia v. 513) e abandonada - eremos (Eurípides, Medéia v. 255). Medéia decidiu agir com violência por não querer causar riso deixando impunes os seus inimigos (Eurípides, Medéia v. 1050). A sacerdotisa de Hécate deixava transparecer que a mais grave atitude diante de uma vítima de desprezo e fracasso era o riso - gelos (Eurípides, Medéia v. 383), e somente a vingança cruel através da morte poderia reverter esta situação tornando-a vitoriosa diante dos inimigos (Eurípides, Medéia, v. 395).<br />A semelhança entre Ajax e Medéia não é mera coincidência, pois o poeta coloca na personagem atitudes masculinas, mesmo sendo inapropriado para uma mulher agir com inteligência e coragem. O uso da palavra e sua atitude decisiva remetem às ações de heróis que atuavam de forma individual para solucionar uma situação imediata, como nos indicam os termos como ergasteon (Eurípides, Medéia v. 791) definido como algo que deve ser feito; a palavra tolmeteon (Eurípides, Medéia v. 1051) nos remete a algo ousado a ser realizado. O verbo kteno significa a decisão de, em tempo breve, matar, extinguir, exterminar. Com reações próprias de seres passionais, Medéia exibia o seu temperamento movido por forte emoção - thymos, sentimento que marcava toda a trajetória da narrativa, considerada fora da razão, da justiça coletiva, da justa medida; uma ação identificada em povos que viviam fora da cultura. Jasão reforçava este pensamento ao reafirmar que a grande dádiva que ele, cidadão grego, havia ofertado à Medéia foi tê-la tirado de terras bárbaras trazendo-a para residir na cultura helênica que conhecia a justiça, a ordem e as leis (Eurípides, Medéia, v. 535).<br />Medéia muda de atitude visando atingir seu objetivo. Ela passa a agir de acordo com o modelo estabelecido pelos homens, ou seja, submissa, obediente, deixando transparecer que aceitava o destino determinado por Jasão e Creonte. Ela prometia acatar a ordem do rei que havia determinado a sua saída de Corinto (Eurípides, Medéia, v. 927). Para reafirmar o seu arrependimento e compromisso, Medéia envia, através de seus filhos, o presente de núpcias (envenenado) para a noiva de Jasão, e desta maneira ela mata a princesa e o rei.<br />O discurso dissimulado tem por princípio a arte da persuasão, da força da palavra que convence e permitindo a realização de sua vingança. Como mulher, ela não tinha a capacidade do uso da força física precisando, portanto, buscar meios alternativos para fazer valer a sua vontade e vencer o inimigo. A única solução foi usar o conhecimento do qual provinha sua habilidade e o saber que dominava: a arte da magia no uso de filtros e venenos, cujo conhecimento fazia parte de sua tradição familiar por ser sobrinha de Circe, sacerdotisa de Hécate e neta de Hélios.<br />Sua ascendência lhe forneceu força, coragem e magia, atributos essenciais para sacrificar e enterrar os filhos no santuário de Hera Akraia. De acordo com os mitógrafos anteriores ao final do V século, os filhos de Medéia teriam sido mortos pela população de Corinto para vingar a morte de seus soberanos. Entretanto, o poeta Eurípides estabeleceu uma nova vertente mítica mostrando que as crianças haveriam sido executadas como sacrifício aos deuses pela própria sacerdotisa de Hécate. Talvez uma forma cruel e eficaz de vingança contra o abandono do marido e uma maneira de expor o quanto ela era terrível com os seus inimigos, pois, matando os filhos ela extinguia a descendência de Jasão que reconhecia: sem filhos você me destruiu (Eurípides, Medéia, v. 1325).<br />O poeta coloca Medéia fugindo em direção à Atenas, lugar em que a sacerdotisa utilizaria os seus saberes mágicos a serviço do rei Egeu, ao afirmar: cessarei o teu ser sem filhos e te farei semear filhos, tais drogas conheço (Eurípides, Medéia, v. 715). Esta informação nos remete à proposta de Eurípides de usar o palco trágico como o espaço das denúncias relativas às transformações, que aconteciam na sociedade ateniense no final do V século.<br />Analisando a personagem Medéia, algumas questões nos chamam a atenção: a protagonista não representa a mulher grega devido a sua atitude considerada bárbara, como nos informa as palavras de Jasão ao afirmar que nenhuma mulher grega ousaria matar os próprios filhos (Eurípides, Medéia, v. 1340). Então que tipo de mulher ela representaria?<br />Medéia usa a palavra para convencer, apela para a morte visando remover obstáculos, usa da astúcia, da faca e do veneno que, no conjunto, não formam poderes sobrenaturais. As práticas mágicas de Medéia nos indicam o domínio e o conhecimento de ervas, infusões e raízes que não denotam possuir poderes mágicos. Este domínio e saber poderiam ser encontrados em algumas mulheres que circulavam em Atenas, sendo comum entre as mulheres atenienses e estrangeiras que necessitavam do uso de plantas e ervas para fins terapêuticos.<br />Medéia representava a mulher estrangeira que detinha esta habilidade e o conhecimento de sua função e eficácia. A documentação textual nos indica várias mulheres míticas que detinham o conhecimento e o domínio de ervas e filtros para encantamentos como Helena e Circe. Este saber, que se estendeu por tradição às mulheres, consistia na habilidade em manejar o cozimento das ervas, folhas e raízes para fazer infusões e filtros, que, devido ao seu poder de cura, passaram a ser considerados mágicos. Acreditamos que a ausência de conhecimento específico do funcionamento da natureza feminina fomentou a necessidade do domínio do uso das ervas pelas mulheres, com o objetivo de atender aos seus problemas de saúde.<br />O conhecimento das ervas atendia tanto às mulheres casadas quanto às prostitutas e hetairas que necessitavam saber que o efeito de folhas da família das mentas era muito útil para os problemas menstruais; as dores de varizes eram amenizadas com fricção de folhas de hera; a cebola selvagem e o alho triturados com óleo e vinho, tornavam-se eficazes para conter sangramento e secreção vaginal; a erva artemísia atuava sobre o ovário e plantas como a belladona podiam ser usadas como calmante, mas que em porções concentradas tornavam-se abortivas; já as ervas da família do ópium eram eficazes como analgésicos para as mulheres em trabalho de parto.<br />Temos por suposição que Eurípides expõe na habilidade de Medéia, que esta habilidade era um saber prejudicial à comunidade masculina. O seu desagravo seria a extensão do temor dos homens de Atenas pela participação ativa das mulheres junto ao uso das ervas e ungüentos considerados mágicos. A preocupação do poeta com o uso das raízes pode estar direcionada às ervas específicas que visavam despertar o interesse sexual. Um episódio desta natureza pode ser observado na citação da Ilíada (XIV, 198) quando uma mulher solicita à deusa Afrodite que a encante com o desejo e o feitiço do amor para que ela possa usar deste ardil com o seu amado. Acreditamos que esta mulher tenha sido aconselhada a usar as folhas de orquídias trituradas com vinho, um eficaz medicamento contra a impotência masculina - o termo orchis significa testículo em grego - e, no caso das porções/kukeon e filtros mágicos, ao serem ingeridos pelo ser amado, podiam ter como resultado a sua morte.<br />As ervas consideradas mágicas usadas pelas mulheres em forma de banhos e ungüentos, permaneciam em seu corpo em meio a fragrâncias aromáticas, mas havia a possibilidade de causar problemas na virilidade masculina, quando se tratava de ungüentos contraceptivos que podiam fomentar a impotência masculina. Havia plantas, ervas e raízes que também eram conhecidas por suas virtudes apotropaicas e usadas como amuleto contra a má sorte e roubos. Umas faziam prosperar os negócios outras eram eficazes para arruinar a saúde e as atividades do inimigo.<br />Concluímos que o poeta utiliza o espaço do teatro de Atenas, através da personagem Medéia, para fazer uma denúncia, alertando para a emergência de antigos saberes integrando novas práticas sociais como o uso do conhecimento mágico das ervas e filtros para atender desejos individuais. O uso das práticas mágicas das ervas e raízes tanto podia atender às necessidades de medicamentos para curar as doenças femininas, quanto ser usado como veneno para efetuar uma vingança. Medéia com a sua sophia expõe a ambigüidade de um saber que poderia ajudar um amigo com os seus benefícios, mas poderia ser fatal e destruir os inimigos. Como nos afirma Medéia, temido será sempre quem possui este saber, pois aquele que provocou este ódio não celebrará facilmente a bela vitória.<br />Documentos<br />EURÍPIDES. Medeía. Trad. Jaa Torrano, ed. bilíngüe. São Paulo: Hucitec, 1991.<br />HESIODE. Teogonie. Paris: Belles Lettres, 1954.<br />HOMERO. Iliade, Odissée. Paris: Les Belles Lettres, 1974.<br />Bibliografia<br />BERNAND, A. Sociers Grecs. Paris: Fayard, 1991.<br />COULET, C. Communiquer en Grece Ancienne. Paris: Belles Lettres,1996.<br />DETIENNE, M. Os Mestres da Verdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.<br />FINLEY, M. I. O Mundo de Ulisses. Lisboa: Presença,1988.<br />GRMEK, M. Diseases in the Ancient Greek World. London: John Hopkins, 1991.<br />HAVELOCK, E. A Revolução da Escrita na Grécia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.<br />HILL, Bridget. "Para onde vai a História da Mulher?" In: Varia História, Belo Horizonte: FAFICH, 1995, n.º 14, p. 9-21.<br />MARAZZI, M. La Sociedad Micenica. Madrid: Akal, 1982.<br />VERNANT, J. P. O Universo os deuses os homens. São Paulo: Cia das Letras, 2000.<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />A POÉTICA DE ARISTÓTELES<br />Arte Poética - download em pdf<br />A Poética de Aristóteles, em que o filósofo analisou o modo de ser e proceder da epopéia e da tragédia, no primeiro livro, e da comédia, no segundo livro (o que foi perdido), é, sem dúvidas, a obra teórica mais estudada, pela Estética e Filosofia da Arte, de todos os tempos. A obra teve grande influência na teoria literária e na oratória até a Antiguidade tardia, passou pelas tradições culturais helenistas e árabes enquanto era posta de lado pela Europa medieval, até que, editada e impressa no final do séc. XV e início do séc. XVI (a edição veneziana de Aldo Manuzzio), passou a ser leitura obrigatória em todas as escolas de Arte européias, principalmente as italianas. Acontece que, paralelamente, no Renascimento Italiano, pela primeira vez, a pintura e a escultura passaram a ser igualmente consideradas belas artes e a ter um status social equivalente ao das artes poéticas. Nesse momento, a recepção da Poética tomou o que Aristóteles dizia sobre as artes literárias, para aplicar à reflexão também das demais artes, inclusive as artes plásticas, que não estavam no escopo original do Filósofo.<br />Portanto, ainda que Aristóteles não tenha pensado sobre as artes, tal como as entendemos hoje, o que ele escreveu foi decisivo ao longo da história das artes ocidentais, especialmente após o Renascimento. A Poética de Aristóteles muitas vezes chegou a determinar os cânones de vários estilos, principalmente, os de inspiração clássica: classicismos e neoclassicismos diversos. E mesmo quando se queria contestar alguma tradição ou escola artística, a Poética serviu, quando não era o modelo a seguir, de modelo a contestar, como, por exemplo, ao se criticar o naturalismo, ou o figurativismo, ou as famosas prescrições de unidade (de tempo, de espaço, de ação) na dramaturgia. Assim, se Aristóteles não pensou as artes tal como as entendemos hoje, em contrapartida ele foi decisivo para o que entendemos hoje como arte. Muitas das clivagens, dos valores, das categorias e dos princípios das teorias estéticas modernas e contemporâneas têm origem nas especulações de Aristóteles sobre a poesia épica, sobre a música e sobre a poesia dramática.<br />Fonte: http://www.ifcs.ufrj.br/~fsantoro/ousia/sobre_poetica.htm<br /><br />Arte no Pensamento de Aristóteles - de Fernando Santoro - download pdf<br /><br />ARTE POÉTICA<br />Por: Antônio Cândido Franco<br />Arte poética é expressão que remete, em primeiro lugar, para Aristóteles (384-322 a. C.) e para o seu conhecimento tratado sobre a poesia. Ao que se pensa e julga saber, este tratado, composto na parte final da vida ao autor, revela do carácer acromático de importante parte do corpo textual aristotélico. Recorre, contudo, a um texto anterior, produzido em contexto muito mais aberto, o diálogo Dos Poetas, onde alguns dos motivos estruturadores da arte poética aristotélica, como a “imitação” ou a “catarse”, tinham sido já, ao que parece, visto que o diálogo se perdeu e só muito posteriormente foi reconstituído, expostos e desenvolvidos.<br />A Arte Poética de Aristóteles era, na sua origem, constituída por dois livros e não apenas por aquele que hoje conhecemos e a tradição nos legou e que passa por ser o primeiro dos dois. Tanto as paráfrases árabes do texto, da autoria de Avicena (séc. XI) e de Averróis (séc. XII), como a versão siriáca em que ambas se inspiram (séc. VII), de que resta hoje um fragmento, desconheciam já a existência do segundo livro da Poética. O carácter acroamático do texto, muito mais destinado ao esclarecimento de discípulos que ao manuseamento do público, explica, pelo menos em parte, o desaparecimento do livro, que versaria, ao que se sabe, a comédia, como o primeiro versa a tragédia.<br />A Arte Poética de Aristóteles, tal como hoje a conhecemos, divide-se em duas partes. A primeira desenvolve um conceito de poesia como imitação de acções , que se afasta, ou mesmo contrapõe, ao de Platão, para quem a poesia era narração e não imitação (cf. Livro III, A República). A arte poética em Aristóteles requer operadores directos, agentes ou personagens, enquanto em Platão exige (apenas) recitadores. A imitação aristotélica, processando-se por meios, objectos e modos diferentes, não se confunde, porém, com cópia ou reprodução fiel da realidade, carreando antes, pela percepção do geral a que filosoficamente aspira, criação autónoma e transfiguração heterogénea. A segunda parte da Poética, a mais extensa, estuda a tragédia, uma das espécies ou géneros da poesia dramática, e faz a comparação da tragédia e da epopeia, um género da poesia narrativa ou não-dramática.<br />Seria, contudo, flagrante injustiça ver apenas no texto de Aristóteles um códice técnico de dois géneros poéticos, a tragédia e a epopeia, como aconteceu durante muitos e muitos anos, onde sobressaem os do Renascimento com as suas paráfrases normativas, ou um sistema de elaboradas regras, capaz de constituir um cânone compositivo, seguro e perfeito. A Arte Poética de Aristóteles aparece-nos hoje, depois do romantismo e dos modernismos, não só como exemplo de rigor e fundamento de estudos clássicos, o que nunca deixou de ser, mas, sobretudo, como o primeiro texto que tentou com êxito compreender e problematizar a singularidade do fenómeno poético. O livro do estagirita dedicado à poesia tem o enorme mérito de ser um estudo empírico e descritivo, que parte quase sempre dos fenómenos para as leis e não destas para aqueles, o que lhe assegura uma perenidade invejável. Trata-<br />-se de uma poética generativa, se assim podemos dizer, e não normativa, dos textos poéticos.<br />Neste sentido, a reflexão aristotélica não terminou ainda; a arte poética continua viva e de excelente saúde. Se, por um lado, a Poética continua a ser indispensável para aqueles que queriam conhecer o funcionamento não da tragédia enquanto género universalmente válido, o que foi o erro das poéticas latinas e renascentistas, de Horácio a Boilaeu, mas da tragédia circunscrita ao tempo de Aristóteles, oq ue leva a aceitar que sem o estagirita os trabalhos sobre a tragédia de Wilamowitz ou de Nietzsche dificilmente poderiam ter sido escritos, por outro, o livro do grego mostra-se, em termos de teoria da literatura, o primeiro elo de uma cadeia que, até aos seus mais recentes desenvolvimentos, de Jakobson a Todorov, nunca o dispensou, até quando contra ele pensa, o que, diga-se, poucas vezes tem acontecido.<br />Entre nós, António Telmo, na linha de um neo-aristotélico como Álvaro Ribeiro, deu recentemente à estampa um livro chamado Arte Póetica (1963; 1993), onde se percebe a actualização, em termos de modernidade literária portuguesa, de Pessoa a Cesariny, da matriz aristotélica, e isso mesmo quando o autor, que pretende passar de uma filosofia especulativa a uma filosofia operativa, de tipo dramática, conduzindo o pensamento à linguagem e detectando nesta uma energia activa, nos lembra, por subrepção, as concepções linguísticas do Crátilo de Platão.<br />BIB.: Augustus W. von Schlegel, “Lectures on the Dramatic Art and Literature”, in The Theatre of the Greeks, 1836, pp. 291-480; Fernando Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa (Prefácio de Álvaro Ribeiro), 1944; G. Genette, “Frontières du Récit”, in Figures II, 1969; T. Todorov, Poétique de la Prose, 1971; R. Jakobson, Question de Poétique, 1973; Aristóteles, Poética (Tradução, prefácio, Introdução, Comentário e Apêndices de Eudoro), 2ª. ed. rev. aumentada, 1986; António Telmo, “Possessos (Teoria daTragédia)”, in Arte Poética (2ª. Rev. aumentada), 1993.<br />António Cândido Franco<br />Fonte: http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/arte_poetica.htmPROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-8067190640874304482009-04-22T12:04:00.000-07:002009-05-06T04:52:38.748-07:00LITERATURA AFRICANA DE EXPRESSÃO PORTUGUESA<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizDSRQOisKRBtbDF_JM1zARo6w5py9fZwtAiUUTw0kJbiSuF4QZ4tP37_NApVtUWkSMGrMM0ZaQW_tDJrr4VOKDiUNQ5I472i3mKU0ZN01x4j_Iy3X9O4ZWVOwkwE3prpkMIOt1ZGMjjE/s1600-h/africa.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 320px; height: 221px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizDSRQOisKRBtbDF_JM1zARo6w5py9fZwtAiUUTw0kJbiSuF4QZ4tP37_NApVtUWkSMGrMM0ZaQW_tDJrr4VOKDiUNQ5I472i3mKU0ZN01x4j_Iy3X9O4ZWVOwkwE3prpkMIOt1ZGMjjE/s320/africa.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5330184834544064386" /></a><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br /><br /><br />ANTOLOGIA DE POESIA DE CORDEL<br /><br />A Seca do Ceará<br /><br />(fragmento)<br /><br />Leandro Gomes de Barros<br /><br />Seca as terras as folhas caem,<br /><br />Morre o gado sai o povo,<br /><br />O vento varre a campina,<br /><br />Rebenta a seca de novo;<br /><br />Cinco, seis mil emigrantes<br /><br />Flagelados retirantes<br /><br />Vagam mendigando o pão,<br /><br />Acabam-se os animais<br /><br />Ficando limpo os currais<br /><br />Onde houve a criação.<br /><br />Não se vê uma folha verde<br /><br />Em todo aquele sertão<br /><br />Não há um ente d'aqueles<br /><br />Que mostre satisfação<br /><br />Os touros que nas fazendas<br /><br />Entravam em lutas tremendas,<br /><br />Hoje nem vão mais o campo<br /><br />É um sítio de amarguras<br /><br />Nem mais nas noites escuras<br /><br />Lampeja um só pirilampo.<br /><br />Aqueles bandos de rolas<br /><br />Que arrulavam saudosas<br /><br />Gemem hoje coitadinhas<br /><br />Mal satisfeitas, queixosas,<br /><br />Aqueles lindos tetéus<br /><br />Com penas da cor dos céus.<br /><br />Onde algum hoje estiver,<br /><br />Está triste mudo e sombrio<br /><br />Não passeia mais no rio,<br /><br />Não solta um canto sequer.<br /><br />Tudo ali surdo aos gemidos<br /><br />Visa o espectro da morte<br /><br />Como a nauta em mar estranho<br /><br />Sem direção e sem Norte<br /><br />Procura a vida e não vê,<br /><br />Apenas ouve gemer<br /><br />O filho ultimando a vida<br /><br />Vai com seu pranto o banhar<br /><br />Vendo esposa soluçar<br /><br />Um adeus por despedida.<br /><br />A Festa dos Cachorros<br /><br />(fragmento)<br /><br />José Pacheco<br /><br />Caro leitor se não lestes<br /><br />Mas alguém já vos contou <br />Que nos remotos passados <br />Até barata falou <br />Porém isto foi no tempo <br />Quando o trancoso reinou <br /> <br />Eu ainda estou lembrado <br />Que meus bisavós contavam <br />Muitas histórias passadas <br />De quando os bichos falavam <br />Como bem fosse a da festa <br />Quando os cachorros casavam <br /> <br />Nesse tempo os animais <br />Era tudo interesseiro <br />Só se casavam com bichas <br />Que os pais tinham dinheiro <br />Tanto que devido a isto <br />Um gato morreu solteiro <br /> <br />Contudo sempre viviam <br />Em regimes sociais <br />Respeitando aos governos <br />Nos atos policiais <br />Crendo no catolicismo <br />Conforme a lei de seus pais.<br /><br />Satisfação de Caboclo<br /><br />Constantino Cartaxo<br /><br />(fragmento)<br /><br />Tivemos muita alegria,<br /><br />lhe asseguro, seu Doutô.<br /><br />Nós plantemo, nós plantemo<br /><br />nós vimo a planta nascendo<br /><br />na terra que se abria.<br /><br />Cumé bonito o roçado!<br /><br />Despois que o inverno pegou<br /><br />Foi a lavoura ingrossando,<br /><br />no mei o mato brotando<br /><br />e nós na inxada agarrado.<br /><br />Meus dez fio, meus dez moleque...<br /><br />─ eram dez moleque, dez ─<br /><br />impariado ao meu lado<br /><br />puxando cobra p'rus pés.<br /><br />Chega acho bom rescordá!<br /><br />Eita anozim de fartura!<br /><br />E arrescordando agradeço<br /><br />a nosso Deus das artura.<br /><br />Melancia carreguêmo,<br /><br />deformando os caçuá.<br /><br />Nosso feijão parecia<br /><br />quiném gáia de juá,<br /><br />caruçudo em toda bage.<br /><br />Pé de mi, na roça, quage<br /><br />caía cum seu carrêgo.<br /><br />E o arroz? Vixe, meu nego!<br /><br />Acredite se quizé:<br /><br />Quage um pé num fica impé!<br /><br />A Morte da Natureza<br /><br />Gerardo Carvalho<br /><br />(fragmento)<br /><br />Meu caro leitor amigo<br /><br />Eu agora vou falar <br />Duma triste realidade <br />Que está a me preocupar <br />Pois em nome do "progresso" <br />Que na verdade é um regresso <br />Tão botando é pra matar. <br /><br />Não sei se vai concordar<br /><br />O colega ao me ler <br />Mas é mesmo um tanto triste <br />Quando a gente chegar a ver <br />A fumaça se alastrando <br />E o veneno se espalhando <br />Fazendo o povo morrer... <br /><br />Antes mesmo de nascer <br />Morre um montão de crianças <br />Em Cubatão por exemplo <br />Poucas são as esperanças <br />De se ter vida melhor <br />Sem que aconteça o pior <br />Continuando as matanças! <br /><br />Tudo isso são ganâncias <br />Dos que pensam ser donos <br />Para ganharem dinheiro <br />Deixavam o povo em abandonos <br />Enquanto há cancerosos <br />Estão aí os poderosos <br />Bem sentados nos seus tronos. <br /><br />Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho dos Tucuns<br /><br />PRETINHO -- Sai daí, cego amarelo,<br /><br />Cor de couro de toucinho!<br /><br />Um cego da tua forma<br /><br />Chama-se abusa-vizinho --<br /><br />Aonde eu botar os pés,<br /><br />Cego não bota o focinho!<br /><br />CEGO - Já vi que seu Zé Pretinho <br /><br />É um homem sem ação --<br /><br />Como se maltrata o outro <br /><br />Sem haver alteração?!...<br /><br />Eu pensava que o senhor <br /><br />Tinha outra educação!<br /><br />P. -- Esse cego bruto, hoje,<br /><br />Apanha, que fica roxo!<br /><br />Cara de pão de cruzado,<br /><br />Testa de carneiro mocho --<br /><br />Cego, tu és o bichinho,<br /><br />Que comendo vira o cocho!<br /><br />C. -- Seu José, o seu cantar<br /><br />Merece ricos fulgores;<br /><br />Merece ganhar na saia<br /><br />Rosas e trovas de amores --<br /><br />Mais tarde, as moças lhe dão<br /><br />Bonitas palmas de flores!<br /><br />P. -- Cego, eu creio que tu és<br /><br />Da raça do sapo sunga!<br /><br />Cego não adora a Deus --<br /><br />O deus do cego é calunga!<br /><br />Aonde os homens conversam,<br /><br />O cego chega e resmunga!<br /><br />C. -- Zé Preto, não me aborreço<br /><br />Com teu cantar tão ruim!<br /><br />Um homem que canta sério<br /><br />Não trabalha verso assim --<br /><br />Tirando as faltas que tem,<br /><br />Botando em cima de mim!<br /><br />P. -- Cala-te, cego ruim!<br /><br />Cego aqui não faz figura!<br /><br />Cego, quando abre a boca, <br /><br />É uma mentira,pura --<br /><br />O cego, quanto mais mente,<br /><br />Ainda mais sustenta e jura!<br /><br />C. -- Esse negro foi escravo,<br /><br />Por isso é tão positivo!<br /><br />Quer ser, na sala de branco,<br /><br />Exagerado e altivo --<br /><br />Negro da canela seca<br /><br />Todo ele foi cativo! <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Manifesto Kordelista de 1982 - Franklin Maxado<br /><br />(leia-o vertikalmente)<br /><br />Nesta data rejistrada, <br />Fazem 60 anos <br />Ke o Mário de Andrade <br />E muitos outros seus manos <br />Instalaram a "Semana <br />de 22", em ke se ufana <br />A revolusão dos planos <br /> Nesta Bienal do Livro, <br />Do Kordel, sou pioneiro. <br />Pela terseira vez, mostro <br />O poema brazileiro, <br />Fujindo de alienasões <br />Prokurando afirmasões <br />Pra um saber verdadeiro. <br />Segindo todo trasado <br />Da "Semana Modernista", <br />Devemos nasionalizar <br />Semente kolonialista. <br />Dezenvolver nosas raízes <br />Nos afirmar entre paízes <br />Kom marka personalista. <br /> Esta Bienal kanta sete <br />Grandes inteletuais <br />Primeiro, Mário de Andrade, <br />Que, do Kordel, tirou az: <br />O anti-eroi "Macunaima". <br />Estudou a sua rima <br />Em traballos majistrais <br />Carlos Drummond de Andrade <br />É o outro omenajeado ... <br />Um dos maiores da Língua <br />E ke é afisionado <br />Da leitura de Kordel <br />E ke só não é menestrel <br />Porke é noso maior bardo <br /> O terseiro é nordestino <br />E se diz um narrodor <br />Das estórias do seu povo <br />Ke ouve kom todo amor <br />É Jorge Amado, kerido <br />No mundo é traduzido <br />Kom romanses de valor <br />O Brazil fez sua Bíblia <br />Kom o livro "Os Sertões", <br />Porke Euclides da Cunha <br />Deskreveu poetasões, <br />Pois mostrou o nordestino, <br />Omem sagaz, mas franzino, <br />Exposto a inkonpreensões. <br /> Monteiro Lobato fez <br />Um Kordel para o matuto, <br />O "Jeca Tato", doente, <br />Mas brszileiro astuto. <br />E a obra de Lobato <br />Merese todo aparato <br />Pra se divulgar seu kulto <br />Mas outro paulista merese <br />Louvasões da Bienal. <br />É o Menotti del Picchia, <br />Ke viu a vida rural. <br />Eskreveu o "Juca Mulato", <br />Um kaipira do mato, <br />Sua obra principal <br /> O sétimo a reseber <br />Atensões, é Graciliano, <br />De nome Ramos firmado, <br />Nasido alagoano. <br />Eskreveu sem piegismo <br />Dentro do rejionalismo <br />Sobre seka e seu dano. <br />E, aki, no manifesto, <br />Dou valor ao kordelista. <br />Poso até não ser poeta, <br />Mas sinto o seu artista. <br />Gravador ou glozador, <br />Violero ou kantador, <br />Trovador ou repentista. <br /> Do Kordel vamos pro mundo, <br />Sem komplexo ou problema, <br />Sem mendigar as migallas <br />Do bankete do sistema <br />Tekinológico dos grandes. <br />Daki, subamos aos Andes <br />E vensamos o dilema <br />Se o "poder vem do povo" <br />E se o povo é kem faz <br />A Língua ke nós falamos, <br />Não kero ser mais lokuaz, <br />Por uma Nasão popular! <br />Pela kultura do lugar! <br />E ke tudo seja "Braz"! <br /> <br /> <br /> <br />Sejamos kordelenses - (por um Kordel <br />recifense); <br /> <br />Sejamos kordelinos - (por um Kordel <br />nordestino); <br /> <br />Sejamos kordeleiros - (por um Kordel <br />brazileiro); <br /> <br />Sejamos kordelianos - (por um Kordel <br />amerikano); <br /> <br />Sejamos kordeliais - (por um Kordel <br />internasional); <br /> <br />Sejamos kordelistas - (por um Kordel <br />kosmopolita). <br /> <br /> <br />São Paolo, S.P., VII Bienal Internacional <br />do Livro, 19 a 29 de agosto de 1982. <br /> <br />Franklin MAXADO <br /> <br /> <br /> <br /> <br />* Eskrito dentro de noso <br />projeto ortografiko-fonético <br />para a Língua Portugeza <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />AGOSTINHO NETO - POESIAS<br /><br />Biografia<br /><br />Nasceu em Catete, Angola, em 1922, faleceu em 1979. Estudos primários e secundários em Angola, licenciado em Medicina pela Universidade de Lisboa. Em Portugal, sempre esteve ligado à actividade política, onde com Lúcio Lara e Orlando de Albuquerque fundou a revista Momento, em 1950. Como aconteceu a outros escritores africanos foi preso e desterrado para Cabo Verde, tendo mais tarde conseguido a fuga para o continente. Presidente do MPLA, foi o primeiro presidente de Angola.<br /><br />Obra Poética: <br /><br />Quatro Poemas de Agostinho Neto, 1957, Póvoa do Varzim, e.a.;<br /><br />Poemas, 1961, Lisboa, Casa dos Estudantes do Império;<br /><br />Sagrada Esperança, 1974, Lisboa, Sá da Costa (inclui os poemas dos dois primeiros livros);<br /><br />A Renúncia Impossível, 1982, Luanda, INALD (edição póstuma).<br /><br />O Choro de África <br />O choro durante séculos <br />nos seus olhos traidores pela servidão dos homens <br />no desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas <br />nos batuques choro de África <br />nos sorrisos choro de África <br />nos sarcasmos no trabalho choro de África <br /><br />Sempre o choro mesmo na vossa alegria imortal <br />meu irmão Nguxi e amigo Mussunda <br />no círculo das violências <br />mesmo na magia poderosa da terra <br />e da vida jorrante das fontes e de toda a parte e de todas as almas <br />e das hemorragias dos ritmos das feridas de África <br /><br />e mesmo na morte do sangue ao contato com o chão <br />mesmo no florir aromatizado da floresta <br />mesmo na folha <br />no fruto <br />na agilidade da zebra <br />na secura do deserto <br />na harmonia das correntes ou no sossego dos lagos <br />mesmo na beleza do trabalho construtivo dos homens <br /><br />o choro de séculos <br />inventado na servidão <br />em historias de dramas negros almas brancas preguiças <br />e espíritos infantis de África <br />as mentiras choros verdadeiros nas suas bocas <br /><br />o choro de séculos <br />onde a verdade violentada se estiola no circulo de ferro <br />da desonesta forca <br />sacrificadora dos corpos cadaverizados <br />inimiga da vida <br /><br />fechada em estreitos cérebros de maquinas de contar <br />na violência <br />na violência <br />na violência <br /><br />O choro de África e' um sintoma <br /><br />Nos temos em nossas mãos outras vidas e alegrias <br />desmentidas nos lamentos falsos de suas bocas - por nós! <br />E amor <br />e os olhos secos. <br /><br />(Poemas, 1961)<br /><br />Fogo e Ritmo <br />Sons de grilhetas nas estradas <br />cantos de pássaros <br />sob a verdura úmida das florestas <br />frescura na sinfonia adocicada <br />dos coqueirais <br />fogo <br />fogo no capim <br />fogo sobre o quente das chapas do Cayatte. <br /><br />Caminhos largos <br />cheios de gente cheios de gente <br />em êxodo de toda a parte <br />caminhos largos para os horizontes fechados <br />mas caminhos <br />caminhos abertos por cima <br />da impossibilidade dos braços. <br />Fogueiras <br />dança <br />tamtam <br />ritmo <br />Ritmo na luz <br />ritmo na cor <br />ritmo no movimento <br />ritmo nas gretas sangrentas dos pés descalços <br />ritmo nas unhas descarnadas <br /><br />Mas ritmo <br />ritmo. <br /><br />Ó vozes dolorosas de África!<br /><br />................................<br /><br />Noite <br /><br />Eu vivo <br />nos bairros escuros do mundo <br />sem luz nem vida. <br /><br />Vou pelas ruas <br />às apalpadelas <br />encostado aos meus informes sonhos <br />tropeçando na escravidão <br />ao meu desejo de ser. <br /><br />São bairros de escravos <br />mundos de miséria <br />bairros escuros. <br /><br />Onde as vontades se diluíram <br />e os homens se confundiram <br />com as coisas. <br /><br />Ando aos trambolhões <br />pelas ruas sem luz <br />desconhecidas <br />pejadas de mística e terror <br />de braço dado com fantasmas. <br /><br />Também a noite é escura.<br /><br />................................<br /><br />Confiança <br />O oceano separou-se de mim <br />enquanto me fui esquecendo nos séculos <br />e eis-me presente <br />reunindo em mim o espaço <br />condensando o tempo. <br /><br />Na minha história <br />existe o paradoxo do homem disperso <br /><br />Enquanto o sorriso brilhava <br />no canto de dor <br />e as mãos construíam mundos maravilhosos <br /><br />john foi linchado<br /><br />o irmão chicoteado nas costas nuas <br />a mulher amordaçada <br />e o filho continuou ignorante <br /><br />E do drama intenso <br />duma vida imensa e útil <br />resultou a certeza <br /><br />As minhas mãos colocaram pedras <br />nos alicerces do mundo <br />mereço o meu pedaço de chão.<br /><br />....................................<br /><br />Civilização Ocidental<br /><br />Latas pregadas em paus <br /><br />fixados na terra <br /><br />fazem a casa <br /><br />Os farrapos completam <br /><br />a paisagem íntima <br /><br />O sol atravessando as frestas <br /><br />acorda o seu habitante <br /><br />Depois as doze horas de trabalho <br /><br />escravo <br /><br />Britar pedra <br /><br />acarretar pedra <br /><br />britar pedra <br /><br />acarretar pedra <br /><br />ao sol <br /><br />à chuva <br /><br />britar pedra <br /><br />acarretar pedra <br /><br />A velhice vem cedo <br /><br />Uma esteira nas noites escuras <br /><br />basta para ele morrer <br /><br />grato <br /><br />e de fome. <br /><br />ANTIGAMENTE ERA <br /> <br />Antigamente era o eu-proscrito <br />Antigamente era a pele escura-noite do mundo <br />Antigamente era o canto rindo lamentos <br />Antigamente era o espírito simples e bom <br /> <br />Outrora tudo era tristeza <br />Antigamente era tudo sonho de criança <br /> <br />A pele o espírito o canto o choro <br />eram como a papaia refrescante <br />para aquele viajante <br />cujo nome vem nos livros para meninos <br /> <br />Mas dei um passo <br />ergui os olhos e soltei um grito <br />que foi ecoar nas mais distantes terras do mundo <br /> <br />Harlem <br />Pekim <br />Barcelona <br />Paris <br />Nas florestas escondidas do Novo Mundo <br /> <br />E a pele <br />o espírito <br />o canto <br />o choro <br />brilham como gumes prateados <br /> <br />Crescem <br />belos e irresistíveis <br />como o mais belo sol do mais belo dia da Vida. <br /> <br />(1951)<br /><br />kinaxixi<br /><br />Gostava de estar sentado <br /><br />num banco do kinaxixi <br /><br />às seis horas duma tarde muito quente <br /><br />e ficar... <br /><br />Alguém viria <br /><br />talvez sentar-se <br /><br />sentar-se ao meu lado <br /><br />E veria as faces negras da gente <br /><br />a subir a calçada <br /><br />vagarosamente <br /><br />exprimindo ausência no kimbundu mestiço <br /><br />das conversas <br /><br />Veria os passos fatigados <br /><br />dos servos de pais também servos <br /><br />buscando aqui amor ali glória <br /><br />além uma embriaguez em cada álcool <br /><br />Nem felicidade nem ódio <br /><br />Depois do sol posto <br /><br />acenderiam as luzes <br /><br />e eu <br /><br />iria sem rumo <br /><br />a pensar que a nossa vida é simples afinal <br /><br />demasiado simples <br /><br />para quem está cansado e precisa de marchar. <br /><br /><br />(Sagrada esperança)<br /><br />Consciencialização<br /><br />Medo no ar! <br /><br /><br />Em cada esquina<br /><br />sentinelas vigilantes incendeiam olhares<br /><br />em cada casa<br /><br />se substituem apressadamente os fechos velhos<br /><br />das portas<br /><br />e em cada consciência<br /><br />fervilha o temor de se ouvir a si mesma <br /><br /><br />A historia está a ser contada<br /><br />de novo <br /><br /><br />Medo no ar! <br /><br /><br />Acontece que eu<br /><br />homem humilde<br /><br />ainda mais humilde na pele negra<br /><br />me regresso África<br /><br />para mim<br /><br />com os olhos secos. <br /><br /><br />(Sagrada esperança) <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />CASTRO SOROMENHO - TERRA MORTA (Inclusive comparação com a obra de Pepetela)<br /><br />Castro Soromenho e a agonia da terra: algumas considerações neo-realistas <br />Por: Robson DUTRA<br /><br />Robson Lacerda Dutra Universidade Federal do Rio de Janeiro FAPERJ <br /><br />Ao publicar, em 1985, Jangada de Pedra, José Saramago formula considerações essenciais sobre a literatura de seu país e da península ibérica, que acabam por evocar a relação da literatura de Portugal e Espanha com a brasileira e as africanas. O romance tem seu eixo temático desenvolvido em torno da insólita cisão da península ibérica do continente europeu, que, gradualmente, dele se afasta, trilhando nova rota por um novo mar nunca dantes navegado. <br /><br />Ao longo da trama surgem diversas personagens portuguesas e espanholas que terminam por se unir no curso dessa épica moderna, visto que todas buscam os motivos que originam o desligamento de seus países do continente europeu, sobretudo porque crêem ser, ainda que indiretamente, responsáveis pela cisão. As relações desenvolvidas por esses protagonistas apontam para o denso relacionamento que envolve, há séculos, Portugal, Espanha e acabam, igualmente, por envolver América Latina e África. É, pois, no espaço marítimo situado entre América e África que a península a jangada a que o título alude, aporta, reforçando, com isso, que os laços entre Portugal, Espanha, América e África são indissociáveis. <br /><br />No que se refere à produção literária em África, percebemos que, por questões de cunho histórico, suas literaturas se desenvolveram apenas após o processo de independência do Brasil, ou seja, a partir da segunda metade do século XIX, originadas pelo maior afluxo lusitano às terras africanas na tentativa de repor as perdas econômicas advindas do processo de libertação do Brasil. Sob a estética romântica surgem, portanto, como aponta Pires Laranjeira , obras como os Sonetos de um mercador, de autoria do governador Luis Mendes de Vasconcelos e Espontaneidades da minha alma, de José Maia Ferreira, em 1849, que bebem de fontes românticas em crônicas e relatos de exótica literatura de viagens. Se não apontam temáticas diretamente inerentes à cultura africana, esses escritos de algum modo, situam a África como locus de enunciação de algumas questões literárias emergentes. <br /><br />É ainda sob a égide romântica que se estabelecem relações dialógicas entre a literatura portuguesa e a brasileira. Datam desta época temas literários baseados em questões autóctones brasileiras e, por isso, mais distanciadas da estética lusitana. Ainda que por vezes Portugal considere a literatura brasileira sob perspectivas colonialistas, a produção nacional acaba por impor elementos estéticos que passam a dominar diversos círculos literários e a estabelecer um cânone distintamente nacional. <br /><br />Como exemplo, e aproximando-nos da questão naturalista que norteia este texto, podemos citar o comentário publicado por Machado de Assis por ocasião da publicação, em Portugal, de O Crime do padre Amaro, por Eça de Queirós. O escritor brasileiro reconhece na obra traços naturalistas que, «como martelo vibrante, estilhaça a estética romântica» e põe em xeque a realidade advinda da experiência e da observação, paradigmas da relação intrínseca que passa a se estabelecer entre facto e ficto. A crítica machadiana delineia o vínculo placentário a que Antonio Candido faz alusão ao referir-se à produção literária no Brasil e Portugal e, de certo modo, reverte as relações «colonialistas» antes existentes, posto que a literatura brasileira passa a exercer influência constante na portuguesa, resultado do dialogismo a que nos referimos anteriormente. <br /><br />Este sistema de intercâmbio político-social e literário se mantém e é notadamente reforçado na produção naturalista originada a partir de 1940. Portugal, ainda que sob a denominação de neo-realismo, exacerba a leitura por parte de autores como Alves Redol, Fernando Namora e Branquinho da Fonseca, por exemplo, de escritos de Raquel de Queirós, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, produzida na década anterior, e que passa a ser o leitmotiv de temas portugueses, centrado na terra e na realidade social. No prefácio de Gaibéus, obra que, em 1940, inaugura o neo-realismo português, Redol afirma, tal como Eça fizera, que seu romance não pretende ser reconhecido como obra de arte, porque é, antes de tudo, um documento vivo fixado no Ribatejo e no caos social ali localizado. Posteriormente, contudo, ou seja, após denunciar o esfacelamento daquela sociedade, metonímia de Portugal, poderá vir a ser «o que os outros entenderem» . O impasse inicialmente criado e que estabelece limites entre literatura e obra de arte é resolvido pela expressão «antes de tudo», ou seja, o real valor da literatura reside na observação e na experiência que retratam integralmente a realidade vivida. <br /><br />Esta premissa é a que, anteriormente, embalara a revista literária Orpheu (1917), marco inaugural do modernismo português e que expressou sua crítica à opacidade cultural lusitana através de poemas de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, seus mentores. Ainda que apenas dois números tenham sido lançados, a realidade neles observada se opõem fortemente à imaginada e se expressa em textos veementemente recusados pela sociedade da época, como sucedera, por exemplo, com Mensagem, de Pessoa, que influenciado e perturbado pelo saudosismo revela «o fulgor baço da terra» imersa no nevoeiro de um Portugal disperso no tempo e na história . <br /><br />O neo-realismo português representou, sobretudo, reação às idéias veiculadas por Presença, publicação literária que sucedeu Orpheu e que foi editada entre 1927 e 1940. A total liberdade criativa, o psicologismo, a rejeição de estetização literária e a neutralidade preconizados por José Régio, um dos fundadores da revista , cedem lugar à arte comprometida com ideais calcados na firme observação do real e sua figuração no momento retratado. A forte crítica neo-realista a Presença se deve, dentre outras razões ao momento político nacional que reage ao fascismo europeu e, que em Portugal é representado pelo governo absolutista de Antônio Salazar. Essa reação começou a ser delineada em 1934 com O Diabo, jornal literário que teve sua primeira e única edição cassada pelo regime totalitário, mas que foi eficaz em expressar a necessidade de a literatura, a exemplo do que ocorrera no Brasil, se ocupar de fatos alarmantes da realidade nacional. É, pois, nesse contexto que Redol publica o já aludido Gaibéus, cujo título se refere ao equivalente ao vocábulo «bóia-fria» em português do Brasil, pondo em cena personagens excluídos do discurso histórico oficial, neste caso, os colhedores de arroz do distante Ribatejo. A chegada à plantação, os salários irrisórios, o trabalho semi-escravo, a paralisação do trabalho e a punição dos grevistas exacerbam as desigualdades sociais regidas pelo capitalismo em um texto denso que rememora, por exemplo, a descrição feita por Émile Zola em seu Germinal dos trabalhadores das distantes minas de carvão de Montsou e de sua árdua tentativa de sobreviver dignamente em situação político-social idêntica. Como forma de ilustrar o ciclo perverso e contínuo que rege as relações sociais e econômicas, a obra de Redol termina com o embarque dos gaibéus rumo a outras colheitas e à perpetuação das desigualdades. <br /><br />No caso específico da literatura angolana, a necessidade de retratação do real vivido e da estagnação social vai ao encontro de um movimento liderado por intelectuais e que acaba por ultrapassar as fronteiras nacionais para atingir outros países da África dita lusófona. «Vamos descobrir Angola» torna-se, em 1948, o salvo-conduto para a implementação dos estudos africanos que haviam sido postos de lado até então. Tal como afirma Memmi , a reprodução de padrões colonialistas servira de paradigma literário ao colonizado que, por sua vez, abordava temas telúricos africanos de modo superficial, posto que a literatura portuguesa hegemônica considerava questões endógenas incapazes de fomentar uma produção «séria». A introdução, portanto, de temas africanos nas letras e nas artes, aliados ao estudo da história do continente, surge de modo inovador e soma-se a outro movimento da década de 40, revestido de contornos nitidamente naturalistas. Negritude visava a reintegrar o negro em um patamar de dignidade humana e artística que lhe fora negado até então. Nomes como Léopold Senghor, Aimé Césaire e Leon Damas, escoltados por artistas e intelectuais como Pablo Picasso, Andrè Breton, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Manuel Ferreira, Alfredo Margarido, Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade, reconduzem o negro ao curso de sua história, revelando toda a pujança de sua cultura e o maniqueísmo colonialista que ocultara e reduzira a grandeza de suas origens. A amplitude atingida por Negritude universaliza a questão racial e estabelece novos diálogos, como, por exemplo, o da poeta moçambicana Noêmia de Souza que, em 1949, escreve o poema «A Billie Holliday, cantora». Aprisionada na solidão de seu quarto escuro, Noêmia é inspirada pela voz magoada da cantora norte-americana na canção «Into each heart some rain must fall» e entende seu lamento como um clamor racial que não distingue nacionalidade. É na lírica de Noêmia de Souza que lemos também o poema «Moça das docas», em que a poeta narra as desventuras das mulheres negras subjugadas por «homens loiros e tatuados de portos distantes», que demandam o direito à esperança do retorno à ilusão, à felicidade e segurança de um «novo dia luminoso que se avizinha» . <br /><br />É este, portanto, o contexto em que surge, em Angola, a produção de Castro Soromenho e se estabelece a «matriz neo-realista» da qual se destaca a chamada «Trilogia de Camaxilo». Terra Morta (1949), Viragem (1957) e A Chaga, publicada postumamente em 1970, são obras escritas sob o signo da ruína representada pelo sistema colonial e a primeira manifestação de cunho nitidamente realista/naturalista. Soromenho retoma as premissas do naturalismo do século anterior e tece seus romances calcado no tripé experiência, verdade e justiça que norteara a produção da chamada geração de 1870. Parte de sua experiência autoral se revela em sua própria biografia: <br /><br />filho de mãe caboverdiana e pai português a serviço do governo colonial angolano, o autor viveu grande parte de sua vida neste país, trabalhando para o exército português e em minas de exploração de diamantes. Suas constantes viagens pela Lunda e suas senzalas fizeram de Soromenho pesquisador ávido das tradições e da história, devidamente registradas em seus diários. Essas mesmas características são percebidas em Monteiro, personagem de Terra Morta e que é descrito como alguém mais interessado na recolha de material antropológico no que no recolhimento de impostos, razão de suas viagens pelo país. Coincidentemente, como afirma Laura Padilha , o nome completo de Soromenho é Antônio Monteiro de Castro Soromenho, mostra definitiva da ligação intrínseca entre o autor, sua obra e seu meio. <br /><br />Em perspectiva diacrônica, Soromenho descreve, em Terra Morta, a decadência do sistema colonial metonimizado no fracasso dos colonos em meio à crise mundial ocorrida durante as décadas de 20 e 30 do século XX. A queda da cotação da borracha no mercado internacional ocasiona a bancarrota desses colonos, alguns deles conhecidos como «brancos de segunda» por terem nascido em África. A oposição racial descrita neste romance e nos demais da trilogia abarca os três níveis existentes naquela sociedade: brancos, negros e mestiços, todos envolvidos por um nível crescente de apatia biológica e social. Tal qual os trabalhadores das minas do norte da França, descritos no já mencionado Germinal, a atmosfera reinante em Camaxilo é permeada pelo grisu, o gás tóxico e imperceptível que ameaça e explode as minas de carvão descritas no romance francês. <br /><br />A questão social torna-se, deste modo, o fio condutor da trama, que se ocupa ainda em evidenciar fissuras nos segmentos sociais que compõem a narrativa. Os brancos, senhores ainda de uma terra à deriva, são tomados pela hemiplegia de uma situação alienante. Apresentam-se estáticos, parados de pé ou sentados defronte de suas lojas, descalços e barbados à espera dos raros clientes que sustentam seus negócios. Irremediavelmente afastados da vida em Portugal, acabam por desposar mulheres nativas, dando, com isso, origem a uma descendência mestiça que lhes garante mão-de-obra gratuita e a perpetuação das relações imperialistas. Seus filhos assimilam elementos culturais advindos da herança materna que se dá na perpetuação dos mitos angolanos, os quais entram em conflito com a necessidade premente de "embranquecimento", ou seja, de adquirem status semelhante ao de seus pais e da cultura lusitana. Deles herdam, sobretudo o tom de pele que, no entanto, não lhes dá acesso ao universo dos brancos e que, por diversas vezes, interdita seu pleno relacionamento com os outros negros. Estes, por sua vez, são vítimas ainda de um sistema de desigualdade social que, pela técnica de zoomorfização, os limita ao universo escravocrata que, no presente enunciado permeia as relações entre Portugal e África. Os cipaios negros a serviço dos brancos, criam fissuras na estrutura social por serem os responsáveis pela manutenção da ordem que o serviço e a necessidade de produção impõem, e que é metonimizada pelo chicote que manipulam. Criam, assim, um distanciamento de seus pares raciais, o que os leva a uma situação de estagnação: a natureza de seu trabalho não lhes franqueia entrada no universo dos brancos, que os desprezam, e fomenta o ódio racial por parte de outros negros que os renegam. Este estilhaçamento se repete também na substituição sobas imposta pelos portugueses. Líderes dos diversos kimbos angolanos e eleitos pela ancestralidade nacional, foram, desde os primórdios da colonização, despojados da hierarquia primordial que possuíam em favor de outros de sua raça que atendiam aos ideais colonialistas e favoreciam a penetração lusitana. <br /><br />Estas são algumas das muitas imagens excludentes que Soromenho lança mão em seu projeto narrativo. A elas somam- se outras como, por exemplo, a oposição noite e dia. Se o dia é o espaço do trabalho burocrático para os oficiais do exército português e demais brancos, para o negro é a representação do trabalho árduo e incessante. A noite, contudo, torna-se a unidade temporal que os beneficia, pois é nesse momento em que, reunidos, evocam seus mitos e as narrativas orais que medulam seu saber. Sentados à beira das fogueiras e dançando ao som de tambores, demandam de seus antepassados o alento e a vingança impostos pelo equívoco das relações sociais. É neste espaço que o branco se afastado poder que a luz do sol lhe outorga e passa a temer a fúria da ancestralidade rejeitada ao brilho do sol e das diversas divindades evocadas nas senzalas. <br /><br />Um traço vinculador de Terra Morta e da Jangada de pedra que mencionamos no início deste texto está nas palavras de Aparecida Santilli ao afirmar que: <br /><br />"Quem percorre a ficção de Soromenho roda pelos caminhos de uma terra em transe chegará ao fim de uma penosa trilha de iniciação, nos sucessos que conformam a alma africana e naqueles que a vieram abalar, ao choque eletrizante das raças, à contundência de povos adventícios e nativos, ao atrito das estruturas sociais desirmanadas, em que os ritos sacrificiais acabam sendo os da imolação do homem da África, como o pharmakós que deve sucumbir-se na satisfação da cupidez dos mais fortes, o aniquilamento dos mais fracos". <br /><br />É, pois, durante o transe da noite africana que se revelam ainda algumas relações conflituosas, desta vez originada entre semelhantes. Ao iniciar seu relato com uma partida de baralho, à luz amarela do candeeiro de petróleo que lança sombra sobre o rosto de seus participantes, Soromenho exacerba aspectos cruéis do colonialismo para os brancos de Camaxilo e que se dá no distanciamento filosófico existente entre o secretário Silva, Américo, Valadas e Vasconcelos, metonímias do individualismo e do blefe exigidos em um jogo de cartas. <br /><br />Esta imagem é ligada e igualmente reforçada pela antítese dentro X fora. À noite, o espaço dominado durante o dia é revestido de medo e de perigo que se opõem à segurança garantida pelo interior das casas. Estar abrigado após o pôr-do-sol torna-se, desse modo, o elemento que assegura aos colonos a territorialidade perdida ao fim do dia. Esta proteção se opõe, portanto, ao exterior das residências, espaço que passa a ser permeado por uma angolanidade subjugada e que, temporalmente, ameaça a supremacia lusa. <br /><br />De igual modo, a sede do poder colonial encontra-se em local geograficamente elevado, o que permite ao poder uma visão global do espaço circundante. Os demais habitantes retratados por Soromenho estão restritos a partes mais baixas da província, que reduzem sensivelmente seus horizontes e revigoram o sistema político vivido. Laura Padilha evidencia um cômodo da casa que apresenta uma possibilidade de interseção entre os universos branco e negro. As varandas são construídas em um espaço que se prolonga do lado de fora da casa, ou seja, projetam-se sobre o solo africano. No entanto, por serem despojadas de paredes e da proteção assegurada pela territorialidade do interior da residência, servem de exemplo da miscigenação cultural resultante do sistema colonial e que pode ser expressa, como já observamos, pelo casamento inter-racial e a descendência mestiça. Esta pode ser a representação de um novo traço neo-realista/naturalista decorrente da evolução que se deu entre a produção literária do século XIX em que esta interseção era interdita e a representação social do século XX. <br /><br />Permanece, contudo, o maniqueísmo espacial que, em Terra Morta, se dá no espaço circundante. Além da dicotomia alto X baixo, este pode ser expresso também na oposição esquerda X direita: a prisão está localizada à esquerda da província de Camaxilo e o cemitério, à direita. No meio, há apenas o espaço destinado ao trabalho árduo e a sugestão de que os trabalhadores representados tendem, necessariamente, a um ou a outro. <br /><br />Apesar de Soromenho criticar o imperialismo português e enfatizar a impossibilidade de os negros se tornarem sujeitos do discurso histórico, este autor aponta uma possível solução ao impasse retratado no romance. Américo é a personagem que age segundo a semântica de seu nome, alegoria da glória portuguesa adquirida, mas não perpetuada. Representa novas idéias e possibilidades que se articulam com a fecundidade do solo e da cultura brasileira e, sobretudo, pela independência deste país da tutela portuguesa. Sua defesa de negros e mestiços o conduz, no entanto, a uma dimensão de desterritorialização em que é rejeitado pela administração colonial e pelos próprios negros que procura defender, incapazes de compreender o fundo humanitário de seu gesto. A personagem evidencia, portanto, uma alternativa ao caos retratado ainda que, como as novas terras, tenha de ser cultivada e fecundada. <br /><br />Estes elementos são usados pelo autor para inquirir a mistificação da colonização e, de modo a superar o dilema dela advindo, Soromenho sugere uma nova ordem baseada no materialismo histórico como possibilidade, pela revolução, do resgate político, social e cultural de Angola, metonímia do império português em África. <br /><br />A constatação destes fatos surge, posteriormente, através de outros escritores africanos que em outros tempos, apesar de dissociados esteticamente do período naturalista e neo-realista, empregam seus sentidos para representarem outros momentos da sociedade e da literatura que retratam. <br /><br />Em Mayombe, Pepetela ultrapassa o limite ideológico das narrativas da revolução que finalmente chegou a Angola ao discutir espacialmente no interior de uma floresta valores universais como a fraternidade e o amor. A floresta da Cabinda, distante como Camaxilo, domina o cenário e rasura vestígios da cultura portuguesa ao apresentar uma majestade tropical que determina um novo tempo: «as árvores enormes, das quais pendem cipós grossos como cabos» permitem, quando querem, a entrada da luz do sol e do luar e, por entre suas copas fechadas, «apenas o fumo pode libertar-se e subir». O meio físico, portanto, torna-se condutor da obra que inaugura na literatura angolana a diegese permeada por várias vozes enunciadoras que, coordenadas por um narrador em terceira pessoa, «enfeitiça o leitor e esconjura o veneno da tirania colonialista» . A cisão entre a cultura européia e o animismo africano são curiosamente apresentados na epígrafe da obra, que resgata divindades como Zeus, Mayombe, Prometeu e Ogum. Se recordarmos que Prometeu é aquele que, na mitologia grega, roubou o fogo sagrado e o presenteou aos homens, sofrendo por isso a punição do castigo eterno, perceberemos a premissa de Pepetela em negar o colonialismo como sistema político e reconhecer a miscigenação dele resultante. Ogum, divindade africana que representa o fogo, o ferro e as guerras, detém as características do herói clássico ao voltar-se contra o sistema hegemônico e reatualiza o imaginário primordial de Angola. <br /><br />Similarmente, as personagens da narrativa: soldados da revolução colonial substituem seus nomes por outros, os literalmente chamados «nome de guerra», que passam doravante a designá-los. «Sem Medo», o comandante da missão; «Teoria», o mulato que questiona o maniqueísmo da guerra; «Lutamos», «Mundo Novo» e «Milagre» são soldados nominados a partir de características pessoais e intrínsecas que passam a conduzir sua conduta a partir da ruptura causada pela guerra e o fazem de um espaço em que predomina a pujança da terra por que lutam. A floresta retratada passa a representar o reviver da terra que, apesar de «morta» na descrição de Soromenho, é revitalizada pela esperança utópica de que Pepetela, três décadas depois, lança mão. <br /><br />Deste modo, os novos nomes assimilados pelos guerrilheiros assinalam o novo tempo que suplanta a dominação e a opressão colonial, assegurando, ao fim, a vitória dos desfavorecidos que as narrativas do naturalismo do século XIX não puderam constatar, as quais, contudo, foram pródigas em apontar. <br /><br />Em A Geração da utopia, romance publicado em 1992, mas concebido durante os anos de guerra nos quais Pepetela atuou como guerrilheiro do Movimento Para Libertação Total de Angola, MPLA, o determinismo mesológico é descrito na paisagem da chana, ou seja, da savana africana, metáfora negativa da perda das utopias da independência conquistada em 1974. <br /><br />«A chana» é o capítulo que se ocupa do início do processo de independência de Angola. Situada nos anos 70, a narrativa é deslocada para o espaço geográfico de vegetação rasteira que circunda o espaço da floresta-santuário. É ali que o guerrilheiro descomprometido com os verdadeiros ideais utópicos da revolução tenciona se entregar ao exército português. O fato de ser surpreendido por um grupo de soldados angolanos o faz reverter sua trajetória o que o torna herói de um processo que ele mesmo rejeitara e que tencionava reverter tornando-se informante do inimigo. <br /><br />A evidência de atos originados pelo individualismo e pela covardia mescla-se ao denominado discurso oficial da história que passa a gerir seu país, cada vez mais distanciado de seus mitos e narrativas e gradualmente tomado pelo capitalismo emergente e o neoliberalismo. A aridez da savana angolana passa a metonimizar a escassez de caráter que assinala a personagem desertora, totalmente descompromissada com os ideais utópicos que embalara o ideal de uma nação, terra prestes a sair do transe a que fora submetida por mais de quatro séculos. Pepetela exacerba as relações entre o homem e as utopias, denunciando, nesse caso, que não ocorrera a necessária fusão da vontade da personagem com os elementos concretos que a faria exeqüível . A conseqüência desse novo fracasso no percurso da personagem foi a não projeção daquilo que poderia ser factível para a materialização do desejo comum dos guerrilheiros, para quem a independência era ainda um sonho distante. <br /><br />Por esta razão, Pepetela, como partícipe do processo revolucionário e originalmente ligado às bases do governo de Agostinho Neto, primeiro presidente do país recém-liberto, veicula a constatação de um real que se mostra revestido de um conceito relativo de «verdade», na acepção benjaminiana do termo, que este autor conhece, despreza e denuncia. É pela ficção e apoiado na experiência, na verdade e na justiça que este autor angolano revela a apropriação por parte de líderes nacionais de um discurso que lhes é alheio e que, muitas vezes, é dissociado dos atos que deveriam ser norteados pelos ideais que embalaram o projeto revolucionário que pôs fim ao sistema colonial que engendrou a produção neo-realista/naturalista de Angola. <br /><br />A produção literária de Castro Soromenho une-se ideologicamente a de Pepetela porque ambas veiculam o questionamento da história e o associa às tradições angolanas conjugadas ao culto africano das forças da natureza e às relações entre os homens, seus antepassados e mitos. Estes fatores apontam para a urgência de outros caminhos serem trilhados pela sociedade deste país, que deve respeitar os mundos «visível» e «invisível» que compõem seu imaginário cultural. <br /><br />Desse modo, caberá à nação recriar seus sonhos, idealizá-los em um novo espaço a ser construído com a recuperação das forças tradicionais, respeitando também a pluralidade de facetas que a compõem. <br /><br />(fonte: http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=575)<br /><br />Notas <br /><br />1 Pires Laranjeira, Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa, Universidade Aberta, 1995, p. 87. <br /><br />2 http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/eca¬queiros/ crime_critica.html. <br /><br />3 Antonio Candido. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo, Atica, 1987, p. 151. <br /><br />4 Alves Redol. Gaibéus. Lisboa: Caminho, 1989. 5 Fernando Pessoa. «Nevoeiro», In: Mensagem. Lisboa, Atica, 1979. <br /><br />6 Álvaro Gomes Cardoso. «Simbolismo e Modernismo». In: Massaud Moisés (org.). A literatura portuguesa em perspectiva. São Paulo, Atlas, 1994. v 4, p. 141. <br /><br />7 Émile Zola. Germinal. Rio de Janeiro, Abril Cultural, 1972. Coleção «Os imortais da literatura universal». <br /><br />8 Albert Memmi. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 80. <br /><br />9 Noêmia de Souza, Apud Pires Laranjeira, op. cit, p. 415. <br /><br />10 Noêmia de Souza, «Moça das docas». In: Carmen Tindó Secco (org.) Antologia do mar na poesia africana de língua portuguesa do século XX. Rio de Janeiro, UFRJ, 1999, vol. 3. <br /><br />11 Rita Chaves, A Formação do romance angolano. São Paulo, FBLP, 1999. Coleção Via Atlântica. <br /><br />12 Castro Soromenho, Terra morta. Porto, Campo das Letras, 2001. <br /><br />13 Laura Padilha, Entre voz e letra o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX. Niterói, EDUFF, 1986. <br /><br />14 Aparecida Santilli, «Réquiem para uma terra morta», In: Africanidades. São Paulo, Ática, 1985, p. 59. <br /><br />15 op. cit., p. 62. <br /><br />16 Pepetela, Mayombe, Lisboa: Caminho, 2000. <br /><br />17 Carmen Tindó Secco, «Mayombe: os meandros da guerra e os feitiços do narrar». In: A Magia das letras africanas. Rio de Janeiro, ABE Graph Editora, 2004, p. 38. <br /><br />18 Pepetela, A Geração da utopia. Rio de Janeiro, Record, 2000. <br /><br />19 Karl Mannheim, Ideologia e utopia. Rio de Janeiro, Guanabara, 1986. <br /><br /><br />CASTRO SOROMENHO - OBRA:<br /><br />"Calenga não pode dormir durante uma noite, sentindo fortes palpitações no coração e um zumbido de vozes misteriosas que lhe segredavam as mesmas palavras bonitas que ouvira, de olhos arregalados e garganta apertada, ao velho. Só mais tarde depois de conhecer os deuses e as suas histórias fantásticas, é que compreendeu que os segredos da raça e os mistérios da terra não eram tão tenebrosos como julgava. Foi nessa ocasião que ficou a saber que os homens e os seus segredos e a terra e os seus mistérios dependiam da vontade dos deuses. Então, ele convenceu-se de que os homens, por muito valentes e ricos que fossem, nada valiam em presença dos deuses. E Calenga teve medo dos deuses e venerou-os. No cercado da mucanda, Calenga perdeu todos os medos que apavoravam as crianças, ouvindo as longas e terríveis lições dos velhos educadores. E ficou a conhecer um mundo de coisas, cujo significado jamais saberia desvendar, mas que haviam de o inquietar durante toda a vida de caçador de borboletas e de grilos. Os velhos ensinaram ao moço que devia amar o seu povo e odiar todos os homens das outras tribos. E Calenga quis ser guerreiro, como o foram os seus avós que viveram na estepe, para matar todos os homens das tribos vizinhas e beber vinho de palma pelo crânio dos sobas mortos por suas mãos. Calenga aprendeu muitas histórias de guerras e de caçadas. E sentiu um louco desejo de se lançar na estrada da aventura. Mas a grande lição que o moço aprendeu foi a de se tornar irmão de todos os rapazes que, na sua companhia, foram iniciados no rito da circuncisão. Quando Calenga abandonou a mucanda, sabia muitas coisas que só os homens conhecem. Mas acima de tudo aprendeu a ser o companheiro, que é mais que irmão, dos moços que a seu lado foram sacrificados aos deuses da mucanda para ganharem o direito de serem homens." Excerto in conto "Calenga" <br /><br />Nasceu em 1910 em Chinde, Moçambique, filho de pai português (que foi governador na Lunda)de e mãe caboverdeana. Cedo veio para Angola. Passou parte da infância e da juventude em Angola. Muito jovem trabalho como recrutador de mão de obra numa empresa mineira, exercendo depois funções coloniais. Trabalhou como chefe do posto na Lunda. Mas aproveitou essa sua qualidade para investigar a vida das populações locais, que serviram de matéria prima para a sua obra. <br /><br />Aos 27 anos parte para Lisboa onde se dedica à actividade jornalística e inicia a sua brilhante carreira de escritor. O conhecimento profundo do processo colonial, seus agentes e suas vítimas, os estudos de cultura e história africanas, com particular acento sobre as raízes do processo nacionalista angolano, a escrita directa e rigorosa, fazem com que muitos o considerem já um clássico da literatura angolana. Exilado em Paris publicou diversos artigos na imprensa local a favor do nacionalismo e das populações desfavorecidas angolanas. <br /><br />Leccionou na década de 60 em universidade brasileiras e norte-americanas, sobre a cadeira de Sociologia da África Negra. Faleceu em S. Paulo(Brasil), em 13 de Janeiro de 1968. <br /><br />Publicou "Nhári- o drama da gente negra" (1939), "Noite de angústia"(1939); "Homens sem caminho" (1942); "Rajadas e outras histórias"(1943; "Calenga"(1945; "Histórias da terra negra"(1960) e a trilogia de camaxilo: Terra morta(1949), A chaga(1957) e Viragem(1970). <br /><br />A respeito do seu percurso literário diz Castro Soromenho: "Desde que nos meus romances surgiram novas realidades e se me apresentaram as suas contradições, logo se me impôs, naturalmente, uma nova técnica e um novo estilo literário. O neo-realismo teria de ser o novo caminho". Num outro momento, em entrevista concedida a Mário Pinto de Andrade, publicada no "Jornal Magazine da Mulher", nº 38-39(Abril- Maio de 1954), o romancista reage, instado a pronunciar-se sobre o problema da expressão dos negro-africanos, nos seguintes termos: "Depende dos padrões de cultura em que os Negro-Africanos estão integrados. Uns, com raízes na sua "raça", só podem dá-la, naturalmente, através dos processos formais criados pela história da sua própria cultura. Em expressão literária temos que o Negro- Africano dá livre curso ao seu repertório tradicional , na sua linguagem própria e no seu ambiente. Outros, voltados para a Europa, são como "almas transfiguradas", nesse aspecto, a "alma negra" da África também se mantém distante deles. É o caso dos assimilados que, por uma violência de desenraizamento, terão de fazer uma reintegração no seu meio nativo de início por via social", pontualizando que ,"no aspecto literário, há que criar uma nova linguagem uma nova base até de comparticipação cultural, para que todos os homens Africanos se sintam Africanos em África. Julgo ser este o caminho que alguns assimilados Africanos estão trilhando, quando exprimem através dos seus poemas, particularmente, não só os anseios do homem da sua "raça" mas também procuram inspirar-se nas suas tradições seculares. Partindo, pois, duma base nova felizmente em elaboração." <br /><br />Indagado sobre a viabilidade de captação pela literatura das concepções, cultura e vida do homem negro, o romancista revela: "Toda essa captação é falível. Onde se fez melhor é através dos contos populares e das lendas de grande sentido poético. A exactidão e autenticidade da literatura oral Africana depende muito do narrador. E como se impõe a necessidade de narrar, a literatura tradicional é sempre fértil em possibilidades novas". <br /><br />Castro Soromenho destaca também que "Eu vim para literatura, conduzido pela poesia do homem negro. A Calenga revela que só se pode entender o natural da África Negra dentro do seu mundo. Fora disso, é o trabalhador e literariamente inexpressivo. O que importa, em última análise, é a expressão da condição humana do Negro- Africano." <br /><br />A propósito dos termos em que se tem posto estes dois processos na sua actividade literária, o romancista refere, tratarem-se tecnicamente de dois ciclos: o da revelação da autenticidade Africana e o dos conflitos sociais, argumentando, por um lado, que " No primeiro ciclo procurei revelar os padrões de cultura do negro tribal. Desde os primeiros contos até à "Calenga" que venho trazendo a humanidade africana e não elementos decorativos da paisagem, à literatura portuguesa"; por outro " Ao iniciar com Terra Morta um novo processo, um novo ciclo, tentei precisar o choque de duas civilizações e o seu resultado por via da destribalização, com todas as suas conseqüências a favor da política colonial." O escritor insiste que "O resultado deste choque foi o aparecimento do negro desenraizado da vida tribal e não integrado na civilização Européia e o do mestiço nos seus primeiros passos de homem marginal. Ao redor deles, o povo sertanejo apegado aos seus padrões culturais, resistindo às pressões estrangeiras. Entre eles, o branco e sobre de todos, a realidade e as contradições do sistema colonial." Na mesma esteira, o professor Manuel Ferreira refere que caberá ao autor "imprimir uma nova feição à autêntica ficção angolana. A uma primeira fase em que é dado o sentido do social, lendário e histórico, das comunidades tribalizadas, encaradas ainda de um ponto de vista estático, ou seja, dentro da produção do realismo mágico (...) (Nhári- o drama da gente negra, 1939, Noite de angústia, 1939; Homens sem caminho, 1942; Rajadas e outras histórias, 1943; calenga, 1945; Histórias da terra negra, (1960) sucede-se uma segunda fase, orientada para a representação de espaços e grupos humanos confrontados com condições de vida modificadas pela presença do europeu." Manuel Ferreira acrescenta que "Cruéis e implacáveis", as narrativas de Castro Soromenho (trilogia de Camaxilo) provocaram uma virada de centro e oitenta graus no romance africano de expressão portuguesa. A figura de Castro de Soromenho vai dominar os fins da década de 40, até que nas duas décadas seguintes outros se lhe vêm associar, mas poucos atingiram o nível por ele alcançado, reconhecido internacionalmente através de traduções em várias línguas e alguns estudos que foram dedicados à sua obra e personalidade literária, havendo ainda a realçar a sua literatura de viagens." <br /><br />Mário Pinto de Andrade considera, no intróito da entrevista que respigamos acima, que: "Castro Soromenho é um escritor experimentado na literatura de ambiente africano, em terras da Lunda e Quiocos. Inteiramente alheio- acrescenta- a toda literatura de exaltação incondicional das lendárias figuras de "colonos", pode-se afirmar sem margem de erro que é o primeiro europeu a iniciar com Terra Morta o romance não-colonial mas africano "tout- court"." <br /><br />O ensaísta Mário de Andrade frisa que "Nem sempre entendido em certos meios literários portugueses que fogem a considerar os homens e as terras para lá das coordenadas do Cabo da Roca, tem merecido , entretanto, as referências mais elogiosas dos críticos mais responsáveis e interessados não só nas coisas da África" mas também no conteúdo social dos romances da língua portuguesa", sublinhando ainda que "Afirmou-se mesmo logo após a publicação no Brasil de Terra Morta que Castro Soromenho foi o primeiro escritor a encontrar o autêntico estilo neo-realista para o romance." <br /><br />A propósito da essência da sua obra, a professora brasileira Maria Aparecida Santilli sustentava, em 1985, que "roda pelos caminhos de uma terra em transe, chegará ao fim de uma penosa trilha de iniciação, nos sucessos que conformam a alma africana e naqueles que a vieram abalar, ao choque electrizante das raças, à contundência dos povos adventícios e nativos, ao atrito das estruturas sociais desirmanadas, em que os ritos sacrificiais acabam sendo os da imolação do homem da África, como o "pharmakós" que deve sucumbir-se na satisfação, na cupidez dos mais fortes, o aniquilamentos dos mais fracos". <br /><br />O professor Russel Hamilton sublinha que "Castro Soromenho exercia o seu ofício de escritor com mais esmero técnico do que a maioria dos seus antecessores e contemporâneos que escreviam sobre África. Todavia, a sua suposta capacidade de compreender e retractar o africano tem de ser vista no contexto do seu humanismo. O qual permitia que ele conceptualizasse qualidades e fraquezas humanas sem grande consideração para com distinções raciais", observando que "tal humanismo não significa que Soromenho não tinha algo de racismo cultural quando iniciou a sua carreira de escritor claramente dentro da tradição da literatura colonial. Na sua fase inicial Sorormenho escreveu contos (...) que transmitem a ideia de que o africano, na sua sociedade tradicional e pré-colonial, vivia precariamente sob a praga bíblica de Caim". <br /><br />O professor Russel Hanilton sustenta que "Além da sua simpatia humanística para com o africano e, talvez, por causa dela, Soromenho possuía um poder de observação agudo que o beneficiou como pesquisador e ficcionista", acrescentando ainda que "nas suas andanças pelo interior de Angola, como recrutador para a companhia de diamantes, Soromenho não apenas observava os usos e costumes dos Africanos , como também testemunhava o choque de culturas. Evidentemente, que as inconsistências que presenciou levaram Soromenho a entrar na sua segunda fase de produção literária." <br /><br />O crítico norte-americano enfatiza também que "É verdade que Soromenho não abandonou por completo certas perspectivas etnocêntricas; mas em compensação, nos romances da sua segunda fase ele demonstra honestidade e coragem ao revelar-se, abertamente, anticolonialista" (...) "Sorormenho revela a sua consciencialização política no seu tratamento das relações entre colonizados e colonizadores". A respeito desta segunda fase da sua produção literária, diria o romancista em entrevista concedida em 1960 ao jornal "Cultura", então editado em Luanda: "Desde que nos meu romances surgiram novas realidades sociais e se me apresentaram as suas contradições, logo se impôs, naturalmente, uma nova técnica e um novo estilo literário. O neo-realismo teria de ser o novo caminho." <br /><br />(fonte: http://www.uea-angola.org/bioquem.cfm?ID=167) <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />José Craveirinha nasceu a 28 de Maio de 1922 em Maputo, e faleceu em 6 de Fevereiro de 2003. Os seus restos mortais repousam na cripta da Praça dos Heróis, na capital de Moçambique. <br /> <br />Foi jornalista durante muitos anos, tendo usado os pseudónimos de Mário Vieira, J.C., J. Cravo, Jesuíno Cravo, entre outros. Iniciou a sua carreira no jornal «O Brado Africano», e posteriormente trabalhou nos jornais «Notícias» e «Tribuna», colaborando com artigos sobre a cultura moçambicana. <br /> <br />O autor publicou a sua primeira obra - Xibugo - em 1964, um ano antes de ser preso por práticas revolucionárias contra o colonialismo. Considerado um dos mais importantes poetas moçambicanos, Craveirinha marcou uma época de luta contra a ocupação colonial. <br /> <br />Grande parte da sua poesia ainda se mantém dispersa na imprensa, não tendo sido incluída nos livros que publicou em ida. Outra parte permanece inédita e faz parte do seu volumoso espólio. <br /> <br />José Craveirinha nasceu e morreu poeta, tendo oferecido à língua portuguesa durante os seus 80 anos de vida um estilo literário sem precedentes.<br /><br /> <br />Obra: <br />Manifesto, 1962; Chigubo, 1964; Cântico a um Dio di Catrame, 1966; Karingana ua Karingana, 1974; Cela 1, 1981; Maria, 1988; Babalaze das Hienas, 1997; Hamina e Outros Contos, 1997; Obra Poética I, 1999. <br /> <br />Prémios: <br />1959 - Prémio Cidade de Lourenço Marques <br />1961 - Prémio Reinaldo Ferreira Centro de Arte e Cultura da Beira <br />1961 - Prémio de Ensaio Centro de Arte e Cultura da Beira <br />1962 - Prémio Alexandre Dáskalos" Casa dos Estudantes do Império, Lisboa, Portugal <br />1975 - Prémio Nacional de Poesia de Itália <br />1983 - Prémio Lotus, da Associação de Escritores Afro-Asiáticos <br />1991 - Prémio Camões <br />1997 - «Ordem Amizade e Paz», concedida pelo Presidente Joaquim Chissano. <br /><br /><br />Grito Negro<br /><br /><br />Eu sou carvão! <br /><br />E tu arrancas-me brutalmente do chão <br /><br />e fazes-me tua mina, patrão. <br /><br />Eu sou carvão! <br /><br />E tu acendes-me, patrão, <br /><br />para te servir eternamente como força motriz <br /><br />mas eternamente não, patrão. <br /><br />Eu sou carvão <br /><br />e tenho que arder sim; <br /><br />queimar tudo com a força da minha combustão. <br /><br />Eu sou carvão; <br /><br />tenho que arder na exploração <br /><br />arder até às cinzas da maldição <br /><br />arder vivo como alcatrão, meu irmão, <br /><br />até não ser mais a tua mina, patrão. <br /><br />Eu sou carvão. <br /><br />Tenho que arder <br /><br />Queimar tudo com o fogo da minha combustão. <br /><br />Sim! <br /><br />Eu sou o teu carvão, patrão. <br /><br />Quero Ser Tambor<br /><br /><br />Tambor está velho de gritar <br /><br />Oh velho Deus dos homens <br /><br />deixa-me ser tambor <br /><br />corpo e alma só tambor <br /><br />só tambor gritando na noite quente dos trópicos. <br /><br />Nem flor nascida no mato do desespero <br /><br />Nem rio correndo para o mar do desespero <br /><br />Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero <br /><br />Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero. <br /><br />Nem nada! <br /><br />Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra <br /><br />Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra <br /><br />Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra. <br /><br />Eu <br /><br />Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala <br /><br />Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra <br /><br />Só tambor perdido na escuridão da noite perdida. <br /><br />Oh velho Deus dos homens <br /><br />eu quero ser tambor <br /><br />e nem rio <br /><br />e nem flor <br /><br />e nem zagaia por enquanto <br /><br />e nem mesmo poesia. <br /><br />Só tambor ecoando como a canção da força e da vida <br /><br />Só tambor noite e dia <br /><br />dia e noite só tambor <br /><br />até à consumação da grande festa do batuque! <br /><br />Oh velho Deus dos homens <br /><br />deixa-me ser tambor <br /><br />só tambor! <br /><br />Ao Meu Belo Pai Ex-emigrante<br /><br />Pai: <br />As maternas palavras de signos <br />vivem e revivem no meu sangue <br />e pacientes esperam ainda a época de colheita <br />enquanto soltas já são as tuas sentimentais <br />sementes de emigrante português <br />espezinhadas no passo de marcha <br />das patrulhas de sovacos suando <br />as coronhas de pesadelo. <br /> <br />E na minha rude e grata <br />sinceridade não esqueço <br />meu antigo português puro <br />que me geraste no ventre de uma tombasana <br />eu mais um novo moçambicano <br />semiclaro para não ser igual a um branco qualquer <br />e seminegro para jamais renegar <br />um glóbulo que seja dos Zambezes do meu sangue. <br /> <br />E agora <br />para além do antigo amigo Jimmy Durante a cantar <br />e a rir-se sem nenhuma alegria na voz roufenha <br />subconsciência dos porquês de Buster keaton sorumbático <br />achando que não valia a pena fazer cara alegre <br />e um Algarve de amendoeiras florindo na outra costa <br />Ante os meus sócios Bucha e Estica no "écran" todo branco <br />e para sempre um zinco tap-tap de cacimba no chão <br />e minha Mãe agonizando na esteira em Michafutene <br />enquanto tua voz serena profecia paternal: - "Zé: <br />quando eu fechar os olhos não terás mais ninguém." <br /> <br />Oh, Pai: <br />Juro que em mim ficaram laivos <br />do luso-arábico Algezur da tua infância <br />mas amar por amor só amo <br />e somente posso e devo amar <br />esta minha bela e única nação do Mundo <br />onde minha mãe nasceu e me gerou <br />e contigo comungou a terra, meu Pai. <br />E onde ibéricas heranças de fados e broas <br />se africanizaram para a eternidade nas minhas veias <br />e teu sangue se moçambicanizou nos torrões <br />da sepultura de velho emigrante numa cama de hospital <br />colono tão pobre como desembarcaste em África <br />meu belo Pai ex-português. <br /> <br />Pai: <br />O Zé de cabelos crespos e aloirados <br />não sei como ou antes por tua culpa <br />o "Trinta-Diabos" de joelhos esfolados nos mergulhos <br />à Zamora nas balizas dos estádios descampados <br />avançado-centro de "bicicleta" à Leónidas no capim <br />mortífera pontaria de fisga na guerra aos gala-galas <br />embasbacado com as proezas do Circo Pagel <br />nódoas de cajú na camisa e nos calções de caqui <br />campeão de corridas no "xituto" Harley-Davidson <br />os fundilhos dos calções avermelhados nos montes <br />do Desportivo nas gazetas à doca dos pescadores <br />para salvar a rapariga Maureen O'Sullivan das mandíbulas <br />afiadas dos jacarés do filme de Trazan Weissmuller <br />os bolsos cheios de tingolé da praia <br />as viagens clandestinas nas traseiras gã-galhã-galhã <br />do carro eléctrico e as mangas verdes com sal <br />sou eu, Pai, o "Cascabulho" para ti <br />e Sontinho para minha Mãe <br />todo maluco de medo das visões alucinantes <br />de Lon Chaney com muitas caras. <br /> <br />Pai: <br />Ainda me lembro bem do teu olhar <br />e mais humano o tenho agora na lucidez da saudade <br />ou teus versos de improviso em loas à vida escuto <br />e também lágrimas na demência dos silêncios <br />em tuas pálpebras revejo nitidamente <br />eu Buck Jones no vaivém dos teus joelhos <br />dez anos de alma nos olhos cheios da tua figura <br />na dimensão desmedida do meu amor por ti <br />meu belo algarvio bem moçambicano! <br />E choro-te <br />chorando-me mais agora que te conheço <br />a ti, meu pai vinte e sete anos e três meses depois <br />dos carros na lenta procissão do nosso funeral <br />mas só Tu no caixão de funcionário aposentado <br />nos limites da vida <br />e na íris do meu olhar o teu lívido rosto <br />ah, e nas tuas olheiras o halo cinzento do Adeus <br />e na minha cabeça de mulatinho os últimos <br />afagos da tua mão trémula mas decidida sinto <br />naquele dia de visitas na enfermaria do hospital central. <br />E revejo os teus longos dedos no dirlim-dirlim da guitarra <br />ou o arco da bondade deslizando no violino da tua aguda tristeza <br />e nas abafadas noites dos nossos índicos verões <br />tua voz grave recitando Guerra Junqueiro ou Antero <br />e eu ainda Ricardino, Douglas Fairbanks e Tom Mix <br />todos cavalgando e aos tiros menos Tarzan analfabeto <br />e de tanga na casa de madeira e zinco <br />a estrada do Zichacha onde eu nasci. <br /> <br />Pai: <br />Afinal tu e minha mãe não morreram ainda bem <br />mas sim os símbolos Texas Jack vencedor dos índios <br />e Tarzan agente disfarçado em África <br />e a Shirley Temple de sofisma nas covinhas da face <br />e eu também Ee que musámos. <br />E alinhavadas palavras como se fossem versos <br />bandos de se´´cuas ávidos sangrando grãos de sol <br />no tropical silo de raivas eu deixo nesta canção <br />para ti, meu Pai, minha homenagem de caniços <br />agitados nas manhãs de bronzes <br />chorando gotas de uma cacimba de solidão nas próprias <br />almas esguias hastes espetadas nas margens das úmidas <br />ancas sinuosas dos rios. <br />E nestes versos te escrevo, meu Pai <br />por enquanto escondidos teus póstumos projectos <br />mais belos no silêncio e mais fortes na espera <br />porque nascem e renascem no meu não cicatrizado <br />ronga-ib´´rico mas afro-puro coração. <br />E fica a tua prematura beleza realgarvia <br />quase revelada nesta carta elegia para ti <br />meu resgatado primeiro ex-português <br />número UM Craveirinha moçambicano!<br /><br /> <br /><br /><br />Sobre a Poesia de José Craveirinha*<br /><br />Rui Baltazar*<br /><br />* Conferência proferida na Associação dos Naturais de Moçambique, em 1961.- Universidade Eduardo Mondlane.<br /><br />Acontece que muitas vezes a crítica não tem oportunidade para dizer directamente ao artista o que pensa da sua obra. Mas ao fazê-lo confere-lhe particular responsabilidade, pois dessa forma está o crítico a interferir no itinerário do artista, podendo até determinar-lhe direcções.<br /><br />Nós sabemos e assumimos tal risco. Conscientes, por outro lado, dos justos limites, queremos desde já deixá-los aqui assinalados:<br /><br />Primeiramente, o nosso juízo acerca do poeta Craveirinha carece ainda de suficiente perspectiva. A glória dos poetas faz-se normalmente, se bem que esta lei não seja inelutável depois da sua morte. É o tempo quem vem permitir situar a obra no seu mais exacto enquadramento, "vis a vis" das circunstâncias históricas que acompanham o artista.<br /><br />Depois, porque a obra de Craveirinha está em pleno desenvolvimento. Felizmente este poeta tem ainda muito que extrair da sua lira e, portanto, o trabalho que apresentamos é de efémera validade. Aqui o reconhecemos com humildade, pois o propósito desta conferência é não servir-nos a nós, mas servir o poeta.<br /><br />Finalmente, não nos supomos suficientemente isentos para afirmar que a visão que demos da obra de Craveirinha seja justa e objectiva: mesmo os que de entre nós mais se julgam livres de preconceitos, não o estão certamente.<br /><br />Por isso também natural é que o que em mim há de errado se possa ter reflectido no estudo que vou ler. Só uma coisa posso garantir: a sinceridade e o amor com que o fiz. Se melhor não saiu, é porque de melhor não fui capaz.<br /><br />Postas estas ressalvas, necessárias, quero-vos dizer, no entanto, que poucas vezes um crítico - perdoem a leviandade com que me arrogo o epíteto - terá dito, tão cheio de certezas, a um artista que ele é o maior. Eis o que<br /><br />quero significar precisamente: José Craveirinha é o maior poeta de Moçambique, e tudo o que eu disser no decorrer desta palestra não pretende senão demonstrá-lo. Digo-o ao Craveirinha, aqui na vossa frente, porque eu sei que a afirmação lhe não fará mal. Digo-o porque Craveirinha tem, em alto grau, aquilo que eu muito admiro num poeta e num homem: consciência do que escreve, para que escreve, o sentido das responsabilidades assumidas com os seus<br /><br />versos. É que poetas, há muitos; poetas responsáveis, poucos. Responsabilidade quer para nós dizer comprometimento, "engagement", lucidez e escolha consciente. E se valorizamos a responsabilidade assumida pelos poetas capazes de a assumirem, é porque, ao cabo duma longa evolução nos termos, nas formas, nos temas, eles têm hoje na sua disponibilidade um arsenal de ensinamentos e perspectivas que se não compadece com desperdícios, nem com gratuitos exercícios lúdicos.<br /><br />Será bom que os poetas relembrem, de vez em vez, que a poesia é de homens, para ser lida por homens, para servir os homens. Sem o que, podem os poetas fazer-lhe o que aos filhos fez o deus da mitologia: saciar-se com ela!<br /><br />Ao abordarmos agora a poesia de José Craveirinha, gostaríamos - imodesto propósito que não estamos seguros de conseguir - fazer-vos partilhar um pouco a extraordinária aventura que para nós foi descobri-la.<br /><br />É que a poesia de Craveirinha revela-nos um mundo novo: tal como se nos propuséssemos viajar num cosmos diferente, assim nos preparemos para escancarar os olhos espantados sobre uma paisagem que, fisicamente,<br /><br />nos é contígua, mas de que estamos mais longe que dos cosmonautas que nos sobrevoam. Porque esses, dos espaços, fazem participar à escala universal todos os homens numa mesma aventura. Enquanto que o mundo a que nos transporta Craveirinha, está totalmente para além de nós: dos nossos problemas, das nossas angústias metafísicas, das nossas frustrações, dos nossos horizontes e enquadramentos geográficos e humanos.<br /><br />A um raciocínio mais leviano poderá espantar que Craveirinha sirva de guia numa descida aos infernos: ele que habita entre nós, se bem que um dossiê BALTAZAR, Sobre a Poesia de José Craveirinha pouco a noroeste, onde as areias da Mafalala ameaçam romper os diques e invadir o alcatrão; ele que agrimensura (para usar uma expressão querida ao poeta) os mesmos espaços por nós percorridos nos quatro cantos da cidade; que veste como nós; que lê os nossos jornais e os faz para nós; ele de quem muitos dos que aqui estão só a cor da pele poderá distinguir, pois nossa é a sua língua, e nossos os seus modelos de pensar.<br /><br />Vamos assentar num ponto: o poeta Craveirinha, que é o homem Craveirinha a realizar-se artisticamente, situa-se numa dimensão diferente da nossa, quase sempre hostil ou pelo menos indiferente ao outro lado do muro que habitamos e onde assentam seus frágeis alicerces as nossas complacências, a trágica e vil renúncia de que é feito o nosso viver quotidiano.<br /><br />Para começar a dizer algo de essencial sobre a poesia de Craveirinha, aceitamos ser a negritude o seu traço dominante. O que nos põe, imediatamente, perante o problema de definir negritude. A esta questão preferimos não responder em termos de pura conceitualização: na análise dos diversos elementos que compõem a poesia de Craveirinha iremos concretizando a nossa noção de negritude por tal forma que, ao fim desta pesquisa e análise,<br /><br />sem necessidade de definições meramente teóricas, estaremos talvez em posição de compreender o que seja a negritude nos seus versos.<br /><br />Craveirinha é um poeta negro: negro no cantar e na forma como parece ter resolvido o problema das suas origens.<br /><br />Na verdade, ao falar de si, ao reivindicar o seu eu e o seu modo de despertar para o mundo, Craveirinha invoca obsessivamente a mãe negra: nela, ou nos antepassados mais remotos em que ela entronca, vai o poeta achar a mais íntima justificação. Craveirinha enche, amoroso e apaixonado, seus versos dessa evocação querida: os largamente divulgados poemas<br /><br />«Mãe" e «Sangue de minha mãe" são testemunhos de como o poeta reclama, pela via materna, uma natureza eminentemente africana. Este como que retorno ao ventre materno traduz desde logo um encontro com valores matriarcais tão presentes nas sociedades africanas, e ajuda o poeta a inserir-se nessa mesma realidade africana de que plasmará seus versos.<br /><br />Craveirinha busca, assim, raízes, e ao fazê-lo vai àquela fonte para que se sente mais solicitado e que acabará por conferir exacta dimensão da sua poesia. Neste primeiro momento de negritude, Craveirinha trata, pois, de procurar uma identidade, uma nacionalidade, a fim de, no sentimento dum solo firme de que se alimente e de onde extraia o húmus da sua poesia, poder realizar-se e exprimir simultaneamente uma cultura e uma personalidade artística e humana. Tirando uma que outra - aliás raríssima - ocasional referência, encontrámos um único poema onde o poeta, em demorada invocação, se refere ao pai. Este tão belo poema parece-nos ser altamente significativo da posição assumida pelo poeta em relação à sua negritude, e por isso dele tentaremos uma rápida interpretação através da qual julgamos vir confirmar-se a conclusão que arriscámos quanto à forma como Craveirinha foi à procura de si mesmo e decifrou suas origens.<br /><br />O poeta dirige-se ao pai: mas os primeiros versos que lhe afloram são para afirmar que no seu sangue vivem e revivem maternas palavras que esperam pacientes a colheita futura, enquanto as sementes que seu pai simboliza, espezinhadas jazem num tempo de pesadelos. Depois de, assim, estabelecer os termos da opção, Craveirinha definese inteiro ao afirmar que jamais renegará um glóbulo que seja do Zambeze do seu signo: aqui, portanto, a escolha está feita e o destino da sua poesia traçado. Ficaram-lhe só uns laivos do Aljezur, mas ele, poeta, amar por<br /><br />amor só ama, e só pode amar, esta mais bela e fértil nação do Mundo, onde sua mãe nasceu, e gerou e morreu.<br /><br />O poeta não se fica, contudo, pela escolha que fez. Vai mais longe depois de se saber e se querer africano, nessa essencialidade reencontrada, e através dela, vai procurar resgatar a metade paterna, fazendo-a participar do milagre do seu eu moçambicano. Craveirinha, transferindo para o velho colono a sua natureza reivindicada, como que o desnacionaliza para lhe conferir uma nova nacionalidade. Mas, para isso, despoja-o primeiro de quaisquer traços de aparência colonial, redu-lo à indigência de que é feito o destino dos povos desta terra, a fim de o recuperar numa nova dimensão: <br /><br />"velho colono morto numa cama de hospital<br /><br />tão pobre como desembarcaste no cais de África<br /><br />meu belo pai ex-português."<br /><br />Insisto: é só depois de ter apagado em seu pai quaisquer vestígios que o pudessem identificar com a ordem colonial, que Craveirinha poderá aceitar seu pai ex-português. A partir desta como que desnacionalização, o pobre velho colono morto verá ser-lhe deferida outra nacionalidade, africanizando-se nos grãos de areia da sepultura, e tomando-se no belo algarvio moçambicano.<br /><br />Para Craveirinha - e por razões que teremos mais tarde ocasião de esclarecer - a grande reabilitação do seu pai branco resulta precisamente dessa vida de carências que o fez morrer na miséria numa enfermaria do Hospital Central, tão pobre como desembarcou, habitando o mundo de madeira-e-zinco significativamente africano.<br /><br />Depois desta operação indispensável, o poema enche-se de evocações tão ricas de verdade que todos nós, aqui nascidos, podemos nela encontrar um pouco do nosso passado de meninos encetando os difíceis caminhos da cidade e da vida.<br /><br />O poema "Ao Meu Pai" é, pois, a canção de alforria do pai do poeta, primeiro Craveirinha moçambicano, mas também o é do próprio poeta, senhor agora duma matriz e dum passado que buscou e soube escolher e que lhe dará a medida exacta dos seus versos. O poeta descobriu-se filho de mãe negra também ele: e nessa euforia de enigmas para sempre decifrados, cantará a sua cor com uma exaltação que atinge por vezes inflexões narcisistas ao contemplar-se na beleza ímpar do corpo desvendado, ou ao universo que, sendo negro, pode chamar de seu, como acontece no poema "Manifesto". Tal como no todo da sua poesia, também em "Manifesto" Craveirinha ergue rapidamente a voz do individual ao geral; passa da parte ao todo; arranca da afirmação particular do seu corpo, para, numa progressão de amplitude, atingir os espaços mais vastos em que não é só dele, poeta Craveirinha, que fala, mas da África inteira igualmente mãe e que o é, não só na mulher que o concebeu e o gerou, mas numa mais solene maternidade nela simbolizada.<br /><br />Para este poeta negro, o veículo de expressão utilizado foi a língua portuguesa. Língua que Craveirinha, de formação cultural em larga medida autodidáctica, utiliza com correcção. E dizemos com correcção porque Craveirinha não transforma a linguagem de que amargamassa seus versos. O poeta parece incapaz, ou não lhe interessa a tarefa de, a partir do instrumento linguístico que lhe foi legado, forjar uma expressão nova dando<br /><br />ao seu português tonalidades originais. Assim tinha de ser, aliás: fiel captador da realidade em que se inscreve, o português que lhe oferecemos na utilização quotidiana do nosso falar, é o português que o poeta usará.<br /><br />Alguma coisa de escandalosamente diferente há-de, porém, ir romper na sua poesia. Algo que servirá às mil maravilhas a sua poética na estranha musicalidade que oferece: refiro-me à constante aparição, a meio dos versos, de vocábulos trazidos das línguas africanas. Reparem só nas possibilidades de aproveitamento poético das palavras que Craveirinha sabiamente injectou, com abundante generosidade, nos seus poemas:<br /><br />Xipalapala, chigubo, xipenhe, nonge, culucumba, mshao, shingombela,<br /><br />Karingana, xigubo, xituculumucumba, xipocuè, mutoyana, Kengelekezee,<br /><br />xicwembo, pongol, xiganda-bongolo, shípacana.<br /><br />Por aqui, pois, já nós nos podemos sentir algo desapaísados. Mas se esta explosão vocabular em meio a língua que cultivamos incomoda e ofende ouvidos educados para outros ritmos e para sons menos musicais, não é isso senão um dos numerosos aspectos formais do que se reveste a poesia de Craveirinha, que por nós serão em boa parte desvalorizados, até porque de outros, e com muito maior competência poderá divertir uma análise estilística dos versos do poeta. Temos, portanto, também negritude na poesia de Craveirinha através das palavras moçambicanas que usa. Assiduamente, por outro lado, a negritude é paisagem: paisagem humana e paisagem física. Esta última, verdadeira cor de fundo dos seus versos, chega a surgir-nos num deslumbramento quase panteístico:<br /><br />"Ah!<br /><br />0 fogo, a lua, o suor amadurecendo os milhos<br /><br />A irmã água dos rios..."<br /><br />Craveirinha vota uma paixão ardente aos motivos paisagísticos da sua terra que poetisa em termos de encantamento.<br /><br />"O murmúrio das ondas e das palmas das palmeiras; as índicas águas do mar; as belas terras do meu áfrico país; os belos animais atentos; as massaleiras prenhes de frutos verdes; manhãs de oiro nas folhas dos cajueiros; manhãs dos caminhos de cacimba; as casas de caniço".<br /><br />Esta mesma paisagem é-nos descrita recorrendo amiudadas vezes a símbolos sexuais: assim, por exemplo, as arredondadas formas da natureza sugerem ao poeta, constantemente, seios de mulher:<br /><br />"O mundo naquela noite<br /><br />era apenas um seio branco;"<br /><br />"O côncavo seio azul-marinho da baía de Pemba";<br /><br />"Salgados seios eróticos do mar".<br /><br />Não estranhemos que o poeta assim faça, pois se a negritude aparece com freqüência associada ao sexo, por aí poderemos mais uma vez encontrar sinais de negritude nos versos de Craveirinha, repletos dum despertar erótico constante. As suas imagens, de resto riquíssimas, ganham extraordinária violência, não hesitando o poeta em penetrar nos mais íntimos recessos do corpo:<br /><br />"as azagaias belas como falos de ouro erectos no ventre nervoso da noite africana; o ventre macio de veludo; as bocas aluadas; os bicos dos seios; as manhãs carregadas do mênstruo com que nascem; o clitoris das montanhas contra os cerros de nuvens brancas";<br /><br />ou em exprimir visões repletas de sensualidade:<br /><br />"a noite desflorada abre o sexo ao orgasmo do tambor; um toque de clarim desvirgina a madrugada; o ritmo vangavanga lascivo das gaitas; o colo macio das cidades hermafroditas, com meninas de dezassete anos insones altas horas estilhaçando as unhas no sexo fofo das almofadas; a nudez lúbrica de um pão; as mãos duras da masturbação das facholas".<br /><br />Dissemos que além da paisagem física, africana é também a paisagem humana dos versos de Craveirinha. Com efeito, são homens, mulheres, crianças, jovens e velhos negros que, quase exclusivamente, a povoam, o que em boa parte é a resultante da escolha que o poeta fez.Poeta negro, é para a sua gente negra que ele se volve. Mas essa gente, esse seu povo que sofre, ama, canta e caminha, vai Craveirinha descobri-lo bem longe, nos confins desta cidade que habitamos ou nas vastas lonjuras da sua pátria moçambicana.<br /><br />Nos confins da cidade, dissemos nós. É que, na realidade, Craveirinha deliberadamente volta as costas à nossa cidade. A cidade dos monstros de concreto, das luzes, dos passeios e das filas intermináveis de automóveis, do viver confortável, das gentes satisfeitas e egoístas: a cidade branca, onde o poeta vive, está ausente da sua poesia. A poesia de Craveirinha começa onde acabam as ruas asfaltadas; onde emerge o caniço, a areia, a água pútrida, a escuridão e a miséria. Esse o seu mundo. Nas breves incursões que faz à outra cidade, monstruoso aborto colonial,<br /><br />mundo sofisticado, o poeta vomita o seu desprezo e renega-o com virulência. Cidade hostil, de civilização egoísticamente inteligente, madame colónia de unhas, boca e cabeleira pintada, de seios postiços, com outras amigas cidades de varizes nas pernas de albumina. Ela é, ainda na linguagem do poeta, uma cidade maquilhada e sem alma, como uma jaula, paisagem egocêntrica de pornografia viciosa. Esta distinção aparece flagrante na "Poesia da menina que - um dia - veio", onde o contraste das duas cidades é posto com nitidez, se bem que superado por um sentimento de multirracionalismo e fraternidade para que, desde já, chamamos a vossa atenção.<br /><br />Craveirinha é, sem dúvida, um poeta dos subúrbios, do transido coração dos subúrbios. A sua poesia fica para além dessa fronteira onde estacam os nossos passos e os nossos pensamentos, no mundo ignorado e perturbador do caniço que, com o seu odor, nos não deixa respirar tranqüilos. <br /><br />Retenham, porém, que Craveirinha não é apenas um poeta da cidade. Temos encontrado ensaístas que procuram estudar a poesia portuguesa, mormente a do século passado, fazendo-a assentar no binómio cidade- campo. Poesia industrial e progressiva a primeira; conservadora e reaccionária a segunda. Os poetas do mundo rural estariam de costas voltadas para o futuro, ancorados aos valores da terra, hostis ao progresso, à modernidade, a todas as formas de evolução económica e social. Os poetas de cidade, esses apontariam para um mundo novo, integrados no progresso industrial, conscientes da inevitabilidade das transformações que geravam a vida moderna, aspirando os fumos das altas chaminés fumegantes, captadores duma realidade em devir de prédios monstruosos, de novos hábitos e novas concepções.<br /><br />Esta distinção não tem, duma maneira geral, validade em relação à poesia de Craveirinha. Ser-nos-ia fácil apontar aqui, em Moçambique, abundância de sub-poetas rigorosamente citadinos, a quem os olhos míopes não permitem ver além dos curtos caminhos transitados pelos seus sapatos polidos, ou perdidos, nos confusos subterrâneos dos seus egos aberrativamente inchados; Craveirinha concilia dentro de si as duas tendências, que quase nunca são antagónicas. Tal como vimos, Craveirinha mergulha raízes numa ancestralidade negro-matriarcal, da mesma forma o vemos continuamente encher o seu canto de símbolos rurais, numa explosão de amor pela terra prenhe de significado. Pois se como dissemos, a poesia de Craveirinha é povoada da multidão africana; se o seu horizonte geográfico é o que se abre para lá da muralha do caniço; se a população destribalizada dos subúrbios, na maior parte dela, provém dos campos e dos distritos fronteiros à capital onde se dedicavam ao amanho da terra e onde os seus pais continuam actividades de tipo agrário, Craveirinha, poeta realista, tinha de emprestar ao seu canto as constantes evocações desse povo que recorda enternecido os frescos campos distantes.<br /><br />A terra irrompe em contínuas sugestões no universo poético de Craveirinha; terra medida em hectares; terra espoliada: terra madura florescente dos pés de mandioca, dos fulvos cabelos de maçarocas maduras; de cabos de facholas em cuja masturbação as mãos endurecem; terra do algodão, do sisal, do chá e do tabaco, símbolos presentes duma economia que os manuais definem; férteis taladas machambas onde cresce lentamente a<br /><br />semente.<br /><br />Não deixa porém, Craveirinha, de acusar, na evocação dos campos, toques de ligeiro reaccionarismo, como no poema "África". Jorge Pais chamou a nossa atenção numa observação que nos parece inteiramente justa, para o<br /><br />facto de que, naquele poema, Craveirinha se revela incapaz de adoptar uma óptica verdadeiramente progressiva dos fenómenos sociais e históricos. Efectivamente, às taras duma civilização decadente, o poeta não consegue senão valores igualmente menores que não abrem, à mensagem dos seus versos, perspectivas mais amplas. Reparem que aquilo que Craveirinha tem para oferecer em seus versos, como contrapartida dos desmandos acusadoramente lembrados, são velhos amuletos de garras de leopardo, mutovanas autênticos da chuva e da fecundidade das virgens do ciúme e da colheita do amendoim novo; a subtil voz das árvores e uns ouvidos surdos ao espasmo das turbinas; o gorjeio romântico das aves de casta.<br /><br />Os símbolos rurais são, portanto, utilizados neste poema com significado regressivo, o que podemos levar à conta duma exaltação momentânea do sentimento de negritude do poeta, no seu momento meramente negativo, que o não deixou ver mais claro. Será bom não esquecer, no entanto, que fenómenos como o descrito constituem excepção na poesia de Craveirinha e que, normalmente, a sua lucidez o conduz para alturas donde a vista alcança horizontes ricamente férteis de possibilidades futuras. Se há evocação do mundo talado das machambas, mais pobre se revela<br /><br />Craveirinha em utilizar elementos provindos da cultura local e do folclore e que podia ter ido igualmente buscar àquele ambiente agrário. Tirando o poema "A lenda do rio", com o sabor de história que se conta à roda de fogueira de vultos acocorados escutando, quase não encontrámos vestígios das lendas populares transmitidas oralmente, o que igualmente tem explicação. É que Craveirinha vive demasiado preocupado com os problemas e os homens do seu tempo, o que o leva a desprezar elementos porventura utilizáveis e que permanecem vivos entre o povo. Com isto não pretendemos fazer uma crítica, se bem que nos pareça que o poeta podia, talvez, levar mais longe a utilização do folclore. Não esquecendo nunca, porém, que deve inserir tal aproveitamento na actualidade e dar-lhe um significado dinâmico, perpetuamente renovado. Não resistiremos a transcrever, para que este conselho não tenha más interpretações ou efeito nocivos, o seguinte passo de FANON:<br /><br />"Não nos podemos contentar com mergulhar no passado do povo em busca de elementos. É necessário trabalhar, lutar com a mesma cadência do povo a fim de precisar o futuro, preparar o terreno onde despontam impulsos vigorosos. A cultura nacional não é o folclore em que um populismo abstracto julgou descobrir a verdade do povo. Ela não é essa massa sedimentada de gostos puros, quer dizer, cada vez menos ligados à realidade presente do povo. A cultura é o conjunto dos esforços feitos por um povo no plano do pensamento para descrever, justificar e cantar a acção através da qual o povo se constituiu e se manteve. A cultura nacional deve servir a emancipação dos povos".<br /><br />Ao afirmarmos há pouco o nosso menosprezo pelos elementos formais na poesia de Craveirinha, não quisemos com isso significar que eles nos sejam indiferentes. Simplesmente, para utilizar uma citação que nos foi fornecida pelo próprio poeta, "são necessários significados, contexto e tom para transformar sons lingüísticos em factos artísticos".<br /><br />Vem isto a propósito de que o ritmo é qualquer coisa de essencial nos versos de Craveirinha, como já foi veladamente dito, ao referir a utilização de nomes gentílicos, que ao poeta seduziram, além de outras razões, por serem densos de musicalidade. Freqüentemente é o ritmo nos poemas de Craveirinha obtido através de repetitivos que ele muito usa e até abusa mas que dão aos versos uma cadência altamente musical. Outras vezes, e até é este um divertimento particularmente favorito do poeta, lança ele mão de processos onomatopaicos extraordinariamente<br /><br />expressivos. Antes de ouvirmos o poema por nós escolhido para ilustrar um tal efeito, apontar-vos-ei dois exemplos que vos dão a medida segura da justeza com que o poeta encontra os sons ajustados às ideias que exprime.<br /><br />Assim, no poema "Manifesto", que já aqui foi lido, Craveirinha refere-se ao som da orgia dos insectos urbanos apodrecendo a manhã nova: "com a cega-rega inútil das cigarras obesas".<br /><br />Num outro poema, a "Epístola Maconde", Craveirinha fala-nos da "palúdica gaguez dos gatilhos". Esta "palúdica gaguez dos gatilhos" reproduz com grande felicidade o movimento, o ruído e o ritmo das armas disparando, o que permite ao poeta aliar à brutalidade da imagem um efeito sónico do tipo onomatopaico, como se pode notar no poema "Mamana Saquina".<br /><br />Outro dos processos típicos do poeta consiste numa larga utilização de contrastes, como forma de fazer ressaltar, com maior brutalidade, o sentido dos versos. Na "Cantiga do negro do batelão", é através duma cadência de repetitivos e contrastes que se alcança a música do poema, o que o assemelha a uma prece:<br /><br />"Se me visses morrer<br /><br />Os milhões de vezes que nasci...<br /><br />Se me visses chorar<br /><br />Os milhões de vezes que te riste...<br /><br />Se me visses gritar<br /><br />Os milhões de vezes que me calei<br /><br />Se me visses cantar<br /><br />Os milhões de vezes que morri<br /><br />E sangrei<br /><br />Digo-te, irmão europeu<br /><br />Também tu<br /><br />Havias de nascer<br /><br />Havias de chorar<br /><br />Havias de cantar<br /><br />Havias de gritar<br /><br />Havias de morrer<br /><br />E sangrar...<br /><br />Milhões de vezes como eu"<br /><br />Para completar, numa primeira aproximação, os elementos que podem integrar a negritude na poesia de Craveirinha, falta-nos referir que é ele o poeta do sofrimento do homem negro e também dos sentimentos de luta e de revolta. Com efeito, no seu escancarar de olhos atentos sobre a vida dos negros, Craveirinha encherá a retina da dor de que é feito o destino dos seus irmãos de raça, homens duma mesma terra, arrastando as suas privações,<br /><br />as suas carências, a sua indizível miséria num mundo desumanizado que os desumaniza também.<br /><br />O poeta vai, assim, podre de vergonha, de mãos estendidas e braços abertos ao encontro duma pobre humanidade sofredora, gente embrulhada em capulanas de pesadelo que segue os verdes caminhos oníricos do desespero.<br /><br />Essa expressão de sofrimento e de dor atinge a mais elevada intensidade quando o poeta depara com a infância. Aí o poeta comove-se a um grau de quase-exasperação: os pobres negrinhos nus, descalços e de almas espezinhadas, põem o poeta em estado de insuperável sofrimento. Aliás, o universo infantil brota com frequência na poesia de Craveirinha: sobre as crianças negras, para as quais dirige um olhar de cósmica paternidade, vai o mais puro cantar deste poeta. Meninos que fazem papagaios de jornais velhos e nembo de figueira brava; velhos meninos das casas velhas que se humanizam de desespero à volta do velho Ford que o sonho de Joaquim Chofer fez chocar; meninos do Chamanculo que estendem suas mãozinhas de fome para as papaias, e que o tiro do homem faz cair deixando a quieta noite horrorizada até à última folha do cajueiro. Esse sofrimento atinge uma violência ímpar no poema "Mamanô", onde a infância castigada se torna violentamente acusadora ao ponto de, nos versos, irromper um grito de quase-racismo que consideramos excepcional na obra do poeta, por ter sido o único que detectámos nos 126 poemas que lemos. Nessa obra, o leitor depara-se com o sofrimento, mas também com os termos que o superam na progressão libertadora: revolta e luta. É um sofrimento que se não abandona, ou que cede apenas temporariamente; um sofrimento atentamente vigilante nas dolorosas madrugadas que esperam a sua vez; sofrimento que recusa entregar-se, de homens que não aceitam comportar-se em vítimas. Sofrimento que prepara e pressagia uma redenção e uma ressurreição.<br /><br />Esta perturbação pelo sofrimento humano continuamente detectado atinge tal obsessão em Craveirinha, que, sendo ele, como é, um poeta lírico, recusa entregar-se ao seu lirismo. Efectivamente, a poesia de amor de Craveirinha é uma poesia de quase-frustração de tal forma o poeta vive sobressaltado pelo espectáculo de dor que o circunda. Nós diríamos até que essa pura voz que tão bem sabe cantar o amor sofre dum complexo de culpa que a inibe de se entregar a um tal canto. O poeta interrompe inúmeras vezes os seus momentos líricos para se atormentar com os padecimentos para que sente solicitar-se-lhe a atenção. É que, em Craveirinha, ao seu amor pelo amor, sobrepõe-se uma ânsia de participação no destino dos homens que ama. Há um poema em que Craveirinha nega a Maria o seu amor: nem que ela viesse de rastos, os cabelos esparsos no seu peito, nessa noite, não.<br /><br />Como exemplo da amputação no lirismo do poeta, que o leva a recusar uma entrega total ao amor para manter viva a chama do desespero, da tragédia que sobre si e os outros paira ameaçadora, apontamos o poema "Apenas".<br /><br />Da mesma forma que se lhe perturba a voz para cantar o amor, o sofrimento impede o poeta de rir: a ironia, onde ela raramente desponta, logo se transforma em sarcasmo e a amargura torpedeia o mais leve aflorar de humor.<br /><br />Nesta longa caminhada que empreendemos, talvez que esteja já acumulado material bastante para entender o que seja para nós a negritude na poesia de José Craveirinha. Assim, vimos que o poeta, em procura duma ancestralidade, optou pelo tronco materno identificado com o mundo negro africano; incorporou nos seus poemas vocabulário das línguas nativas de Moçambique; utilizou com abundância uma simbologia sexual e fez viver nos seus versos intensos momentos de erotismo; povoou-os duma paisagem física africana e encheu-os das multidões negras da sua terra; virou as costas à requintada cidade europeia refugiando-se no mundo suburbano; manifestou<br /><br />uma espécie de culto agrário como expressão do tipo de actividade económica dominante; martelou seus versos de ritmo, e manteve uma tensão perturbada pela dor e pelo sofrimento envolventes.<br /><br />Tudo isto, no entanto, é ainda pouco para nos dar a autêntica estatura do poeta. O que nós julgamos haver de mais importante em Craveirinha é que a negritude da sua poesia, para além duma ou outra limitação que apontámos, não assume um carácter meramente negativo e limitado na dialéctica da emancipação do homem.<br /><br />Foi Jean-Paul Sartre quem primeiro acusou:<br /><br />"Na realidade, a Negritude aparece como o tempo fraco de uma progressão dialéctica: a afirmação teórica e prática da supremacia do branco constitui a tese; a posição da negritude como valor antitético é o momento<br /><br />da negatividade; mas este momento negativo não possui auto-suficiência e os negros que o usam sabem-no muito bem; sabem que visa preparar a síntese ou a realização numa sociedade sem raças".<br /><br />Escolhemos esta transcrição de Sartre não só porque aderimos inteiramente ao esquema proposto, como ainda porque através dele melhor podemos avaliar do valor da obra do nosso poeta.<br /><br />Se a negritude é um dado na poética de Craveirinha captável através dos elementos que foram referidos, não é menos verdade que ela aparece continuamente superada, o que impede de constituir o momento negativo de que nos fala o filósofo francês. <br /><br />Assim, se nos deixarmos de impressões e símbolos fáceis e tentarmos uma aproximação mais cuidada da poesia de Craveirinha, veremos, por exemplo, que aquilo que mortifica e exaspera o poeta é, efectivamente, o sofrimento do seu povo; mas esse sofrimento tem determinantes que o poeta não desconhece e até indica: ele é a resultante das condições em que se processam as relações económico-sociais ou, mais concretamente, o poeta sobressalta-se perante o sofrimento, mas sabe ser ele conseqüência duma exploração pelo trabalho.<br /><br />É nessa dinâmica mais vasta dos fenômenos sociais que a poesia de Craveirinha começa a amplificar-se e a transcender-se. Notem que o poeta, ao dar explicações, remonta bem longe na caminhada histórica do homem: interroga o vento dos navios negreiros e escuta os cantos dos escravos que salgaram o mar com o seu sangue. Tal como Fernando Pessoa, que no "Mar Português" fez das lágrimas dos portugueses sal do mar, Craveirinha deu-lhe um outro sabor com o sangue dos escravos acorrentados que puseram nos búzios do Mundo eternamente os seus trágicos lamentos. Aliás, é ainda Pessoa que Craveirinha nos recorda quando fala da menina Detinha que morreu, no poema "Um céu sem anjos de África":<br /><br />"Oh!<br /><br />quantos anjos já nasceram das Munhuanas de amor do teu seio África!<br /><br />E quantas Detinhas partiram para sempre dos teus braços mornos, África!<br /><br />E quantos filhos inocentes deixaram o teu colo maternal, África!"<br /><br />Mas esta exploração do homem não é só feita de evocações. Ela é, sobretudo, exploração presente do homem; exploração duma sub-humanidade que cruza as ruas e folcloriza a paisagem: os homens dos batelões e o seu ritmo bárbaro; os magaíças; os contratados; os pachiças; os xibalos; os trabalhadores nas betoneiras; os carregadores dos cais; os pés humanos sem ferraduras puxando riquexós, homens que mais são bestas que homens. Tal como Cesário Verde os via no século do industrialismo, "Homens de carga: Assim as bestas vão curvadas! / Que vida tão custosa! Que diabo!" Assim Craveirinha usa duma igualmente agressiva linguagem para expressar a utilização da bruta força de trabalho humano:<br /><br />"Suam no trabalho as curvadas bestas<br /><br />e não são bestas, são negros Maria!"<br /><br />Se o sofrimento e a dor enternecem o poeta e são nele superados pela recusa de aceitação, pelos sentimentos de revolta e luta, não é isso ainda tudo: Craveirinha mantém lúcida consciência das determinantes dum tal sofrimento, já o dissemos, e por via dessa lucidez e dessa consciência fica a um passo (notem bem que nós dissemos fica) de traçar vastas perspectivas e caminhos para o mundo de desespero de que enche o seu cantar. Porque se mantém lúcido no seu analisar do sofrimento dos homens explorados; porque recusa entregar-se, a poesia de Craveirinha é uma poesia optimista - é uma poesia aberta sobre um mundo novo de esperança: "cresce no mundo o girassol da esperança" E desse sol radioso se iluminam seus olhos, nele aquece o coração para o canto, dele tempera a rijeza dos versos e robustece a confiança no seu destino de poeta. A esperança como que vem adoçar o desespero, a revolta e luta, carregando-os duma generosidade dadivosa: na cantada espera da manhã dos poetas, ele não levantará forças para ninguém. Mas suaviza-se a negra face amargurada e dorida ao escutar a estridente jam-session dos trompetes e baterias de África, de ventre nervoso pelos ritmos que a excitam e a estremecem. Nesta crença do poeta (que ele pressente maravilhoso esperanto da secreta canção dos búzios), e através dela, tudo se valoriza subitamente: a própria degradação é uma semente que prepara a aurora dos homens. Até mesmo a prostituta Teresinha, impura e bêbeda, se torna fértil como suco dos mamilos do sol e "Do ódio da guerra e dos homens, das mães e das filhas violadas, das crianças mortas de anemia, e dos seres que apodrecem nos calabouços, cresce no mundo o girassol da esperança." É deste girassol da esperança do poeta, deixem que vo-lo diga, que terá de alimentar-se também a nossa esperança. É difícil, de tantos e tão extensos caminhos que nos abre a poesia de Craveirinha, achar um fim para a aventura que convosco quisemos partilhar.<br /><br />Como certamente já notaram, nesta análise que empreendemos, temos procurado caminhar em progressão, subindo do mais particular que nela é possível achar, até atingir os elevados cimos onde agora nos achamos. Talvez seja o momento de lhe auscultar as suas últimas ressonâncias para que vos preparámos em tudo o que ficou dito.<br /><br />Depois de termos caracterizado aquilo que faz deste nosso poeta um poeta negro, será bom que repitamos que Craveirinha se não satisfaz no seu eu definido e reencontrado. Essa foi apenas uma génese, após a qual tentará fazer-se participar a si, homem do Moçambique tão amado e homem de África, do destino da humanidade inteira, humanidade una no sofrimento e na luta, humanidade que caminha e a cujo tantã de pés o ouvido atento do poeta presta a melhor atenção. Mas antes de se querer universal, Craveirinha quer-se moçambicano. Esta é uma característica que devemos assinalar, pois através dela o poeta vence uma das mais graves limitações que atormentam e flagelam os homens de África: nos seus versos, Craveirinha veicula uma mensagem de unidade que transforma Moçambique num todo matizado, é certo, mas sempre um todo coeso e global. Homens de Norte a Sul, do Rovuma ao Maputo, cruzam-se até formar uma identidade, tal como grãos de areia que unindo-se se compactam. Na "Epístola maconde", os macondes ganham alma de sena, os senas sangue de ronga, os ronga olhos de macua, os macuas gritos de chope, os chopes iras de zulo, vencendo as diferenças tribais, lingüísticas, religiosas e étnicas até assumirem uma imperecível força e homogeneidade em que se alimentarão os viris versos do poeta.<br /><br />Depois do que, ei-lo que parte, na aventura de se identificar com os homens, a sofrer com os negros do mundo inteiro, numa aspiração de universalizar a negritude que, também essa, depressa há-de superar. Dos negros subnutridos dos seus campos pátrios, Craveirinha, sem transição, trará ao aperto do seu abraço fraternal as crianças que nascem num qualquer canto do mundo: quer chorem de Harlem, quer se achem no mais perdido pedaço da Zululândia. E é nesse mesmo abraço fraternal que Craveirinha envolverá não já só os negros, mas os homens todos, seja qual for a cor da sua pele, unidos no sofrimentos, asiáticos, europeus ou africanos. Este multirracialismo sem equívocos é a nota mais original deste poeta negro e que, quanto a nós, o torna um dos mais válidos - se não o mais válido - poetas africanos. O universalismo negro torna-se universalismo humano; a negritude volve-se em humanismo: homem que sofre e canta para os que sofrem, o poeta vai cantar para toda a humanidade sofredora: vai amarrá-la inteira ao carro do seu triunfo e com ela arrancar para aquele mundo melhor de cuja esperança já vimos iluminarem-se-lhe os olhos.<br /><br />Olhos que se nublam de amargura, também. Porque triste e mau é o mundo dos homens e a ninguém, senão a eles, pode o poeta atribuir o sofrimento e a dor que o atormentam. Toda a problemática deste martirizado mundo contemporâneo, do mundo que os jornais espelham, os rádios noticiam e os filmes desvendam, perpassa pelos versos de Craveirinha. E o poeta, homem do seu tempo, indigna-se com os homens fazedores de inimagináveis horrores; indigna-se com o mundo de estupros nucleares incestuando a noite; com os que inventaram a cadeira eléctrica e Buchenwald; e lança os olhos martirizados para os talados campos da Coreia onde ficaram orfãos sem arroz, e sepulturas de guerreiros coreanos. Mundo em que os bombardeiros de altitude e desintegração do átomo civilizam as crianças. A este desespero magoado da contemplação do século XX já nós vimos que se não abandona o poeta. Ele que ama o amor e os homens; que tece para eles promessas de esperança, descansará a sua voz e a sua amargura em evocações de paz; paz em que o poeta possa renascer e transmigrar na serenidade alada das aves. Nacionalismo, universalismo, multirracialismo, contemporaneidade, desejo ilimitado de paz como meta da esperança de que está prenhe a sua poesia, estes os valores de maior amplitude a que conseguiu fazer-nos chegar o poeta.<br /><br />E desta forma, impregnados dum são optimismo e duma atormentada fé nos hornens, chegámos ao fim da caminhada por onde conduziram seus versos. Poeta realista, cheio de certezas de si mesmo, melhor que ninguém saber dar a justa definição e a missão da sua poesia: cigarra das baladas nos troncos da mafurreira, erguendo o canto simples e eloqüente como um raio de sol a tingir de cor nova os algodais sem fim.<br /><br />Ouvimo-lo e gostaríamos de guardar a certeza de que todos o escutaram, sentiram e viram, tal como o poeta a si mesmo se vê:<br /><br />"... na sensualidade da minha voz insepulta<br /><br />ou na paz dos metacarpos cruzados<br /><br />eu quero que me escufem<br /><br />e sintam<br /><br />e vejam rebelde e nu<br /><br />como sou."<br /><br />(Fonte: Revista Via Atlântica - http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via05/via05_01.pdf) <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />José Luandino Vieira. Cidadão angolano pela sua participação no movimento de libertação nacional e contribuição no nascimento da República Popular de Angola. Infância, juventude e estudos primários e secundários em Luanda. Diversas profissões. Preso pela PIDE em 1959 (Processo dos 50). De novo preso (1961) e condenado a 14 anos de prisão e medidas de segurança. Transferido, em 1964, para o Campo de Concentração do Tarrafal, onde passou 8 anos, foi libertado em 1972, em regime de residência vigiada em Lisboa. Iniciou então a publicação da sua obra, na grande maioria escrita nas diversas prisões pode onde passou. Membro fundador da União dos Escritores Angolanos, exerceu a função de secretário-geral desde a sua fundação -- 10-12-1975 -- e em vários mandatos até 1992.<br /><br />Lingua portuguesa e identidade nacional em José Luandino Vieira<br /><br />É através da literatura oral africana que tradicionalmente ocorria a transmissão de conhecimentos de uma geração a outra. Por muito tempo, essa forma de expressão africana foi considerada de menor valor, mas aos poucos foi obtido o reconhecimento em veículos culturais de maior expressão. Os poetas com origem na literatura oral tinham como preocupação central a situação de opressão do povo sob os colonizadores, e o papel da mulher na sociedade em transformação. Em Angola, antes da independência, nas décadas de 1950 e 1960, a procura da identidade nacional foi realizada por meio da poesia, instrumento para a busca da autenticidade emocional vinculada à luta nacionalista. Temas da poesia nessa época eram a evocação da infância, das memórias ancestrais, o sentimento de desenraizamento, a valorização da solidariedade. Nessa época surgiram poetas da importância de Agostinho Neto, que após a independência (11 de novembro de 1975) viria a ser presidente do país. Outros poetas de destaque nesse período e durante a luta de independência foram Viriato da Cruz e António Jacinto . <br /><br />Uma contradição inerente às literaturas africanas contemporâneas é a manutenção das línguas coloniais, ao mesmo tempo em que se busca a autenticidade africana e a construção da identidade nacional em cada país, cujos limites geográficos, determinados pelos colonizadores, muitas vezes não seguiam as divisões de grupos culturais e étnicos do continente, e muitas vezes dividiam um grupo original em dois países, ou então, agrupavam num único país nações tradicionalmente rivais. <br /><br />Escritores de expressão internacional, como o nigeriano Chinua Achebe, admitem que a língua dos colonizadores acabou por se tornar a língua nacional, uma vez que os africanos das novas gerações já nasceram no interior dessas línguas (na Nigéria, trata-se do inglês). No caso de Angola, a língua oficial é o português, mas não podemos nos esquecer de que Angola abriga cerca de onze grupos lingüísticos principais, que podem ser subdivididos em diversos dialetos (cerca de noventa). As línguas principais, faladas por cerca de 70% dos africanos de Angola, são: o umbundu, falado pelo grupo Ovimbundu (parte central do país); o kikongo, falado pelos Bakongo, ao norte, e o chokwe-Lunda e o kioko-Lunda, ambos ao nordeste. Há ainda o kimbundu, falado pelos Mbundos, Mbakas, Ndongos, e Mbondos, grupos aparentados, que ocupam o litoral, de Luanda e arredores até o rio Cuanza. (Hamilton, ..., 154). <br /><br />Dada essa variedade lingüística original, o português, imposto pelos colonizadores, acabou por se tornar uma espécie de língua franca, que facilitava a comunicação entre os diversos grupos. Em contato com as línguas nativas, o português também sofreu modificações, dando origem a falares crioulos, conhecidos como pequeno português, ou popularmente, como pretoguês. <br /><br />José Luandino Vieira - escritor que se tornou conhecido com a revista Cultura, de 1957, e que participou com sua literatura da luta pela independência e também como membro do MPLA, tendo ficado preso de 1961 a 1972 por atividades anticolonialistas - em seu livro de contos de 1964, Luuanda, escrito na prisão, retrata o bilingüismo da capital Luanda, onde o português, língua oficial, convive com o kimbundu, a língua do dia a dia. Em contos e novelas, Luandino Vieira retrata contradições sociolingüísticas, expressas em conflitos de gerações, etnias, e ideologias. <br /><br />O livro Luuanda recebeu o prêmio literário angolano Mota Veiga, em 1964, e o Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, de 1965. Por ser Luandino Vieira prisioneiro político em Angola, as autoridades de Lisboa tentaram retirar o prêmio, lançando suspeitas sobre a excelência literária do livro, e talvez assustados com as palavras e frases em kimbundu, inseridas nas estórias. Além disso, em 1972, uma edição de Luuanda pelas editora edições 70, teve apreensão decretada em Portugal pelo governo de Marcelo Caetano. Em recurso jurídico, a editora solicitou a avaliação literária de eminentes críticos e estudiosos de literatura africana, no que foi atendida por Jorge de Sena, escritor, crítico e professor livre-docente em literatura portuguesa no Brasil e na Universidade da Califórnia, e Ferreira de Castro, intelectual português. Tratava-se de apontar que as qualidades literárias da obra superavam em muito qualquer leitura política sectária, e esses dois críticos foram os únicos a ter coragem de manifestar sua solidariedade, naquele tempo de opressão também em Portugal. <br /><br />A identidade nacional nos contos de Luuanda <br /><br />A obra literária de José Luandino Vieira - especialmente contos nos quais o espaço literário está centrado nos musseques, bairros pobres e, portanto, vítimas da discriminação e opressão econômica - contribuiu para a integração cultural e lingüística de Angola. Seus contos têm por função ajudar a reconstruir a cultura de um povo que, por muito tempo, foi desenraizada e fragmentada. <br /><br />José Luandino, embora de origem portuguesa, soube introduzir em seus textos a língua falada dos musseques e o kimbundu, apresentando-os não de forma exótica, mas integrada ao contexto maior da estória. <br /><br />Os textos são literariamente muito bem elaborados, e contam com um motivo figurador central. No conto "O Ladrão e o Papagaio", esse motivo central é o "cajueiro". Ao redor da imagem da árvore - símbolo universal de unidade, regeneração, auto-realização e crescimento orgânico, íntegro - desenvolve-se a ação discursiva no conto. Não se trata de qualquer árvore, mas uma árvore de importância nacional, o cajueiro, símbolo da MPLA (Movimento pela Libertação de Angola), que indica a resistência, ainda que no meio da destruição. <br /><br />Esse ideal de resistência está bem explicitado no seguinte trecho do conto: "Fiquem malucos, chamem o trator, ou arranjem as catana, cortem, serrem, partam, tirem todos os filhos grossos do tronco-pai e depois saiam embora, satisfeitos: pau de cajus acabou, descobriram o princípio dele. Mas chove a chuva, vem o calor, e um dia de manhã, quando vocês passam no caminho do cajueiro, uns verdes pequenos e envergonhados estão a espreitar em todos os lados, em cima do bocado grosso, do tronco-pai". (Luuanda, 1982: 53). <br /><br />Ao discorrer sobre o fio da vida, o personagem Xico Futa completa o seu ensinamento: " (...) não adianta ficar vaidosos com a mania que partiram o fio da vida, descobriram o princípio do cajueiro ...". E mais adiante conclui: "... o fio da vida não foi partido". <br /><br />Podemos perceber no texto também a preocupação do autor quanto aos verdadeiros sentimentos de apego aos costumes e à tradição, quando se recomenda que se deve começar pelas coisas da terra, "costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas" (Luuanda, p. 54). <br /><br />Segundo alguns intérpretes, dessa forma Luandino Vieira sugere como princípio para a construção da identidade nacional, a formação da personalidade na vivência familiar e no grupo étnico, bem como pela educação. <br /><br />Já no conto "Estória da Galinha e do Ovo", a trama se desenvolve em torno da disputa por um ovo, que simboliza a identidade do grupo (os habitantes pobres de um musseque). Dois modos de existência do grupo são possíveis, o conflito interno, ou a união para se defender da opressão econômica, racial ou policial. <br /><br />No início dessa estória, duas vizinhas - mulheres negras e pobres do musseque - disputam pela propriedade de um ovo. Nga Zefa tem uma criação de galinhas, mas uma das galinhas insiste em ir ciscar no quintal de Nga Bina, que tem o marido preso, está grávida e não tem criação de galinhas. Nga Bina dá milho à galinha de Nga Zefa, até que a galinha põe um ovo no seu quintal. As vizinhas brigam, uma reivindicando o direito à propriedade da galinha e do ovo, a outra, reivindicando o direito ao ovo já que a galinha comeu do seu milho. Outras mulheres vizinhas aparecem para escutar e opinar, com a mediação da mais velha do grupo, a Vavó Bebeca. Diz Nga Bina: <br /><br />" Sukuama ! O que é eu preciso dizer mais, vavó? Toda a gente já ouviu mesmo a verdade. Galinha é de Zefa, não lhe quero. Mas então a galinha dela vem no meu quintal, come meu milho, debica minhas mandioqueiras, dorme na minha sombra, depois põe o ovo aí e o ovo é dela? Sukuá ! O ovo foi o meu milho que lhe fez, pópilas !" <br /><br />Faz-se uma roda de vizinhas - mulheres negras - para arbitrar o caso, e são chamados vários passantes para dar sua opinião. Os passantes - um aspirante a seminarista, representando o poder clerical; um ex-notário e beberrão, simbolizando a burocracia e os maridos que não ajudam as mulheres; um homem branco; um proprietário que aluga as habitações para os pobres, simbolizando a exploração econômica - todos procuram tirar proveito da desunião do grupo, tentando obter a propriedade do ovo para si. Finalmente, aparece a instância de opressão maior na forma de uma polícia que discrimina os negros pobres do musseque. O sargento da tropa diz que não são permitidas reuniões, e tenta se apropriar, não do ovo, mas da galinha. <br /><br />A chegada da polícia representa uma ameaça mais concreta vinda de fora, e devemos entender essa opressão no contexto dos problemas políticos de Angola da época em que o conto se desenrola, antes da independência. Os demais representantes do poder, que vieram arbitrar no caso do ovo, de uma certa forma ou de outra ainda pertenciam ao grupo, perifericamente. Mas a polícia, neste caso, representa a opressão política de antes da independência (o marido preso de Nga Bina era provavelmente um preso político). Essa ameaça concreta e externa à dinâmica do grupo é suficiente para o grupo tomar novamente consciência de si, e recuperar a união perdida. Uma artimanha de garotos salva a galinha das mãos aproveitadoras do sargento, e a tensão interna ao grupo se dissolve. O sargento vai embora, e as vizinhas que brigavam se reconciliam. A mulher mais velha do grupo, a Vavó Bebeca, oferece o ovo a Nga Bina, e Nga Zefa, feliz por ter recuperado a galinha, depois de uma breve reticência constrangida, de bom grado concorda em dar o ovo à mulher grávida. <br /><br />- Posso, Zefa?<br /><br />Envergonhada ainda, a mãe de Beto não queria soltar o sorriso que rebentava na cara dela. Para disfarçar, começou dizer só: <br /><br />É sim, vavó! É a gravidez. Essas fomes, eu sei .. E depois o mona na barriga reclama ! <br /><br />A imagem da galinha voando em liberdade em direção ao sol, a presença de Nga Bina com sua imensa barriga segurando o ovo, e a própria barriga parecendo um imenso ovo, são símbolos ligados ao princípio da vida, que está direcionado para o futuro com promessas da nova sociedade que irá surgir. E a nova sociedade, para Luandino Vieira, tem potencial para nascer a partir da união do povo simples e pobre dos musseques, das mulheres negras, e da língua misturada falada verdadeiramente pelo povo. <br /><br />Deize Pereira Bebiano - ( Revista Tesseract )<br /><br />Referências <br /><br />Hamilton, Russel G. "Preto no Branco, Branco no Preto - Contradições Lingüísticas na Novelística Angolana" <br /><br />Hamilton, Russel G. (1984) Literatura africana, literatura necessária. Lisboa, Edições 70. <br /><br />Luandino Vieira, José (1982) Luuanda. São Paulo, Ática. <br /><br />Santilli, Maria Aparecida (1985) Africanidade. São Paulo, Ática. <br /><br />Fragmento de LUUANDA:<br /><br />A Raiz das Coisas<br /><br />É assim como um cajueiro, um pau velho e bom, quando dá sombra e cajus inchados de sumo e os troncos grossos, tortos, recurvados, misturam-se, crescem uns para cima dos outros, nascem-lhes filhotes mais novos, estes fabricam uma teia de aranha em cima dos mais grossos e aí é que as folhas, largas e verdes, ficam depois colocadas, parece são moscas mexendo-se, presas, o vento é que faz. E os frutos vermelhos e amarelos são bacados de sol pendurados. As pessoas passam lá, não lhes ligam, vêem-lhes ali anos e anos, bebem o fresco da sombra, comem o maduro das frutas, os monandengues roubam as folhas a nascer para ferrar suas linhas de pescar e ninguém pensa: como começou este pau? Olhem-lhe bem, tirem as folhas todas: o pau vive. Quem sabe diz o sol dá-lhe comida por ali, mas o pau vive sem folhas. Subam nele, partam-lhe os paus novos, aqueles em vê, bons para paus de fisga, cortem-lhe mesmo todos: a árvore vive sempre com os outros grossos filhos dos troncos mais-velhos agarrados ao pai gordo e espetado na terra. <br />Fiquem malucos, chamem o tractor ou arranjem as catanas, cortem, serrem, partam, tirem todos os filhos grossos do tronco-pai e depois saiam embora, satisfeitos: o pau de cajus acabou, descobriram o princípio dele. Mas chove a chuva, vem o calor, e um dia de manhã, quando vocês passam no caminho do cajueiro, uns verdes pequenos e envergonhados estão a espreitar em todos os lados, em cima do bocado grosso, do tronco-pai. E se nessa hora, com a vossa raiva toda de não lhe encontrarem o princípio, vocês vêm e cortam, rasgam, derrubam, arrancam-lhe pela raiz, tiram todas as raízes, sacodem-lhes, destroem, secam, queimam-lhe mesmo e vêem tudo fugir para o ar feito mitos fumos, preto, cinzento-escuro, sinzento-rola, cinzento-sujo, branco, cor de marfim, não adiantem ficar vaidosos com a mania que partiram o fio da vida, descobriram o princípio do cajueiro... Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de caixote, em frente do candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho, ou encham o peito de sal do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno bocado, no cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho da raiz à procura do princípio, deixem o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio, e vão dar encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterrada doutro pau. Nessa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro cajueiro e outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem não podem ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros todos; nem correr sempre muito já na frente, fazendo nascer mais paus de cajus. É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas.<br /><br />Luuanda , 6ª Ed. (s/d) <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />JOSÉ LUANDINO VIEIRA - NÓS, OS DO MAKULUSU<br /><br />(texto adaptado de estudo de Rita Chaves)<br /><br />Escrito em 1967, quando o autor estava preso no Campo do Tarrafal, Nós, os do Makulusu apresenta o quadro da guerra colonial, cujo deflagrar se anunciava em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier. Ao deixar de ser subterrânea, a luta se expõe a céu aberto as contradições que povoam o espaço social e o mundo interior de cada ser, ali condenado a viver um tempo doloroso. Mergulhado num cenário em que as tensões são avivadas pelos passos mais cotidianos, o sujeito se faz interrogação, interroga aos outros e interroga a si, procurando respostas onde só as indagações encontram razão de ser. Atravessando todo o romance, a atmosfera não se fechará até o fim; significativamente, a narrativa conclui com um ponto de interrogação. O discurso do narrador se encerra, e o eco de suas palavras - ou só dúvidas? - permanecerá na mente do leitor.<br /><br />Consolidando o movimento de apropriação pela via literária, a cidade de Luanda, já apaixonadamente saudada nas estória de Luanda, é novamente eleita e se faz lugar central por onde circulam as personagens desse escritor que já a incorporara ao próprio nome. Ali, as marcas da vida moderna estão mais presentes e agudizam as contradições da sociedade fraturada. A pluralidade manifesta na coexistência de línguas, tradições e códigos culturais variados transformam a cidade numa metáfora viva do país. Desse universo fragmentado, em que fermenta a idéia de uma nova nação e pulsa o sonho de uma sociedade mais igualitária, precisa se apropriar a voz do narrador ansioso por narrar suas luzes e sombras. Apossar-se da cidade é, portanto, caminhar na direção do país, fazendo do exercício literário um ato de conhecimento da realidade plasmada pelos índices da saturação. A luta armada, já afirmamos, dilui a possibilidade de qualquer solução conciliatória e acentua a necessidade de se definirem posições e papéis.<br /><br />(...)<br /><br />Representativo de um tempo desnudado, o romance inicia-se com um tiro. Ao atingir Maninho, "aquele a quem se estendiam os tapetes da vida", a bala penetra a narrativa para expressar a decomposição de um universo condenado:<br /><br />"Simples, simples como assim um tiro; era alferes, levou um balázio, andava na guerra e deitou a vida no chão, o sangue bebeu."<br /><br />A morte da personagem, o "capitão-mor do riso", define para sempre o destino dos quatros moços que da camaradagem da infância guardavam lembranças e sinais de uma harmonia proibida pelo presente. Apartados pela decisão de trilhar caminhos, mais que diferentes, antagônicos, os quatro cavaleiros de Makulusu perdem a possibilidade de recuperar valores identificados com um passado mais doce e para sempre perdido. As diferenças observadas mas relevadas na infância, já não podem ser equacionadas e crescem na antinomia dos projetos.<br /><br />A narrativa traz predominantemente a voz do Mais-Velho, irmão do Maninho, alferes morto. O grupo se completava com Paizinho, meio-irmão dos dois - filho do pai Paulo com a negra lavadeira que servira ao colono antes da chegada da família a Angola - e com Kibiaka, morador do Bairro Operário, também companheiro das aventuras infantis pelos capinzais do Makulusu e arredores. Nascidos na metrópole, filhos de colonos, os dois primeiros são brancos, Paizinho é mulato e Kibiaka é negro. As diferenças raciais, motivados das ofensas nas brigas da infância, serão minimizadas pelas diferenças ideológicas que conduzem as escolhas feitas por cada um. No exército colonial português se inscreve o Maninho; para a guerrilha nas matas se dirige Kibiaka; Paizinho escolhe a resistência clandestina pelos bairros luandenses; e Mais-Velho, imerso em contradições, não consegue ir além do trabalho intelectual em favor da terra que adota como sua.<br /><br />O romance é, assim, a expressão de sua consciência, dividida entre dois mundos em franca colisão, dilacerada pela dor e pelas dúvidas que emergem enquanto percorre as ruas de Luanda para assistir ao funeral do irmão morto. Enquanto caminha, seu olhar seleciona objetos e sensações a serem transformados em palavras, ao fim e ao cabo, insuficientes para exprimir a verdade do instante.<br /><br />Da Cidade Baixa, perto do mar, parte então a personagem narradora e em seu itinerário, irá da Sé até o cemitério do Alto das Cruzes no Miramar (parte alta da cidade), passando pelas ruas do Makulusu, espaço feito magia pela força das evocações. Nessa trajetória, o fio da ficção vai recolhendo dados da realidade material, através dos quais acordam-se sentidos que conduzem a outras leituras do mundo. Diante do olhar perplexo do filho de colono que aprendeu a amar a nova terra, as coisas se desorganizam e reorganizam, propondo verdades múltiplas em sua capacidade de reordenar contradições. Nesse movimento está a raiz de dois fenômenos aparentemente antitéticos: de um lado a marcante ligação com o real, alimentada pelas referências à amargura de um presente dilacerado pela noção da morte; de outro a necessidade de reviver sensações como resgate do mundo fantasioso configurado nas areias do Makulusu da infância. A dor cruel gerada pela dor do irmão companheiro de outras lutas faz imperiosa a saudade do tempo em que o perigo maior se representava pelos maquixes e quinzares habitando as cavernas das brincadeiras infantis.<br /><br />Entre o agora vivido e o miticamente recordado ergue-se a matéria com que Luandino arma o seu texto. Organizados segundo os filtros da memória - por onde passeiam lembranças, os sonhos, as expectativas, os amores, as angústias e os mistérios de cada vida -, esse inventário de coisas e sensações vai compor a imagem de um mundo pulverizado. As noções do passado, presente e futuro se misturam, e até mesmo a ilusão de linearidade é abandonada porque se revela incompatível com a consciência aguda de uma realidade estilhaçada.<br /><br />(texto adaptado de CHAVES, Rita. A Formação do Romance Angolano. Coleção Via Atlântica, n.° 1, 1999 - páginas 172-175) <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />O escritor moçambicano Mia Couto, cujo nome verdadeiro é António Emilio Leite Couto, fez os estudos secundários na Beira e frequentou de 1971 a 1974 o curso de Medicina em Lourenço Marques. Depois da Independência Nacional, em 1975, ingressou na actividade jornalística e foi sucessivamente director dos seguintes órgãos de comunicação social: Agência de Informação de Moçambique (AIM) de 1976 a 1979, Revista Tempo de 1979 a 1981 e Jornal Noticias de 1981 a 1985. <br /><br />Abandonou a carreira jornalística, voltando a ingressar na Universidade para, em 1989, terminar o curso de Biologia, especializando-se na área de Ecologia. A partir daí mantém colaboração dispersa com jornais, cadeias de Rádio e Televisão, dentro e fora de Moçambique. <br /><br />Como biólogo, trabalha actualmente como consultor permanente da empresa de Avaliações de Impacto Ambiental, Impacto Lda. Foi professor da cadeira de Ecologia em diversas Faculdades da Universidade Eduardo Mondlane. <br /><br />Publicou os seguintes títulos: <br /><br />Raiz de Orvalho (poesia) - 1983 <br /><br />Vozes Anoitecidas (contos) - 1987 <br /><br />Cronicando (contos) - 1989 <br /><br />Cada Homem é uma Raça (contos) - 1990 <br /><br />Terra sonâmbula (romance) - 1992 <br /><br />Estórias abensonhadas (contos) - 1994 <br /><br />A varanda do frangipani (romance, 1996) <br /><br />Contos do nascer da terra (contos, 1997) <br /><br />Mar me quer (novela, 1998) <br /><br />Vinte e zinco (novela, 1999) <br /><br />O último voo do flamingo (romance, 2000) <br /><br />Na berma de nenhuma estrada (contos, 2001) <br /><br />O gato e o escuro (conto infantil, 2001) <br /><br />Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, (romance, 2002) <br /><br />O país do queixa-andar (crónicas, 2003) <br /><br />Livros seus foram traduzidos e publicados em diversos países como Portugal, Brasil, Angola, Inglaterra, Espanha, Noruega, França, Itália, Suécia, Alemanha, Holanda, Bélgica, Chile, Dinamarca, Grécia, Finlândia, Israel, Africa do Sul, Croácia, Republica Checa e Bulgária. <br /><br />O romance "Terra Sonâmbula" recebe o NOMA African Award, edição de 2002, sendo escolhido entre os 12 melhores livros do século XX de toda a Africa. <br /><br />O mesmo romance "Terra Sonâmbula" foi premiado em Moçambique Prémio Nacional de Literatura, atribuído pela Associação de Escritores Moçambicanos (AEMO) em 1995 <br /><br />O romance "Terra sonâmbula" recebe no Brasil o Prémio "Os melhores de 95" atribuido pela Associação de Críticos de Arte de S. Paulo, 1996). <br /><br />Terra Sonâmbula recebe o prémio ALOA para o melhor romance do Terceiro Mundo na Dinamarca, em 2000 <br /><br />Prémio Nacional de Literatura em 1993 com o livro Vozes Anoitecidas <br /><br />Prémio Nacional "Areosa Pena" atribuido em 1991 pela Organização Nacional de Jornalistas. <br /><br />Prémio "Consagração" atribuído pela FUNDAC, em Maputo em Março de 1999 <br /><br />Prémio Virgílio Ferreira atribuído pela Universidade de Évora, em 1999 <br /><br />Foi o primeiro autor a receber o Prémio Mário António, concedido pela Fundação Gulbenkian em 2001. <br /><br />Prémio Africa Hoje, em Maputo, Outubro de 2002 <br /><br />Prémio Procópio de Literatura, Lisboa, 2002 <br /><br />O livro "Every man is a race" e nomeado para o International Impac Dublin Literary Award (1996) <br /><br />Conto The Russian Princess (in Picador Book of African Stories, 2000, London) é nomeado para o Caine Prize for African Literature <br /><br />Adaptações para cinema<br /><br />"Terra sonambula" peIa produtora Cinema Pandora e quatro histórias (longametragem em produção) Cinema Natives at Large (Africa do Sul) 2001, A princesa russa O Olhar das estrelas - filme de João Ribeiro, adaptação do autor do conto Saide o Lata de água em 1994 Ossos, adaptação do conto do mesmo nome, para animação em cinema. <br /><br />É o único escritor africano que é membro da Academia Brasileira de Letras. <br /><br />E hoje o autor moçambicano mais traduzido e divulgado no estrangeiro e um dos autores estrangeiros mais vendido em Portugal (mais de 300 mil exemplares). Colabora desde há dez anos com o grupo teatral da capital de Moçambique "Mutumbela Gogo" e escreveu (ou adaptou) diversos textos que foram representados por este grupo de teatro. Livros seus (como A Varanda do Franjipani e contos extraídos de Cada Homem é uma Raça) foram adaptados para teatro em Moçambique, Portugal e Brasil. Em finais de Dezembro de 1996, no Casale Garibaldi, de Roma, representou-se a peça A princesa russa, adaptação para palco do conto com o mesmo título, incluído em Cada homem é uma raça. <br /><br />3 Contos de Mia Couto:<br /><br />A VELHA E A ARANHA <br /><br />Deu-se em época onde o tempo nunca chegou. Está-se escrevendo, ainda por mostrar a redigida verdade. O tudo que foi, será que aconteceu? Começo na velha, sua enrugada caligrafia. Oculta de face, ela entretinha seus silêncios numa casinha tão pequena, tão mínima que se ouviam as paredes roçarem, umas de encontro às outras. O antigamente ali se arrumava. A poeira, madrugadora, competia com o cacimbo. A mulher só morava em seu assento, sem desperdiçar nem um gesto. Em ocasiões poucas, ela sacudia as moscas que lhe cobiçavam as feridas das pernas. Sentada, imovente, a mulher presenciava-se sonhar. Naquela inteira solidão, ela via seu filho regressando. Ele se dera às tropas, serviço de tiros. <br />- Esta noite chega Antoninho. Vem todo de farda, sacudu. <br />Para receber António ela aprontava o vestido mais a jeito de ser roupa. Azul-azulinho. O vestido saía da caixa para compor sua fantasia. Depois, em triste suspiro, a roupa da ilusão voltava aos guardos. <br />- Depressa-te Antoninho, a minha vida está-te à espera. <br />Mas era mais as esperas do que as horas. E o cansaço era sua única caricia. Ela adormecia-se, um leve sorriso meninando-lhe o rosto. E assim por nenhum diante. Desconhece-se a data, talvez nem tenha havido, mas num dos seus olhares demorados, a velha encontrou um brilho cintilando num canto do tecto. Era uma teia de aranha. Ali onde apenas o escuro fazia esquina, havia agora a alma de uma luz, flor em fundo de cinza. A velha levantou-se para mais olhar o achado. Não era a curiosidade que lhe puxava o movimento. Assustava-lhe a sua transparência demasiada. E, de logo, lhe surgiu a pergunta que luz tecera aquele bordado? Não podia ser obra de bicho. Não. Aquilo era trabalho para ser feito por espirito, criaturamente. A teia podia só ser um sinal, uma prova de promessa. Decidiu-se então a velha surpreender o autor da maravilha. A partir dessa tarde, seus olhos emboscaram o tempo, no degrau de cada minuto. Esquecida do sono e do sustento, não houve nunca sentinela mais atenta. Até que, certa vez, , se escutou um rumor quase arrependido, desses feitos para ser ouvido apenas pelos bichos caçadores. Por uma breve fresta se injanelava uma aranha. Era de um verde pequenino, quase singelo. Com vagaroso gesto a velha foi tirando o vestido do caixote. Usava os mais lentos gestos, fosse para o bicho não levar susto. <br />- Qualquer uma coisa vai acontecer! <br />Era suspeita que ela bem sabia. Confirmou-se quando as duas, mulher e aranha, se olharam de frente. E se entregaram em fundo entendimento, trocando muda conversa de mães. A velha sentiu o bicho pedia-lhe que ficasse quieta, tão quieta que talvez qualquer coisa pudesse acontecer. Então ela se fez exacta, intranseunte. As moscas, no sobrevoo das feridas, estranharam nem serem sacudidas. Foi quando passos de bota lhe entraram na escuta. Antoninho! A velha esmerava-se na sua imobilidade para que o regresso se completasse, fosse o avesso de um nascer. E lhe vieram as dores, iguais, as mesmas com que ele se havia arrancado da sua carne. Encontraram a velha em estado de retrato, ao dispor da poeira. Em todo o seu redor, envolvente, uma espessa teia. Era como um cacimbo, a memória de uma fumaragem. E a seu lado, sem que ninguém vislumbrasse entendimento, estava um par de botas negras, lustradas, sem gota de poeira. <br /><br />LIXO, LIXADO <br /><br />Orolando Mapanga não tinha onde cair vivo? É a impura verdade. Dele se fica sabendo que não existe pobreza de espírito. O que há é miséria sem espírito. O caso sendo universátil merece as tantas linhas. Pois o que importa não é o acontecimento mas a gente que há no não.acontecer da vida. Lugar de viver de Orolando era na lixeira, lá no interior, primeira transversal, à direita. Com boas vistas para o mar, mesmo na vertente de um monte de desperdicio. Apanhando boa brisa, mau grado os péssimos odores. Ali ele despachava os seus afazeres. Ao fim da tarde, saía a procurar restos de comida, gordurazinhas, singelas putrefacções. Raspava o fundo das latas, auscultava o ventre dos sacos. Ao ler seu constante sorriso, dir-se-ia que a felicidade é coisa encontrável mesmo na imundície. Orolando bem que defendia as vantagens do lugar: <br />- Aqui não chega nenhum bandido. <br />Lugar seguro de viver, isso ele garantia. Sossegado, também. Só no fim da madrugada o silêncio se sujava com os camiões trazendo o lixo. Mas, para ele, aquele barulho era o anunciar da mantimentação. Nunca se aproximou dos camiões. Ele não queria mostrar a sua vivência a ninguém, chamar a inveja dos outros. Essa gente quer coisas completas, cheias. A mim me basta o bocadinho da metade era o pensar dele enquanto empurrava um velho carrinho de mão pelas ruelas da lixeira. Outra vantagem era a guerra morar longe. É verdade que ali sempre se escutavam disparos. Mas era coisa da distancia, lá no lugar dos citadinos. Certa noite, ao buscar adomercimento, Mapanga escutou um ronco. <br />- É um porco, isso. <br />Sabia, o campo lhe ensinara. Voz de bicho era sua sapiência. Pelo cantar de uma só galinha ela adivinhava o tamanho de toda a criação. Pelo balido do cabrito ele sabia a cor do bicho. Desta vez, porém, ao invés da doce lembrança dos campos, seus olhos se nevoaram de ódio. Afinal, havia outro ser disputando as sobras. E ali mesmo jurou morte ao intruso. Desde então se dedicou a perseguir o suíno. Saía manhã cedinho à procura dele. A lixeira nunca lhe parecera tão grande. Ele conhecia os recantos, os fedores, os charcos. Porém, não havia maneira. O bicho esburacava nos monturos, sacana, não ficava nem rasto do cheiro. Vantagem do porco é ter um focinho polivalente, dá para escavar também. Até que, numa madrugada, Orolando desapertou com um bafo que se despejava em seu rosto. Berrou, borrou-se. <br />- Maiuê, as hienas me comem o nariz! <br />Palpou o escuro, deu de mãos numa pele lisa, agarrou com força. Foi como se espremesse um saco cheio de gritos. Era o porco em aflição. Segurou a presa com força, que a bicheza é inteligente há muito mais tempo que os homens. Amarrou-lhe as pernas e ficou-se longo tempo a contemplar a berraria do prisioneiro. Primeiro, lhe chegou um sentimento que há muito tempo não experimentava. Ali estava um vencido implorando as clemencias. Gozou aquele poder, em desconhecimento fundo de sua alma. Afinal, agora ele era proprietário, não de restos mas de uma vida inteira e recheada. Enquanto matutinava este sentimento, de quando em quando, despachava uns pontapés no bicho. Nesse dia, nem saiu a procurar abastecimento. Só ficou ali, olhando o novo habitante, escolhendo o destino a lhe aplicar. Indecidia-se morte haveria de ser. Mas o porco merecia ser comido? Deixou o despacho para mais tarde aquela era sentença que não viria do pensamento. A noite chegou, cansada do seu trabalho na outra face do mundo. Orolando Mapanga anotou o frio, juntou velhos jornais à sua volta. Mas o cacimbo lhe trouxe arrepios, esgotados que estavam seus agasalhos. Então ele se chegou ao porco, abraçou-lhe como só merece uma mulher. E, aos poucos, se foi contagiando com o quentinho de uma outra vida. No seguinte dia, ele se polemicava mais vale a fome ou o calor de uma companhia? Pelo sim pelo talvez, decidiu adiar a sentença do bicho. E quando, entre os lixos, descobriu uma velha corda, lhe deu uso de trela e levou o suíno a passear. Mesma coisa os brancos fazem com os cães. O bicho de estimação mereceu até nome téksmanta. [Texmanta nome de uma fabrica textil em Moçambique] Agora, quem passar pela lixeira pode ver um porco, com dignidade canina, encaminhando seu dono pelos detritos, oferecendo seu faro para a escolha da migalhas da sobrevivência. Dizem o Mapanga se vai esquecendo da lingua humana, soletrando só a fonética do bicho. Afinal, vivendo na porcaria ele combina melhor com o idioma dos porcos é o parecer dos trabalhadores do lixo quando se despedem dos domínios de Orolando Mapanga. <br /><br />OS INFELIZES CÁLCULOS DA FELICIDADE <br /><br />O homem da história é chamado Julio Novesfora. Noutras falas o mestre Novesfora. Homem bastante matemático, vivendo na quantidade exacta, morando sempre no acertado lugar. O mundo, para ele, estava posto em equação de infinito grau. Qualquer situação lhe algebrava o pensamento. Integrais, derivadas, matrizes para tudo existia a devida fórmula. A maior parte das vezes mesmo ele nem incomodava os neurónios: <br />- É conta que se faz sem cabeça. <br />Doseava o coração em aplicações regradas, reduzida a paixão ao seu equivalente numérico. Amores, mulheres, filhos tudo isso era hipótese nula. O sentimento, dizia ele, não tem logaritmo. Por isso, nem se justifica a sua equação. Desde menino se abstivera de afectos. Do ponto de vista da algebra, dizia, a ternura é um absurdo. Como o zero negativo. Vocês vejam, dizia ele aos alunos a erva não se enerva, mesmo sabendo-se acabada em ruminagem de boi. E a cobra morde sem ódio. É só o justo praticar da dentadura injectavel dela. Na natureza não se concebe sentimento. Assim, a vida prosseguia e Julio Novesfora era nela um aguarda-factos. Certa vez, porém, o mestre se apaixonou por uma aluna, menina de incorrecta idade, toda a gente advertia essa menina é mais que nova, não dá para si. <br />- Faça as contas mestre. <br />Mas o mestre já perdera o calculo. Desvalessem os razoáveis conselhos. Ainda mais grave ele perdia o matemático tino. Já nem sabia o abecedário dos números. Seu pensamento perdia as limpezas da lógica. Dizia coisas sem pés. Parecia, naquele caso, se confirmar o lema quanto mais sexo menos nexo. Agora, a razão vinha tarde de mais. O mestre já tinha traçado a hipotenusa à menina. Em folgas e folguedos, Julio Novesfora se afastava dos rigores da geometria. O oito deitado é um infinito. E, assim, o professor ataratonto, relembrava: <br />- A paixão é o mundo a dividir por zero. <br />Não questionassem era aquela a sua paixão. Aquilo era um amor idimensional, desses para os quais nem tanto há mar, nem tanto há guerra. Chamaram um seu tio, único familiar que parecia merecer-lhe as autoritárias confianças. O tio lhe aplicou muita sabedoria, doutrinas de por facto e roubar argumento. Mas o matemático resistia: <br />- Se reparar, tio, é a primeira vez que estou a viver. <br />Corolariamente, é natural que cometa erros. <br />- Mas, sobrinho, você sempre foi de calculo. Faça agora contas à sua vida. <br />- Essa conta tio, não se faz de cabeça. Faz-se de coração. <br />O professor demonstrava seu axioma, a irresoluvel paixão pela desidosa menina. Tinha experimentado a fruta nessa altura que o Verão ainda está trabalhando nos açucares da polpa. E de tão regalado, arregalava os olhos. Estava com a cabeça lotada daquela arrebitada menina. O tio ainda desfilou avisos não vislumbrava ele o perigo de um desfecho desilusionista? Não sabia ele que toda a mulher saborosa é dissaborosa? Que o amor é falso como um tecto. Cautela, sobrinho, olho por olho, dente prudente. Novesfora, porém, se renitentava, inóxidável. E o tio foi dali para a sua vida. Os namoros prosseguiram. O mestre levava a menina para a margem do mar onde os coqueiros se vergavam, rumorosos, dando um fingimento de frescura. <br />- Para bem amar não há como ao pé do mar, ditava ele. <br />A menina só respondia coisas simples, singelices. Que ela gostava do Verão. <br />- Do Inverno gosto é para chorar. As lágrimas, no frio, me saem grossas, cheiinhas de água. <br />A menina falava e o mestre Novesfora ia passeando as mãos pelo corpo dela, mais aplicado que cego lendo braille. <br />- Vai falando, não pare pedia ele enquanto divertia os dedos pelas secretas humidades da menina. Gostava dessa fingida distracção dela, seus actos lhe pareciam menos pecaminosos. Os transeuntes passavam, deitando culpas no velho professor. Aquilo é idade para nenhumas-vergonhas? Outros faziam graça: <br />- Sexagenário ou sexogenário? <br />O mestre se desimportava. Recolhia a lição do embondeiro que é grande mas não dá sombra nenhuma. Vontade de festejar deve eclodir antes de acabar o baile. Tanto tempo decorrera em sua vida e tão pouco tempo tivera para viver. Tudo estando ao alcance da felicidade porque motivo se usufruem tão poucas alegrias? Mas o sapo não sonha com charco se alaga nele. E agora que ele tinha a mão na moça é que iria parar? Uma noite, estando ela em seu leito, estranhos receios invadiram o professor essa menina vai fugir, desaparecida como o arco-íris nas traeiras da chuva. Afinal, os outros bem tinham razão chega sempre o momento em que o amendoim se separa da casca. Novesfora nem chegou de entrar no sono, tal lhe doeram as suspeitas do desfecho. Passaram-se os dias. Até que, certa vez, sob a sombra de um coqueiro, se escutaram os acordes de um lamentochão. O professor carpia as já previsiveis mágoas? Foram a ver, munidos de consolos. Encontraram não o professor mas a menina derramada em pranto, mais triste que cego sentado em miradouro. Se aproximaram, lhe tocaram o ombro. O que passara, então? Onde estava o mestre? <br />- Ele foi, partiu com outra. <br />Resposta espantável afinal, o professor é que se fora, no embora, sem remédio. E partira como? Se ainda ontem ele aplicava a ventosa naquele lugar? A ditosa namorada respondeu que ele se fora com outra, extranumerária. E que esta seria ainda muito mais nova, estreável como uma manhã de Domingo. Provado o doce do fruto do verde se quer é o sabor da flor. Enquanto a lagrimosa encharcava réstias de palavras os presentes se foram afastando. Se descuidavam do caso, deixando a menina sob a sombra do coqueiro, solitária e sózinha, no cenário de sua imprevista tristeza. Era Inverno, estação preferida por suas lágrimas. <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />MIA COUTO - CARTA AO PRESIDENTE BUSH <br /><br /><br />Senhor Presidente: <br /><br />Sou um escritor de uma nação pobre, um país que já esteve na vossa lista negra. Milhões de moçambicanos desconheciam que mal vos tínhamos feito. Éramos pequenos e pobres: que ameaça poderíamos constituir ? A nossa arma de destruição massiva estava, afinal, virada contra nós: era a fome e a miséria. <br /><br />Alguns de nós estranharam o critério que levava a que o nosso nome fosse manchado enquanto outras nações beneficiavam da vossa simpatia. Por exemplo, o nosso vizinho - a África do Sul do apartheid - violava de forma flagrante os direitos humanos. Durante décadas fomos vítimas da agressão desse regime. Mas o apartheid mereceu da vossa parte uma atitude mais branda: o chamado "envolvimento positivo". O ANC esteve também na lista negra como uma "organização terrorista!". Estranho critério que levaria a que, anos mais tarde, os taliban e o próprio Bin Laden fossem chamadas de "freedom fighters" por estrategas norte-americanos. <br /><br />Pois eu, pobre escritor de um pobre país, tive um sonho. Como Martin Luther King certa vez sonhou que a América era uma nação de todos os americanos. Pois sonhei que eu era não um homem mas um país. Sim, um país que não conseguia dormir. Porque vivia sobressaltado por terríveis factos. E esse temor fez com que proclamasse uma exigência. Uma exigência que tinha a ver consigo, Caro Presidente. E eu exigia que os Estados Unidos da América procedessem à eliminação do seu armamento de destruição massiva. Por razão desses terríveis perigos eu exigia mais: que inspectores das Nações Unidas fossem enviados para o vosso país. Que terríveis perigos me alertavam? Que receios o vosso país me inspirava ? Não eram produtos de sonho, infelizmente. Eram factos que alimentavam a minha desconfiança. A lista é tão grande que escolherei apenas alguns: <br /><br />- Os Estados Unidos foram a única nação do mundo que lançou bombas atómicas sobre outras nações <br /><br />- O seu país foi a única nação a ser condenada por "uso ilegítimo da força" pelo Tribunal Internacional de Justiça <br /><br />- Forças americanas treinaram e armaram fundamentalistas islâmicos mais extremistas (incluindo o terrorista Bin Laden) a pretexto de derrubarem os invasores russos no Afeganistão. <br /><br />- O regime de Saddam Hussein foi apoiado pelos EUA enquanto praticava as piores atrocidades contra os iraquianos (incluindo o gaseamento dos curdos em 1988) <br /><br />- Como tantos outros dirigentes legítimos, o africano Patrice Lumumba foi assassinado com ajuda da CIA. Depois de preso e torturado e baleado na cabeça o seu corpo foi dissolvido em ácido clorídico. <br /><br />- Como tantos outros fantoches, Mobutu Sese Seko foi por vossos agentes conduzido ao poder e concedeu facilidades especiais à espionagem americana: o quartel-general da CIA no Zaire tornou-se o maior em África. A ditadura brutal deste zairense não mereceu nenhum reparo dos EUA até que ele deixou de ser conveniente, em 1992 <br /><br />- A invasão de Timor Leste pelos militares indonésios mereceu o apoio dos EUA. Quando as atrocidades foram conhecidas, a resposta da Administração Clinton foi "o assunto é da responsabilidade do governo indonésio e não queremos retirar-lhe essa responsabilidade". <br /><br />- O vosso país albergou criminosos como Emmanuel Constant um dos líderes mais sanguinários do Taiti cujas forças para-militares massacraram milhares de inocentes. Constant foi julgado à revelia e as novas autoridades solicitaram a sua extradição. O governo americano recusou o pedido. <br /><br />- Em Agosto de 1998, a força aérea dos EUA bombardeou no Sudão uma fábrica de medicamentos, designada Al-Shifa. Um engano? Não, tratava-se de uma retaliação dos atentados bombistas de Nairobi e Dar-es-Saalam. <br /><br />- Em Dezembro de 1987, os Estados Unidos foi o único país (junto com Israel) a votar contra uma moção de condenação ao terrorismo internacional. Mesmo assim a moção foi aprovada pelo voto de cento e cinquenta e três países. <br /><br />- Em 1953, a CIA ajudou a preparar o golpe de Estado contra o Irão na sequência do qual milhares de comunistas do Tudeh foram massacrados. A lista de golpes preparados pela CIA é bem longa. <br /><br />- Desde a Segunda Guerra Mundial os EUA bombardearam: a China (1945-46), a Coreia e a China (1950-53), a Guatemala (1954), a Indonésia (1958), Cuba (1959-1961), a Guatemala (1960), o Congo (1964), o Peru (1965), o Laos (1961-1973), o Vietname (1961-1973), o Camboja (1969-1970), a Guatemala (1967-1973), Granada (1983), Líbano (1983-1984), a Líbia (1986), Salvador (1980), a Nicarágua (1980), o Irão (1987), o Panamá (1989), o Iraque (1990-2001), o Kuwait (1991), a Somália (1993), a Bósnia (1994-95), o Sudão (1998), o Afeganistão (1998), a Jugoslávia (1999) <br /><br />- Acções de terrorismo biológico e químico foram postas em pratica pelos EUA: o agente laranja e os desfolhantes no Vietname, o vírus da peste contra Cuba que durante anos devastou a produção suína naquele país. <br /><br />- O Wall Street Journal publicou um relatório que anunciava que 500 000 crianças vietnamitas nasceram deformadas em consequência da guerra química das forças norte-americanas <br /><br />Acordei do pesadelo do sono para o pesadelo da realidade. A guerra que o Senhor Presidente teimou em iniciar poderá libertar-nos de um ditador. Mas ficaremos todos mais pobres. Enfrentaremos maiores dificuldades nas nossas já precárias economias e teremos menos esperança num futuro governado pela razão e pela moral. Teremos menos fé na força reguladora das Nações Unidas e das convenções do direito internacional. Estaremos, enfim, mais sós e mais desamparados. <br /><br />Senhor Presidente: <br /><br />O Iraque não é Saddam. São 22 milhões de mães e filhos, e de homens que trabalham e sonham como fazem os comuns norte-americanos. Preocupamo-nos com os males do regime de Saddam Hussein que são reais. Mas esquece-se os horrores da primeira guerra do Golfo em que perderam a vida mais de 150 000 homens. <br /><br />O que está destruindo massivamente os iraquianos não são armas de Saddam. São as sanções que conduziram a uma situação humanitária tão grave que dois coordenadores para ajuda das Nações Unidas (Dennis Halliday e Hans von Sponeck) pediram a demissão em protesto contra essas mesmas sanções. Explicando a razão da sua renúncia, Halliday escreveu: "Estamos destruindo toda uma sociedade. É tão simples e terrível como isso. E isso é ilegal e imoral". Esse sistema de sanções já levou à morte meio milhão de crianças iraquianas. <br /><br />Mas a guerra contra o Iraque não está para começar. Já começou há muito tempo. Nas zonas de restrição áreea a Norte e Sul do Iraque acontecem continuamente bombardeamentos desde há 12 anos. Acredita-se que 500 iraquianos foram mortos desde 1999. O bombardeamento incluiu o uso massivo de urânio empobrecido (300 toneladas, ou seja 30 vezes mais do que o usado no Kosovo) <br /><br />Livrar-nos-emos de Saddam. Mas continuaremos prisioneiros da lógica da guerra e da arrogância. Não quero que os meus filhos (nem os seus) vivam dominados pelo fantasma do medo. E que pensem que, para viverem tranquilos, precisam de construir uma fortaleza. E que só estarão seguros quando se tiver que gastar fortunas em armas. Como o seu país que despende 270 000 000 000 000 dólares (duzentos e setenta biliões de dólares). por ano para manter o arsenal de guerra. O senhor bem sabe o que essa soma poderia ajudar a mudar o destino miserável de milhões de seres. <br /><br />O bispo americano Monsenhor Robert Bowan escreveu-lhe no final do ano passado uma carta intitulada "Porque é que o mundo odeia os EUA ?" O bispo da Igreja católica da Florida é um ex-combatente na guerra do Vietname. Ele sabe o que é a guerra e escreveu: "O senhor reclama que os EUA são alvo do terrorismo porque defendemos a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Que absurdo, Sr. Presidente ! Somos alvos dos terroristas porque, na maior parte do mundo, o nosso governo defendeu a ditadura, a escravidão e a exploração humana. Somos alvos dos terroristas porque somos odiados. E somos odiados porque o nosso governo fez coisas odiosas. Em quantos países agentes do nosso governo depuseram lideres popularmente eleitos substituindo-os por ditadores militares, fantoches desejosos de vender o seu próprio povo às corporações norte-americanas multinacionais ? E o bispo conclui: O povo do Canadá desfruta de democracia, de liberdade e de direitos humanos, assim como o povo da Noruega e da Suécia. Alguma vez o senhor ouviu falar de ataques a embaixadas canadianas, norueguesas ou suecas ? Nós somos odiados não porque praticamos a democracia, a liberdade ou os direitos humanos. Somos odiados porque o nosso governo nega essas coisas ao povos dos países do Terceiro Mundo, cujos recursos são cobiçados pelas nossas multinacionais." <br /><br />Senhor Presidente: <br /><br />Sua Excelência parece não necessitar que uma instituição internacional legitime o seu direito de intervenção militar. Ao menos que possamos nós encontrar moral e verdade na sua argumentação. Eu e mais milhões de cidadãos não ficamos convencidos quando o vimos justificar a guerra. Nós preferíamos vê-lo assinar a Convenção de Kyoto para conter o efeito de estufa. Preferíamos tê-lo visto em Durban na Conferência Internacional contra o Racismo. <br /><br />Não se preocupe, senhor Presidente. A nós, nações pequenas deste mundo, não nos passa pela cabeça exigir a vossa demissão por causa desse apoio que as vossas sucessivas administrações concederam apoio a não menos sucessivos ditadores. A maior ameaça que pesa sobre a América não são armamentos de outros. É o universo de mentira que se criou em redor dos vossos cidadãos. O maior perigo não é o regime de Saddam., nem nenhum outro regime. Mas o sentimento de superioridade que parece animar o seu governo. O seu inimigo principal não está fora. Está dentro dos EUA. Essa guerra só pode ser vencida pelos próprios americanos. <br /><br />Eu gostaria de poder festejar o derrube de Saddam Hussein. E festejar com todos os americanos. Mas sem hipocrisia, sem argumentação para consumo de diminuídos mentais. Porque nós, caro Presidente Bush, nós, os povos dos países pequenos, temos uma arma de construção massiva: a capacidade de pensar. <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />MIA COUTO, dois contos de CRONICANDO <br /><br /><br /> Cronicando. 5ª ed. Lisboa : Caminho, 2000, p. 125-130 <br /><br />No zoo-ilógico <br /><br />Zoo, ainda aceito. Mas lógico, porquê? As mais das vezes é mesmo ilógico: os animais com ordem de prisão, detidos sem outra legalidade que não seja a prepotência de nossa espécie. O senhor duvida? Então venha por outros olhos visitar o parque. <br />Desta feita, daremos volta à passarada. Dá pena ver tanta pena subusada. Contudo, os cantares de encanto, os pios e os rodopios, as súbitas colorações, todas essas maravilhas permanecem, resistindo à jaula. Mar, ave, ilhas. <br /><br />Primeiro, as aves de rapina. Estes majestosos caçadores não merecem tão pejorativa nomeação. No domínio das aves muitas correcções se necessitam, como haveremos de ver. <br />Comecemos pelo falcão: já viram os olhos, como são felinos? Certo seria chamar-se de falgato. <br />Já o mocho tem os olhos como as lojas antes do PRE(1): estão abertas mas não atendem ninguém. <br /> <br />Haverá uma estória de amor, feita de eterno desencontro, entre a ave nadadora, o pinguim, e o peixe-voador. <br /><br />O macho da catatua: o catateu. Entre guerreiro e palhaço a catatua se assustou com o temor que quer infligir aos outros. <br />O tucano emitiu o bico em triplicado. Não está pousado num galho mas sobre um cano. Pelo nome se vê que trata o cano por tu, o tucano. <br />É preciso ter perna para pernoitar. Quem diz é a garça em suas pernaltitudes. <br />Rectifico o albatroz: alba, sim; atroz, nunca. <br /><br />O maior da família, a avestruz. É uma ave que não exerce. As asas, desempregadas, quase estão murchas. Alguma coisa deve ter acontecido para Deus lhe tirar o brevet. <br /><br />De raspão quase o morcego se empassarava. No escuro-fusco, o mamífero aviador se orienta só de ouvido. Desgraça do morcego, então, era ser morsurdo. <br /><br />Há hierarquia nos nomes. Pássaro não é sinónimo completo de ave. Pássaro é menos que ave, estatuto menor da carreira alada. Da mesma maneira, pluma e pena não são sinónimos gémeos. A pluma é a pena de gala, o traje de cerimónia. <br /><br />O galo: mais cavalheiro não conheço. Cisca e debica mas quase não come. Oferece o melhor às galinhas do seu harém. Exemplo para os homens que, ao comerem as galinhas, não deixam parte valiosa para as mulheres. <br /> <br />A mais volátil de todas as feras: a atmosfera. Ela é como o coração de certas mulheres: todos nela residem, ninguém lá mora. <br /><br />O leitão pequeno: o leitinho. <br /><br />O marisco, primeiro foi mar. Só depois foi isco. Como a amêijoa, no balanço da onda, amenjoada. <br /><br />O macho da gazela? O gazele. A fêmea do elefante: a elafante. <br />Ficando nos paquidermes: não será que, de tão enormíssimos, eles em vez de digestão, têm trigestão? <br /><br />A mais bela cá na área? A canária? Nas artes do chilreio, a maior: a chilrainha. E que dizer da ave que pia e logo se arrepende? É a ave dos arrepios. E ainda de passarada, se diz dos compromissos: antes comprometido que com o peru metido.<br /><br />E, no fim da volta, mais além, enjaulado, o pelicano. Como ele está magro: é só pele e cano! <br /><br />A visita findou suas horas. A tabuleta, no fecho da estória, rezava: proibido retirar comida aos animais. Um outro letreiro, virado para o interior das jaulas avisava a bicharada: "não provoque os homens, sua humanização está em curso". <br />A cidade e o zoo-ilógico: qual deles aprisiona o outro? Ao menos, se isentem de pagamento os bichos quando entenderem visitar os homens em suas urbaníssimas gaiolas, os altos prédios que tanto arranham os céus. <br /><br /><br /> <br />Animais, animenos <br /><br />Na solidão da jaula os bichos se autrofiam. Que desanimaldade! Assim, arrisco: o homem é o antecessor de todos os animais. Ofendo? Que outro ser, portador de alma, é tão sem-respeitoso? Amanhã, em suas fábulas, os bichos narrarão: no tempo em que os homens sujavam o mundo. Passemos aos animais, antes que esgotem:<br /><br />O polvo, multipérnico, em sua imóvel impaciência. Tentaculista, dono de suas serpentes, quem sabe ele pressente o polvilho da morte, o polvo em transição para o guisado?<br /><br />Já as lulas, em seus líquidos voos, lembram suas aéreas parentes, as libélulas.<br /><br />Quem não simpatiza com as gazelas é o Lopes. Pensa que são contra ele, os antílopes.<br /><br />A avestruz mete a cabeça no deserto. Vá lá ela. Porque homens há que escolhem bem pior: meter o deserto dentro da cabeça.<br /><br />O piolho, saltitando de contente, esbarra na fivela do cinto do hospedeiro. Do choque vazou-se-lhe a vista. Sem um olho, o piolho já só assina: pi. <br />Já o outro, bem higiénico: o pirilimpo.<br /><br />E agora com o SIDA? Coitado do vampiro, viciado nas refeições sanguíneas. Que poderá o pobre quiróptero fazer? Qual a sua quiropção? Pedir o teste do HIV às vítimas? O melhor será, talvez, retirar-se. Vampirar-se.<br /><br />Avultado nome leva o esquilo que, somado, não chega nem a um quarto de quilo. Recertificado seja seu título: fique o esgrama. <br />Ao inverso, o hipopótamo. Acertado seria: o hiperpótamo.<br /><br />A rã que faz cópias? A rã que xerox!<br /><br />Restem dúvidas, a cor do azul é a água. A um instante, me desvio, submarinheiro. Descubro as algas, álgicas, nostálgicas em seus líquidos canteiros. Regam-se de terra, adubam-se de luz. Suas verdes guelras, os raminhos onde assobiam as ondanias.<br /><br />O cágado, na caixa de si, tartaenrugado. Corcundarilho, marcha a remo. O cágado é o único que morre já em construído mausoléu. <br /><br /><br />(1) PRE: Programa de Reabilitação Económica lançado pelo governo moçambicano em meados da década de 80. <br /><br /><br />Entrevista com Mia Couto<br /><br />O jogo das reinvenções<br /><br />Sophia Beal <br />Storm. Portugal, março de 2005. <br /><br />Mia Couto é um dos mais importantes representantes da Literatura Moçambicana e Africana. A sua imaginação e a sua habilidade de captar os ecos de uma cultura riquíssima e complexa, fazem dele um escritor invulgar que contribui para o alargamento e desenvolvimento da Língua Portuguesa. Sophia Beal, uma jovem Bolseira, a residir neste momento em Maputo, Moçambique, entrevistou-o para a Storm. <br /><br />Sophia Beal: Você trabalha como biólogo e como escritor. Como organiza seu tempo para fazer as duas coisas? <br /><br />Mia Couto: Se calhar não são duas coisas; se calhar é uma coisa só. Assim, na maneira que eu vejo, acho que na minha vida há momentos que eu estou escritor. Estou a usar o verbo "estar" e não o verbo "ser" e faço isso de propósito. Os momentos que eu "estou" escritor são os momentos na minha vida em que tenho uma relação com o mundo, com os outros, com as coisas, com os seres, que é uma relação em que me permite ser criativo, me permite estar num estado de infância e em que estou olhando o mundo como alguém que ainda está se surprendendo com ele. Esses momentos eu tenho quando estou biólogo, também. A biologia, para mim, não é uma profissão, é uma espécie de uma janela para olhar o mundo. A maior parte das vezes permite o sentimento de irrealidade que, se calhar, uma outra profissão não me permitiria . A biologia também permite que eu visite o interior de Moçambique, trabalhe com pessoas e recolha histórias. Quando estou nas zonas rurais principalmente, para mim, não é um trabalho. É uma espécie de uma ponte para eu estar desse outro lado em que eu sou escritor. <br /><br />SB: Mesmo que a biologia seja, para você, uma janela e não um trabalho, influencia muito sua obra escrita? <br /><br />MC: Imagino que sim. Quando eu leio o que eu escrevi- é raro, quase nunca leio as minhas obras depois de publicadas - quando releio as coisas que eu fiz, eu encontro alí coisas que eu descobri através da biologia. Particularmente aquilo que é a percepção de outras linguagens, a forma como eu posso estar próximo de uma árvore ou de um animal. Consigo isso através daquilo que a biologia me deu, que é uma maneira de olhar o mundo com outros entendimentos. Quer dizer, estou disponível. Isto é muito pouco científico no fundo. É muito pouco rigoroso no sentido da ciência biológica, mas a biologia permitiu mostrar que estas coisas que são seres vivos são construções que estão ainda em movimento, que estão inacabados; são uma espécie de pequenos brinquedos. Isso aparece nos meus escritos. Eu acho. <br /><br />SB: Em "Uma nação sem Mitos?", lê-se na edição do dia 17 de Setembro de 2004 do jornal Savana. "A história de uma nação assemelha-se à épica literária: há que produzir uma narrativa sedutora que nos faça ter orgulho numa imagem, numa identidade que, sendo inventada e produto da História, nos pareça da ordem da Natureza. O mito tem essa função de converter o que é processo histórico numa espécie de essência." Como você vê seu papel como autor dentro do este projecto de criar e promover os mitos moçambicanos? <br /><br />MC: Vejo com bastante humildade. Acho que a escrita literária tem uma função na criação daquilo que são os mitos fundadores de uma nação, o chamado sentimento nacional. Houve casos de nações que se construiram muito na base daquilo que são as intervenções literárias em casos de países em que a tradição da escrita está muito presente. E eu não imagino que esta idéia, o sentimento de ser-se português, por exemplo, fosse a mesma coisa se não houvesse Luís de Camões. Eu não sei, mas talvez no caso dos Estados Unidos não haja uma coisa tão presente como Camões que é, para uma pequena nação que tem aquela epopéia dos descobrimentos, como um dos seus grandes mitos. Não sei se autores como Walt Whitman ou Mark Twain não compriram também esse papel daquilo que foi, num certo plano, numa certa dimensão, a construção e a invenção de alguns mitos nacionais americanos. <br /><br />Talvez, no caso dos Estados Unidos, o cinema tenha cumprido também muito essa função que foi a criação de uma "Americanidade" nesse sentido que é a conversão de uma narrativa numa epopéia. É claro que foi reescrita; está sendo corrigida. Quando eu era mais menino, não era politicamente incorrecto matar os índios ou ter essa idéia do "cowboy" como um grande construtor da nação americana. Hoje isso está revisto a partir de alguns "landmarks", marcos do cinema como o filme "Pequeno Grande Homem", [Little Big Man] e os outros filmes que puseram em causa essa idéia de que o homem branco está se construindo e afirmando contra os índios. Hoje, essa idéia é refeita, mas é uma prova de que os mitos não são definitivos. Estão sempre em reconstrução, e em nosso caso, de Moçambique, um país que está a começar, está tudo no início. Eu creio que os escritores vão ter um papel aqui importante principalmente para fixar aquelas que são as propostas que estão nascendo. <br /><br />SB: Ao longo de sua carreira quem foram os autores ou quais foram os livros que mais o inspiraram? <br /><br />MC: Na minha carreira não diria, mas na minha vida. Por exemplo, uma coisa estranha, mas há um espanhol chamado Juan Ramón Jiménez que escreveu Platero e Eu [Platero y Yo]. Quando eu era menino, lia este livro, e tinha um fascínio por animais. Essa paixão foi uma das razões que me levou a ser biólogo. Eu queria trazer todos os animais para minha casa. O burro, Platero, que é descrito naquele livro, para mim foi o primeiro encontro:como a poesia podia converter um animal numa coisa que eu podia trazer para casa. Eu já não precisava do animal em casa, eu tinha aquele livro que me trazia uma idéia da relação entre o homem e o bicho. Isso marcou-me muito. Já não era uma coisa literária, não era só um livro bonito, mas foi uma maneira de eu ganhar o mundo. Isso é um caso. Depois, alguma poesia de brasileiros e de portugueses como Sofia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, me trouxeram a confirmação de que a poesia não era uma coisa bonita só, era uma coisa que era profundamente verdadeira e, que era bonita, porque era verdadeira. E era verdadeira, porque criava esses sentimentos da verdade, não é porque haja uma coisa verdadeira assim em abstracto. <br /><br />SB: Vejo ligações entre suas obras e as obras de João Guimarães Rosa em termos da aproximação à oralidade e à linguagem coloquial do povo. As narrativas dele muitas vezes têm base em acontecimentos verdadeiros e histórias orais resgatadas do sertão brasileiro. Encontra inspiração também nos acontecimentos verdadeiros ou é sua aproximação à tradição oral algo que vem somente de dentro de si? <br /><br />MC: Esqueci-me de falar de Guimarães Rosa, mas ele tinha, realmente, que surgir na resposta à pergunta anterior. Quando eu li pela primeira vez os contos dele (comecei pela "A Terceira Margem do Rio") foi uma fascinação; foi um momento importante na minha vida. Em relação à pergunta que estava a fazer, eu acho que não sei se existe isso de dentro e fora, essa fronteira que nós fazemos entre o acontecimento verdadeiro e o acontecimento inventado ou ficcionado. Eu acho que exactamente o segredo da inspiração é quando nós quebramos esta barreira. Quando aquilo que é a realidade (ou a verdade) passa a ser alguma coisa que é olhada como se fosse uma coisa inventada e visa-versa. Por exemplo, imagina alguma coisa que se passou concretamente: eu vi uma pessoa; eu vi um acidente; eu vi alguém chorando ou rindo. Quando isso me comove, me toca, imediatamente entro em estado de ficção, isto é, aquela pessoa, podendo ser real porque está ali e eu a vi, assisti, fui testemunha. Mas eu entro para o meu lado de escritor quando configuro aquela pessoa e aquele acontecimento numa ordem e num quadro ficcional. O segredo está exactamente nessa situação de delinear a fronteira enquanto olhamos o mundo, naquele momento que nem é dia nem é noite. Podemos andar nesse novo sistema, uma expressão que eu gosto muito é o "twilight zone", nesta zona de penumbra. Esse acho que é o segredo de olhar o mundo desta maneira, sendo escritor. <br /><br />SB: Muitos dos seus personagens são contadores de histórias que vivem em situações precárias, mas que conseguem ser actores na própria vida através de histórias que contam. O que o atrai neste tipo de personagem? <br /><br />MC: Vamos ver se eu entendi bem a pergunta. Vives aqui, em Moçambique, estás aqui há algum tempo, e acho que tu já entendeste. As pessoas estão sempre colocadas numa situação de viverem em diferentes mundos e têm que viver em diferentes mundos, têm que fazer alguma pose, alguma representação: se são do mundo rural quando estão no mundo urbano, têm que parecer urbanos. Têm que estar num território um pouco estranho, o que implica lidar com códigos que não são os seus de nascença, não são os seus mais profundos. Isto faz com que as pessoas estejam sempre recriando-se, reinventando-se. Esta situação é muito rica, porque se vive com mundos que atravessam o interior das pessoas. As almas das pessoas são atravessadas por este mundo. As pessoas estão sempre viajando de um mundo para outro. Quando casam, têm uma cerimónia num e noutro lado. Quando nascem, quando morrem é como se houvesse duas mortes, como se houvesse duas vidas. As pessoas vivem sempre nesta situação de se dividirem, distribuirem por diferentes registos, diferentes maneiras de se olharem e de olharem para os outros. Acho que isto é uma fonte de inspiração muito grande para qualquer pessoa, já não falo num escritor. Para gente que desconhece esta dupla dimensão, a conclusão pode ser pensar que aqui há uma mentira, um jogo de mentiras. E não é tão simples. Não é um jogo de mentiras, é um jogo de reinvenções. As pessoas têm que se recriar em diferentes teatros, diferentes cenários. <br /><br />SB: O tema de reinvenção aqui me fascina, porque a minha area é a literatura comparada, na qual o tema é central, mas num sentido puramente teórico, mas aqui não. Aqui a reinvenção tem o papel prático, também. <br /><br />MC: As pessoas vivem isso. Tu tens que ser duas Sophias, três Sophias no teu dia-dia, tens que ter uma maneira de ter uma espécie de fusível. De repente estás funcionando num registo que é o registo digamos europeu, por exemplo, e de repente passas para um registo mais africano, se é que isto pode chamar-se assim. <br /><br />SB: Estou muita inspirada com a sua capacidade de sempre pensar em novas narrativas. Poucos autores compartilham seu talento de escrever tanto. Sua inspiração para novas narrativas vem de onde? Vem à cabeça naturalmente ou de ler, de escrever ou de conversar, por exemplo? <br /><br />MC: De tudo, mas acho que vem do facto de manter dentro de mim uma disponibilidade de me apaixonar por coisas, me apaixonar por momentos, por livros, por pessoas, por canções. Por exemplo, uma coisa que tento passar aos meus filhos é que não se ouve música. Ouve-se música quando a música não é boa, mas quando a música é muita boa, e nos rapta a alma, o verbo "ouvir" já não é suficiente. Nós temos que viajar para aquele momento, emigrar para. Isso está se perdendo, porque hoje vejo que com esta nova geração das minhas filhas que fui acompanhando, ouve-se música para acompanhar qualquer coisa. Ouve-se música enquanto se está a fazer outra coisa, e eu acho isso estranhíssimo. Às vezes me interrogo sobre aquilo que poderia levar, por exemplo, a fumar. Eu quando fumasse, estaria só fumando. Eu estava sendo fumado pelo cigarro, digamos assim. Estamos a falar da inspiração; se estou com alguém, eu quero estar de maneira que esteja completamente naquele momento, naquela relação. E isso é, no fundo, talvez o meu segredo de poder ficar completamente possuído pelo momento, e esse momento pode ser desencadeado por uma frase, por uma pessoa, uma canção, uma mulher, qualquer coisa. <br /><br />SB: Quais são seus projectos literários actuais? <br /><br />MC: Acabei agora uma coisa chamada "A Chuva Pasmada". É um livro que começou por ser um livro infantil , mas não gosto dessa maneira de o chamar,e evoluiu para uma outra coisa. Já não é um livro para crianças, é um livro. Só que tem ilustrações. As ilustrações são muito bonitas. Estou trabalhando numa coisa de longo fôlego que é um romance, vamos chamar histórico, que estou convertendo em uma coisa anti-histórica e que tem a ver com visitas que se fazem no tempo: no tempo da escravatura. Tem a ver com pessoas que vêm dos Estados Unidos; tem uma história longa - não vou contar tudo, aqui - que me obriga a estudar documentação da época e de épocas diferentes. Faço algum jogo de esconde-esconde com esta que é a verdade histórica. <br /><br />SB: Dos prémios que já ganhou, tem algum, em particular, que é mais significante para si? <br /><br />MC: Talvez este prémio que eu ganhei, acho que não fui eu, foi o livro que ganhou, "Terra Sonâmbula". Foi tido como um dos doze melhores romances do século vinte de África. Eu não sei como se pode chegar até classificar assim um livro, desconheço os critérios, mas, de qualquer maneira, para mim foi muito gratificante sim, porque é um livro que me fez sofrer muito, foi num período sofrido, um período da guerra. Eu pensava que não era possível escrever um romance sobre a guerra enquanto a guerra durasse. Pensei que os grandes romances sobre a guerra fossem feitos depois, quando a paz já está estabelecida. Mas, aquela foi uma visitação muito intensa. Durante semanas, eu quase não consegui dormir. Era como se o livro me visitasse durante a noite, como um pesadelo quase. É um livro com desafios e relações que são atribuladas. Por isso, fiz as pazes de minha vida com aquilo que significa o livro, porque há uma carga simbólica para mim próprio. Aquele livro, para mim, é minha memória da guerra, e eu precisava de ficar em paz com ele. <br /><br />(fonte: http://www.lainsignia.org/2005/marzo/cul_030.htm)<br /><br />Bibliografia<br /><br />Couto, Mia. Cada Homem É uma Raça. Lisboa: Caminho, 1990. <br />"Uma nação sem mitos?" Savana. 17 Sep. 2004: 7. <br />Terra Sonâmbula. Lisboa: Caminho, 1992. <br />A Varanda do Frangipani. Lisboa: Caminho, 1996. <br />Vozes Anoitecidas. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 1987. <br />Little Big Man. Dir. Arthur Penn. Perf. Dustin Hoffman. Cinema Center Films, 1970. <br />Rosa, João Guimarães. "A Terceira Margem do Rio." Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Livraria J. Olympio Editora, 1962. <br />Jiménez, Juan Ramón. Platero e eu. 4ª ed. Sao Paulo: Globo, 1997. <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Terra Sonâmbula", de Mia Couto <br /><br />Relato poético das memórias e dos sonhos que a guerra civil destruiu -- "Terra Sonâmbula" é o primeiro romance de Mia Couto<br /><br />Por Raquel Ribeiro<br /><br />Muidinga, o miúdo, e Tuahir, o velho, seguem estrada fora, em busca "de um outro continente dentro de África". Como todos os personagens de "Terra Sonâmbula" (1992), andam à deriva num Moçambique esventrado pela guerra civil, banhado em sangue e lágrimas.<br /><br />Nesta história de uma terra adormecida ao som dos morteiros, o escritor moçambicano Mia Couto (Beira, 1955) continua a fazer do conto (antes deste livro, publicou dois livros de contos, "Vozes Anoitecidas", 1986, e "Cada Homem É Uma Raça", 1990) o estilo e marca pessoal de escrita. Daí que se tenha dito que "Terra Sonâmbula" -- que foi considerado um dos 12 melhores romances africanos do século XX -- é um "grande livro de contos".<br /><br />A oralidade como "desarrumação da língua", o ultrapassar dos limites, a re-invenção e o enriquecimento do "português", a consagração do vocábulo -- de tudo isso "Terra Sonâmbula" é feita. "O encontro entre a oralidade e a escrita é uma das pontes que nos faltam para encontrar neste mundo o nosso mundo", disse o escritor numa entrevista ao PÚBLICO, que amanhã publicamos.<br /><br />Mia Couto é poeta, escritor, biólogo e foi jornalista durante os turbulentos anos da independência. Disse muitas vezes que o jornalismo lhe deu disciplina e que a biologia lhe mostrou "outras linguagens". "Todo o resto devo à poesia", disse numa entrevista à "Folha de São Paulo" em 1998.<br /><br />E é a poesia que Mia Couto explora nesta "história dentro da história", em que a narrativa aparece como a "redenção" do sofrimento da guerra. Mas em "Terra Sonâmbula" a "ausência" de poesia é mais flagrante: nessa África maculada pelo sangue, os homens parecem lutar contra si mesmos, num desespero da solidão na imensa paisagem. O que é, então, este livro no livro, a escrita no abismo?<br /><br />No meio do nada, Muidinga encontra um livro, o "caderno de Kindzu", de um "tempo em que o mundo tinha a nossa idade". Da leitura desse livro surgirá "Terra Sonâmbula" -- duas histórias que se entrelaçam, ambas de testemunho doloroso sobre a guerra, ambas de memórias perdidas e de sonhos por conquistar: as memórias de Tuahir, os sonhos de Muidinga. "O próprio Muidinga está como se encantando com as palavras de Tuahir. Não é a estória que o fascina, mas a alma que está nela", escreve, no livro. "Terra Sonâmbula" são estórias com alma, uma terra em divórcio com os antepassados, a morte com saudades da vida, o som dos sonhos, "com os ruídos da guerra por trás". <br /><br /><br />MIA COUTO - TERRA SONÂMBULA<br /><br />AS "PÁGINAS DE TERRA" DE MIA COUTO <br /> <br />Viegas Fernandes da Costa <br /> <br />Outro dia uma amiga, Aline, chamou-me a atenção para a obra de Saramago, por ambos degustada: "uma arquitetura" - definiu. Tive que concordar, Saramago é o arquiteto da prosa, como o foram também Kafka e Dostoievski. Ao ler "Todos os Nomes", do mestre português, minhas impressões me remeteram ao romance (seria correto assim chamá-lo?) "O Processo" e ao conto "O Artista da Fome", ambos de Kafka, por exemplo, bem como me devolveram aos sentidos a prosa dostoievskiana de "Crime e Castigo". Associo todos nesta fala de Aline: arquiteturas, sim, pelas imagens que compõem, e são, por isso, textos plásticos. Mas apesar deste início, não é sobre estes três autores que quero escrever hoje. E se a alguém frustrei, peço desculpas. <br />Ocorre que estou entusiasmado, melhor, encantado, com um livro intitulado "Terra Sonâmbula" e escrito pelo autor moçambicano Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto. Encantado porque desconheço os segredos de se escrever como um ourives, eu, que na literatura uso do machado - de lenha mesmo, não do Assis. "Terra Sonâmbula" é assim, uma peça de ourivesaria, cada frase cuidadosamente lapidada e encaixada pelo humanismo deste escritor cuja obra há muito me indicavam, mas que só agora meus olhos resolveram conhecer. Neste romance desfia-se a prosa de um poeta de rara sensibilidade, desde a primeira página o percebemos. Em entrevista que concedeu há algum tempo, ele mesmo o disse: "nunca abandonei a poesia. Não se deixa a poesia se se é realmente poeta. Escrevo em prosa mas por via da poesia". De fato, em "Terra Sonâmbula" a prosa é o veio por onde corre o lirismo de um escritor cujos olhos recaem sobre seu povo e sua história. A história de uma terra estuprada pelo colonialismo português e de um Moçambique destruído pela guerra, onde "os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte", como escreve já no primeiro parágrafo deste seu livro. <br />Assim como Xanana Gusmão, poeta timorense que militou na guerrilha de esquerda, Mia Couto posicionou-se politicamente integrando os quadros da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), movimento de guerrilha anticolonial de inspiração marxista que se transforma em partido oficial depois da independência, em 1975. Foi atendendo às orientações da Frelimo que Mia Couto abandonou o curso de medicina e ingressou no jornalismo. Desencantado com o jornalismo, estudou biologia e dedicou-se à literatura, onde não abandonou suas posições políticas. É, portanto, uma literatura engajada esta que Couto escreve, sem, no entanto, tornar-se panfletária. Seu engajamento é com a cultura do sudeste africano e com a divulgação da luta do povo moçambicano pela sobrevivência e na construção de uma nação. É também uma denúncia, como quando fala o personagem Tuahir: "Foi o que fez esta guerra: agora todos estamos sozinhos, mortos e vivos. Agora já não há país." <br />Neste sentido, "Terra Sonâmbula" se insere em um contexto modernista, quase uma rapsódia à "Macunaíma", de Mário de Andrade. Ao buscar elementos das muitas mitologias tribais, das lendas e dos causos regionais, de um português com seus machimbombos, quizumbas, xicuembos, xipocos enriquecendo nosso vocabulário, contribui para a construção de uma identidade nacional moçambicana e nos mostra a riqueza cultural e folclórica de uma África que não conhecemos pelos noticiários internacionais. <br />"Terra Sonâmbula" conta a história do velho Tuahir e do "miúdo" Muidinga, refugiados da guerrilha que, caminhando por uma estrada abandonada, abrigam-se em um machimbombo (ônibus) destruído pelo fogo. Ao sepultarem os mortos que estavam no veículo, encontram pelo caminho uma mala com os onze cadernos de Kindzu, personagem que, através destes escritos, narra sua história póstuma. O romance se desdobra então em dois planos: o primeiro, em terceira pessoa, narra a história de Tuahir e Muidinga em sua luta diária pela sobrevivência, e a transformação deste último de menino em homem; já o segundo, narrado geralmente em primeira pessoa, é a história de Kindzu contada por ele mesmo em seus cadernos. São assim, onze capítulos e onze cadernos que nos apresentam a guerra, a dor, o amor e a esperança por meio do sonho. E talvez seja este o sentido da literatura de Mia Couto, cultivar o sonho nos "viventes que se acostumaram ao chão". É o que diz o xipoco (fantasma) a Kindzu em um dos diálogos do livro: " - O que andas a fazer com um caderno, escreves o quê? / - Nem sei pai. Escrevo conforme vou sonhando. / - E alguém vai ler isso? / - Talvez. / - É bom assim: ensinar alguém a sonhar." <br />E é isto, eis meu entusiasmo com "Terra Sonâmbula", outra arquitetura literária e verdadeiro manifesto humanista de um autor comprometido com sua terra, seu povo e sua cultura. Talvez por isso encerre o livro dizendo: "Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas de terra". A mesma terra africana que abriga a esperança de um futuro, apesar de tudo. <br /> <br />Blumenau, 27 de março de 2005. <br /> <br /> <br /> <br />© Viegas Fernandes da Costa. Permitida a reprodução desde que citado o autor e o texto mantido na íntegra. <br /><br /><br />Mia Couto e Guimarães Rosa: a língua e seus palavradores<br /><br />Alílderson Cardoso de Jesus <br />UFRJ<br /><br />Disse Fernando Pessoa: "a língua é minha pátria". A língua portuguesa, se acolhermos a frase de Pessoa, une países de diversos continentes em uma pátria única, da qual faria parte Moçambique aliado a outros países a expressarem-se nessa língua. <br /><br />O escritor moçambicano Mia Couto, autor de Estórias abensonhadas, Terra sonâmbula, Cada homem é uma raça, entre outros, disse fazer amor no chão com a língua portuguesa que, mesmo sendo oficial em seu país, não é falada por boa parte dos moçambicanos. A frase apaixonada de Mia Couto revela um escritor que trata uma língua "alienígena", imposta pelo colonizador, com a intimidade de um amante.<br /><br />O poeta-prosador, que sem saber se é um poeta que sonha prosas ou um prosador que sonha poesias, constrói sua obra literária misturando expressões dos idiomas de Moçambique ao português, como quem mistura sabores distintos em distintos paladares sem reconhecer-lhes qualquer distinção. Mia Couto reinventa e redescobre palavras preenchendo lacunas de significados com renovados significantes, mergulhando no olho do leitor o universo particular de suas abensonhadas histórias.<br /><br />Esta literatura impregnada pela oralidade, tradição africana que se mantém nas vozes anoitecidas dos contadores de estórias, obrigam-me a um paralelo com a escrita de um seu compatriota, o brasileiro João Guimarães Rosa. O poliglota de Cordisburgo, autor de Sagarana, Grande sertão: Veredas e tantos outros, é igualmente revitalizador da linguagem, igualmente traidor da gramática normativa e igualmente um palavrador.<br /><br />Arrebatado por uma literatura tão rica, sofisticada, propus-me a seguinte indagação: a despeito de qualquer efeito estético, ou estilístico, que outro valor teria a palavra reinventada ? Se já existem palavras em estado de dicionário, devidamente verbetizadas, por que esta impertinência de ficar criando outras ?<br /><br />Como sabemos, a língua é e sempre foi instrumento de dominação. O poder de uma nação sobre a outra é sacralizado com a imposição de seu idioma aos nativos da terra conquistada, mas a língua é primordialmente, veículo do sentimento e da cultura de um povo ou indivíduo. Podemos suspeitar que tal impertinência desses autores seja uma insurreição contra a primeira idéia que expus sobre a língua e o resgate dessa última.<br /><br />Segundo Roland Barthes, "a linguagem é uma legislação e a língua seu código". Assim como a sociedade se organiza em mecanismos repressores, em uma vigília a condutas e posturas, um micropoder, para usar uma expressão de Foucault, também se organiza para o bom uso da língua, com sérias intenções de mantê-la casta e pura. O idioma de um povo, sob esta óptica, deixa de pertencer a uma comunidade e passa a ser de um grupo de acadêmicos chamados gramáticos, que procuram fossilizar a língua como quem tenta aprisionar o ar em uma gaiola. A literatura responde a isso com a desobediência; como afirmou Julio Cortázar, "os escritores ampliam a possibilidade do idioma(...) O escritor é o inimigo(...) do idioma". O romance Terra sonâmbula, de Mia Couto, e os contos "Fita- verde no cabelo" e "Nós, os temulentos", de Guimarães Rosa, nos quais me baseio para esta comunicação, são representativos dessa desobediência. <br /><br />A literatura do moçambicano de Beira é a escrita de um país que muitas vezes nos chega como um banquete de mutilados servido pela CNN, e que consagra justamente uma cultura tão valorosa quanto discriminada. A literatura do brasileiro de Minas Gerais dá voz ao homem do campo, ao sertanejo, e a geografia e a tez daquela região de incontáveis mundos. No conto "Fita-verde no cabelo - Nova velha estória", presente em Ave, palavra, o escritor apropria-se da célebre história de Chapeuzinho Vermelho para pôr em cena o teatro da vida e da morte. Na paródia à história infantil feita por Guimarães Rosa, a ameaça não é o lobo, e sim a vida e seus revezes. O diálogo de Chapeuzinho Vermelho com o lobo disfarçado de vovozinha é desconstruído: <br /><br />- Vovozinha, mas que lábios aí tão arroxeados! <br />- É porque nunca mais vou poder te beijar, minha neta... <br />- Vovozinha, que olhos tão fundos, parados nesse rosto encovado, pálido! <br />- É porque já não te estou vendo nunca mais, netinha... A avó ainda gemeu. <br />Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez. <br />Gritou: - Vovozinha, tenho medo do lobo.<br /><br />A paródia da história contada para embalar o sono infantil acaba sendo um ensaio sobre a perda ou sobre a vida que segue sem esperar por nós. Sua linguagem sofisticada, pródiga em invenções lingüísticas, resgata termos e semas desgastados pelo uso cotidiano. Para Guimarães Rosa o caminho não é curto, é "encurtoso", e na pequena aldeia onde se passa a história de Fita-Verde no cabelo os velhos e velhos não envelheciam e sim velhavam.<br /><br />É importante notar a diferença semântica que se estabelece entre o neologismo e a palavra que o originou. O verbo "velhar" pode significar tornar velho, agir à maneira de um velho, portanto mais rico que "envelhecer".<br /><br />No conto "Nós, os temulentos", que significa ébrios, bêbados, a trajetória de um bêbado é descrita com ironia e sarcasmo de um vasto anedotário, provérbios e ditos populares:<br /><br />E vindo Noé pombinho assim montado na ema nem a rua olhosa, <br />nem a calçada lhe ofereciam latitude suficiente, <br />com que casual, por ele, perpassou um padre conhecido, <br />que retirou do breviário os óculos para a ele dizer: <br /> <br />- Bêbado, outra vez...em pito de pastor à ovelha. <br />- É ? Eu também... Chico respondeu, com báquicos, o melhor soluço e sorriso. <br /> <br />E como a vida é alguma repetição, dali a pouco de novo apostrofaram: <br /> <br />- Bêbado outra vez ? <br />- Não senhor, o Chico retrucou, ainda é a mesma.<br /><br />A linguagem desse conto brinca com a eufonia em expressões como "despedidosa dose", que seria a última dose, e propõe uma economia verbal ao inserir em uma única palavra caracterizações físicas, descrições de movimento e estado d'alma (recurso presente na obra de Mia Couto); "quadrupedar-se", neologismo usado no conto "Nós, os temulentos", para indicar que o bêbado está a maneira de um quadrúpede, e "verticar-se", para indicar que este conseguira erguer-se e sustentar-se nas duas pernas. Além da economia descritiva, tal expediente faz com que a palavra, que neste caso sugere homem ébrio em posição humilhante, seja imediatamente convertido em imagem. O patético que permeia todo o conto, embebido na crueldade comum às anedotas, coloca o leitor no centro das atribulações que tropeça nos olhares inquisidores. A personagem, fora da razão, caminhando nos delírios provocados pelo efeito do álcool, é um símbolo da relativização do real presente em Rosa. A "criatividade" involuntária do bêbado sinaliza a interferência do homem marginalizado na realidade, ainda que no delírio da embriaguez. <br /><br />Em Terra sonâmbula, de Mia Couto, somos apresentados ao onírico, sem que o desassociemos do real. O sonho é um ingresso para os traços desse artesão da palavra. Isso já transparece no título de sua obra, que sugere uma terra no estado intermediário entre o sono e o despertar. Terra sonâmbula é como o personagem pai Taímo que, segundo seu filho Kindzu, sofria dos sonhos. O início do romance descreve um cenário de ruínas, uma terra devastada pelo ódio dos homens: "Naquela lugar a guerra tinha morto a estrada(...)A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas de cores que se pegam à boca". <br /><br />A trágica cena descrita com um olhar benjaminiano sobre as ruínas nos chega em uma linguagem poética que promove o encontro dos olhos com a aterrador, de uma maneira lírica, como um Guernica de Picasso. Nesse cenário desolador surge Tuahir e Muindinga, o velho e o novo, antítese cara à "cultura africana", mergulhada em um desejo de futuro e ciosa de suas tradições. Esse romance, que mais parece uma colagem de pequenas estórias, faz referência à própria literatura, ao criar uma personagem que escreve, Kindzu, ao destinatário que o descobre através de seus cadernos, aparentes relatos-desabafos, que chegam a Muindinga, um leitor, portanto um privilegiado:<br /><br />O miúdo lê em voz alta, <br />seus olhos se abrem mais que a voz que lenta, <br />cuidadosa vai decifrando as letras(...) <br />A lua parece ter sido chamada pela voz de Muindinga. <br />À noite todo ele vai se enluarando. <br /><br />A voz trazida pelos escritos encontra no jovem leitor porto para cifras inacessíveis a tantos. Um mundo maravilhoso se abre para Muindinga. A língua é um elemento aproximador e revelador. A palavra é algo que os devolve à vida. Kindzu, na escrita de seus desassossegos e peripécias, e Muindinga que lhe tem acesso através da literatura. A palavra no romance é uma personagem, possui vida própria, é como um ator contra a tormenta, veste-se de inúmeras formas para a encenação e, nesse vestir-se, muda fisicamente (neologismo), acrescentando cores mais fortes ao cenário (texto). Este ator (palavra) tem uma função que extrapola o significar (dar nome a um objeto ou a uma abstração) quer traduzir o que se manifesta inefável. Segundo Roland Barthes, "todo sistema forte de discurso é uma representação (no sentido teatral, show), uma encenação de agressões e réplicas em um microdrama em que o sujeito joga seu gozo histérico". Acrescento que, quando esta representação passa à obra de arte, como o romance de Couto e os contos de Rosa aqui comentados, o sujeito pode jogar com a própria representação, desconstruindo-a, enfim. Essa encenação é transferida à criação, livre das convenções que estimulem ou inibem o gesto, agressões, réplicas, etc. Como a escolha de uma palavra ou gesto redunda obrigatoriamente na renúncia de tantas outras, podemos depreender que existe um "filtro" para elementos da expressão. O "filtro" de Mia Couto, como o de Guimarães Rosa, é também catalisador, mistura expressões para a síntese de uma nova. Ao atribuir o adjetivo "tremedroso" a uma de suas personagens, Mia Couto põe em uma única palavra a ação dessa personagem, que é tremer, e sua psiquê, medroso. Em "Fita-Verde no cabelo", de Guimarães Rosa, temos a expressão "encurtoso", e em "Nós, os temulentos", "sozinhidão", para significar, respectivamente, algo capaz de tornar a jornada mais curta e é algo que significa a situação física de estar sozinho e a situação espiritual de sentir-se sozinho, fundidos em um único signo. <br /><br />A luta com as palavras, nas mãos desses escritores, passa a não ser tão vã como propagou em um belo poema nosso Drummond. O inóspito e o árido nos chega com poesia de nos encher os olhos, boca e narinas de palavras anoitecidas, amanhecidas, frias e quentes, sobretudo vivas, com anima. A paisagem que se mestiçara de incontáveis tristezas em Terra sonâmbula nos arremessa às marcas da intolerância e dialoga com a geografia de Guimarães Rosa, igualmente misteriosa e inóspita, em uma dança de véus que se quedam intermináveis. <br /><br />Mia Couto, na sinfonia de vozes dissonantes, produz a valsa dos amordaçados, banidos da história pela mão do colonizador, que detinha a pena. Guimarães Rosa, na sua fala de homem do sertão, evoca e enfoca os desvalidos. O continente exótico que doira no olhar abrupto da superficialidade, transborda pleno do olhar do moçambicano de Beira, assim como o olhar do brasileiro de Minas Gerais nos invade sem as fronteiras da segregacionista cultura urbana. A língua em ambos é tecida em nós infindáveis, vai moldando-se à fome de olhos da arte, pondo grito no silêncio da palavra. À revelia da lei dos gramáticos, dançam acrobatas no picadeiro do código. São escritores unidos pela mesma pátria: a língua de Pessoa, caminhantes do mesmo terreno movediço que é a arte. Contadores de história que enlaçam cantos de povos sem voz, cumprem a tarefa de rever mundos, pondo alma em estátuas, como a "Rosa Caramela" de Mia Couto.<br /><br />Tal como Kindzu encontra seu duplo nas feições de Muindinga, a literatura de Mia Couto encontra a de Guimarães Rosa.<br /><br />Bibliografia<br /><br />BARTHES, Roland. Aula. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 1997<br /><br />_______________ . O Rumor da língua. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985<br /><br />COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998<br /><br />____________. Terra sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995<br /><br />FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 15 ed. Petrópolis: Vozes, 1997<br /><br />ROSA, João Guimarães. Ave, palavra. .8 ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1978<br /><br />___________________. Tutaméia. In: Ficção completa. 2o volume. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994 <br /><br />FPRIVATE "TYPE=PICT;ALT=1" <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />PEPETELA - A Geração da Utopia<br /><br />A obra foi escrita em 4 partes, que se passam em períodos de dez anos.<br /><br />Uma primeira parte em 1961 com o início da luta armada. Uma segunda parte em 1972, escrita na Frente Leste e sobre a guerrilha. O Polvo é a terceira parte, passa-se nos anos 80 e a última parte e passa-se nos anos 91-92, já depois dos acordos de Bicesse.<br /><br />A Geração da utopia é um livro de desencanto. Voltamos a ter um livro de história na medida em que retrata épocas e que conta a História da geração que fez a luta de libertação pelo MPLA.<br /><br />O primeiro capítulo é A Casa e segue o percurso dessa geração que veio para Lisboa estudar, que esteve na Casa dos Estudantes do Império, da casa partiram para a guerrilha e regressaram a Angola. O livro é a desconstrução desse mito da Utopia, quase de morte da esperança.<br /><br />Nesta obra de Pepetela vemos abordado o problema da religião e o retorno à igreja de um povo que desespera, que desacredita. A religião como busca de força psicológica.<br /><br />"È um livro para dizer que o processo não foi tão linear como algumas pessoas ainda querem fazer crer, os problemas já estavam no passado". - Pepetela. <br /><br /><br />A geração da Utopia.<br /><br />Maria de Nazaré Ordonez de Souza Ablas*<br /><br />* Doutoranda na Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa<br /><br />- USP.<br /><br />Autor de uma vasta obra, parte dela já conhecida pelo público leitor brasileiro (seus primeiros romances já foram publicados no Brasil), Pepetela lança agora seu segundo título pela Editora Nova Fronteira (o primeiro foi A Gloriosa Família, em 1999). Escrito em Berlim e editado em Portugal em 1992, A Geração da Utopia abrange trinta anos de história de um grupo de jovens angolanos, que se confunde com um período da própria história de Angola.<br /><br />A ação dos protagonistas de A Geração da Utopia se desenvolve em quatro capítulos, iniciando-se por "A Casa (1961)", tendo seqüência em "A Chana (1972)", "O Polvo (1982)", finalizando com "O Templo (a partir de junho de 1991)". Cada um deles se encerra com um epílogo.<br /><br />A casa referida no título do primeiro capítulo, não é outra senão a Casa dos Estudantes do Império, pomposo nome do lugar em Lisboa, para onde convergiam os jovens africanos que, pela ausência de Universidades em seus países de origem - as colônias portuguesas na África - dirigiam-se para Lisboa, financiados (muitas vezes com maiores ou menores sacrifícios) pela família, Igreja ou alguma Instituição, a fim de cursarem uma Faculdade.<br /><br />Ironicamente, o estado Salazarista subsidiava esse espaço, cuja cantina se tornou o ponto de encontro dos jovens estudantes africanos, sem inicialmente desconfiar que ali se gestava a queda dos últimos bastiões do Império português.<br /><br />Na Casa reuniam-se angolanos, moçambicanos, caboverdianos, sãotomenses e guineenses, que enquanto expunham e debatiam suas produções intelectuais, aglutinavam-se também em torno de ideais libertários nacionalistas, de cunho socialista. Por lá passaram muitos jovens que, posteriormente, se consagraram por sua literatura - em prosa ou verso - de resistência, politicamente engajada, inclusive o próprio Pepetela, que tinha ido para Lisboa a fim de estudar engenharia.<br /><br />Ele, no entanto, por ter mais afinidade com a área de humanidades, acabou se matriculando no curso de história por ser, dentre os que existiam, o que mais se aproximava do que realmente desejava: Sociologia.<br /><br />Quando chegou em Lisboa, em 1958, já tinha uma boa formação política e sua adesão à Casa dos Estudantes do Império foi apenas uma conseqüência desse fator.<br /><br />Foi nesse espaço - mal visto pelas famílias da colônia e da metrópole - de efervescência cultural e política que se encontraram ou reencontraram os jovens estudantes, entre eles Costa Andrade, Ervedosa e Agostinho Neto. Assim, A Casa dos Estudantes do Império não foi só o espaço onde floresceram grandes intelectuais, mas o que também veio a fornecer os quadros das lideranças dos Partidos que propiciaram a libertação das Colônias.<br /><br />Aliada à militância política desenvolveu-se uma fecunda criação literária. No caso específico de Pepetela a afirmação contrária talvez seja mais exata e por sua vivência nesse tempo e nesse espaço, pode-se inferir que esta obra tenha também forte cunho autobiográfico.<br /><br />A Geração da Utopia aponta ainda para um fundo histórico, já observado em outras obras suas (Mayombe, Yaka, A gloriosa Família): através da ficção, está a proposta de contar alguns períodos da História, não como observador passivo, mas como alguém que não só a vivenciou , como ajudou a construí-la. Ele faz parte dessa geração que, ao tomar a História nas mãos, dela se fizeram sujeito e não mais objeto.<br /><br />Sara, a estudante de medicina, branca (isso fazia diferença), filha de um comerciante rico; Malongo (namorado de Sara), jogador de futebol, farrista, mulherengo e politicamente "alienado"; Vítor, estudante de Veterinária, companheiro de quarto de Malongo, de quem seguia as pegadas, mas que gozava da confiança do grupo; Aníbal, formado em Histórico-Filosóficas, líder, reconhecido em todos os tempos e espaços como "O Sábio"; Elias, protestante, sério, radical, partidário da violência; o "miúdo" Laurindo; o literato impertinente Horácio, são algumas<br /><br />das personagens que circulam pela Casa e com cuja trajetória o autor vai se preocupar.<br /><br />São fictícias, mas que a exemplo de outras referidas em várias obras de Pepetela, refletem ou aglutinam características de outras, reais, (inclusive do próprio autor) que conviveram no mesmo ambiente, no mesmo período.<br /><br />Se uns estudavam, outros nem tanto. O futebol, a música, a farra, a política, absorviam grande parte do tempo dos estudantes e, ao apontar para esse lado mais humano das personagens, retira-as do campo idealizado, revelando as metamorfoses e contradições presentes em qualquer jovem que viveu naquela época, em situações similares.<br /><br />Entretanto, fora desse circuito, estava-se formando o MPLA, cujo programa surgia como uma opção para substituir a UPA e a adesão das lideranças foi decisiva para o quadro que se delineou a seguir.<br /><br />A Casa dos estudantes, vista pela comunidade como um antro de comunistas, passou a se alvo atento da PIDE. Enfim, já não havia segurança em Lisboa para os nacionalistas. No país mais próximo, a Espanha, tampouco, com a ditadura de Franco. No entanto, a França acenava como a grande e mais próxima visão de liberdade.<br /><br />Aníbal, que apesar de sua militância política, prestava serviço militar obrigatório no exército português, foi o primeiro a partir. Sua recusa em participar da guerra colonial, não lhe deixou outra opção que não a de desertar, mantendo a coerência entre seu discurso e a prática. O grupo seguiu depois. Sara, já formada, esperando um filho de Malongo.<br /><br />Os homens se engajaram na guerrilha e se ela, em tese, poderia uni-los servindo de eixo para um ideal comum, na prática contribuiu para distanciá-los. As privações e os perigos por que passaram, revelaram a verdadeira face de cada um. <br /><br />E a visão nem sempre foi boa. É o que se nos depara em A Chana, um dos palcos da luta armada na Frente Leste. Cenário pouco adequado para tal atividade, "apenas um terreno sem árvores que é preciso atravessar para chegar à floresta ansiada?" Não seria ela própria a metáfora do lugar onde todos podem ver e ser vistos, em oposição à floresta, mais propícia à camuflagem? A Chana foi o espaço da metamorfose de Vítor.<br /><br />Ele, que na guerrilha adotou o codinome Mundial, traiu seu próprio nome de guerra. Se "mundiais" podiam ser os valores consagrados pelo grupo, no entanto, a inversão de valores é já apontada na década seguinte a sua saída de Lisboa, quando reaparece na guerrilha, na Frente Leste, individualista e egocêntrico, características<br /><br />que o acompanharão, assim como o seu nome de guerra, até o fim da narrativa, estando ele no posto de presidente da república angolana.<br /><br />O Polvo, ao contrário dos outros capítulos, situa-se em um tempo breve, introspectivo, reflexivo e datado: abril de 1982. Pressentido por Vítor, como morto, no epílogo de A Chana, Aníbal reaparece numa praia nos confins de Angola. <br /><br />Sobrevive graças a uma escassa pensão do exército (sua única concessão) e da caça marítima, que faz questão de diferenciar da pesca: esta é uma atitude passiva, enquanto aquela envolve "um corpo a corpo, usa uma arma contra um adversário que vê e respeita". Muito típico do Sábio, embora o resultado final de ambas seja o mesmo - o peixe na panela.<br /><br />Este é um capítulo de reencontros: o do homem consigo mesmo, o do homem com um pesadelo do passado - emblematizado na figura do polvo - quando faz um mergulho literal para matá-lo e o do homem com a mulher. O reencontro com Sara marca a consumação de um amor platônico, sublimado anteriormente em função de outro, se não maior, mais urgente: aquele que, exercitado na guerrilha, traduzia o amor pelo seu país.<br /><br />As personagens, seguidas em percursos quase isolados, cruzam-se novamente no último capítulo: O Templo. O título é uma alusão à Igreja da Esperança e Alegria do Dominus, liderada por Elias. A tônica desta última parte do romance é o desencanto<br /><br />Embora as contradições do regime já estivessem apontadas, metaforicamente, desde o início, através da relação entre a militante Sara com o apolítico Malongo, Vítor (principalmente), Malongo e Elias apresentam-se como a síntese de todas elas, principalmente no que concerne à corrupção que assolou Angola após sua independência.<br /><br />Dos antigos sonhos pouco restou. Alguns morreram por ele. Os que escaparam, viram-no morrer. Sara, apesar de tudo, continua militando. Aníbal é o único que ainda acredita. Não no sistema, mas no ser humano que pode modificá-lo.<br /><br />Se a utopia, como topônimo, é o lugar da felicidade ou que não existe, para esta geração ele existiu e teve um endereço: A Casa dos Estudantes do Império. E se ela cumpriu sua trajetória e nada mais tem a dizer, não significa, entretanto, que o sonho tenha acabado. Outras poderão vir e retomá-lo, basta que um comece.<br /><br />Isso é vislumbrado em Judite, a filha de Marta, e em seu namorado, Orlando. "Portanto, só os ciclos eram eternos".<br /><br />O lapso de tempo ocorrido entre a elaboração desta obra e o seu lançamento aqui no Brasil atestam que ela continua atual em todos os lugares em que alguém sonhe e acredite que através dele, possa mudar o mundo para melhor.<br /><br />"Mais desejo que espero".<br /><br />(Fonte: http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via04/via04_22.pdf) <br /><br /><br />Um breve olhar sobre a representação da mulher em A geração da utopia, de Pepetela <br /> <br />Profa. Dra. Shirley de Souza Gomes Carreira <br />Professora de Literatura Comparada da UNIGRANRIO <br />http://www.shirleycarreira.homestead.com/index.html <br />mitchell@centroin.com.br <br />Texto apresentado no Congresso Internacional de Literaturas Africanas, em outubro de 2003 na Universidade de Coimbra <br /> <br />O romance A geração da utopia [i], de Pepetela, tem sido amplamente analisado sob o ponto de vista da sua representatividade em relação à literatura que surge do entrelaçamento da história oficial e da ficção. <br />Ao reconstruir no universo ficcional a gênese do movimento de libertação e o desenrolar da Guerra Colonial em Angola, Pepetela concede-nos o olhar da testemunha e, ao mesmo tempo, insere o seu romance em uma fase da literatura angolana que tem sido denominada "de resistência", enfatizando uma temática de guerrilha. <br />A geração da utopia registra a participação feminina no movimento de luta pela independência de Angola. Ao fazê-lo, traça perfis distintos de mulher, que operam no universo ficcional de modo a concretizar simbolicamente, em seu relacionamento com as personagens masculinas, o ideal revolucionário, a África mítica, a adoção da ótica do dominador e a falência da utopia. <br />Esta comunicação propõe uma breve análise desses perfis femininos e o modo pelo qual concorrem para instaurar o discurso de perplexidade e desencanto que caracteriza o romance. <br />Mas quem são essas mulheres? <br />Sara nos é apresentada no primeiro capítulo como uma Angolana branca, "e portanto considerada à partida uma boa portuguesa". No entanto, fica claro, desde o princípio, que, apesar de ser filha de comerciante rico e receber uma mesada abastada, Sara interpreta a sua estada em Lisboa como um exílio, o que torna inevitável a percepção da sua diferença cultural em relação aos portugueses. <br />Ao vir para Portugal, a fim de estudar medicina, padeceu da nostalgia típica dos exilados, sofrendo com a distância, que, em suas próprias palavras, "emprestava às coisas o tom patinado da perfeição" (AGU, 11). É sobre esse tom que se constrói a utopia, apoiada no mito do eterno retorno. <br />Sara e seus compatriotas têm uma relação mítica com a terra longínqua, como se ela fosse um paraíso a ser recuperado, como se fosse o ventre materno, ao qual gostariam de recolher-se novamente. <br />Ao envolver-se com os estudantes da Casa dos Estudantes do Império, berço dos movimentos revolucionários que visavam à libertação das colônias portuguesas, Sara emblematiza o ideal de liberdade que o romance enuncia, ao descrevê-la de braços abertos, em ânsia de voar: <br />Era um dia particularmente luminoso e quente para um abril lisboeta. Na véspera tinha chovido toda a noite, o que era próprio da estação, mas hoje o Sol nascera num céu tão azul que até dois não poder voar. Sara abriu os braços descobertos. Inútil, não nascera pássaro. (AGU, 9 ) <br />O narrador se serve do olhar de Sara para trazer à baila as divisões existentes entre os estudantes oriundos das colônias; a tendência de brancos agruparem-se com brancos, tornando evidente que a questão racial se sobrepunha à origem geográfica, e que, mesmo entre os colonizados, havia uma forte tendência à segregação: <br />As mesas estavam todas ocupadas, aos grupos de quatro. A maioria era de angolanos, todos misturados, brancos, negros e mulatos, estes bem mais numerosos. Os caboverdianos, que se misturavam facilmente com os angolanos, eram quase exclusivamente mulatos. Os guineenses e são-tomenses, mais raros, eram negros. Os moçambicanos eram na quase exclusividade brancos. E tinham tendência de se juntar aos grupos. Mesa unicamente ocupada por brancos, já se sabia, era de moçambicanos. A british colony, como diziam ironicamente os angolanos. Claro que havia excepções, como aquela mesa em que Belmiro chegou atrasado e o único lugar vago era naquela mesa. Se pudesse escolher, ia para outra, até porque a conversa certamente estava mais emperrada que normalmente. Os angolanos tinham menos desses problemas, apesar dos últimos acontecimentos. No entanto, ela sentia, havia muito subtilmente uma barreira que começava a desenhar-se, algo ainda indefinido afastando as pessoas, tendendo a empurrar alguns brancos angolanos para os grupos moçambicanos. A raça iria contar mais que a origem geográfica? (AGU, 18) <br />O romance aborda pela ótica feminina uma questão que faz parte da história dos povos ex-colonizados: o risco de um nacionalismo exacerbado, que provoca uma espécie de cegueira social e que fatalmente leva não só a exclusões injustas, bem como a uma espécie de auto-exílio, que impede que se aprenda algo com o progresso de outros povos e culturas. <br />Divididos entre uma postura antiimperialista e uma possível evolução decorrente do hibridismo cultural, o colonizado tende muitas vezes a uma posição radical, que dá início a um processo discriminatório quase tão intenso quanto aquele do qual tem sido vítima. <br />Essa postura, que, segundo Fanon[ii], é a violência dos oprimidos decorrente dos traumas causados pela violência dos opressores, foi, em parte, responsável pela postura adotada pelo MPLA, o partido vencedor, no sentido de privilegiar a noção de "angolanidade", ainda que para isso tivesse de ignorar discordâncias que estão internalizadas na memória coletiva dos diversos grupos étnicos e culturais de Angola. <br />Sara assume sua posição pró-independência, embora sinta que é vista com desconfiança pelos próprios compatriotas pelo fato de ser branca. <br />Ainda no primeiro capítulo, é visível a incompatibilidade entre Sara e Malongo, na mesma proporção em que se torna evidente a afinidade com Aníbal. <br />Ao acolher Aníbal, quando este deserta, Sara compartilha o seu idealismo e pensa, inclusive, que se viesse a fazer amor com ele seria por motivo diferente daquele que a fazia entregar-se a Malongo. Com Aníbal, seria fundir-se em uma comunhão simbólica, que vinha do misticismo das origens. Sara e Aníbal compartilham alguns traços de personalidade, além do sonho comum de liberdade: ambos são reconhecidamente inteligentes, capazes e conscientes de seu papel na formação da nação angolana. <br />É Sara que, em uma conversa com Laurindo, enuncia o conceito de utopia que remete ao título do romance: um casamento harmonioso entre o nacionalismo e o internacionalismo. Cabe também a ela questionar se essa utopia é realizável: <br />- Um casamento entre nacionalismo e internacionalismo, é isso? <br />- Definiste muito bem. Um casamento harmonioso entre dois contrários antagônicos. <br />- Mas isso é linguagem marxista. <br />- Pois é. Resta a saber se essa utopia se pode realizar. Alguns dizem que já a realizaram, com o comunismo. <br />( AGU, 92) <br />A exclusão que sofre, ao passar anos em Paris à espera de uma convocação para engajar-se na luta, anuncia a falência da utopia. Não há espaço para ela nessa guerra, porque os que a vivem, como Aníbal, percebem a sua deterioração e, conseqüentemente, a inutilidade de convocar uma mulher, que além de tudo tem uma filha, para uma luta cujos ideais já se corromperam. <br />A utopia girava em torno de uma "comunidade imaginada", um discurso possível, segundo a definição que Benedict Anderson[iii] atribui à construção da identidade nacional. Nessa comunidade, estariam contidos os traços que constroem a identidade: a memória, os mitos, o desejo de união, o idioma, a etnia. A identidade nacional seria, portanto, definida pelo estranhamento em relação a outras comunidades, pela diferença. <br />A tão sonhada independência não foi capaz de tornar real o ideal dos revolucionários. À excitação inicial seguiram-se os partidarismos e as divisões e a decepção de Aníbal ao final do romance, o seu auto-exílio, não significa o repúdio ao nacionalismo, mas à constatação do fracasso dos novos governantes e dos modelos de Estado-Nação que foram construídos. <br />Assim como Sara encarna o ideal revolucionário, Fernanda antecipa simbolicamente a sujeição de Vítor aos apelos do capitalismo e do poder. A bela mulata pela qual ele se apaixona é o emblema da adoção da ótica do dominador. Em meio à conversa que tem com Vítor em seu primeiro encontro, Fernanda deixa bem claro que viera a Lisboa por conta dos estudos e que não tem o menor interesse em política, demonstrando de imediato que já fora devidamente catequizada pela família a fim de precaver-se contra a influência dos revolucionários. <br />É a curiosidade que a leva à Casa dos Estudantes do Império e ao namoro com Vítor. Quando este a convida a partir com ele, ela recusa, optando pela segurança do sistema estabelecido. <br />A fragilidade e a insegurança de Vítor é introduzida simbolicamente no romance por meio de sua falta de sorte com as mulheres. Anos mais tarde, ele é acusado por Aníbal pelo seu oportunismo e por enviar um camarada para uma missão fatal a fim de ficar com sua mulher. O Sábio já havia pressentido nele os sinais da mudança. <br />A sua rápida ascensão política é fruto do engodo, da corrupção e de negócios fraudulentos. Ao fim do romance, Vítor está completamente seduzido pelo poder e pela ambição, tendo se distanciado por completo das convicções políticas da juventude. Tal mudança é expressa também por meio da mulher com a qual decide se casar, após abandonar esposa e filhos. Luzia idolatra o padrão de vida e comportamento europeu e essa idolatria se revela na sua tentativa de imitar o sotaque lisboeta e no seu exagero ao vestir-se. <br />Marta, a amiga de Sara, que ajuda a esconder Aníbal até a sua fuga para Paris, tem uma breve, mas significante, participação no romance, pois preconiza a falência da utopia, quando diz a Sara que se Aníbal não morrer, com certeza há de desiludir-se. Anos mais tarde, é o próprio Aníbal que confessa: "Eu morri e desencantei-me" (AGU, 240). A morte simbólica do herói recupera os mitos de morte e ressurreição. Clyde Ford[iv] afirma que "a sabedoria mítica africana sustenta que a vida humana corresponde a um ciclo infindável da natureza". <br />Em A geração da utopia, Pepetela caracteriza as diversas posturas de seus compatriotas quanto ao ideal nacionalista, sem, no entanto, deixar de urdir uma tessitura do discurso histórico com o discurso mítico. <br />Mussole é a personagem feminina que representa a África mítica. Segundo as palavras do narrador, ela é "o tumulto profundo que se deixa adivinhar nas águas paradas, é a vida borbulhante na chana" (AGU, 115). <br />O primeiro contato entre Aníbal e Mussole ocorre durante a xinjanguila, uma dança típica, que, por sua vez tem uma conotação importante no desenvolvimento do romance. Aníbal usa os passos da dança para explicar simbolicamente a Mundial a necessidade de união e justaposição de forças coletivas como elemento imprescindível ao sucesso do combate e da reorganização político-social pós-conflito. <br />Durante a dança, Aníbal percebe em Mussole uma força interior, selvagem, que parece interagir com a natureza. Essa percepção se concretiza no ato sexual, na descrição do seu orgasmo múltiplo, profundo, telúrico. <br />A violação, a morte e o esquartejamento de Mussole são, por sua vez, metáforas da corrupção do idealismo revolucionário, que visava à construção de uma unidade nacional, bem como simbolizam os partidarismos que deram origem à guerra civil. <br />Quando Aníbal opta pelo auto-exílio na Caotinha, planta e rega uma mangueira na qual acredita que o espírito de Mussole habita. Inconscientemente, planta e rega o que resta da sua crença, dos seus ideais: <br />- Alguma morte tem sentido, Mussole? E estás mesmo a ouvir-me? Senti no dia que te dei nome e te plantei, as tuas folhas começaram a agitar-se em música. O espírito longínquo da falecida no Leste encontrou o caminho para aqui. Longa distância, mesmo para um espírito. Tão cansado ficou que nem fala, nem se manifesta. Creces, creces, com o espírito em cima. Frutos não dás, bem sei que ainda não chegou o tempo. Mas podias de vez em quando xuaxualhar as folhas, quando não há vento, para me indicar que estás aí e não dormes. <br />( AGU, 235) <br />O romance associa a questão da utopia a uma dimensão subjetiva da terra, onde estão entrelaçadas as vivências e as experiências humanas com o espaço. O processo de construção imagética de uma sociedade tem suas raízes nos símbolos evocados, que se encontram fixados no inconsciente coletivo. <br />Para Jung [v] "o símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e condicional". <br />A conexão simbólica da mulher com a terra é uma constante na ficção e na poesia africanas. Clyde Ford [vi], em O herói com rosto africano, afirma que a Deusa mítica na África, a Grande Mãe da Criação, revela-se em três símbolos amplos de sua procedência e poder: a árvore, a terra e a pedra. <br />Quando o indivíduo passa para a terra de Kalunga, a terra dos mortos, a sua kilembe, a Árvore da Vida, o representa no mundo iluminado da face da terra. A árvore é, portanto, uma representação do centro psicológico dos seres: as raízes coincidem com as profundezas do inconsciente humano, o tronco representa o reino intermediário da terra, o campo da consciência desperta, e as folhas são o domínio enaltecido do espírito humano. <br />Essas imagens são associadas à figura do herói na mitologia africana e Pepetela as recupera e reelabora simbolicamente ao contar a saga de Aníbal, do seu ideal revolucionário, conferindo a Mussole o elo com a terra, com o princípio feminino que permeia a sociedade e a natureza na África. <br />Ao reencontrar-se com Sara ao final do romance, dando vazão ao desejo por tantos anos acalentado, Aníbal observa que a mangueira se agita, em sinal de aprovação, como se fosse a bênção da Mãe Terra. <br />Ao interpelar a história por meio da ficção, Pepetela desvela o lugar do imaginário, na confluência entre o sonho e a realidade, entre o visível e o invisível, entre o idealismo e a concretização. <br />Mussole é objetivamente associada à chana no que ela tem de mais recôndito, na sua essência. Após a morte da personagem, esse simbolismo é transferido para a árvore, onde Aníbal crê que seu espírito habita. <br />A terra, em essência, representa mais que um espaço de morada; é, na verdade, um registro simbólico. Como base para as representações imagéticas, a terra se constitui também em um componente do imaginário social, pois, embora fruto de atributos humanos, a capacidade imaginativa se alimenta também de atributos espaciais, estando ambos, portanto, indissociáveis. <br />Com essas relações simbólicas, o autor parece querer lembrar ao leitor que o espírito de unidade, que um dia foi a força motriz da luta pela independência, continua a pairar, invisível, como o espírito de Mussole, sobre a terra angolana, à espera de que o ciclo vital da natureza, das mutações constantes, se cumpra e o traga de volta à vida. Esse simbolismo parece encontrar eco nas últimas palavras do romance, quando o narrador afirma que não pode haver ponto final numa história que começa por "portanto". Essa afirmação contém a esperança discursiva de que o desencantamento possa vir a ser superado, porque conforme o que se lê na primeira linha do romance, só os ciclos são eternos. <br />(Fonte:http://www.unigranrio.br/unidades_acad/ihm/graduacao/letras/revista/numero10/textoshirley8.html) <br />Referência Bilbiográfica <br />ANDERSON, Benedict. Nação e consciência Nacional. São Paulo; Ed. Ática, 1989. <br />APPIAH, KWANY Anthony. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. <br />CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982. <br />CLAVAL, Paul. A geografia cultural. Trad. Luiz Fugazzola Pimenta e Margareth de Castro Afeche Pimenta. 2 ed.. Florianópolis: EdUFSC, 2001 <br />CORRÊA, Roberto Lobato & ROSENDHAL, Zeny. Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. <br />____. Manifestações da Cultura no espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. <br />DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à Arquitepologia Geral. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997. <br />____. O Imaginário: ensaio acerca da Ciência da Filosofia da Imagem. Rio de Janeiro: Difel, 1998. <br />ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. 2a . São Paulo: Martins Fontes, 1996. <br />FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Lisboa: Edições 70, 1989. <br />____. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. <br />FORD, Clyde W.O herói com rosto africano. Mitos da África. Trad. Carlos Mendes Rosa.São Paulo: Summus, 1999. <br />GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro. Trad. Fanny Wrobel. Zahar Editores,1978. <br />HOBSBAWN, Eric J. Nações e Nacionalismo. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1990. <br />JUNG, Carl G. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes,1993. <br />____. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964 <br />MANNHEIN, Karl. Ideologia e Utopia. São Paulo. Zahar, 1968. <br />PEPETELA. A geração da utopia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. <br />TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de Oliveira. São Paulo: DIFEL, 1983. <br />____. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Trad. Lívia Oliveira. São Paulo: DIFEL, 1980. <br /><br />[i] PEPETELA. A geração da utopia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Doravante, usaremos a abreviatura AGU ao nos referirmos ao romance. <br />[ii] FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. <br />[iii] ANDERSON, Benedict. Nação e consciência Nacional. São Paulo; Ed. Ática, 1989. <br />[iv] FORD, Clyde W.O herói com rosto africano. Mitos da África. Trad. Carlos Mendes Rosa. São Paulo: Summus, 1999, p. 71. <br />[v] JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964, p.20. <br />[vi] FORD, Op. Cit. p.181. <br /> <br /> <br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Mayombe<br /><br />"O Mayombe começa com um comunicado de guerra. Eu escrevi o comunicado e...o comunicado pareceu-me muito frio, coisa para jornalista, e eu continuei o comunicado de guerra para mim, assim nasceu o livro." - Pepetela.<br /><br />Escrito em 1970/71, em Cabinda e publicado em 1980. Se outras obras têm o ir buscar à história a explicação para problemas diversos, Mayombe conta história. é um livro de construção da história.<br /><br />Pepetela é, com esta obra, um dos primeiros sinais de critica interna no MPLA, ao racismo, corrupção, machismo, isto levou a que vários problemas se levantasse à publicação do livro. O escritor teve que fazer muitas explicações e palestras sobre a obra. Ela foi o primeiro testemunho público e assumido por um militante, de que o MPLA não era perfeito embora tenhamos sempre que ter em conta que é uma crítica feita dentro do limite possível de quem vê as coisas do ponto de vista do participante. Será um livro de história na medida em que é a realidade vivida pelo autor tornada ficção. O único documento escrito que legitima a presença do MPLA em Cabinda é esta obra de Pepetela - diz a história oficial que o MPLA teria mandado os seus melhores guerrilheiros para Cabinda.<br /><br />A publicação da obra tem também a sua história. Pepetela havida dado a obra a Agostinho Neto para que este a lê-se, à semelhança do que havia feito com outros trabalhos seus. Durante muito tempo o próprio autor hesitou em publicar a obra, as razões eram políticas, "será que é útil, a revolução era ainda muito recente... Poderia o livro servir os inimigos?" - Pepetela. Quando se decidiu enfim a publicação da obra, a nível interno do MPLA foi importante o facto de testemunhas terem ouvido Neto dizer que concordava politicamente com o conteúdo de Mayombe.<br /><br />Quanto ao conteúdo de Mayombe em Mayombe temos o traço filosófico do homem como indivíduo e o seu comportamento como guerrilheiro. É a história do guerrilheiro, da guerrilheira, mas sempre dos indivíduos nas suas ideias.<br /><br />Pepetela joga, nesta obra com outro tipo de legados, os culturais. Veja-se a dedicatória do livro: a ogum o prometeu africano - Ogum é Yoruba e foi para o Brasil na rota dos escravos, em Angola não é conhecido. É com estes diversos legados culturais que o autor joga.<br /><br />Mayombe é uma grande epopéia, a épica dos guerrilheiros. Relembra alguns escritores franceses que escreveram sobre a guerrilha da Indochina, especialmente " A condição Humana" de André Malraux.<br /><br />Mayombe é a primeira obra angolana que dessacraliza os heróis.<br /><br />"É uma obra também contra o dogmatismo, o Sem-Medo era um Anarquista, não podia ser mas de facto era. A obra tem já uma série de advertências sobre o partido único mas a grande contribuição do Sem-Medo foi a da religião na política." - Pepetela <br /><br /><br />O romance como documento social: o caso de Mayombe<br /><br />Carlos Serrano*<br /><br />* Professor do Departamento de Antropologia e da área de ECLLP da USP; Vice-<br /><br />Diretor do Centro de Estudos Africanos da USP.<br /><br />Nota Introdutória<br /><br />O romance de Pepetela é aqui tomado como um documento social pois, apesar de ficção, ele é escrito no momento de vivência do autor, onde o escritor, o militante e o cientista social, se relacionam intimamente para, através desta obra, captarem, uma realidade que faria parte de uma "história imediata".<br /><br />Este "olhar de dentro" ou "observação participante", procedimento metodológico tão caro a uma antropologia, podem constituir de certa forma a estratégia vivenciada pelo autor para explicitar os diversos discursos dos "narradores" (personagens) e atores sociais, tornando-os sujeitos da história e revelando a consciência de si na luta de libertação nacional.<br /><br />Pepetela, ao dar primazia ao "narrador", revela ainda esta dimensão da oralidade, comum às sociedades africanas, e importante no resgate das suas identidades. Identidade que se constrói pela memória dos narradores fictícios (personagens e/ou atores e pelo próprio autor).<br /><br />Convém referir aqui o romance Mayombe, do autor angolano Pepetela, como um modelo de análise da organização do Combate, que retrata a luta por meio de personagens que vivem a problemática dos valores e contradições do momento político em questão. Sendo narrado por diversos militantes, temos deste modo visões múltiplas e pessoais do tempo e do espaço por aquelas vivenciados. Este romance parece-nos altamente pedagógico pela forma com que nele se explicitam as contradições existentes dentro desse processo, relacionadas sobretudo à diversidade cultural e étnica dos elementos que compunham o Exército de Liberação Nacional. É narrado por uma multiplicidade de pessoas, todas militantes do MPLA, que participaram da guerrilha em Mayombe, floresta tropical em Cabinda, constituindo a 2ª Região político-militar do MPLA. O partido está ausente mas ele se faz presente mediante a fala do delegado local. Os personagens que assumem a narrativa do romance fazem-no sempre na primeira pessoa. Cada personagem desenvolve uma reflexão autônoma a respeito das suas motivações enquanto lutadores pela independência, motivações estas que são singulares na medida em que as origens de cada indivíduo se tornam e se apresentam diferentes.<br /><br />As relações das pessoas dentro da organização ou são explicitadas através de atributos somáticos (isto é, as relações entre brancos e negros, negros e mestiços e a relação totalizadora de negros, mestiços e brancos), ou então, num outro plano, por meio das relações interétnicas (através dos grupos locais, da região, da língua e até mesmo da religião). Também o grau de instrução e o lugar ocupado na hierarquia explicitam relações específicas entre as pessoas.<br /><br />Num outro plano, ainda atual, as relações afetivas que podem ser explicitadas por intermédio das formas iniciáticas: iniciação ao combate, iniciação ao amor e iniciação ao saber. Estas últimas podem assumir então formas ou relações de dominação conforme o acesso que a elas se tenha. No tocante às relações afetivas, podemos ainda tê-las explicitadas nas relações físicas, dentro de uma primeira categoria (homem-mulher), em que se confrontam, sejam os valores culturais da tradição africana, seja, por outro lado, com o liberalismo europeu. Nas relações afetivas podemos ainda apreender problemas de companheirismo, de solidariedade ou de conflitos e rivalidades individuais.<br /><br />Finalmente, no plano político, temos motivações peculiares que fazem desses angolanos pessoas entre si diferentes, e que conduzem a graus variados de consciência em relação à situação de colonizados e, consequentemente, a respeito da luta que conduza à ruptura dessa situação. Essas motivações podem ser afetivas (no plano familiar) ou podem ainda estar relacionadas com o próprio saber, com o conhecimento.<br /><br />As motivações podem ser igualmente encontradas na recusa à colonização, no protesto efetivado pelos expulsos da terra e na organização do combate, ou seja, nas relações internas do combate explicitadas pela fragmentação da guerrilha muitas vezes em grupos de interesses próprios, que podem ter interesses subjacentes de ordem étnica. Também no afrontamento ideológico dentro das próprias motivações de cada um dos indivíduos pode estar presente um certo messianismo, próprio aos grupos que compõem o aparelho do partido, evidenciado nas relações entre os combatentes. As diferentes formas de ver o outro ou de se ver a si mesmo e de tomar consciência da própria luta em relação aos demais grupos que compõem (dentro dessa dualidade já referida da cidade e do campo),<br /><br />são vivenciados pelos guerrilheiros no momento da mobilização nacional. É nesse momento que se procura transpor esses obstáculos a fim de se obter uma união que leve à luta maior de libertação do todo, momento em que um sentimento nacionalista os motiva ao combate frente a um inimigo comum.<br /><br />Parece-nos que Mayombe, romance que se passa em Cabinda, uma das primeiras regiões de Angola onde se desencadeou a luta armada de uma forma estruturada dirigida pelo MPLA, constitui um exemplo, segundo até mesmo as palavras empregadas muitas vezes pelas lideranças angolanas, do primeiro "laboratório" onde se forjaram as formas de luta e também os primeiros processos de conscientização dos guerrilheiros com as populações locais. Essas foram experiências que serviram para transformar a qualidade de mobilização de luta, sobretudo na Frente Leste, onde não só o espaço ocupado pela guerrilha era bem maior, mas onde se fizeram necessários processos de mobilização mais intensos, utilizando formas as mais adequadas, nas quais as experiências negativas anteriores tiveram que ser eliminadas definitivamente.<br /><br />ANEXO<br /><br />Entrevista com Pepetela (1985): recolhida por Carlos Serrano<br /><br />Pergunta: - Há alguma identificação pessoal com alguma personagem ou estás te fragmentando nas diversas personagens de Mayombe?<br /><br />Resposta: - Sim, posso dizer que me estou fragmentando. Fragmentado, digamos, compreendendo melhor algumas personagens.<br /><br />Claro, o "Sem Medo" tem algumas idéias que são minhas, mas de caráter político. Outra personagem que é importante é o "Teoria". Não me identifico. Aí não sou eu. Mas compreendia perfeitamente. É o problema do mestiço, que me interessou e que eu pretendi escrever como problemática.<br /><br />O "Mwatiânwa" também tem muito de mim, no aspecto da preocupação com a unidade nacional, e mais do que isso até, dá uma idéia internacional. Há sim. Em algumas personagens há algumas preocupações e idéias que eu tenho. Mas realmente não há nenhuma personagem que seja eu. Aliás, não há nenhuma personagem que seja real. Todos eles são ficção, ou utilizando por vezes um ou outro dado de uma pessoa existente ali ou fora do contexto que eu conheci, numa versão.<br /><br />Pergunta: - Serviu-te, enquanto escreveste este romance, a tua formação não só como militante e revolucionário, mas também a tua formação acadêmica como sociólogo?<br /><br />Resposta: - Eu creio que sim. Creio que isso é importante. Digamos que são duas formações que se completam.<br /><br />Há uma certa preocupação, por exemplo, em análise social, é evidente.<br /><br />Sobretudo a análise do fenômeno do tribalismo, no plano social, o que é importante. É o que de uma forma empírica, portanto, eu estudava naquele momento.<br /><br />É claro que isso vai aparecer no livro que eu estava a escrever naquele momento. É evidente que eu estava minimamente apetrechado para fazer a análise.<br /><br />A minha formação serviu para levantar problemas. Uma pessoa que não tivesse essa formação talvez não se preocupasse com tal e tal problema e adentrar, ir mais fundo, etc.<br /><br />Há uma coisa que é característica, eu penso, da Escola Sociológica francesa, que aparece lá, que é a preocupação com o relativismo. E isso é declaradamente influência de meus estudos que temperaram bastante a possibilidade do dogmatismo que a aplicação do marxismo podia ter no final.<br /><br />Pergunta: - Por que então escolheste a ficção quando poderias ter elaborado uma análise sociológica do tipo acadêmico? Foi tua posição como escritor ou a forma que encontraste de melhor objetivares os problemas?<br /><br />Resposta: - É porque realmente eu sou um ficcionista, não tinha nenhum objetivo. Eu escrevi não para publicar. Escrevi porque tinha necessidade de escrever. Estava em cima de uma realidade que quase exigia que eu escrevesse. Escrevendo eu compreendia melhor essa realidade; escrevendo eu atuaria também melhor sobre a própria realidade. Não quanto à obra escrita, mas pela minha atuação militante para melhor compreensão dos fenômenos que se passaram. Mas escrevia também para compreender melhor esses fenômenos. Claro que podia fazê-lo com um ensaio acadêmico, não era essa a minha intenção. Eu vejo a coisa como ficcionista.<br /><br />Não houve portanto nenhum objeto pré-determinado para eu poder escrever sem saber o que ia escrever.<br /><br />Talvez a melhor medida que permitia ver como ia acabar.<br /><br />As personagens foram aparecendo, a ação foi-se desenrolando, logicamente, dentro daqueles parâmetros duma situação que existia. Cenas imaginárias, uma ou outra pode não ser, uma ou outra não é. Mas de um modo geral é imaginário. É imaginário, mas foi a própria, dinâmica das personagens que se foi impondo e deu naquilo. Portanto,<br /><br />não houve nenhuma objetivo.<br /><br />Na época não tinha publicado nada, só alguns contos de juventude, mais nada...<br /><br />Intervenção: - Desculpa, então Mayombe antecede as Aventuras de Ngunga?<br /><br />Resposta: - Sim, antecede. Escrito em Cabinda em 71. Pensado em 70 mas escrito em 71. Ngunda foi escrito em 1972 na Frente Leste. Da mesma maneira, Ngunda também tem este tipo de preocupações. Mas tinha outro objetivo, já era para ser publicado. Não como livro, mas como folhas, na escola. Aí talvez se veja melhor, já há uma preocupação didática.<br /><br />A questão da linguagem já é muito mais cuidada para ser entendida por crianças. Os temas tratados mais resumidamente. Mais ou menos todos os capítulos ficaram com o mesmo tamanho, até. Havia uma preocupação didática, podiam ser distribuídos. Aí sim já havia outro objetivo. Aí foi escolhida a ficção por ter maior impacto,<br /><br />as idéias passavam, as crianças e os guerrilheiros também podiam ler, intessar-se-iam porque era uma obra de ficção, complementava, digamos, o texto político que estavam acostumados a ler.<br /><br />Agora o Mayombe não tem essa preocupação.<br /><br />Pergunta: - Mas o material recolhido em "Mayombe" serviu-te, até certo ponto, também para o "Ngunga"?<br /><br />Resposta: - Sim também. Sobre alguns fenômenos que eram mais ou menos comuns.<br /><br />Agora, realmente essa questão de que a mesma coisa poderia ser feita como ensaio acadêmico, essa é uma questão importante. Mas eu me sinto muito mais à vontade fazendo ficção. já fiz alguns textos, ensaios, poucos. Mas onde estou mesmo à vontade é na ficção. É essa mesmo a minha vocação.<br /><br />Pergunta: - Uma outra questão é a de tu retomares literalmente o "antigamente" sobre a época do colonialismo. Não te parece que é alguma coisa intrínseca de ti mesmo de fazer uma revisão do teu passado, dos meandros<br /><br />que tinhas com esse momento histórico? Reviver para que te possa servir e reavaliar-te como militante, enfim tomar consciência de ti mesmo neste processo? (Referência a Yaka).<br /><br />Resposta: - É um pouco isso, embora o próprio livro pudesse ser mais rico nesse aperto. Eu me preocupo muito nesse livro com a possibilidade de alguém vindo da sociedade colonial dar o "salto". Aparece uma personagem<br /><br />que dá o "salto" e que depois luta contra os sulafricanos, até. Mas não me demoro muito a estudar os fatores que criam esta mudança, esta opção. E, neste aspecto, até podiam ser muitos, não o sendo neste livro.<br /><br />Há qualquer coisa como uma tentativa de ver pessoalmente. Um "pessoal" que é circunscrito a um grupo. Uma pessoa, mas como outras pessoas que vêm da Resistência colonial e que a um momento dado tomam o partido nacionalista. Existe este aspecto. A preocupação principal era a seguinte, e que portanto tem importância talvez para o futuro, é que me parece, exceto Castro Soromenho, não há ainda na ficção uma análise da sociedade colonial. Ora, há muita coisa de Angola de hoje e de Angola de amanhã que encontram explicação nessa sociedade. Porque apesar da luta de libertação, apesar da Independência, etc. , muita coisa ficou fundamentalmente<br /><br />em termos do que se pode chamar muito genericamente de cultura, incluindo comportamentos sociais, preconceitos, etc. Há uma série de reações que tiveram que são explicadas pela história colonial. Há trajetórias individuais de pessoas que só podem ser explicadas pela educação que receberam em determinado meio. Depois houve a ruptura. A Independência é uma ruptura, um trauma de que se recuperam numa nova sociedade, mas com muita coisa que vem de trás.<br /><br />Pergunta: - Seria uma "crise de identidade"?<br /><br />Resposta: - Uma "crise de identidade", exato, onde as pessoas recuperam-se, mas cada vez mais buscando socorro às ordens da sociedade anterior, e fazendo até comparações com a atual, etc. O que se pode chamar de "saudosismo colonial". Há uma série de situações deste gênero com pessoas ou personagens de todas as raças, e isso é que é importante. Porque se só fosse circunscrito à raça branca, seria um dado menor. Mas não, são de todas as raças que a um dado momento estavam a "cavalo" entre dois mundos, entre duas culturas, mesmo as populações negras que estavam urbanizadas e que sofreram esta influência preponderante. Claro, este romance não diz isso, pára na altura da Independência. Mas é uma tentativa de mostrar: era assim. Havia pessoas que reagiam assim e daí facilmente se pode perceber que hoje pessoas que reagem desta maneira ou daquela, grupos sociais que reagem assim, ou assim encontram facilmente um paralelo com o que era antes.<br /><br />Outro objetivo é que daqui a uns tempos não haverá pessoas que tenham vivido a situação colonial por "dentro". E toda a nova geração deverá ouvir falar, apenas. Há de haver textos de história sobre o que era o colonialismo, o que era a mentalidade do colono, etc., mas forçosamente texto de história, é uma coisa fria... e as pessoas acabam por imaginar o que seria, mas não compreender profundamente, e aí é o papel do romance, fundamental, para a nova geração conseguir "viver" um pouco o que era a vida antes. Aí há também uma preocupação de registrar para a história. E há pouca gente que escreve, que tenha tido essa vivência. E aí eu pensei, eu tenho essa vivência da sociedade colonial, eu tenho a vivência dos que se opuseram à sociedade colonial, eu sou um dos raros cinco, seis ou dez que possam fazer isso. Eram esses os meus objetivos. Enfim, é um voltar atrás mas com os olhos pelo menos no presente... <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />APONTAMENTOS SOBRE A POESIA CABOVERDIANA*<br /><br /><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]--><br /><br />Amílcar Cabral<br /><br /><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]--> "Não me doi meu particular.<br /><br />Peno cilícios da comunidade.<br /><br />Água dum rio doce, entrei no mar<br /><br />(Miguel Torga, "Cântico do homem") <br /><br /><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]--><br /><br />I<br /><br />Quando se debruça sobre o conteúdo da poesia caboverdiana, em busca do seu valor real, duas fases, nitidamente distintas, se mostram evidentes: a anterior ao aparecimento da revista Claridade, e a que começa com este acontecimento literário. Tão distintas são essas duas fases, que Osório de Oliveira não hesita em afirmar: "só agora (isto é, com Claridade) se pode falar da Literatura Cabo-verdiana".<br /><br />Significará isso que tudo quanto foi escrito antes das produções dos colaboradores da "Claridade" não tem valor literário? Que só merece ser considerado como Poesia, na verdadeira acepção do termo, o que escreveram os poetas da "Claridade" e os que se lhes seguiram?<br /><br />Postas estas interrogações, está-se, necessariamente, perante o discutidíssimo problema da definição de Poesia, como expressão artística. Não constitui objeto deste apontamento abordar tal problema. Todavia, impõe-se uma tomada de posição, para que, quando menos, se possa ser coerente nas afirmações que tiverem de ser feitas.<br /><br />A poesia, como qualquer manifestação artística e apesar de toda a característica individual, emanente da personalidade do Poeta, é necessariamente um produto do meio em que tem expressão. Quer dizer: por maior que seja a influência do próprio indivíduo sobre a obra que produz, esta é sempre, em última análise, um produto do complexo social em que foi gerada. Aliás, esta afirmação não passa dum lugar comum em todas as controvérsias referentes aos problemas da Arte, na actualidade.<br /><br />Ao falar de controvérsias, não se esquece que não rareiam as vozes discordantes que se levantam para defender a exclusiva influência do complexo individual na manifestação artística. Ao referir este facto, está-se implicitamente perante a não menos discutida questão de se saber se a arte deve ser "dependente" ou "independente", isto é, presente ou alheia aos problemas sociais do meio em que é produzida; ou, noutras palavras muito vulgarizadas actualmente: se a arte deve ser "interessada" ou "desinteressada".<br /><br />Assim, enquanto vai crescendo, dia a dia, o conjunto daqueles que pretendem ou querem uma arte com função social, cerram-se as fileiras daqueles que, teimosamente, arvoram a esfarrapada bandeira duma arte absolutamente independente, da chamada "arte pela arte". E, ao qualificar-se de esfarrapada a bandeira dos que defendem uma arte "desinteressada", está-se, ainda que de maneira implícita, tomando posição.<br /><br />É que, na realidade, parece - e com este ponto de vista não se está metendo nenhuma lança em África - que, a qualquer das questões postas atrás: arte função do meio? arte com função social? - só pode ser dada uma resposta afirmativa. Não é possível considerar a arte (a Poesia, no caso presente) independentemente do homem-ser-social. A arte é e tem de ser, para que mereça tal designação, um produto do homem para homens.<br /><br />A Poesia tem as suas raízes (passe o termo) mergulhadas nas condições socioeconômicas em que é criada. Note-se que não se afirma ser ela uma função exclusiva dessas condições. Não é, nem poderia ser, alheia a influência de outra origem, como a moral, a religião, as ciências, a filosofia, etc...<br /><br />Quanto à sua função social, parece que o que se poderá discutir é qual a natureza da função social de determinada obra poética e, não, se essa função existe. Quer dizer: há uma acção recíproca entre o complexo social e a obra poética, admitindo que esta tenha algum mérito. O que interessa determinar é se tal obra constitui um bem ou um mal para aquele complexo, isto é, se o serve ou se o trai.<br /><br />A evolução das sociedades humanas está na base de toda a evolução literária. Mesmo quando estes dois fenómenos se apresentam desarmónicos ou antagónicos, isto significa apenas que não se desenvolvem concomitantemente. A evolução das sociedades humanas é, por sua vez, uma função dos factores determinantes da estructura económica em que aquelas assentam.<br /><br />II<br /><br />A Poesia Cabo-Verdiana, como qualquer outra, só poderá ser compreendida se considerada em relação ao ambiente material e humano vivido pelo Poeta. Assim, seria conveniente determinar quais as características do meio cabo-verdiano que estiveram na base das manifestações das duas poesias atrás referidas: a anterior à "Claridade" e a que começa com esta revista.<br /><br />A primeira, representada por Eugénio Tavares, José Lopes, Pedro Cardoso, Januário Leite, etc., caracteriza-se por um desprendimento quase total do ambiente, sublimando-se numa expressão poética que, excepção feita a algumas obras de E. Tavares e P. Cardoso, nada tem de comum com a terra e o povo do Arquipélago. Enquanto a poesia de J. Leite, por exemplo, oferece, nos seus sonetos, a expressão da reacção puramente sentimental, do Poeta, perante fenómenos que a ele e só a ele interessam, a de José Lopes traduz, mais do que qualquer outra, o cunho de cultura clássica, desligado do meio, que caracteriza a formação ideológica dos Poetas anteriores à "Claridade".<br /><br />Aliás, é precisamente nesse formação, adquirida principalmente no Seminário de S. Nicolau, como o faz notar Osório de Oliveira, ou por um louvável esforço pessoal, que reside a razão de ser das características da Poesia anterior à "Claridade". Possuidores de uma cultura clássica, que em alguns atinge um grau verdadeiramente elevado, os Poetas da geração em referência esquecem a terra e o povo. De olhos fixos no que aprenderam nos livros e que talvez suponham insuperável, pouco mais conseguem do que imitar os autores seus conhecidos, produzindo uma Poesia em que o amor, o sofrimento pessoalíssimo, a exaltação patriótica e o saudosismo, são traços comuns.<br /><br />Não se nega o mérito dalgumas das suas obras. Alguns sonetos de Januário Leite, composições de E. Tavares, esta ou aquela obra de J. Lopes e P. Cardoso, são - há que reconhecê-lo - de valor incontestável. Pode-se mesmo afirmar que em E. Tavares (ao cantar o ambiente bravense) e P. Cardoso (ao traduzir, do crioulo, quadras populares do Fogo) encontra-se já algo do que, mais tarde, se tornaria realidade nos Poetas da nova geração: uma comunhão íntima entre o Poeta e o seu mundo.<br /><br />É ainda a influência da cultura clássica que caracteriza o aspecto formal da Poesia em referência: o respeito sagrado à métrica, a confrangedora submissão às algemas da rima.<br /><br />Mas, como descortinar a influência do meio socioeconómico sobre estes artistas? Atente-se nas seguintes condições:<br /><br />O povo, em geral, vive alheio à cultura e às manifestações artísticas. O Seminário, em S. Nicolau, por poucos pode ser frequentado. Ministra-se nele uma cultura clássica, à qual se ligam fortemente os que tiveram a felicidade de recebê-la. Tão forte é o elo, que os seminaristas (ou os autodidactas) de talento, encontrando abertas as portas duma vida onde podem desfrutar de posições de relevo, ignoram ou esquecem as realidades que os cercam. Opera-se neles a supremacia de tudo quanto é meramente filosófico, religioso ou moral, sobre o económico.<br /><br />Melhor: é a própria condição económica em que vivem que facilita aquele alheamento das realidades cabo-verdianas. A terra e o povo estão distantes. Este, nas letras da Morna, canta os seus sofrimentos e amores, enquanto os poetas compõem sonetos perfeitos para exaltar um sentimento qualquer, as tranças e os olhos da hegéria, as belezas da Grécia ou uma data célebre da História<br /><br />III<br /><br />Bruscamente, porém, opera-se a transformação. A Poesia Cabo-Verdiana abre os olhos, descobre-se a si própria, - e é o romper duma nova aurora. É a claridade que surge, dando forma às coisas reais, apontando o mar, as rochas escalvadas, o povo a debater-se nas crises, a luta do cabo-verdiano "anónimo", enfim, a terra e o povo de Cabo Verde. Por isso, o caracter intencional - e felizmente intencional - do nome da revista que revela essa profunda modificação na Poesia Cabo-Verdiana: Claridade.<br /><br />Aliás Jorge Barbosa, Oswaldo Alcantara (Baltazar Lopes), Corsino de Azevedo, Manuel Lopes, Teixeira de Sousa, Jaime de Figueiredo, etc, são os pioneiros do acontecimento.<br /><br />Os poetas, agora, são homens-comuns que caminham de mãos dadas com o povo, e de pés fincados na terra. Cabo Verde não é o sonhado jardim hesperitano, mas, sim, o "Arquipélago" e o "Ambiente", onde as árvores morrem de sede, os homens de fome - e a esperança nunca morre. O mar já não tem sereias e as ondas não beijam a praia. O mar é a estrada da libertação e da saudade, e o marulhar das vagas é a tentação constante, a lembrança permanente do "desespero de querer partir e de ter de ficar". Até o caminho qualquer, "amassado pelo gado que a seca matou", tem vida, assim como "os coqueiros esguios" e o "céu azul e ardente que não promete chuva".<br /><br />A terra, "a terra mártir" - é a Mamã que "alimenta" os filhos "com a ternura das suas entranhas"; que não morreu, mas jaz adormecida "numa migalha de terra no meio do mar".<br /><br />A voz do Poeta, agora, é a voz da própria terra, do próprio povo, da própria realidade cabo-verdiana.<br /><br />Como se operou tão profunda transformação na Poesia de Cabo Verde? Tal modificação corresponderá a uma evolução do complexo económico-social? Atente-se nas seguintes condições: <br /><br />O povo, na generalidade, continua alheio a toda a manifestação artística e cultural. A cultura é ainda o apanágio dum sector restrito da sociedade cabo-verdiana. Mas é precisamente neste sector que se operou uma modificação.<br /><br />O Liceu, com a democratização do ensino, independente da religião, trouxe maiores facilidades de acesso à Cultura. Aumentou, na fileira dos intelectuais, o número de elementos provenientes da chamada "gente humilde". Além disso, o fulcro da intelectualidade cabo-verdiana, passando de S. Nicolau para a cidade do Mindelo, à beira do Porto Grande, encontrou-se em contacto mais amplo com o Mundo, onde se operava, dia a dia, a evolução da mentalidade humana, concretizando-se as aspirações do homem.<br /><br />É de admitir-se que tal transformação resultou principalmente desse contacto, em essencial com a literatura metropolitana e brasileira. Na realidade, as primeiras produções da Claridade, manifestam uma certa influência da corrente literária que caracterizou o Presencismo e da poesia brasileira de então. Influência que se limitou a mudar as directrizes da poesia cabo-verdiana. O Poeta, em vez de olhar para as nuvens, devia buscar o sentido da sua poesia na realidade em que vive.<br /><br />Infelizmente, a primeira fase da Claridade foi um relâmpago. Mas foi o suficiente para a nova geração de Poetas cabo-verdianos poder ver claro, e compreender que a Poesia de Cabo Verde só poderia ter personalidade, possuir um real valor, se, sem intenção premeditada, fosse "os olhos e a boca" do Arquipélago das secas.<br /><br />Anos volvidos, aparece a "Certeza", folha infelizmente efémera, fundada por estudantes do Liceu. Nela, Arnaldo França, Nuno Miranda, Tomaz Martins, G. Rocheteau e outros jovens, ensaiam uma nova mensagem e mostram que compreenderam a dos Poetas da Claridade. Mas a "Certeza" não é apenas uma compreensão da aaa Claridade.<br /><br />O seus Poetas - o contacto com o Mundo é cada vez maior - sentem e sabem que, para além da realidade cabo-verdiana, existe uma realidade humana, de que não podem alhear-se. Sentem e sabem que não é apenas em Cabo Verde que "há gritos lancinantes pela noite silenciosa" e "homens vagabundos" que "fitam estrelas que a madrugada esculpiu". E dizem, querem dizer "um canto... que cruze nos mares mais distantes e entre nos corações dos homens... um canto com contornos de paz e relevos de esperança". De esperança.<br /><br /><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]-->IV<br /><br /><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]-->Mas a evolução da Poesia Cabo-Verdiana não pode parar. Ela tem de transcender a "resignação" e a "esperança". A "insularidade total" e as secas não bastam para justificar uma estagnação perene.<br /><br />As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser transcendidas. O sonho de evasão, o desejo de "querer partir", não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos Poetas - os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum - compete cantá-lo. O cabo-verdiano, de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na mensagem dos Poetas.<br /><br />Parece que António Nunes e Aguinaldo Fonseca estão na vanguarda dessa nova Poesia. Não se conformam com a estagnação. A prisão não está no Mar.<br /><br />O primeiro, auscultando a terra e o povo, sonha com um "Amanhã" diferente, que antevê possível. E descreve a alteração que há de operar-se: "Em vez dos campos sem nada..." E profetiza, para a terra cabo-verdiana, a "vivificação da Vida".<br /><br />O segundo exprime, em toda a sua grandeza, o "naufrágio em terra" do povo a que pertence. Retrata os "homens calados" sofrendo a "dor da Terra-Mãe...num abandono de não ter remédio". Dos homens, "presos na cadeia da desesperança". E o seu sonho, não é de "querer partir": é de<br /><br /><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]--><br /><br />"Outra terra dentro da nossa terra".<br /><br /><!--[if !supportEmptyParas]--> <!--[endif]--><br /><br />NOTA<br /><br />*Apareceu pela primeira vez em Boletim de Propaganda e Informação III, 28 (01/01/1952). Reproduzido em Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. I: A Arma da Teoria - Unidade e Luta pela editora Seara Nova, 1976, p. 25-29. <br /><br />Poetas de Cabo Verde<br /><br />ANTÓNIO PEDRO <br />ARMÊNIO VIEIRA <br />CORSINO FORTES <br />DANIEL FELIPE <br />GABRIEL MARIANO <br />LUÍS ROMANO <br />ONÉSIMO SILVEIRA <br />TEOBALDO VIRGÍNIO <br />TERÊNCIO ANAHORY <br /><br />ANTÓNIO PEDRO<br /><br />"Se houve engano de olhos..." <br /><br />Se houve engano de olhos, <br /><br />Nunca esta alma minha <br /><br />Se levou dos olhos, <br /><br />Bem amada minha. <br /><br />Olhos de alma, claros <br /><br />Pela tua graça <br /><br />E onde o teu sorriso <br /><br />Namorado passa. <br /><br />- Meu sorriso, aberto, <br /><br />Porque é derradeiro, <br /><br />Este foi, decerto, <br /><br />Meu amor primeiro.<br /><br />..............<br /><br />Ode ao Almada Negreiros <br /><br />Maravilhosa plástica das coisas! <br /><br />Tudo no seu lugar, as cores e os olhos <br /><br />Lá no lugar de cada coisa, a vê-la <br /><br />Com seu aspecto natural e próprio. <br /><br />(Tudo para cada um, na variedade <br /><br />Dos olhos de quem se admite na paisagem, <br /><br />Ou como espectador, <br /><br />Ou como actor, <br /><br />Ambas as coisas uma, no concerto <br /><br />Magnífico do mundo.) <br /><br />...Sem memória, ou com memória a sê-la <br /><br />Nos olhos a olhar completamente <br /><br />Sem nenhum pensamento reservado: <br /><br />- - Olhos dados a cada coisa, ou tida <br /><br />- Cada coisa p'los olhos que se deram!... <br /><br />Vaivém de tudo e nada, desse nada <br /><br />Profético de tudo - e o tudo enorme <br /><br />De cada nada afeiçoado e olhado <br /><br />À feição de quem olha possuindo <br /><br />E possuído, na maravilhosa <br /><br />Cópula grande dos Artistas todos... <br /><br />Maravilha de ter-se e ter-se dado, <br /><br />Em cada olhar olhado, <br /><br />E em cada cor e em cada flor mantido, <br /><br />Bolindo e vendo <br /><br />O sonho de se ir tendo <br /><br />Realizado. <br /><br />ARMÊNIO VIEIRA<br /><br />Mar<br /><br />Mar! Mar! <br />Mar! Mar! <br /> <br />Quem sentiu mar? <br /> <br />Não o mar azul <br />de caravelas ao largo <br />e marinheiros valentes <br /> <br />Não o mar de todos os ruídos <br />de ondas <br />que estalam na praia <br /> <br />Não o mar salgado <br />dos pássaros marinhos <br />de conchas <br />areias <br />e algas do mar <br /> <br />Mar! <br /> <br />Raiva-angústia <br />de revolta contida <br /> <br />Mar! <br /> <br />Siléncio-espuma <br />de lábios sangrados <br />e dentes partidos <br /> <br />Mar! <br />do não-repartido <br />e do sonho afrontado <br /> <br />Mar! <br /> <br />Quem sentiu mar? <br /> <br />(1962) <br /> <br />SER TIGRE <br /> <br />O tigre ignora a liberdade do salto <br />é como se uma mola o compelisse a pular. <br /> <br />Entre o cio e a cópula <br />o tigre não ama. <br /> <br />Ele busca a fêmea <br />como quem procura comida. <br /> <br />Sem tempo na alma, <br />é no presente que o tigre existe. <br /> <br />Nenhuma voz lhe fala da morte. <br />O tigre, já velho, dorme e passa. <br /> <br />Ele é esquivo, <br />não há mãos que o tomem. <br /> <br />Não soa, <br />porque não respira. <br /> <br />É menos que embrião <br />abaixo do ovo, <br />infra-sémen. <br /> <br />Não tem forma, <br />é quase nada, parece morto. <br /> <br />Porém existe, <br />por isso espera. <br /> <br />Epopéia, canção de amor, <br />epigrama, ode moderna, epitáfio, <br /> <br />Ele será <br />quando for tempo disso.<br /><br />CORSINO FORTES<br /><br />DE BOCA A BARLAVENTO <br /> <br />I <br /> <br /> <br />Esta <br />a minha mão de milho & marulho <br />Este <br />o sól a gema E não <br />o esboroar do osso na bigorna <br />E embora <br />O deserto abocanhe a minha carne de homem <br />E caranguejos devorem <br />esta mão de semear <br />Há sempre <br />Pela artéria do meu sangue que g <br />o <br />t <br />e <br />j <br />a <br />De comarca em comarca <br />A árvore E o arbusto <br />Que arrastam <br />As vogais e os ditongos <br />para dentro das violas <br /> <br /> <br />II <br /> <br /> <br />Poeta! todo o poema: <br />geometria de sangue & fonema <br />Escuto Escuta <br /> <br />Um pilão fala <br />árvores de fruto <br />ao meio do dia <br />E tambores <br />erguem <br />na colina <br />Um coração de terra batida <br />E lon longe <br />Do marulho á viola fria <br />Reconheço o bemol <br />Da mão doméstica <br />Que solfeja <br /> <br />Mar & monção mar & matrimónio <br />Pão pedra palmo de terra <br />Pão & património <br /> <br /> <br />(Pão & fonema, 1974)<br /><br /> <br />DE BOCA CONCENTRICA NA RODA DO SOL <br /> <br /> <br />Depois da hora zero <br />E da mensagem povo no tambor da ilha <br />Todas as coisas ficaram públicas na boca da república <br />As rochas gritaram árvores no peito das crianças <br />O sangue perto das raízes <br />E a seiva não longe do coração <br /> <br />E <br /> <br />Os homens que nasceram da estrela da manhã <br />Assim foram <br />Árvore & Tambor pela alvorada <br />Plantar no lábio da tua porta <br />África <br />mais uma espiga mais um livro mais uma roda <br />Que <br />Do coração da revolta <br />A Pátria que nasce <br />Toda a semente é fraternidade que sangra <br /> <br />* <br /> <br />A espingarda que atinge o topo da colina <br />De cavilha & coronha <br />partida partidas <br />E dobra a espinha <br />como enxada entre duas ilhas <br />E fuma vigilante <br />o seu cachimbo de paz <br />Não é um mutilado de guerra <br />É raiz & esfera no seu tempo & modo <br />De pouca semente E muita luta. <br /> <br />(in "Vozes poéticas da lusofonia", Sintra, 1999) <br /> <br />DANIEL FELIPE<br /><br />Romance de Tomasinho-Cara-Feia<br /><br />Farto de sol e de areia,<br /><br />que é o mais que a terra dá,<br /><br />Tomasinho-Cara-Feia<br /><br />vai prà pesca da baleia.<br /><br />Quem sabe se tornará?<br /><br />Torne ou não torne, que tem?<br /><br />Vai cumprir o seu destino. <br /><br />Só nha Fortunata, a mãe,<br /><br />que é velha e não tem ninguém,<br /><br />chora pelo seu menino.<br /><br />Torne ou não torne, que importa?<br /><br />Vai ser igual ao avô.<br /><br />Não volta a bater-me à porta;<br /><br />deixou para sempre a horta,<br /><br />que a longa seca matou.<br /><br />Tomasinho-Cara-Feia, <br /><br />(outro nome quem lho dá?)<br /><br />farto de sol e de areia,<br /><br />foi prà pesca da baleia.<br /><br />- E nunca mais voltará.<br /><br />Pátria lugar de exílio <br />(fragmento) <br /> <br />Neste ano de 1962 <br />não como Hazim Hikmet no avião de pedra <br />mas na minha cidade <br />livre de ir onde quiser <br />e no entanto prisioneiro <br />neste ano de 1962 <br />exatamente <br />em Lisboa <br />Avenida de Roma número noventa e três <br />às três horas da tarde <br /> <br />Neste ano de 1962 <br />encostado a uma esquina da estação do Rossio <br />esperando talvez a carta que não chega <br />um amor adolescente <br />meu Paris tão distante <br />minha África inútil <br />aqui mesmo <br />aqui de mãos nos bolsos e o coração cheio de amargura <br />cumprindo os pequenos ritos quotidianos <br />cigarro após o almoço <br />café com pouco açúcar <br />má-língua e literatura <br /> <br />Aqui mesmo a mão sei quantos graus de latitude <br />e de enjôo crescente <br />solitário e agreste <br />invisível aos olhos dos que amo <br />ignorado por ti pequeno empregado de escritório preocupado <br />com um erro de contas <br />incapaz de dizer toda a minha ternura <br />operária de fábrica com três filhos famintos <br /> <br />Aqui mesmo envolto na placidez burguesa <br />higienicamente limpo e com os papéis em ordem <br />vestido de nylon dralon leacril <br />com acabamentos sanitized <br />e lugar marcado junto ao aparelho de TV <br />eu <br />enjoado de tudo e contemporizando com tudo <br />eu <br />peça oleada do mecanismo de trituração <br />eu <br />incapaz de suicídio descerrando um sorriso-gelosia <br />eu <br />apesar de tudo vivo apesar de tudo inquieto <br />eu <br />neste ano de 1962 <br />exatamente <br />não ontem mas precisamente às três horas da tarde <br />pela hora oficial <br />exilado na pátria<br /><br />GABRIEL MARIANO<br /><br />CAMINHO LONGE <br /> <br />Caminho <br />caminho longe <br />ladeira de São Tomé <br />Não devia ter sangue <br />Não devia, mas tem. <br /> <br />Parados os olhos se esfumam <br />no fumo da chaminé. <br />Devia sorrir de outro modo <br />o Cristo que vai de pé. <br /> <br />E as bocas reservam fechadas <br />a dor para mais além <br />Antigas vozes pressagas <br />no mastro que vai e vem. <br /> <br />Caminho <br />caminho longe <br />ladeira de São Tomé <br />Devia ser de regresso <br />devia ser e não é. <br /> <br />(in "12 poemas de circunstância", 1965)<br /><br />ÚNICA DÁDIVA <br /> <br />Os engajadores levaram <br />a nossa única dádiva <br />e já ninguém devolve <br />o que nos foi roubado. <br /> <br />Longa è a ladeira que a fome alonga. <br /> <br />Enquanto eu vivo <br />as perguntas duram <br />E eu vivo da fome <br />interrogativamente. <br /> <br />Longa è a ladeira que a fome alonga. <br /> <br />Como podem ladrões <br />rondar meus olhos <br />se amor só <br />meus olhos tem? <br /> <br />Longa è a ladeira que a fome alonga <br />terralonginquamente. <br /> <br /> <br />(12 Poemas de Circunstância, Praia, Minerva, 1965)<br /><br />LUÍS ROMANO<br /><br />SÍMBOLO <br /> <br />O formato daquele berço foi um símbolo <br />O menino em miragens impossíveis <br />dormia sonhando com navios de papel <br />enquanto eu contemplava <br />a cismar, <br />o conjunto daquela harmonia <br />sumindo-se na linha do mar. <br /> <br />Navio-berço de menino crioulo <br />navio-guia que ficou sem ir <br />"navio idêntico ao navio da nossa derrota parada". <br /> <br /> <br />Clima, 1963 <br /> <br />VIDA <br /> <br />A crioula que meus olhos beijaram a medo <br />prendeu-se na confusão de um porto francês <br /> <br />Ela sorria continuamente, erguendo no seu riso uma canção extraordinária. <br /> <br />Não foi um romance de amor <br />nem mesmo um pequeno segredo entre ambos. <br /> <br />Somente, quando Ela falava ao pé de mim, eu sentia: <br />um aprazível devaneio <br />pela maravilha escultural duma Mulher Perfeita. <br /> <br />Depois, <br />a Vida separando Nós-Dois <br />a confusão, os ruidos, os braços agitando-se <br />e o vapor levando para outros mares, <br />outros portos, <br />a graça, o mistério, o perfume e os cantares <br />da crioula que meus olhos beijaram a medo <br />no tombadilho daquele vapor francês. <br /> <br />(Clima, 1963)<br /><br />ONÉSIMO SILVEIRA<br /><br />As Águas <br /><br />A chuva regressou pela boca da noite <br /><br />Da sua grande caminhada <br /><br />Qual virgem prostituida <br /><br />Lançou-se desesperada <br /><br />Nos braços famintos <br /><br />Das árvores ressequidas! <br /><br />(Nos braços famintos das árvores <br /><br />Que eram os braços famintos dos homens...) <br /><br />Derramou-se sobre as chagas da terra <br /><br />E pingou das frestas <br /><br />Do chapéu roto dos desalmados casebres das ilhas <br /><br />E escorreu do dorso descarnado dos montes! <br /><br />Desceu pela noite a serenar <br /><br />A louca, a vagabunda, a pérfida estrela do céu <br /><br />Ate que ao olhar brando e calmo da manha <br /><br />Num aceno farto de promessas <br /><br />Ressurgiu a terra sarada <br /><br />Ressumando a fartura e a vida! <br /><br />Nos braços das árvores... <br /><br />Nos braços dos homens... <br /><br />(Hora grande, 1962) <br /><br /> <br /> <br />QUADRO <br /> <br />Lá vem nho Cacai da ourela do mar <br />Acenando a sua desilusão <br />De todos os continentes! <br />Ele traz o peito afogado em maresias <br />E os olhos cansados da distancia das horas... <br /> <br />Lá vem nho Cacai <br />Com a boca amarga de sal <br />A boiar o seu corpo morto <br />Na calmaria da tarde! <br /> <br />Nho Cacai vem alimentar os seus filhos <br />Com histórias de sereias... <br />Com histórias das farturas das Ame'ricas... <br /> <br />Os seus filhos acreditam nas Américas <br />E sabem dormir com fome... <br /> <br />(Hora grande, 1962)<br /><br />TEOBALDO VIRGÍNIO<br /><br />ROTA LONGA <br /> <br />Irei na rota branca <br />da rosa de espuma <br />na hora madrugada <br />promissora da brisa. <br /> <br />Rota longa rota longa <br /> <br />Irei com a pétala ressequida <br />da tórrida paisagem <br />para além das distâncias secas. <br /> <br />Rota longa rota longa <br /> <br />Rota longa de espuma <br />vou irei espalhar minhas pétalas ressequidas <br />na hora madrugada <br />das correntes desatadas. <br /> <br />Rota longa rota longa <br /> <br />Vou irei sem detença <br />para além das distâncias secas <br />em busca do abraço ancorado <br />na outra margem da curva líquida. <br /> <br />Rota longa rota longa <br /> <br />Vou irei na hora alta desta vigília <br />e a manhã clara acontecerá. <br /> <br />Rota longa rota longa <br /> <br />Vou irei contra todas as cadeias protestantes do meu rumo <br />em cada protesto que embarco <br />na ondulação que se desatraca. <br /> <br />(in "Viagem para lá da fronteira", 1973, Lisboa, <br />Publicações da Casa de Cabo Verde)<br /><br />TERÊNCIO ANAHORY<br /><br />NHA CODÊ <br /> <br />Tiraram o lume dos teus olhos <br />e fizeram braseiro <br />para aquecer a noite fria; <br />noite de qualquer dia. <br />Roubaram o teu riso <br />e encheram de gargalhadas <br />de luz e de música <br />as suas reuniões frustradas. <br />Da tua pele fizeram tambor <br />para nos ajuntar no terreiro! <br />Dondê nha Codê? <br />Não <br />não mataram o meu filho <br />que eu sei que o meu filho não morre. <br /> <br />(Se choro <br />são saudades de nha Codê...) <br />Nha Codê vive <br />na evocção de um mundo distante <br />no riso e no choro das ervas rasteiras <br />na solidão dos campos <br />nas pândegas de marinheiros <br />na vida que nasce e morre <br />em cada dia que passa! <br />... E em mim <br />essa saudade de nha Codê! <br /> <br /> <br />(in "Caminho longe", 1962) <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />PEPETELA - PREDADORES <br /> <br />Fábula ácida lançada em Portugal descreve, em tom de farsa, os valores dos novos-ricos do país africano <br /> <br />Pepetela alfineta a nova elite de Angola <br /><br />Macarena Lobos - 3.dez.2003/Folha Imagem <br /> O escritor angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, o Pepetela, que lança "Predadores" <br /><br /> <br /> <br />DENISE MOTA <br />COLABORAÇÃO PARA A FOLHA <br /> <br />Faz 30 anos que Angola atingiu a independência. Os frutos sociais dessa acidentada caminhada para a autodeterminação -o país saiu da égide portuguesa e passou para as mãos do MPLA (Movimento Popular para a Libertação de Angola) não sem poucos embates com a Unita (União Nacional para a Independência Total de Angola), numa guerra civil que deixou cerca de 2 milhões de mortos- servem de mote para "Predadores", novo livro do angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, o Pepetela, vencedor do Prêmio Camões em 1997. <br />Em tom de farsa, com o deboche em alta e o pensamento sempre irônico e fluido que o caracteriza, o autor desenha uma república cuja elite política, econômica e intelectual está infestada de gente preocupada com algo em nada referente à "libertação de Angola", menos ainda dos angolanos. <br />Ainda sem previsão de lançamento no Brasil, "Predadores" acompanha as empreitadas de um "cidadão exemplar" de Angola, como qualifica logo de início Pepetela. Vladimiro Caposso, protagonista do romance, é um homem que, nascido pobre e inexpressivo politicamente, se provará um ás do tráfico de influência quando os portugueses fogem desesperados às vésperas de um poder africano assumir o comando do país. <br />Camaleônico, em um momento em que para a maioria havia insegurança, pobreza e ruínas, aí é justamente quando Caposso começa a se reinventar. Muda de história, de amigos, altera o nome, arranja uma religião, entende "a psicologia do momento", segundo explica o autor, e constrói um patrimônio milionário. <br />Ao seu redor, com ele, acima dele ou sob suas ordens, dentro de seus pensamentos e a manobrar suas jogadas, habitam seres que visam o máximo lucro e o mínimo esforço, os predadores de Pepetela. "Quem detém o poder financeiro vem de várias origens. Caposso arrancou para a fortuna através das suas atividades no partido dominante, que lhe permitiram os primeiros meios de enriquecimento. Foi "político" quando lhe convinha", diz o autor de 64 anos. <br />Apesar de lançado num momento em que o país caminha para um novo pleito, assunto sobre o qual Pepetela demonstra ceticismo ("Parece-me que setembro de 2007 é a data ideal para o partido no poder apresentar realizações importantes e ganhar mais uma vez as eleições"), o autor afasta a percepção de que seu livro tenha como objetivo criticar o estado de coisas em um país há três décadas sob controle da mesma agrupação política. <br />"Caposso é um personagem que de fato tem algumas características de um setor da nova burguesia, os emergentes. Mas não pretende ser o retrato da alta sociedade atual." <br />No entanto, apesar do tom bem-humorado que imprime ao livro, o escritor -ele mesmo um ex-guerrilheiro a serviço do "partido no poder" e que foi nomeado vice-ministro de Educação em 1976, posição que deixaria em 1982- não esconde, ao longo da narrativa, seu desapontamento. <br />Quando Caposso promove uma elegante reunião com autoridades governamentais em sua fazenda, por exemplo, escreve: "(...) Todos riram. A regra do novo regime era essa (...), ninguém gastava dinheiro inutilmente com a coletividade. O dinheiro só servia para produzir mais dinheiro ou para esbanjar em ações de prestígio". <br />O autor também descarta que sua ficção embuta apontamentos sociológicos, mas mergulha nas preocupações, transformações e hábitos de famílias à margem do "novo mundo" em andamento. <br />Antagonista moral de Caposso, o garoto Nacib -nome recebido como homenagem dos pais ao personagem de "Gabriela", a primeira telenovela exibida em Angola, em 1977-, criado sem leite, acostumado a almoçar apenas "arroz e um pouco de peixe frito, o prato mais barato do mercado" -como anota Pepetela-, contraria a estatística e se torna engenheiro. Contraria a "psicologia do momento" e não se afasta dos parentes, que continuam a viver num bairro miserável. <br />Com o cruzamento dessas realidades, o autor monta uma fábula ácida e sem moral ao fim, exposição de uma cadeia alimentar impulsionada por poder e prestígio na qual nenhuma espécie termina por sobreviver impunemente. <br />"Não faço a mínima idéia de o que os angolanos aprenderam [ao longo dos últimos 30 anos]. Mas parece-me que há uma certeza muito grande: guerra nunca mais." <br /><br /><br />Predadores <br />Autor: Pepetela <br />Editora: Dom Quixote (Portugal) <br />Quanto: 17, em média (383 págs.) <br /><br />(Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0603200621.htm) <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br /><br /><br />UANHENGA XITU - MESTRE TAMODA<br /><br />Agostinho André Mendes de Carvalho é o nome de Uanhenga Xitu, nasceu em Calomboloca, Icolo e Bengo, a 29 de Agosto de 1924. Fez os seus estudos primários e secundários em Luanda. Fez o curso de enfermagem em Luanda, profissão que exerceu durante muitos anos deslocando-se por todo o país, que conhece bem. Fez estudos em Ciências Políticas na Alemanha (Ex-RDA) <br /><br />Em 1959 foi preso, tendo feito parte do chamado Processo dos 50 e enviado para o Tarrafal onde permaneceu de 1962 a 1970. <br /><br />" Toma atenção, Kahima no que te vou dizer, porque basta trocar a ordem de um mando para tudo se gorar... Esta noite levas pós para espalhá-los, um poucochinho de cada vez, em todos os cruzamentos do caminho onde passarão os jogadores e a assistência. Vais benzer todas as encruzilhadas!... Em todo os trajecto, tanto na ida como na volta, não deixes que alguém te passe à esquerda. Evita!... Depois daquela nascente de Kibulukutu, em direcção à primeira choça que encontrares, isto é, antes da baixa de Malombe, enterras esta dibunda. Pega, fecha a mão!... Muita atenção, ouvis-te?... Quando cantar o primeiro galo, tens de estar no campo da bola. E no centro, no lugar da coroa onde se assenta a bola, enterras isso. Pega, fecha a mão!... Depois de enterrares, alisa o lugar, de uma maneira para ninguém desconfiar... Depois desta operação, dá oito voltas ao campo; na nona, passas com este embrulho. Pega, fecha a mão! Nove vezes entre as pernas. Regressas... Por volta das onze horas da manhã, portanto, amanhã dia do jogo trazes-me todos os jogadores que farão parte do desafio...". In: Uanhenga Xitu. «Mestre Tamoda». Luanda, Editorial Nzila, 2001, p. 56, 57. <br /><br />Após a independência foi Membro do Conselho da Revolução, Comissário (Governador) da Província de Luanda, Ministro da Saúde de Angola, Embaixador de Angola na República da Polónia, Actualmente é Deputado à Assembleia Nacional pela Bancada do MPLA, tendo sido membro do Comité Central do MPLA até 1998. É membro da União dos Escritores Angolanos. <br /><br />Sobre as personagens que recria nas suas obras, Uanhenga Xitu diz: "As personagens do meu mundo ficcional, a princípio apenas imaginadas, vão-se autocriando, ganham rosto próprio e, mesmo quando lhes dou mais atenção, tornam-se tão autónomas no interior da minha narrativa, e nem sempre o destino que lhes traçara acabará por se cumprir. Nunca soube, antecipadamente, o fim que cada um teria. O Kahitu, que era tão dócil na redacção das suas cartas, não conseguira convencer... Nunca o tive como modelo acabado." <br /><br />Foi na cadeia que começou a escrever os seus contos, tendo para isso sido aconselhado por alguns dos seus colegas e amigos de prisão como António Cardoso e António Jacinto. <br /><br />Suas obras publicadas são: Meu Discurso (1974); Mestre Tamoda (1974); Bola Com feitiço (1974); Manana (1974); Vozes na Sanzala - Kahitu (1976); Os Sobreviventes da Máquina Colonial Depõem (1980);Os Discursos de Mestra Tamoda (1984); O Ministro (1989); Cultos Especiais (1997), (Os Sobreviventes da Máquina Colonial Depõem (reedição 2002). <br /><br />"Os Discursos de Mestre Tamoda" é talvez a sua obra mais referenciada e com mais edições. A respeito deste livro o próprio autor diz: "A obra publicada de Mestre Tamoda, como algumas vezes expliquei aos leitores, foi escrita na cadeia, onde a vigilância e busca dos guardas e da parte de outras entidades prisionais era constante. Eu e outros companheiros vimos confiscados, além da correspondência familiar e documentos, trabalhos literários de grande valor que nunca mais recuperámos e, para voltar a reproduzi-los tal e qual, será difícil..." Fonte: J.A <br /><br />Sobre esta obra Luis Kandjimbo, um dos críticos literários angolanos, escreveu: Tamoda, simbolizando, o mimetismo cabotino, é uma personagem típica do mundo que através da exibição de maneirismos expõe à hilaridade o uso da língua portuguesa perante uma audiência de jovens e crianças, transformando-se em modelo, no que diz respeito ao emprego e manipulação de vocabulários portugueses... Na qualidade de escritor com um envolvimento directo na actividade política, pois é deputado à Assembleia Nacional, na sua bibliografia destacam - se "O Ministro" e "Cultos Especiais" duas obras consagradas à crítica social, ao culto à personalidade e a outros comportamentos dos políticos. In: Luis Kandjimbo. Breve História da ficção narrativa Angolana nos últimos 50 anos. <br /><br />Fernando Mourão aponta que Uanhenga Xitu em Mestre Tamoda, põe em evidência o conflito, através de uma linguagem plena de humor, retratando uma situação ao mesmo tempo trágica e cómica In: O Problema da Autonomia e da Denominação da Literaturas Angolana. Paris, Fondation Calouste Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, 1985, p.124. <br /><br />« O novo intelectual, no meio de uma sanzala em que quase todos os seus habitantes falavam quimbundo e só em casos especiais usavam o português, achou-se uma sumidade da língua de Camões. Ao dicionário apelidava: o ndunda - aliás, termo também aplicado, em quimbundo, a qualquer livro volumoso e de consulta. Nas reuniões em que estivesse com os seus contemporâneos bundava, sem regra, palavras caras e difíceis de serem compreendidas, mesmo por aqueles que sabiam mais do que ele e que eram portadores de algumas habilitações literárias. Quando em conversa com moças analfabetas e que mal pronunciavam uma palavra em português, o «literato», de quando em vez lozava os seus putos. Porém, alguns deles nem constavam dos dicionários da época." In: Uanhenga Xitu. «Mestre Tamoda». Luanda, Editorial Nzila, 2001, p.18. <br /><br />Salvato Trigo diz sobre este escritor: "Em síntese: estamos, portanto, em face de um escritor, que no dizer avisado de Russell Hamilton, «é inequivocamente um dos principais modernizadores da literatura angolana.» Sem querermos contrariar minimamente a opinião daquele crítico, talvez nós preferíssemos dizer que U. Xitu é «inequivocamente um dos maiores "africanizadores" da literatura angolana» [...]. Uanhenga Xitu vai continuar a escrever [...] polifonicamente, como o tem feito até aqui, dando à literatura angolana cada vez mais o sabor da oratura. Só assim o texto viverá, uma vez que se alicerça numa expressão vivificante, qual é a do griotismo literário, que continuará a ser o traço distintivo das literaturas africanas modernas. "Da oratura à literatura" "há-de continuar a ser o trajecto e o objectivo da escrita de Uanhenga Xitu que se recusa ser, literariamente, Agostinho Mendes de Carvalho." In: Salvato Trigo. Uanhenga Xitu. Da oratura à literatura. Cadernos de Literatura, 12, 1982. <br /><br />(Fonte: Site da União de Escritores Angolanos) <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Ungulani Ba Ka Khosa - Ualalapi <br /><br /><br /><br />Escritor moçambicano, de nome verdadeiro Francisco Esau Cossa, nascido a 1 de Agosto de 1957, em Inhaminga, província de Sofala. Tirou o bacharelato em História e Geografia na Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane, exercendo a função de professor. Iniciou a sua carreira de escritor com a publicação de alguns contos e participou na fundação da revista Charrua na Associação de Escritores Moçambicanos, de que é membro. Tem publicadas a seguintes obras: Ualalapi (1987), Orgia dos Loucos (1990), Histórias de Amor e Espanto (1999) e No Reino dos Abutres (2002).<br /><br />Centrada sobre a crueldade e despotismo de Ngungunyane, o último Imperador de Gaza, Ualalapi , a primeira das obras citadas, foi distinguida, em 1990, com o Grande Prémio da Ficção Narrativa; em 1994 com o Prémio Nacional de Ficção e, em 2002, foi considerada como um dos melhores livros africanos do século XX.<br /><br />Ungulani Ba Ka Khosa por Ungulani:<br /><br />"Os editores têm sempre a mania de exigirem uma pequena resenha das nossas vidas. Somos obrigados a abrir algumas estradas e enveredarmos por carreiros que só a nós nos diz respeito. É assim a vida. Mas vamos a ela: Nasci em Inhaminga, Distrito de Cheringoma (província de Sofala) a um de Agosto do ano 57. Nunca assentei arraiais por largo tempo num determinado local. Andei pelo país inteiro (exceptuando Tete). De formação tenho um bacharelato que sustenta o Ungulani. De livros posso mencionar Ualalapi, Orgia dos Loucos, e Estórias de Amor e Espanto. Pronto. Cá está parte do meu percurso. "<br /><br />(contra-capa de No Reino dos Abutres, Imprensa Universitária, 2002, Maputo) <br /><br />Ualalapi - resenha:Ualalapi é o nome de um guerreiro nguni a quem é destinada a missão de matar Mafemane, irmão de Mudungazi (depois chamado Ngungunhane-Gungunhana). Este guerreiro dá o título ao relato, ficcionado por Ba Ka Khosa, da vida e da época do hosi (rei, imperador, em língua tsonga) Ngungunhane, famoso pela resistência que opôs aos portugueses nos finais do séc. XIX. Mas à medida que a narrativa progride, o quadro que se desenrola aos nossos olhos é bem outro. Numa escrita veloz, forte, densa, violenta, crua, chocante por vezes, recorrendo a metáforas quase brutais, perpassada de aforismos e de uma raiva não disfarçada que a poderosa imaginação visual do autor reforça, Ngungunhane é-nos revelado como um homem cruel, sanguinário, violento, um verdadeiro tirano para o seu povo - a sua designação como imperador ou rei é propositadamente anárquica -, na mesma medida em que os colonizadores portugueses o eram para com esse mesmo povo (vejam-se os testemunhos epocais transcritos, num paralelismo óbvio com o que se vai ler em seguida). Um e outros provocam a destruição do império de Gaza, deixando um rasto de miséria, fome, crueldade, sofrimento e humilhação. Uma «história»-ficção de sangue, de guerra, de arbitrariedades, de morte. Mas sem dúvida tão perturbadora quanto fascinante.<br /><br />"Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da jibóia. Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que ... vos aprisionarão. Os nomes que vêem dos vossos antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e vocês agradecendo. Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos nossos antepassados, a palavra que impôs a ordem nestas terras sem ordem, a palavra que tirou crianças dos ventres das vossas mães e mulheres. O papel com rabiscos norteará a vossa vida e a vossa morte, filhos das trevas".<br /><br /> <br />[O último discurso de Ngungunhanhe, segundo Ungulani Ba Ka Khosa, Ualalapi, Associação dos Escritores Moçambicanos, 2ª edição, p. 118] <br /><br /><br />Capítulo de tese de Christoph Oesters (Utrecht, 11/2005)<br /><br />Ualalapi<br /><br />O livro de estréia de Ungulani Ba Ka Khosa Ualalapi, publicado em 1987, é um romance histórico que foi distinguido em 1994 com o prémio Nacional de Ficção, e em 1990, junto com Vozes Anoitecidas de Mia Couto[1], com o Grande Prémio da Ficção Narrativa. Trata-se da primeira obra de ficção que, como sublinha Chabal (1996: 85), se dedica exclusivamente ao passado colonial de Moçambique e que conta a ascensão de Ngungunhane, o imperador de Gaza, famoso pela resistência que opôs aos portugueses nos finais do século XIX e a derrocada do seu império. O livro constrói-se a partir de uma colagem de fragmentos históricos, comentários de oficiais portugueses envolvidos na campanha contra o império de Ngungunhane, e a imaginação de Khosa na reconstrução de episódios deste período na forma de seis contos que constituem o romance. Deste modo o livro aborda exactamente o momento inicial da ocupação efectiva pelos portugueses e a passagem do tempo pré-colonial ao período colonial. Ualalapi, no entanto, não é uma obra que apresenta os grandes feitos heróicos de um Grande Homem contra a violência do domínio colonial, como Ngungunhane vai ser retratado no Moçambique da pós-independência. Em vez disso dedica-se muito mais a uma representação de Ngungunhane que corresponde à realidade histórica, mostrando a imagem de um tirano cruel em relação aos outros povos africanos, mas também para com o seu próprio povo. <br /><br />É por essa razão que o 'Outro', na forma dos 'brancos, do outro lado do mar'[2], se limita na parte fictícia do romance a duas alusões inseridas nos episódios relatados. A primeira encontra-se logo no começo do romance, na referência à morte de Ngungunhane no exílio "em roupas que sempre rejeitara e no meio da gente da cor do cabrito esfolado que muito se espantara por ver um preto" (p.30). Apesar deste anúncio da consequência final da invasão dos portugueses para o rei, verifica-se a presença do invasor europeu na parte fictícia do romance primeiro incidentalmente, como quando os grandes do reino têm de decidir sobre o castigo do guerreiro Mputa, que é falsamente acusado de ter afrontado a primeira mulher do imperador:<br /><br />(...) Este, com a argúcia que a vida ensinara, disse ao rei, em jeito de síntese, que a morte não seria digna para um homem que ousou cobiçar o corpo da rainha. Era necessário um castigo brutal e memorável na mente dos súbditos; por que não cegá-lo como faziam os tsongas em tempos que não importa recordar? Caso faças isso o teu poder imperial sairá fortificado nestes tempos tumultuosos em que os homens da cor de cabrito esfolado assediam o teu reino vasto (Khosa 1990: 47). <br /><br />O romance dá-nos assim uma impressão da maneira como os portugueses surgiram lentamente nesta parte da África e como eram percepcionados enquanto seres diferentes. É, por outro lado, um ponto de vista que contrasta com os fragmentos históricos dos oficiais portugueses, intitulados "Fragmentos do fim", que representam a história do ponto de vista do colonizador. Estes falam sobretudo sobre o andamento da campanha militar e revelam a relação de domínio subjacente.<br /><br />O significado histórico da presença portuguesa relativamente ao futuro desenvolvimento do território mostra-se no fim do livro, no derradeiro capítulo "O último discurso de Ngungunhane", que é um monólogo no qual Ngungunhane profetiza o período colonial, antes da sua partida para o desterro:<br /><br />Estes homens da cor de cabrito esfolado que hoje aplaudis entrarão nas vossas aldeias com o barulho das suas armas e o chicote do comprimento da jibóia. Chamarão pessoa por pessoa, registando-vos em papéis que enlouqueceram Manua e que vos aprisionarão (Khosa 1990: 118). <br /><br />Segue-se uma séria de descrições pormenorizadas das conseqüências socio-culturais do tempo colonial referindo-se à alienação da sociedade moçambicana em relação às culturas africanas e à dinâmica e ao impacto social do período do domínio português. Manua, o filho de Ngungunhane a que se refere aqui o imperador, é relativamente às diferentes formas em que se manifesta o 'Outro' certamente uma das personagens mais interessantes do livro, por ser, como afirma, um "dos poucos na minha tribo, que teve acesso ao mundo dos brancos, à sua língua, aos seus costumes e à sua ciência (...)" (p.100). A alienação dele em relação à sua origem africana revela-se nitidamente, nesta passagem:<br /><br />Quando eu for imperador eliminarei estas práticas adversas ao Senhor, pai dos céus e da Terra. Serei dos primeiros, nestas terras africanas a aceitar e assumir os costumes nobres dos brancos, homens que estimo desde o primeiro dia que tive acesso ao seu civismo são (p.100).<br /><br />Manua revela-se aqui um adepto fervoroso dos costumes do 'Outro', colonizador e da cultura europeia, um forte contraste com a profecia de Ngungunhane no fim do livro que mostra um ponto diferente de vista do imperador em relação à cultura europeia, indicando uma grande diferença entre as posições do pai e do filho:<br /><br />(...); e haverá homens com vestes de mulher que percorrerão campos e aldeias, obrigando-vos a confessar males cometidos e não cometidos, convencendo-vos de que os espíritos nada fazem, pois tudo o que existe na terra e nos céus está sob o comando do ser que ninguém conhece mas que acompanha os vossos passos e as vossas palavras e os vossos actos. A noite terá caído definitivamente nestas terras que mudarão de face com o vosso suor (p.119).<br /><br />Trata-se aqui de uma alusão aos efeitos da "desvalorização das formas de culturas indígenas, que caracterizou a política colonial de assimilação" (Leite: 1998: 90), em que Manua representa um dos primeiros moçambicanos envolvidos neste processo, que "contribuiu para a descaracterização e rasura de valores ancestrais" (idem), o que se pode verificar também na descrição do moço pelos outros passageiros no navio a Lourenço Marques que afirmam que se veste "como um branco (...), (...) não tem cara de maltês, (...), (...) e estudou muito mais que o compadre" (p.104). O filho de Ngungunhane apresenta-se, portanto, como um dos primeiros africanos assimilados, o que nos indica a alienação de uma parte da sociedade moçambicana através da influência da cultura europeia. <br /><br />Por outro lado, a violência excessiva no romance que caracteriza os métodos de Ngungunhane mostra um paralelo com a brutalidade deste 'Outro', colonizador e português nos "Fragmentos do fim". Faz com que o imperador, a personagem central nesta época crucial na história de Moçambique, se revele um tirano que não se distingue dos portugueses na opressão e destruição das culturas africanas, que considera com uma inferioridade semelhante: <br /><br />(...) Trouxemos a chuva para estas terras adustas e educamos gente brutalizada pelos costumes mais primários. E hoje essa gente está entre vocês. Nguni! (p.29).<br /><br />A crueldade com que Ngungunhane governava exibe-se frequentemente no romance e pode ser lida nas entrelinhas das palavras do rei a respeito do castigo de Mputa que "puseram em delírio o povo tsonga que esquecera que estava perante o invasor que poisara naquelas terras com o sangue dos inocentes guerreiros nunca relembrados, (...)" (p.49), o que sublinha mais uma vez a semelhança entre a maneira de agir do imperador de Gaza e os métodos dos portugueses. É um facto que se pode verificar também no capítulo "O cerco ou fragmentos de um cerco" que comprova a ferocidade com que o imperador submeteu outros povos e onde se pode observar como os nguni correspondem ao 'Outro' do ponto de vista dos machopes:<br /><br />- Vamos lutar e morrer se for necessário, mas o nosso desprezo pelos nguni manter-se-á por séculos, porque esta terra é e será nossa. (...) O nosso não é para que as nossas mulheres não sejam escravas e os nossos filhos não engrossem as fileiras desse exército bárbaro. (...).<br /><br />- Iremos para a luta com a certeza da vitória, apesar deste cerco criminoso que moveram contra nós, um cerco que contraria os princípios mais elementares de uma guerra de homens, de uma guerra que os nossos antepassados mais remotos cultivaram com a certeza de que os homens olham-se de frente e as lanças chocam-se sob o olhar atento dos guerreiros (...) (p.86).<br /><br />O trecho sublinha obviamente a destruição de algumas partes da sociedade autóctone que se deu, portanto, já sob o domínio de Ngungunhane cujo regimento se caracterizava pela inobservância das regras da tradição. O fragmento comprova que o não respeito por uma cultura tradicional e a relação subjacente de domínio, que certamente entrou numa fase de aceleração sob domínio colonial português, já começou no período do império de Gaza no fim do século XIX, onde a opressão de povos e tradições já fazia parte da estratégia imperial de Ngungunhane.<br /><br />O mesmo pode verificar-se no que diz respeito à própria tradição nguni, como consta do caso da doença misteriosa da sua mulher preferida, Damboia[3], caso que mostra como Ngungunhane se sobrepõe à tradição, proibindo a realização do nkuaia devido à convicção dele que "e se ela se vai, vai-se o império, homens!" (p.63), quebrando a regra de só não realizar a cerimónia no caso da morte do rei, visto que Damboia não era soberana nem estava morta:<br /><br />E por isso e outras coisas mais que vos aprouver dizer, para o bem do reino, o nkuaia não se realiza. Na capital não ressoarão esses cânticos de louvor que nos rejuvenescem. Os guerreiros não baterão os escudos do bayete, levantando a poeira pré-histórica dos nossos antepassados esquecidos. (...) Por isso, as leis que vigoraram até aqui irão vigorar, e eu serei homem de mais leis emanar quando para isso for necessário, porque o império é meu, e o poder pertence-me; (...) (p.63).<br /><br />O absurdo da guerra e o carácter violento de Ngungunhane, descontrolado pela estranha e vergonhosa doença que atinge Damboia, mostra-se também na ordem dada ao comandante para que as suas tropas ataquem e massacrem um reino vizinho:<br /><br />Ide, vassalos, e apagai as tochas que por este império estiveram acesas. E para que os machope não se riam da nossa dor, tu Maguiguane, vai por essas terras espalhar a morte e a dor. Eu quero que todos, mas todos, se compadeçam com a dor que nos atacou. Ide, guerreiros, que o império vos salvaguarda, agora e depois da morte (p.63).<br /><br />Em resumo, pode-se dizer que os métodos do império de Gaza mostram semelhanças com a táctica que os portugueses aplicarão contra os povos de Moçambique. Desta maneira pode-se verificar como Ngungunhane pretende construir um 'Mesmo' por exclusão do 'Outro', em processos idênticos à da colonização portuguesa, baseado numa relação de domínio. No último capítulo, no qual o imperador desenvolve um discurso profético acerca das consequências da presença portuguesa a respeito do desenvolvimento socio-cultural do território, mostra-se o significado histórico da chegada do português em toda a sua dimensão histórica, indicando as transformações da sociedade causadas por esta intervenção ao longo do tempo:<br /><br />Os nomes que vêem dos vossos antepassados esquecidos morrerão por todo o sempre, porque dar-vos-ão os nomes que bem lhes aprouver, chamando-vos merda e vocês agradecendo. Exigir-vos-ão papéis até na retrete, como se não bastasse a palavra, a palavra que vem dos nossos antepassados, a palavra que impôs ordem nestas terras sem ordem, (...) (p.118).<br /><br />Esta passagem indica ao mesmo tempo que as palavras de Ngungunhane correspondem a um dos aspectos centrais na representação da identidade pós-colonial nos romances de Mia Couto. A alienação da sociedade moçambicana em relação à sua origem africana através da perda dos nomes africanos das pessoas é um assunto que já encontrámos na personagem Marta em A Varanda do Frangipani, afirmando que os membros da sua família "já há muito perderam seus nomes africanos" (VFA: 129). No que diz respeito às consequências socio-culturais da presença dos portugueses, nota-se como o monólogo do imperador refere explicitamente o período do colonialismo, descrevendo pormenorizado o sofrimento da população indígena:<br /><br />(...) Começarão a abandonar as vossas aldeias ante a vergonha e a impotência de verem as vossas filhas violadas em plena rua, os vossos pais mortos como reses, os vossos irmãos chicoteados por peidarem de medo frente ao branco que vos aviltará por todo o sempre, queimando as vossas casas, usurpando a terra que vem dos vossos antepassados, cobrando as moedas pelas palhotas que erguestes com suor, obrigando-vos a trabalhar em machambas enormes, onde dia e noite andarão como sonâmbulos, comendo jibóias e macacos, escalavrando a terra com os dedos descarnados e tirando a merda da criança do vosso patrão (p.120).<br /><br />É interessante como Khosa conseguiu traçar um paralelo entre o império de Gaza e o tempo colonial através do fictício último discurso de Ngungunhane. Por um lado esclarece que a tradição da exploração já existiu antes da chegada dos portugueses. Por outro lado faz com que a profecia chegue pela boca de Ngungunhane, um tirano igual aos portugueses, o que faz com que a significação do tempo colonial ganhe ainda maiores dimensões. A ocupação efectiva pelos portugueses aparece assim como um ponto de não-retorno, significando o início de um processo que não só conduz à construção de uma nação moçambicana, mas também traduz uma transformação irrevogável, como resume Ngungunhane na previsão dos futuros acontecimentos: <br /><br />E aí o mundo terá mudado para sempre (p.121).<br /><br />Apesar disso apresenta exemplos concretos como esta transformação se manifestará na sociedade moçambicana, no surgimento de uma nova classe social: <br /><br />E por todo o lado, como uma doença que a todos ataca, começarão a nascer crianças com a pele da cor do mijo que expelis com agrado nas manhãs. Serão crianças da infâmia (p.119).<br /><br />Ngungunhane alude aqui à posição difícil dos mulatos em Moçambique, um assunto que aparece também na obra de Mia Couto. Além disso, pode-se verificar como o afastamento da sociedade da sua origem exprime-se de maneira semelhante como em A Varanda do Frangipani e Terra Sonâmbula, visando a tensão entre o passado e a modernidade em Moçambique, aqui anunciado por Ngungunhane:<br /><br />Fora das grades os vossos netos esquecer-se-ão da língua dos seus antepassados, insultarão os pais e envergonhar-se-ão das mães descalças e ocultarão as casas aos amigos. A nossa história e os nossos hábitos serão vituperados nas escolas sob o olhar atento dos homens com vestes de mulher que obrigarão as crianças a falar da minha morte e a chamarem-me criminoso e canibal (p.121).<br /><br />O processo de alienação por causa da fusão da cultura europeia com as culturas africanas mostra-se evidentemente na religião:<br /><br />(...) Mas começarão a aprender novas doutrinas que rejeitarão os espíritos, os feiticeiros e curandeiros. Todos ou quase todos aceitarão o novo pastor, mas pela noite adentro muitos irão ao curandeiro e pedirão a raiz contra as balas do inimigo, (...). (p.122).<br /><br />A profecia de Ngungunhane alude assim à convivência do passado com a modernidade em Moçambique, neste lugar na forma da coexistência da religião cristã e das tradições africanas. Apesar disso, aponta o facto de que não só se trata de uma mera aquisição de elementos da cultura europeia, mas que a situação inicial do embate das culturas imediatamente dá lugar a um processo de deslocações nas quais os africanos se apropriarão das novas doutrinas que o europeu traz para encontrar um caminho para a liberdade. Mas processo também no qual os europeus se moçambicanizaram:<br /><br />(...) Outros transformar-se-ão em serpentes, entrarão no campo inimigo, estudarão os seus passos e verão o quantitativo. E esta será a nossa guerra vitoriosa contra os homens que entraram nestas terras sem autorização de ninguém. Muitos dos filhos destes homens ficarão nestas terras e aprenderão as nossas línguas e dançarão as nossas danças e casarão com as nossas mulheres à vista de toda a gente e serão os nossos irmãos de verdade (...) (idem).<br /><br />Por outro lado, esta passagem mostra que a chegada do português provocará mudanças sociais de carácter definitivo. O presságio do futuro limita-se, porém, não só ao papel do intruso no período colonial, mas mostra que a miséria profetizada por Ngungunhane não terminará com o fim do domínio do português:<br /><br />Chegada a vitória tereis um preto no trono destas terras. (...) Mas não tereis chegado ainda ao tempo da vossa felicidade, seus cães, porque a maldição que abraçou estas terras, perdurará por séculos e séculos. (...) A desordem será de tal ordem que as casas mudarão de cor, passando a ter a cor da morte que se instalará nas vossas terras que terão a extensão de meses e meses de percurso (p.122-123).<br /><br />No seu último discurso Ngungunhane exprime que a libertação e independência em 1975 ainda não significarão o fim da guerra, mas uma transformação da guerra de carácter colonial em guerra civil, guerra que se estendeu até 1992. O romance faz assim uma ligação entre o tempo do império Gaza e os acontecimentos históricos dos últimos trinta anos em Moçambique. É por essa razão que Ualalapi deve ser considerado como um romance em diálogo ou em confronto com a história e com as fabricações da história, assumindo como tema central a questão do 'Outro' no processo político e cultural de construção de uma identidade nacional. <br /><br /><br />[1] Vozes Anoitecidas não faz parte deste trabalho por não ser um romance ou uma novela, mas um livro de contos.<br /><br />[2] Trata-se aqui de uma citação de Akawitchi Akaporo - armas e escravos (p.31).<br /><br />[3] Veja a respeito disso o capítulo "Damboia". <br /><br /><br />Entrevista com Ungulani Ba Ka Khosa<br /><br />A escrita está em mim <br /> <br /> <br />Entrevista concedida a Rogério Manjate (Fonte: http://www.maderazinco.tropical.co.mz/entrevista/ungula.htm) <br />Maderazinco (MD) - O Reino dos Abutres é o teu próximo livro: o que será este livro? <br />Ungulani Khosa (UK)- Creio que sai ainda este ano, já devia ter saído, mas o editor pediu-me para aprofundar algumas passagens. <br /><br />Só que, quando escrevo um livro tenho o meu tempo. Eu leio, coloco-o de novo na gaveta e só 6 meses depois volto a pegá-lo. <br />No reino dos abutres é uma aventura minha. Quis escrever um livro sem personagem. Pois, de maneira clássica a personagem é isto, nasceu aqui, cresceu ali, essas coisas, e tu dás perfil, dás carne. Neste, eu reportei-me ao período dos anos 80, o tempo do mono partidarismo em que nós não tínhamos personalidade "própria", éramos teleguiados; quer para formação, tudo. Ao mesmo tempo o livro retrata, isto é, a dois níveis, os campos de reeducação. Extremamente difícil, se consegui ou não, não sei. O livro que o diga. <br /> <br />MD - Dá para perceber que se trata de um discurso sobre o país pós independência, período sobre o qual ainda não se escreveu com muita profundidade. <br />UK - E acima de tudo não se ficcionou sobre os campos de reeducação. Eu estive em Niassa como professor, e então pensei: o que eu vi e vivi aqui, em 10 ou 15 anos vou escrever. Escrever sobre as vidas dessa gente nos campos de reeducação. Para já eles não tinham BI, não tinham identidade. Nada. Não eram cidadãos, eram levados para ali e não podiam sair de qualquer maneira, e da minha parte foi no sentido de dizer muito obrigado pelo que vocês disseram e partilhamos. E este livro foi um pouco difícil porque tinha de chegar ao real e ficcionar, e isso dá muito trabalho. Fiquei amarrado a ele, mas agora estou fora e já me libertei. <br /> <br />MD - É um discurso corrosivo, como foi o Ualalapi, com a desmistificação do Ngungunhane, a grande figura da resistência. Eu pergunto porque os anos 80 foram um momento difícil para os jovens, tu próprio dizes muitas vezes que o país não te deu nada, o Eduardo White que é da mesma geração, no seu livro As Falas de Escorpião também fala sobre o mesmo período, num discurso corrosivo anti-poder, a Frelimo... <br />UK - O que posso dizer é que neste livro eu pretendo dizer: meus irmãos, eu vi, assisti e vou registar, e não há nada mais. Agora se dizes corrosivo ou não... <br /> <br />MD - Mas o próprio período já era corrosivo... <br />UK - Sim, sim, eu retrato uma época em que nós não tínhamos identidade. E digo-te, este é o livro mais difícil que eu já escrevi, porque comparo este livro com pirilampos, que no meio da floresta acendem e apagam, não há uma personalidade contínua. É um animal que está assim mas que praticamente é teleguiado, e é o que aconteceu connosco... <br />Por isso a ausência de identidade nesse período... Identidade não, melhor dizer independência. Diziam-te: faz isto, acorda às 5 horas; e tinhas de fazer. Hoje já há mais independência, tu próprio és homem do teatro e fazes o teu trabalho. Estamos a conversar juntos e estamos numa boa, e nessa altura não era possível. <br /> <br />MD - O que tu achas da moçambicanidade neste período de globalização, onde tens a globalização ocidental e tens uma globalização interna. <br />UK - Eu vou te dizer uma coisa meu irmão, a questão para mim é simples e é complexa ao mesmo tempo. Na legislação colonial, por exemplo, nenhum indivíduo de origem asiática podia praticar o comércio dentro da cidade, só os portugueses; o resto estava na periferia. Após a independência juntámo-nos todos como moçambicanos; mas ao mesmo tempo, eu acho, que se perdeu qualquer coisinha em relação ao que tu perguntas que é a moçambicanidade. Eu não concebo que o indivíduo tenha 3 passaportes. Se eu disser que estou cansado de Moçambique, não sei onde irei. Mas há pessoas que têm 3 passaportes, por coincidência ou não, são pessoas com uma coloração de pele diferente da minha. Esta globalização traz vantagens para uns e desvantagens para outros. Mesmo tu podes estar cansado disto e dizeres vou emigrar, mas não entras em Lisboa, e se tivesses um outro tom de pele, até podias entrar. É nesse sentido que digo que nós somos permissivos. E somos permissivos até por uma outra razão: nós somos um país da costa e sempre servimos o interior; recebemos todos que lá vão e vêm, e nós não assumimos geograficamente a nossa identidade. Isto que está a acontecer no Zimbabwe, não sei se alguma vez poderia acontecer aqui; com erros e erros... erros crassos que o Mugabe está a cometer. Mas para um país que serve o interior, seria extremamente difícil assumir uma posição como a do Mugabe. <br /> <br />MD - E sobre a moçambicanidade na literatura, pois se discute muito sobre o que é moçambicano ou não. <br />UK - Não tenho muito para dizer sobre isso, porque nunca a moçambicanidade tem de ser acoplada a cor da pessoa, esse é o primeiro ponto, e segundo, é que nós somos diferentes dos países anglo-saxónicos, em que diziam tu és preto e fica no teu lugar, tens a tua universidade, estuda e estuda os teus hábitos e costumes. Mas nós fomos colonizados por Portugal em que a miscegenação foi muito forte, depois porque praticaram a assimilação e nos quiseram assimilar à imagem e semelhança deles. Mas no meio disto há oportunismos, jovens da minha idade até, que não conseguem ver o país real e sempre querem acoplar Moçambique a Portugal, isso eu não concordo e é aí que dizem que sou racista. Mas eu digo não. Vamos assumir o que é nosso. Enquanto que em Angola o fenómeno do branco, é de um branco pobre, por exemplo o pai do Luandino Vieira foi um branco engraxador, mas tu nunca viste aqui, no tempo colonial ou agora, um branco ser engraxador. E os brancos que apareceram aqui foram para o colonato do Limpopo, a uns deram fatos e casacos porque vinham do Alentejo, zona pobre e seca, e não só. <br /> <br />MD - O que te diz a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa)? <br />UK - CPLP? A mim não diz nada. Porque estamos em espaços geográficos distantes e isso não vai dar em nada porque é uma vontade política e nunca vai ser cultural... <br /> <br />MD - Diz-se que é mais um vínculo do neocolonialismo. <br />UK - Eu não diria neocolonialismo. Mas para mim a CPLP é Portugal e Brasil <br /> <br />MD - Mas um ministro brasileiro acaba de dizer que a CPLP não faz parte dos programas e interesses do Brasil. <br />UK - Obviamente porque o Brasil está no Mercosur, nós na SADC, mas Portugal quer manter a chamada portugalidade, e olha para a CPLP; e inclusive olha para esta história que eu acho que é uma farsa... O prémio Camões. Por exemplo no Brasil há dezenas de escritores premiáveis para o Camões, mas como é uma política de rotatividade, tu notas que é forçado por parte de Portugal, tentando preservar a língua portuguesa. E nem precisa, porque veja só, nós estamos a falar em português. <br />Quanto a língua portuguesa Moçambique antes de 75 tinha, sei lá, 10% da população a falar português e depois disso, quando os portugueses abandonaram o país, quase 50% fala hoje... ouve mais interesse na língua portuguesa por parte dos moçambicanos em 27 anos do que em 500 anos dos portugueses. <br /> <br />MD -Porque consideras A Orgia dos Loucos melhor que Ualalapi, contrariamente à opinião dos leitores e críticos? <br />UK - Ualalapi para mim... (e já agora, está entre os cem melhores livros de África, que é uma satisfação para mim e ao mesmo tempo uma honra para Moçambique.) Mas eu olho para A Orgia dos Loucos como sendo o melhor, porque tentei levar a técnica de escrita às ultimas consequências, então é um livro que para mim é tecnicamente superior a Ualalapi. O que é difícil sendo um livro de contos, apesar de Ualalapi serem contos, mas contínuos. <br /> <br />MD - Mas a literatura não é só feita de técnica, vale também pelos conteúdos e do prazer que cria ao leitor. <br />UK - Não só usei a técnica, eu juntei a realidade, falo da burocracia, e mais, lembras-te dos tempos em que se davam enxoval às mães que tinham filhos no dia 1 de Junho, 1 de Janeiro? o esforço que elas faziam para que os bebés nascessem nesse dia? É a realidade, jogada tecnicamente. Mas um livro de contos só nos EUA e poucos outros países tem importância. E para mim esse é o livro de eleição. <br /> <br />MD - E por que tu dizes que a poesia é o máximo e achas que nunca irias conseguir escrever um poema? <br />UK - Poesia! Poesia é uma arte maior. O problema é que muita gente, e eu critico, pensa que poesia é cortar palavras e arrumá-las. Mas a poesia tem qualquer coisa de transcendental em que tu encontras... por exemplo, o Carlos Drummond de Andrade, só para dizer o que era a ditadura no Brasil diz, há uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho há uma pedra... acabou. E tu ali já vês a ditadura. A poesia consegue com imagens, com pequenas palavras; e não é qualquer um que pode chegar lá. Por isso que eu nunca escrevi, fui sempre um copista, para as namoradas, essas coisas. <br /> <br />MD - E tu estás contra esta mania de chamar o romance o género maior comparado ao conto e a poesia. <br />UK - Na minha maneira de pensar são as indústrias editoriais que promovem isso. Escreves um livro de 90 ou 120 páginas, o editor diz: aumenta para 200 páginas, porque quer vender. Mas a poesia ainda se mantém, 500 exemplares, enquanto que os mais prostitutos são os que fazem romances e contos porque devem estar do lado do editor. Mas aquele que aceita o poeta, aceita-o na sua totalidade. <br /> <br />MD - Tu sempre disseste que és um escritor bissexto, e passa muito tempo neste momento sem trabalho novo, então se estivesses inspirado e com material produzido... <br />UK - Mas eu sou dos escritores que escrevem, tenho uma coluna semanal, dou a minha cara em relação a realidade do país, política e outros assuntos. Mas em termo de publicação sou bissexto. Tenho de ruminar. Eu tenho o meu tempo. Não quero entrar na indústria editorial, em que dizem daqui a dois anos tens de tirar um livro. Eu estou num país pobre, tenho de ver as condições da minha vida, minha família. Não sou do tempo do Mallarmé em que viviam na sarjeta e não tinham o que comer. Não estou para ser mendigo para dizer que sou poeta. Já passou isso, era no século 19. A literatura dá não me dinheiro. Olha para os músicos, alguns querem viver da música, no nosso país é impossível e eles têm um handicap, a formação académica que é muita baixa, não têm outro emprego e não se safam. Ou um individuo cria o seu cenário e pode trabalhar ou não... <br /> <br />MD - E tu afirmaste que a literatura é o fim. <br />UK - É sempre o fim. Mas para a literatura ser o fim para mim, tenho de criar todas as condições. Mas, eu viver na sarjeta e dizer que a literatura é o fim, não. Para mim é o objectivo final, mas para esse objectivo final que me persegue todos os dias, eu tenho de criar condições. Se eu digo agora vou jantar, sei que vou. <br /> <br />MD - Mas olhando para a tua vida actual, assumes que estás estável, e que estás em condições para partir para esse fim? <br />UK - Neste momento estou em condições. Nos próximos anos tu vais ver. Eu estou a partir. E parto com uma outra coisa, aquilo que o Pepetela dizia, os intes, intas, entas - eu estou nos quarenta, e já posso dizer eu vivi isto, vi isto, sei isto. Mesmo o próprio Pepetela, dando um exemplo, depois dos quarenta tinha as coisas todas e tem outra base. <br /> <br />MD - Então vem um Khossa mais forte, ainda bem. Mas esse discurso das condições de vida, claro que é incontestável, mas pode ser um subterfúgio. <br />UK - Acho que não é por ser ou não subterfúgio. Eu sou cronista, semanalmente tenho a minha coluna. Eu escrevo. Entrei para a intervenção social há mais de 7 anos. Não é subterfúgio porque a escrita está em mim. Mas o problema é esta mania que existe neste país, os escritores de um só livro são negados. Mas há escritores que se realizam num só livro, onde ele esgota tudo. Por isso agora andam a levantar essa polémica em volta do Luís Bernardo Honwana, que aos 19 anos escreveu um livro belíssimo, Nós Matámos o Cão Tinhoso, e vêm com essa história de plágio, e há outra coisa, porque é um preto que escreveu com aquela idade nos anos 60; e é um livro de marca, por mais que ele não escreva mais nada. Não é um subterfúgio, porque ele fez mais coisas na vida. Mas no meu caso não, é que não consigo viver sem escrever. <br /> <br />MD - Quando e como foi que sentiu a necessidade ou vontade escrever ? <br />UK - Não te posso precisar, mas acima de tudo a necessidade ou vontade de escrever, surgiu através da leitura. Aquilo que o Rolland Barthes sempre disse, eu leio para escrever e não escrevo para ler. Portanto a leitura foi fundamental. A partir de 79/80, nessa altura os livros que tínhamos aqui na praça, pertenciam às bibliotecas e eram poucos livros. Grande parte dos que enchiam as livrarias então existentes eram livros de carácter revolucionário. E nessa altura recorríamos às bibliotecas, e uma das mais recheadas, era na qual eu trabalhava, a do Ministério da Educação. Tinha uma grande colecção de literatura americana - Hemingway, Steinback, Fitzgerald - e também a outra grande literatura, a Russa - Tolstoi, Dostoievski, Tchekov, Pushkini - toda gama de autores clássicos. <br /> <br />MD - Então foi aí onde tiveste a maior influência para escrita <br />U.K - Sim, comecei por ler atentamente os diálogos do Hemingway, mas depois descobri um outro americano, o William Faulkner; aí eu vi que este homem é um homem que faz e vira tudo, principalmente em O Som e a Fúria, onde tu nunca sabes se está no presente ou no futuro. E depois disso surgiu-me a literatura latino-americana... <br /> <br />MD - E como funcionam essas influências na tua escrita? <br />UK - E depois inclinei-me para os Hispano-americanos porque percebi que eles podiam falar do feitiço e toda uma realidade semelhante e extremamente próxima à nossa. E comecei a entrar para o mundo Garcia Marquez, Llosa etc., e todo aquele mundo mágico tinha uma proximidade com o meu mundo, o meu real. E é uma realidade preocupada em contar histórias. E não se preocupa com os dogmas, os racionalismos - onde é impossível alguém nascer com uma cauda de lagarto. E essas são as coisas que a gente ouve aqui na nossa terra. <br /> <br />MD - E a literatura africana? <br />UK - Também li muito autores africanos tais como Sembéne Ousmane, Mongo Beti, Chinua Achebe, Ngugi Wa Thiong'o e outros. Mas o que eu senti é que a geração desses escritores tinha um quê de um realismo político. Porque o neo-colonialismo já estava a entrar e eles rebelavam-se, e havia um contraponto com a realidade socialista. Mas os latino-americanos já ultrapassavam isso, vindo da história e entrando no mágico. Sim, houve o Amos Tutuola, autor de O Bebedor de Vinho de Palma, e acredito que seja da mesma escola do Mia, do Luandino - mas ele na língua inglesa, pois ele perverte o inglês, pelo menos sente-se isso na tradução. <br /> <br />MD - Como vês a literatura moçambicana? <br />UK - Houve diversas fases; a de procura de identidade, em que o Craveirinha para mim é o maior, depois foi o elogio a pátria sem o mínimo de técnica, depois há a fase de contraponto a essa geração. <br /> <br />MD - Que é a tua, do Filimone, Patraquim, Armando, White, Mia... <br />UK - Sim. Mas depois veio um período que foi mais fraco, não digo que houve falta de talento. Aconteceu que antes tínhamos um país de partido único, as bichas, e isso terminou. E isso aconteceu no Brasil, quando terminou a ditadura, os escritores ficaram desorientados. E agora o que vou escrever se sempre escrevi contra? E a geração que aparece aí, até com muito talento ok, mas pouca leitura... e o país tinha mudado; então aí era preciso ter o tempo de ressaca, e os escritores ficaram sete, oito anos à deriva. E os que nascem dentro desse mesmo período ainda não se consolidaram. Escrever sobre o fascismo é muito fácil. Escrever sobre este mundo capitalista, selvagem, é extremamente difícil. <br /> <br />MD - Disseste numa entrevista recente que o que se produzia agora era medíocre. <br />UK - Eu não falo de mediocridade, mas digo que o que se produz agora carece de leitura, primeiro ponto; segundo, é que Maputo é o epicentro, e todo jovem está aqui. Tu vais para fora, vês que os jovens não têm referências nenhumas. E quando falo que há mediocridade neste país, não me estou a fixar a Maputo, porque Maputo chega a ser um centro privilegiado, mas estou a pensar em Chokwé, Lichinga, Nampula, Quelimane, e tu pegas num texto, e vês que um país assim não vai a sítio nenhum <br /> <br />MD - E em relação às obras que estão a sair ultimamente? <br />UK - As obras estão a sair e bem, vocês estão a ocupar um espaço que vos é devido. Só que, enquanto na minha geração os críticos literários estavam no tempo de formação e eles pegavam em nós e faziam ensaios sobre os nossos textos, hoje são doutores e já não vão às páginas dos jornais, estão preocupados em dar aulas e com outras coisas. E estes críticos ao invés de pegarem em Craveirinha e outros consagrados, pegavam em nós que estávamos a nascer... E agora entramos em guerra entre nós escritores a dizer porque tu não falas de mim? Mas eu sou escritor, quem tem de falar é o doutor que estudou literatura, não eu. No nosso tempo havia crítica e é isso o que as pessoas não entendem. <br /> <br />MD - Vocês são uns privilegiados. Nesse tempo havia uma casa da literatura a ser edificada, agora desmoronou tudo, nem o papel da AEMO se faz sentir. Mas há ultimamente discursos dos escritores mais velhos pouco construtivos, na tua última entrevista, disseste categoricamente que tudo que se produzia era medíocre, e isso confundiu as pessoas. Por exemplo, numa outra disseste que entregaste ao Patraquim a primeira versão do Ualalapi e ele chegou a dizer-te que era muito fraco e tinhas de reescrever tudo, mas hoje já não há dessas pessoas, com os mesmos gestos para os jovens escritores... <br />UK - Não, não foi Ualalapi, foi o meu primeiro livro, A Confissão, que era uma série de histórias que ainda o tenho guardado. O Patraquim leu e disse tudo, eu até chorei. Depois dali é que fiz a minha aventura. Não digas que eu não passei mal também, o segundo conto que escrevi, "Dirce Minha Deusa", O Calane da Silva pura e simplesmente não leu, atirou-me à cara e disse que o jornal era para os consagrados e que iriam abrir uma página para putos. Eu chorei e disse ao menos que ele lesse e dissesse que é uma merda. E quando me revolto contra a malta jovem, eles compreendem mal. O que eu acho é que a malta jovem tem de ler mais e nunca se refugiar no sentido de que o livro é caro; e é, mas as bibliotecas não são caras e nós temos bibliotecas. Posso não ter a minha privada. Lembro-me da autobiografia do Mandela estava a 800 contos, acima do salário mínimo, e a gente se emprestava e todos nós lemos. É ao nível da pesquisa que eu falo. E os grandes privilegiados só são daqui, vais para fora de Maputo não há uma única biblioteca. <br /> <br />MD - Apesar de a literatura ser um acto individual, veja que além desses problemas, no vosso tempo havia tertúlias, críticos, e hoje não há, e nem contacto com vocês de uma geração anterior com os novos. <br />UK - Nada. E hoje ficamos numa situação em que sai um livro e ninguém fala. Noutros países, há recensões críticas, de editores... nem editores tens neste país, distribuidores idem. Mas tens indivíduos que podem falar, com formação em literatura e deviam escrever para os jornais. Acho que a crítica deve funcionar, falando dos livros que saem, porque neste momento há muitos talentos. Agora se alguém me pede a minha opinião: tenho as minhas leituras, e a minha escrita obedece à essas leituras, então não posso chegar e dizer este sim este não. Por exemplo para mim a poesia é só o que me entra, e eu posso dizer que gosto disto ou daquilo, mas é muito pessoal. <br /> <br />MD - Qual pensas que é a utilidade da literatura, por exemplo num país como o nosso, ou em Africa onde as pessoas têm tantos problemas. <br />UK - A literatura teve o seu lado positivo nos anos sessenta, na Europa, na época dos Sartre, Gide, Camus, e outros, em que eles intervinham na sociedade, mas hoje tem a sua força, mas a mim não ilude porque não creio que a literatura vá mudar os nossos mundos. Torna-se o nosso campo lúdico, o organicamente instalado. Por exemplo a Natália Correia dizia: A poesia é para se comer. Mas neste nosso espaço dou um certo papel a uma certa intervenção social acoplada à escrita. <br /> <br />MD - Qual é a tua relação com a crítica? <br />UK - É boa e eu devo ser dos escritores mais felizes. Devo ser dos que menos insultos recebi e quando aparece alguma crítica negativa, ou um insulto por aí, eu digo finalmente alguém fala mal de mim. Eu sempre recebi elogios. Há teses por aí. <br /> <br />MD - Nos teus discursos ultimamente fica subjacente que depois de Ualalapi não mais nenhum outro livro em Moçambique <br />UK - Não, não, há livros e há grandes livros. O que acontece com Ualalapi, modéstia a parte, é que entrou na mente das pessoas. Eu era professor de história, fui a tradição oral e desmistifiquei o Ngungunhane. E estou me marimbando se faço outro livro melhor do que esse ou não. <br /> <br />MD - Mas então não há nenhuma guerra com outros escritores... questionas a obra do Mia, das mulheres escritoras... <br />UK - Não, eu falei com o Mia, e disse-lhe que dei uma entrevista, e provavelmente a pessoa que me entrevistou não entendeu. E eu disse-lhe, tu não tens um livro de proa, porque tudo o que estás a escrever circunscreve-se ao mesmo universo, que é o universo da palavra. Tanto Terra Sonâmbula, e que está entre os cem melhores livros de África, e podia ser outro A Varanda de Frangipani por exemplo... e isso no universo lusófono, acontece com o Luandino e a fonte deles todos, o Guimarães Rosa... <br /> <br />MD - Mas o Rosa teve dois livros extraordinários, Sagarana e Grande Sertão: Veredas, e são marcas da literatura brasileira... <br />UK - Mas são livros em que o universo é o da palavra. E agora, ou eles mudam porque aquele universo termina. <br /> <br />MD - Mas o escritor pode ter valor no conjunto da obra, ou então um ou dois títulos, veja-se o G. Rosa, o Garcia Marquez, têm dois livros consagrados e também o conjunto de obra é extraordinário... <br />UK - Mas é o que digo, quando eu digo que o Mia não tem um livro de proa, mas vale pelo conjunto, e não pela singularidade. <br /> <br />Agosto de 2002PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-71323623442610634192009-04-22T12:03:00.000-07:002009-05-06T05:00:05.286-07:00Literatura popular de cordel<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi70orf0XjDUP97WZTviPwjttuxsFoCmJ9K5ke9xwjbH62lww9H0OgNTBQEefpJL2mR7zrcNxoeAnjt9usvpCF3oH_1Zq7rhAktXJczmESOJ-wvb5ar3wrClkm8LyCXUI4Fi1GQrEzh1zc/s1600-h/cordel1.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5330046759138265346" style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; WIDTH: 320px; CURSOR: hand; HEIGHT: 212px" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi70orf0XjDUP97WZTviPwjttuxsFoCmJ9K5ke9xwjbH62lww9H0OgNTBQEefpJL2mR7zrcNxoeAnjt9usvpCF3oH_1Zq7rhAktXJczmESOJ-wvb5ar3wrClkm8LyCXUI4Fi1GQrEzh1zc/s320/cordel1.jpg" border="0" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7Wf0WLlrTgychoii5ihbRuVQXPRevg1OJOCholFG6QdqT2ogE6V9FAqKOt7n8eIgux29QRKXqP7bMqmY30cQl85yiAOU-kz2-ooZnuitOjUHAtPXAC_vEyENcdHyPhcWrnbj7Cvpp4qQ/s1600-h/287-cordel.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5330046753362792482" style="FLOAT: left; MARGIN: 0px 10px 10px 0px; WIDTH: 296px; CURSOR: hand; HEIGHT: 265px" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7Wf0WLlrTgychoii5ihbRuVQXPRevg1OJOCholFG6QdqT2ogE6V9FAqKOt7n8eIgux29QRKXqP7bMqmY30cQl85yiAOU-kz2-ooZnuitOjUHAtPXAC_vEyENcdHyPhcWrnbj7Cvpp4qQ/s320/287-cordel.jpg" border="0" /></a><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br /><br /><br />ANTOLOGIA DE POESIA DE CORDEL<br /><br />A Seca do Ceará<br /><br />(fragmento)<br /><br />Leandro Gomes de Barros<br /><br />Seca as terras as folhas caem,<br /><br />Morre o gado sai o povo,<br /><br />O vento varre a campina,<br /><br />Rebenta a seca de novo;<br /><br />Cinco, seis mil emigrantes<br /><br />Flagelados retirantes<br /><br />Vagam mendigando o pão,<br /><br />Acabam-se os animais<br /><br />Ficando limpo os currais<br /><br />Onde houve a criação.<br /><br />Não se vê uma folha verde<br /><br />Em todo aquele sertão<br /><br />Não há um ente d'aqueles<br /><br />Que mostre satisfação<br /><br />Os touros que nas fazendas<br /><br />Entravam em lutas tremendas,<br /><br />Hoje nem vão mais o campo<br /><br />É um sítio de amarguras<br /><br />Nem mais nas noites escuras<br /><br />Lampeja um só pirilampo.<br /><br />Aqueles bandos de rolas<br /><br />Que arrulavam saudosas<br /><br />Gemem hoje coitadinhas<br /><br />Mal satisfeitas, queixosas,<br /><br />Aqueles lindos tetéus<br /><br />Com penas da cor dos céus.<br /><br />Onde algum hoje estiver,<br /><br />Está triste mudo e sombrio<br /><br />Não passeia mais no rio,<br /><br />Não solta um canto sequer.<br /><br />Tudo ali surdo aos gemidos<br /><br />Visa o espectro da morte<br /><br />Como a nauta em mar estranho<br /><br />Sem direção e sem Norte<br /><br />Procura a vida e não vê,<br /><br />Apenas ouve gemer<br /><br />O filho ultimando a vida<br /><br />Vai com seu pranto o banhar<br /><br />Vendo esposa soluçar<br /><br />Um adeus por despedida.<br /><br />A Festa dos Cachorros<br /><br />(fragmento)<br /><br />José Pacheco<br /><br />Caro leitor se não lestes<br /><br />Mas alguém já vos contou<br />Que nos remotos passados<br />Até barata falou<br />Porém isto foi no tempo<br />Quando o trancoso reinou<br /><br />Eu ainda estou lembrado<br />Que meus bisavós contavam<br />Muitas histórias passadas<br />De quando os bichos falavam<br />Como bem fosse a da festa<br />Quando os cachorros casavam<br /><br />Nesse tempo os animais<br />Era tudo interesseiro<br />Só se casavam com bichas<br />Que os pais tinham dinheiro<br />Tanto que devido a isto<br />Um gato morreu solteiro<br /><br />Contudo sempre viviam<br />Em regimes sociais<br />Respeitando aos governos<br />Nos atos policiais<br />Crendo no catolicismo<br />Conforme a lei de seus pais.<br /><br />Satisfação de Caboclo<br /><br />Constantino Cartaxo<br /><br />(fragmento)<br /><br />Tivemos muita alegria,<br /><br />lhe asseguro, seu Doutô.<br /><br />Nós plantemo, nós plantemo<br /><br />nós vimo a planta nascendo<br /><br />na terra que se abria.<br /><br />Cumé bonito o roçado!<br /><br />Despois que o inverno pegou<br /><br />Foi a lavoura ingrossando,<br /><br />no mei o mato brotando<br /><br />e nós na inxada agarrado.<br /><br />Meus dez fio, meus dez moleque...<br /><br />─ eram dez moleque, dez ─<br /><br />impariado ao meu lado<br /><br />puxando cobra p'rus pés.<br /><br />Chega acho bom rescordá!<br /><br />Eita anozim de fartura!<br /><br />E arrescordando agradeço<br /><br />a nosso Deus das artura.<br /><br />Melancia carreguêmo,<br /><br />deformando os caçuá.<br /><br />Nosso feijão parecia<br /><br />quiném gáia de juá,<br /><br />caruçudo em toda bage.<br /><br />Pé de mi, na roça, quage<br /><br />caía cum seu carrêgo.<br /><br />E o arroz? Vixe, meu nego!<br /><br />Acredite se quizé:<br /><br />Quage um pé num fica impé!<br /><br />A Morte da Natureza<br /><br />Gerardo Carvalho<br /><br />(fragmento)<br /><br />Meu caro leitor amigo<br /><br />Eu agora vou falar<br />Duma triste realidade<br />Que está a me preocupar<br />Pois em nome do "progresso"<br />Que na verdade é um regresso<br />Tão botando é pra matar.<br /><br />Não sei se vai concordar<br /><br />O colega ao me ler<br />Mas é mesmo um tanto triste<br />Quando a gente chegar a ver<br />A fumaça se alastrando<br />E o veneno se espalhando<br />Fazendo o povo morrer...<br /><br />Antes mesmo de nascer<br />Morre um montão de crianças<br />Em Cubatão por exemplo<br />Poucas são as esperanças<br />De se ter vida melhor<br />Sem que aconteça o pior<br />Continuando as matanças!<br /><br />Tudo isso são ganâncias<br />Dos que pensam ser donos<br />Para ganharem dinheiro<br />Deixavam o povo em abandonos<br />Enquanto há cancerosos<br />Estão aí os poderosos<br />Bem sentados nos seus tronos.<br /><br />Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho dos Tucuns<br /><br />PRETINHO -- Sai daí, cego amarelo,<br /><br />Cor de couro de toucinho!<br /><br />Um cego da tua forma<br /><br />Chama-se abusa-vizinho --<br /><br />Aonde eu botar os pés,<br /><br />Cego não bota o focinho!<br /><br />CEGO - Já vi que seu Zé Pretinho<br /><br />É um homem sem ação --<br /><br />Como se maltrata o outro<br /><br />Sem haver alteração?!...<br /><br />Eu pensava que o senhor<br /><br />Tinha outra educação!<br /><br />P. -- Esse cego bruto, hoje,<br /><br />Apanha, que fica roxo!<br /><br />Cara de pão de cruzado,<br /><br />Testa de carneiro mocho --<br /><br />Cego, tu és o bichinho,<br /><br />Que comendo vira o cocho!<br /><br />C. -- Seu José, o seu cantar<br /><br />Merece ricos fulgores;<br /><br />Merece ganhar na saia<br /><br />Rosas e trovas de amores --<br /><br />Mais tarde, as moças lhe dão<br /><br />Bonitas palmas de flores!<br /><br />P. -- Cego, eu creio que tu és<br /><br />Da raça do sapo sunga!<br /><br />Cego não adora a Deus --<br /><br />O deus do cego é calunga!<br /><br />Aonde os homens conversam,<br /><br />O cego chega e resmunga!<br /><br />C. -- Zé Preto, não me aborreço<br /><br />Com teu cantar tão ruim!<br /><br />Um homem que canta sério<br /><br />Não trabalha verso assim --<br /><br />Tirando as faltas que tem,<br /><br />Botando em cima de mim!<br /><br />P. -- Cala-te, cego ruim!<br /><br />Cego aqui não faz figura!<br /><br />Cego, quando abre a boca,<br /><br />É uma mentira,pura --<br /><br />O cego, quanto mais mente,<br /><br />Ainda mais sustenta e jura!<br /><br />C. -- Esse negro foi escravo,<br /><br />Por isso é tão positivo!<br /><br />Quer ser, na sala de branco,<br /><br />Exagerado e altivo --<br /><br />Negro da canela seca<br /><br />Todo ele foi cativo!<br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Manifesto Kordelista de 1982 - Franklin Maxado<br /><br />(leia-o vertikalmente)<br /><br />Nesta data rejistrada,<br />Fazem 60 anos<br />Ke o Mário de Andrade<br />E muitos outros seus manos<br />Instalaram a "Semana<br />de 22", em ke se ufana<br />A revolusão dos planos<br />Nesta Bienal do Livro,<br />Do Kordel, sou pioneiro.<br />Pela terseira vez, mostro<br />O poema brazileiro,<br />Fujindo de alienasões<br />Prokurando afirmasões<br />Pra um saber verdadeiro.<br />Segindo todo trasado<br />Da "Semana Modernista",<br />Devemos nasionalizar<br />Semente kolonialista.<br />Dezenvolver nosas raízes<br />Nos afirmar entre paízes<br />Kom marka personalista.<br />Esta Bienal kanta sete<br />Grandes inteletuais<br />Primeiro, Mário de Andrade,<br />Que, do Kordel, tirou az:<br />O anti-eroi "Macunaima".<br />Estudou a sua rima<br />Em traballos majistrais<br />Carlos Drummond de Andrade<br />É o outro omenajeado ...<br />Um dos maiores da Língua<br />E ke é afisionado<br />Da leitura de Kordel<br />E ke só não é menestrel<br />Porke é noso maior bardo<br />O terseiro é nordestino<br />E se diz um narrodor<br />Das estórias do seu povo<br />Ke ouve kom todo amor<br />É Jorge Amado, kerido<br />No mundo é traduzido<br />Kom romanses de valor<br />O Brazil fez sua Bíblia<br />Kom o livro "Os Sertões",<br />Porke Euclides da Cunha<br />Deskreveu poetasões,<br />Pois mostrou o nordestino,<br />Omem sagaz, mas franzino,<br />Exposto a inkonpreensões.<br />Monteiro Lobato fez<br />Um Kordel para o matuto,<br />O "Jeca Tato", doente,<br />Mas brszileiro astuto.<br />E a obra de Lobato<br />Merese todo aparato<br />Pra se divulgar seu kulto<br />Mas outro paulista merese<br />Louvasões da Bienal.<br />É o Menotti del Picchia,<br />Ke viu a vida rural.<br />Eskreveu o "Juca Mulato",<br />Um kaipira do mato,<br />Sua obra principal<br />O sétimo a reseber<br />Atensões, é Graciliano,<br />De nome Ramos firmado,<br />Nasido alagoano.<br />Eskreveu sem piegismo<br />Dentro do rejionalismo<br />Sobre seka e seu dano.<br />E, aki, no manifesto,<br />Dou valor ao kordelista.<br />Poso até não ser poeta,<br />Mas sinto o seu artista.<br />Gravador ou glozador,<br />Violero ou kantador,<br />Trovador ou repentista.<br />Do Kordel vamos pro mundo,<br />Sem komplexo ou problema,<br />Sem mendigar as migallas<br />Do bankete do sistema<br />Tekinológico dos grandes.<br />Daki, subamos aos Andes<br />E vensamos o dilema<br />Se o "poder vem do povo"<br />E se o povo é kem faz<br />A Língua ke nós falamos,<br />Não kero ser mais lokuaz,<br />Por uma Nasão popular!<br />Pela kultura do lugar!<br />E ke tudo seja "Braz"!<br /><br /><br /><br />Sejamos kordelenses - (por um Kordel<br />recifense);<br /><br />Sejamos kordelinos - (por um Kordel<br />nordestino);<br /><br />Sejamos kordeleiros - (por um Kordel<br />brazileiro);<br /><br />Sejamos kordelianos - (por um Kordel<br />amerikano);<br /><br />Sejamos kordeliais - (por um Kordel<br />internasional);<br /><br />Sejamos kordelistas - (por um Kordel<br />kosmopolita).<br /><br /><br />São Paolo, S.P., VII Bienal Internacional<br />do Livro, 19 a 29 de agosto de 1982.<br /><br />Franklin MAXADO<br /><br /><br /><br /><br />* Eskrito dentro de noso<br />projeto ortografiko-fonético<br />para a Língua Portugeza<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />A Chegada de Lampião no Inferno - José Pacheco<br /><br /><br />Um cabra de Lampião<br />por nome Pilão Deitado<br />que morreu numa trincheira<br />um certo tempo passado<br />agora pelo sertão<br />anda correndo visão<br />fazendo mal-assombrado.<br /><br />E foi quem trouxe a notícia<br />que viu Lampião chegar<br />o inferno nesse dia<br />faltou pouco pra virar<br />incendiou-se o mercado<br />morreu tanto cão queimado<br />que faz pena até contar<br /><br />Morreu a mãe de Canguinha<br />o pai de Forrobodó<br />cem netos de Parafuso<br />um cão chamado Cotó<br />escapuliu Boca Insossa<br />e uma moleca moça<br />quase queimava o totó<br /><br />Morreram cem negros velhos<br />que não trabalhavam mais<br />um cão chamado Traz Cá<br />Vira-Volta e Capataz<br />Tromba Suja e Bigodeira<br />um cão chamado Goteira<br />cunhado de Satanás.<br /><br />Vamos tratar da chegada<br />quando Lampião bateu<br />um moleque ainda moço<br />no portão apareceu:<br />Quem é você, cavalheiro?<br />Moleque, eu sou cangaceiro:<br />Lampião lhe respondeu.<br /><br />- Moleque, não; sou vigia<br />e não sou seu parceiro<br />e você aqui não entra<br />sem dizer quem é primeiro:<br />- Moleque, abra o portão<br />saiba que sou Lampião<br />assombro do mundo inteiro.<br /><br />Então esse tal vigia<br />que trabalha no portão<br />dá pisa que voa cinza<br />não procura distinção<br />o negro, escreveu não leu<br />o macaíba comeu<br />lá não se usa perdão.<br /><br />O vigia disse assim:<br />fique fora que eu entro<br />vou conversar com o chefe<br />no gabinete do centro<br />por certo ele não lhe quer<br />mas conforme o que disser<br />eu levo o senhor pra dentro.<br /><br />Lampião disse: vá logo<br />quem conversa perde hora<br />vá depressa e volte já<br />eu quero pouca demora<br />se não me derem ingresso<br />eu viro tudo as avesso<br />toco fogo e vou embora.<br /><br />O vigia foi e disse<br />a Satanás no salão:<br />saiba vossa senhoria<br />que aí chegou Lampião<br />dizendo que quer entrar<br />e eu vim lhe perguntar<br />se dou-lhe ingresso ou não.<br /><br />- Não senhor, Satanás disse<br />vá dizer que vá embora<br />só me chega gente ruim<br />eu ando muito caipora!<br />eu já estou com vontade<br />de botar mais da metade<br />dos que tem aqui pra fora.<br /><br />- Lampião é um bandido<br />ladrão da honestidade<br />só vem desmoralizar<br />a nossa propriedade<br />e eu não vou procurar<br />sarna pra me coçar<br />sem haver necessidade.<br /><br />Disse o vigia: patrão<br />a coisa vai arruinar<br />eu sei que ele se dana<br />qunado não puder entrar<br />Satanás disse: isso é nada<br />convide aí a negrada<br />e leve os que precisar<br /><br />- Leve cem dúzias de negros<br />entre homem e mulher<br />vá lá na loja de ferragem<br />tire as armas que quiser<br />é bom avisar também<br />pra vir os negros que tem<br />mais compadre de Lúcifer<br />E reuniu-se a negrada<br />primeiro chegou Fuchico<br />com o bacamarte velho<br />gritando por Cão de Bico<br />que trouxesse o pau da prensa<br />e fosse chamar Tangença<br />em casa de Maçarico.<br /><br />E depois chegou Cambota<br />endireitando o boné<br />Formigueiro e Trupe-Zupe<br />e o crioulo Quelé<br />chegou Caé e Pacáia<br />Rabisca e Cordão de Saia<br />e foram chamar Bazé.<br /><br />Veio uma diaba moça<br />com a calçola de meia<br />puxou a vara da cerca<br />dizendo: a coisa está feia<br />hoje o negócio se dana!<br />E gritou: êta baiana<br />agora a ripa vadeia!<br /><br />E saiu a tropa armada<br />em direção do terreiro<br />com faca, pistola e facão<br />clavinote e granadeiro<br />uma negra também vinha<br />com a trempe da cozinha<br />e o pau de bater tempero.<br /><br />Quando Lampião deu fé<br />da tropa negra encostada<br />disse: só na Abissínia<br />oh! tropa preta danada!<br />o chefe do batalhão<br />gritou de arma na mão;<br />- Toca-lhe fogo, negrada!<br /><br />Nessa voz ouviu-se tiros<br />que só pipoca no caco<br />Lampião pulava tanto<br />que parecia um macaco<br />tinha um negro neste meio<br />que durante o tiroteio<br />brigou tomando tabaco.<br /><br />Acabou-se o tiroteio<br />por falta de munição<br />mas o cacete batia<br />negro rolava no chão<br />pau e pedra que achavam<br />era o que as mãos pegavam<br />sacudiam em Lampião.<br /><br />- Chega traz um armamento!<br />(assim gritava o vigia)<br />traz a pá de mexer doce<br />lasca os ganchos de caria<br />traz um bilro de Macau<br />corre, vai buscar um pau<br />na cerca da padaria!<br /><br />Lúcifer mais Satanás<br />vieram olhar do terraço<br />todos contra Lampião<br />de cacete, faca e braço<br />o comandante no grito<br />dizia: briga bonito<br />negrada, chega-lhe o aço!<br /><br />Lampião pôde apanhar<br />uma caveira de boi<br />sacudiu na testa dum<br />ele só fez dizer: oi!...<br />Ainda correu dez braças<br />e caiu enchendo as calças<br />mas eu não sei dizer o que foi.<br /><br />Estava travada a luta<br />duma hora fazia<br />a poeira cobria tudo<br />negro embolava e gemia<br />porém Lampião ferido<br />ainda não tinha sido<br />devido a grande energia.<br /><br />Lampião pegou um seixo<br />e rebolou-o num cão<br />mos o que: arrebentou<br />a vidraça do oitão<br />saiu fogo azulado<br />incendiou o mercado<br />e o armazém de algodão.<br /><br />Satanás com esse incêndio<br />tocou no búzio chamando<br />correram todos os negros<br />que se achavam brigando<br />Lampião pegou a olhar<br />não vendo com quem brigar<br />também foi se retirando.<br /><br />Houve grande prejuízo<br />no inferno nesse dia<br />queimou-se todo dinheiro<br />que Satanás possuía<br />queimou-se o livro de pontos<br />perdeu-se vinte mil contos<br />somente em mercadoria.<br /><br />Reclamava Lucifer:<br /><br />horror mais não precisa<br />os anos ruins de safra<br />agora mais esta pisa<br />se não houver bom inverno<br />tão cedo aqui no inferno<br />ninguém compra uma camisa.<br /><br />Leitores, vou terminar<br />tratando de Lampião<br />muito embora que não possa<br />vou dar a explicação<br />no inferno não ficou<br />no céu também não entrou<br />por certo está no sertão.<br /><br />Quem dúvida desta história<br />pensar que não foi assim<br />querer zombar do meu sério<br />não acreditando em mim<br />vá comprar papel moderno<br />escreva para o inferno<br />mande saber de Caim<br /><br />.<br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />As Proezas de João Grilo<br /><br /><br />João Martins de Athayde<br /><br />João Grilo foi um cristão<br />que nasceu antes do dia<br />criou-se sem formosura<br />mas tinha sabedoria<br />e morreu depois da hora<br />pelas artes que fazia.<br /><br />E nasceu de sete meses<br />chorou no bucho da mãe<br />quando ela pegou um gato<br />ele gritou: não me arranhe<br />não jogue neste animal<br />que talvez você não ganhe.<br /><br />Na noite que João nasceu<br />houve um eclipse na lua<br />e detonou um vulcão<br />que ainda continua<br />naquela noite correu<br />um lobisome na rua.<br /><br />Porém João Grilo criou-se<br />pequeno, magro e sambudo<br />as pernas tortas e finas<br />e boca grande e beiçudo<br />no sítio onde morava<br />dava notícia de tudo.<br /><br />João perdeu o seu pai<br />com sete anos de idade<br />morava perto de um rio<br />Ia pescar toda tarde<br />um dia fez uma cena<br />que admirou a cidade.<br /><br />O rio estava de nado<br />vinha um vaqueiro de fora<br />perguntou: dará passagem?<br />João Grilo disse: inda agora<br />o gadinho do meu pai<br />passou com o lombo de fora.<br /><br />O vaqueiro bota o cavalo<br />com uma braça deu nado<br />foi sair já muito embaixo<br />quase que morre afogado<br />voltou e disse ao menino:<br />você é um desgraçado.<br /><br />João Grilo foi ver o gado<br />pra provar aquele ato<br />veio trazendo na frente<br />um bom rebanho de pato<br />os pássaros passaram n"água<br />João provou que era exato.<br /><br />Um dia a mãe de João Grilo<br />foi buscar água à tardinha<br />deixando João Grilo em casa<br />e quando deu fé, lá vinha<br />um padre pedindo água<br />nessa ocasião não tinha<br /><br />João disse; só tem garapa;<br />disse o padre; donde é?<br />João Grilo lhe respondeu;<br />é do engenho catolé;<br />disse o padre: pois eu quero;<br />João levou uma coité.<br /><br />O padre bebeu e disse:<br />oh! que garapa boa!<br />João Grilo disse: quer mais?<br />o padre disse: e a patroa<br />não brigará com você?<br />João disse: tem uma canoa.<br /><br />João trouxe uma coité<br />naquele mesmo momento<br />disse ao padre: beba mais<br />não precisa acanhamento<br />na garapa tinha um rato<br />tava podre e fedorento.<br /><br />O padre disse: menino<br />tenha mais educação<br />e por que não me disseste?<br />oh! natureza do cão!<br />pegou a dita coité<br />arrebentou-a no chão.<br /><br />João Grilo disse: danou-se!<br />misericórdia, São Bento!<br />com isto mamãe se dana<br />me pague mil e quinhentos<br />essa coité, seu vigário,<br />é de mamãe mijar dentro!<br /><br />O padre deu uma popa<br />disse para o sacristão:<br />esse menino é o diabo<br />em figura de cristão!<br />meteu o dedo na goela<br />quase vomita um pulmão.<br /><br />João Grilo ficou sorrindo<br />pela cilada que fez<br />dizendo: vou confessar-me<br />no dia sete do mês<br />ele nunca confessou-se<br />foi essa a primeira vez.<br /><br />João Grilo tinha um costume<br />pra toda parte que ia<br />era alegre e satisfeito<br />no convívio de alegria<br />João Grilo fazia graça<br />que todo mundo sorria.<br /><br />Num dia de sexta-feira<br />às cinco horas da tarde<br />João Grilo disse: hoje à noite<br />eu assombro aquele padre<br />se ele não perdoar-me<br />na igreja há novidade.<br /><br />pegou uma lagartixa<br />amarrou pelo gogó<br />botou-a numa caixinha<br />no bolso do paletó<br />foi confessar-se João Grilo<br />com paciência de Jó.<br /><br />Às sete horas da noite<br />foi ao confessionário<br />fez logo o pelo sinal<br />posto nos pés do vigário<br />o padre disse: acuse-se;<br />João disse o necessário.<br /><br />Eu sou aquele menino<br />da garapa e do coité;<br />o padre disse: levante-se<br />que já sei você quem é;<br />João tirou a lagartixa<br />Soltou-a junto do pé.<br /><br />A largatixa subiu<br />por debaixo da batina<br />entrou na perna da calça<br />tornou-se feia a buzina<br />o padre meteu os pés<br />arrebentou a cortina.<br /><br />Jogou a batina fora<br />naquela grande fadiga<br />a lagartixa cascuda<br />arranhando na barriga<br />João Grilo de lá gritava:<br />Seu padre, Deus lhe castiga!<br /><br />O padre impaciente<br />naquele turututu<br />saltava pra todo lado<br />que parecia um timbu<br />terminou tirando as calças<br />ficou o esqueleto nu.<br /><br />João disse: padre é homem<br />pensei que fosse mulher<br />anda vestido de saia<br />não casa porque não quer<br />isso é que é ser caviloso<br />cara de matar bebê.<br /><br />O padre disse João Grilo<br />vai-te daqui infeliz!<br />João Grilo disse bravo<br />ao vigário da matriz:<br />é assim que ele me paga<br />o benefício que fiz?<br /><br />João Grilo foi embora<br />o padre ficou zangado<br />João Grilo disse: ora sebo<br />eu não aliso croado<br />vou vingar-me duma raiva<br />que eu tive ano passado.<br /><br />No subúrbio da cidade<br />morava um português<br />vivia de vender ovos<br />justamente nesse mês<br />denunciou de João Grilo<br />pelas artes que ele fez.<br /><br />João encontrou o português<br />com a égua carregada<br />com duas caixas de ovos<br />João disse-lhe: oh camarada<br />quero dizer à tua égua<br />Uma pequena charada.<br /><br />o português disse: diga;<br />João chegou bem no ouvido<br />com a ponta do cigarro<br />soltou-a dentro escondido<br />a égua meteu os pés<br />foi temeroso estampido.<br /><br />derrubou o português<br />foi ovos pra todo lado<br />arrebentou a cangalha<br />ficou o chão ensopado<br />o português levantou-se<br />tristonho e todo melado.<br /><br />O português perguntou:<br />o que foi que tu disseste<br />que causou tanto desgosto<br />a este anima agreste?<br />- Eu disse que a mãe morreu;<br />o português respondeu:<br />Oh égua besta da peste!<br /><br />João Grilo foi à escola<br />com sete anos de idade<br />com dez anos ele saiu<br />por espontânea vontade<br />todos perdiam pra ele<br />outro Grilo como aquele<br />perdeu-se a propriedade.<br /><br />João Grilo em qualquer escola<br />chamava o povo atenção<br />passava quinau nos mestres<br />nunca faltou com a lição<br />era um tipo inteligente<br />no futuro e no presente<br />João dava interpretação.<br /><br />um dia perguntou ao mestre:<br />o que é que Deus não vê<br />o homem vê a qualquer hora<br />disse ele: não pode ser<br />pois Deus vê tudo no mundo<br />em menos de um segundo<br />de tudo pode saber.<br /><br />João Grilo disse: qual nada<br />que dê os elementos seus?<br />abra os olhos, mestre velho<br />que vou lhe mostrar os meus<br />seus estudos se consomem<br />um homem vê outro homem<br />só Deus não vê outro Deus.<br /><br />João Grilo disse: seu mestre<br />me diga como se chama<br />a mãe de todas as mães<br />tenha cuidado no drama<br />o mestre coça a cabeça<br />disse: antes que me esqueça<br />vou resolver o programa.<br /><br />- A mãe de todas as mães<br />é Maria Concebida;<br />João Grilo disse: eu protesto<br />antes dela ser nascida<br />já esta mãe existia<br />não foi a Virgem Maria<br />oh! que resposta perdida.<br /><br />João Grilo disse depois<br />num bonito português;<br />a mãe de todas as mães<br />já disse e digo outra vez<br />como a escritura ensina<br />é a natureza divina<br />que tudo criou e fez.<br /><br />- Me responde, professor<br />entre grandes e pequenos<br />quero que fique notável<br />por todos nossos terrenos<br />responda com rapidez<br />como se chama o mês<br />que a mulher fala menos?<br /><br />Este mês eu não conheço<br />quem fez esta taboada?<br />João Grilo lhe respondeu:<br />ora sebo, camarada<br />pra mim perdeu o valor<br />tem nome de professor<br />mas não conhece de nada<br /><br />- Este mês é fevereiro<br />por todos bem conhecido<br />só tem vinte e oito dias<br />o tempo mais resumido<br />entre grandes e pequenos<br />é o que a mulher fala menos<br />mestre, você tá perdido.<br /><br />- Seu professor, me responda<br />se algum tempo estudou<br />quem serviu a Jesus Cristo<br />morreu e não se salvou<br />no dia em que ele morreu<br />seu corpo urubu comeu<br />e ninguém o sepultou?<br /><br />- Não conheço quem é esse<br />porque nunca vi escrito;<br />João Grilo lhe respondeu:<br />foi o jumento, está dito<br />que a Jesus Cristo servia<br />na noite em que ele fugia<br />de Belém para o Egito.<br /><br />João Grilo olhou para o lado<br />disse para o diretor<br />este mestre é um quadrado<br />fique sabendo o senhor<br />sem dúvida exame não fez<br />o aluno desta vez<br />ensinou ao professor.<br /><br />João Grilo foi para casa<br />encontrou sua mãe chorando<br />ele então disse: mamãe<br />não está ouvindo eu cantando?<br />não chore, cante mais antes<br />pois o seu filho garante<br />pra isso vive estudando .<br /><br />A mãe de João Grilo disse:<br />choro por necessidade<br />sou uma pobre viúva<br />e tu de menor idade<br />até da escola saíste...<br />João disse: ainda existe<br />o mesmo Deus de bondade.<br /><br />- A senhora pensa em carne<br />de vinte mil réis o quilo<br />ou talvez no meu destino<br />que à força hei de segui-lo<br />não chore, fique bem certa<br />a senhora só se aperta<br />quando matarem João Grilo.<br /><br />João então chegou no rio<br />às cinco horas da tarde<br />passou até nove horas<br />porém inda foi debalde<br />na noite triste e sombria<br />João Grilo sem companhia<br />voltava sem novidade.<br /><br />Chegando dentro da mata<br />ouviu lá dentro um gemido<br />dois lobos devoradores<br />o caminho interrompido<br />e trepou-se num pinheiro<br />como era forasteiro<br />ficou ali escondido.<br /><br />Os lobos foram embora<br />e João não quis descer<br />disse: eu dormirei aqui<br />suceda o que suceder<br />eu hoje imito arapuan<br />só vou embora amanhã<br />quando o dia amanhecer.<br /><br />O Grilo ficou trepado<br />temendo lobos e leões<br />pensando na fatal sorte<br />e recordando as lições<br />que na escola estudou<br />quando de súbito chegou<br />uns quatro ou cinco ladrões.<br /><br />Eram uns ladrões de Meca<br />que roubavam no Egito<br />se ocultavam na mata<br />naquele bosque esquisito<br />pois cada um de per si<br />que vinha juntar-se ali<br />pra ver quem era perito.<br /><br />O capitão dos ladrões<br />disse: não fala ninguém?<br /><br />um respondeu; não senhor<br />disse ele: muito bem<br />cuidado não roubem vã<br />vamos juntar-nos amanhã<br />na capela de Belém.<br /><br />Lá partiremos o dinheiro<br />pois aqui tudo é graúdo<br />temos um roubo a fazer<br />desde ontem que estudo<br />mas já estou preparado;<br />e o Grilo lá trepado<br />calado escutando tudo.<br /><br />Os ladrões foram embora<br />depois da conversação<br />João Grilo ficou ciente<br />dizendo a seu coração:<br />se Deus ajudar a mim<br />acabou-se o tempo ruim<br />sou eu quem ganho a questão.<br /><br />João Grilo desceu da árvore<br />quando o dia amanheceu<br />mas quando chegou em casa<br />não contou o que se deu<br />furtou um roupão de malha<br />vestiu, fez uma mortalha<br />lá no mato se escondeu.<br /><br />À noite foi pra capela<br />por detrás da sacristia<br />vestiu-se com a mortalha<br />pois na capela jazia<br />sempre com a porta aberta<br />João pensou na certa<br />colher o que pretendia.<br /><br />Deitou-se lá num caixão<br />que enterravam defunto<br />João Grilo disse: eu aqui<br />vou ganhar um bom presunto;<br />os ladrões foram chegando<br />e João Grilo observando<br />sem pensar em outro assunto.<br /><br />Acenderam um farol<br />penduraram numa cruz<br />foram contar o dinheiro<br />no claro deu uma luz<br />João Grilo de lá gritou:<br />esperem por mim que eu vou<br />com as ordens de Jesus!<br /><br />Os ladrões dali fugiram<br />quando viram a alma em pé<br />João Grilo ficou com tudo<br />disse: já sei como é nada<br />no mundo me atrasa<br />agora vou para casa<br />tomar um rico café.<br /><br />Chegou e disse: mamãe<br />morreu nossa precisão<br />o ladrão que rouba outro<br />tem cem anos de perdão;<br />contou o que tinha feito<br />disse a velha: está direito<br />vamos fazer refeição.<br /><br />Bartolomeu do Egito<br />foi um rei de opinião<br />mandou convidar João Grilo<br />pra uma adivinhação<br />João Grilo disse: eu vou;<br />no outro dia embarcou<br />para saudar o sultão.<br /><br />João Grilo chegou na corte<br />cumprimentou o sultão<br />disse: pronto, senhor rei<br />(deu-lhe um aperto de mão)<br />com calma e maneira doce<br />o sultão admirou-se<br />da sua disposição.<br /><br />O sultão pergunta ao Grilo;<br />de onde você saiu?<br />aonde você nasceu?<br />João fitou ele e sorriu<br />- Sou deste mundo d"agora<br />nasci na ditosa hora<br />em que minha mãe me pariu.<br /><br />- João Grilo, tu adivinha?<br />o Grilo respondeu: não<br />eu digo algumas coisas<br />conforme a ocasião<br />quem canta de graça é galo<br />cangalha só pra cavalo<br />e sêca só no sertão.<br /><br />_ Eu tenho doze perguntas<br />pra você me responder<br />no prazo de 15 dias<br />escute o que vou dizer<br />veja lá como se arruma<br />é bastante faltar uma<br />tá condenado a morrer.<br /><br />João Grilo disse: estou pronto<br />pode dizer a primeira<br />se acaso sair-me bem<br />venha a segunda e a terceira<br />venha a quarta e a quinta<br />talvez o Grilo não minta<br />diga até a derradeira.<br /><br />Perguntou: qual o animal<br />que mostra mais rapidez<br />que anda de quatro pés<br />de manhã por sua vez<br />ao meio-dia com dois<br />passando disto depois<br />à tarde anda com três?<br /><br />O Grilo disse: é o homem<br />que se arrasta pelo chão<br />no tempo que engatinha<br />depois toma posição<br />anda em pé e bem seguro<br />mas quando fica maduro<br />faz três pés com o bastão.<br /><br />O sultão maravilhou-se<br />com sua resposta linda<br />João disse: pergunte outra<br />vou ver se respondo ainda;<br />a segunda o sultão fez<br />João Grilo daquela vez<br />celebrizou sua vinda.<br /><br />- Grilo você me responda<br />em termos bem divididos<br />uma cova bem cavada<br />doze mortos estendidos<br />e todos mortos falando<br />cinco vicos passeando<br />trabalham com três sentidos.<br /><br />- Esta cova é a viola<br />com primo, baixo e bordão<br />mortas são as doze cordas<br />quando canta um cidadão<br />canta, toca, faz um verso<br />cinco vicos num progresso<br />os cinco dedos da mão.<br /><br />Houve uma salva de palmas<br />com vivas que retumbou<br />o sultão ficou suspenso<br />seu viva também bradou<br />e depois pediu silêncio<br />com outro desejo imenso<br />a terceira perguntou.<br /><br />- João Grilo, qual é a coisa<br />que eu mandei carregar<br />primeiro dia e segundo<br />no terceiro fui olhar<br />quase dá-me a tiririca<br />se tirar, mais grande fica<br />não míngua, faz aumentar?<br /><br />- Senhor rei, sua pergunta<br />parece me fazer guerra<br />um Grilo não tem saber<br />criado dentro da serra<br />mas digo pra quem conhece<br />o que tirando mais cresce<br />é um buraco na terra.<br /><br />João Grilo vou terminar<br />as perguntas do tratado<br />o Grilo disse; pergunte<br />quero ficar descansado<br />disse o rei: é muito exato<br />o que é que vem do alto<br />cai em pé, corre deitado?<br /><br />- Aquele que cai em pé<br />e sai correndo pelo chão<br />será uma grande chuva<br />nos barros de um sertão;<br />o rei disse: muito bem<br />no mundo inteiro não tem<br />outro Grilo como João.<br /><br />- João Grilo, você bebe?<br />João disse: bebo um pouquinho<br />e disse; eu não sou filho<br />de Baco que fez o vinho<br />o meu pai morreu bebendo<br />e eu o que estou fazendo?<br />sigo no mesmo caminho.<br /><br />O rei disse: João Grilo<br />beber é cousa ruim;<br />o Grilo respondeu: qual<br />o meu pai dizia assim:<br />na casa de seu Henrique<br />zelam bem um alambique<br />melhor do que um jardim.<br /><br />O rei disse: João Grilo<br />tua fama é um estrondo<br />João Grilo disse: eu sabendo<br />o que perguntar respondo;<br />disse o rei enfurecido;<br />o que tem o pé comprido<br />e faz o rastro redondo?<br /><br />- Senhor rei, tenho lembrança<br />do tempo da minha avó<br />que ela tinha um compasso<br />na caixa do bororó<br />como este eu também ando<br />fazendo o rastro redondo<br />andando com uma perna só.<br /><br />- João, qual é o bicho<br />que passa pela campina<br />a qualquer hora da noite<br />andando de lamparina?<br />é um pequeno animal<br />tem luz artificial;<br />veja o que determina.<br /><br />- Esse bicho eu já vi<br />pois eu tinha de costume<br />de brincar sempre com ele<br />minha mãe tinha ciúme<br />ele andava pelo campo<br />uns chamavam pirilampo<br />e outros de vagalume.<br /><br />O rei já tinha esgotado<br />a sua imaginação<br />não achou uma pergunta<br />que interrompesse a João<br />disse: me responda agora<br />qual é o olho que chora<br />sem haver consolação?<br /><br />O Grilo então respondeu:<br />lá muito perto da gente<br />tem um outeito importante<br />um moó muito doente<br />suas lágrimas têm paladar<br />quem não deixa de chorar<br />é olho d"água de vertente.<br /><br />o rei inventou um truque<br />do jeito que lhe convinha<br />- Vou arrumar uma cilada<br />ver se João adivinha;<br />mandou vir um alçapão<br />fez outra adivinhação<br />escondeu uma bacurinha.<br /><br />- João, o que é que tem<br />dentro desse alçapão?<br />se não disser o que é<br />é morto não tem perdão;<br />João Grilo lhe respondeu:<br />quem mata um como eu<br />não tem dó no coração.<br /><br />João lhe disse: esse objeto<br />nem é manso nem é brabo<br />nem é grande nem pequeno<br />nem é santo nem é diabo<br />bem que mamãe me dizia<br />que eu ainda caía<br />onde a porca torce o rabo.<br /><br />Trouxeram uma bandeja<br />ornada com muitas flores<br />dentro dela uma latinha<br />cheia de muitos fulgores<br />o rei lhe disse: João Grilo<br />é este o último estrilo<br />que rebenta tuas dores.<br /><br />João Grilo desta vez<br />passou na última estica<br />adivinhar uma coisa<br />nojenta que se pratica<br />fugir da sorte mesquinha<br />pois dentro da lata tinha<br />um pouquinho de xinica.<br /><br />O rei disse: João Grilo<br />veja se escapa da morte;<br />o que tem nessa latinha?<br />responda se tiver sorte;<br />toda aquela populaça<br />queria ver a desgraça<br />do Grilo franzino e forte.<br /><br />Minha mãe profetizou<br />que o futuro é minha perda<br />"Dessas adivinhações<br />brevemente você herda;"<br />faz de conta que já vi<br />como está hoje aqui<br />parece que dá em merda.<br /><br />O rei achou muita graça<br />nada teve o que fazer<br />João Grilo ficou na corte<br />com regozijo e prazer<br />gozando um bom paladar<br />foi comer sem trabalhar<br />desta data até morrer.<br /><br />E todas as questões do reino<br />era João que deslindava<br />qualquer pergunta difícil<br />ele sempre decifrava<br />julgamentos delicados<br />problemas muito enrascados<br />era João que desmanchava.<br /><br />Certa vez chegou na corte<br />um mendigo esfarrapado<br />com uma mochila nas costas<br />dois guardas de cada lado<br />seu rosto cheio de mágoa<br />os olhos vertendo água<br />fazia pena o coitado.<br /><br />Junto dele estava um duque<br />que veio denunciar<br />dizendo que o mendigo<br />na prisão ia morar<br />por nãp pagar a despesa<br />que fizera com afoiteza<br />sem ninguém lhe convidar.<br /><br />João Grilo disse ao mendigo:<br />e como é, pobretão<br />que se faz uma despesa<br />sem ter no bolso um tostão?<br />me conte todo o passado<br />depois de ter-lhe escutado<br />lhe darei razão ou nào.<br /><br />Disse o mendigo: sou pobre<br />e fui pedir uma esmola<br />na casa do senhor duque<br />e levei minha sacola<br />quando cheguei na cozinha<br />vi cozinhando galinha<br />numa grande caçarola.<br /><br />- Como a comida cheirava<br />eu tive apetite nela<br />tirei um taco de pão<br />e marchei prolado dela<br />e sem pensar na desgraça<br />botei o pão na fumaça<br />que saía da panela.<br /><br />- O cozinheiro zangou-se<br />chamou logo seu senhor<br />dizendo que eu roubara<br />da comida seu d\sabor<br />só por eu ter colocado<br />um taco de pão mirrado<br />aproveitando o vapor.<br /><br />- Por isso fui obrigado<br />a pagar esta quantia<br />como não tive dinheiro<br />o duque por tirania<br />mandou trazer-me escoltado<br />pra depois de ser julgado<br />ser posto na enxovia.<br /><br />João Grilo disse: está bom<br />não precisa mais falar;<br />então pergunto ao duque:<br />quanto o homem vai pagar?<br />- Cinco coroas de prata<br />ou paga ou vai pra chibata<br />não lhe deve perdoar.<br /><br />João Grilo tirou do bolso<br />a importância cobrada<br />na mochila do mendigo<br />deixou-a depositada<br />e disse para o mendigo:<br />balance a mochila, amigo<br />pro duque ouvir a zoada.<br /><br />O mendigo sem demora<br />fez como o Grilo mandou<br />pegou sua mochilinha<br />com a prata balançou<br />sem compreender o truque<br />bem no ouvido do duque<br />o dinheiro tilintou.<br /><br />Dise o duque enfurecido:<br />mas não recebi o meu;<br />diz o Grilo: sim senhor<br />e isto foi o que valeu<br />deixe de ser batoteiro<br />o tinido do dinheiro<br />o senhor já recebeu.<br /><br />- Você diz que o mendigo<br />por ter provado o vapor<br />foi mesmo que ter comido<br />seu manjar e seu sabor<br />pois também é verdadeiro<br />que o tinir do dinheiro<br />represente seu valor.<br /><br />Virou-se para o mendigo<br />e disse: estás perdoado<br />leva o dinheiro que dei-te<br />vai pra casa descansado;<br />o duque olhou para o Grilo<br />depois de dar um estrilo<br />saiu por ali danado.<br /><br />A fama então de João Grilo<br />foi de nação em nação,<br />por sua sabedoria<br />e por seu bom coração<br />sem ser por ele esperado<br />um dia foi convidado<br />pra visitar um sultão.<br /><br />O rei daquele país<br />quis o reino embandeirado<br />pra receber a visita<br />do ilustre convidado<br />o castelo estava em flores<br />cheios de grandes fulgores<br />ricamente engalanado.<br /><br />As damas da alta côrte<br />trajavam decentemente<br />toda côrte imperial<br />esperava impaciente<br />ou por isso ou por aquilo<br />para conhecer João Grilo<br />figura tão eminente.<br /><br />Afinal chegou João Grilo<br />no reinado do sultão<br />quando ele entrou na côrte<br />foi grande decepção<br />de paletó remendado<br />sapato velho furado<br />nas costas um matulão.<br /><br />O rei disse: não é ele<br />pois assim já é demais!<br />João Grilo pediu licença<br />mostrou-lhe as credenciais<br />embora o rei não gostasse<br />mandou que ele ocupasse<br />os aposentos reais.<br /><br />Só se ouvia cochichos<br />que vinham de todo lado<br />as damas então diziam<br />é esse o homem falado?<br />duma pobreza tamanha<br />e ele nem se acanha<br />de ser nosso convidado!<br /><br />Até os membros da côrte<br />diziam num tom chocante:<br />pensava que o João Grilo<br />fosse um tipo elegante<br />mas nos manda um remendado<br />sem roupa esfarrapado<br />um maltrapilho ambulante.<br /><br />E João Grilo ouvia tudo<br />mas sem dar demonstração<br />em toda a corte real<br />ninguém lhe dava atenção<br />por mostrar-se esmolambado<br />tinha sido desprezado<br />naquela rica nação.<br /><br />Afinal veio um criado<br />e disse sem o fitar:<br />já preparei o banheiro<br />para o senhor se banhar<br />vista uma roupa minha<br />e depois vá na cozinha<br />na hora de almoçar.<br /><br />João Grilo disse: está bem;<br />mas disse com seu botão:<br />roupas finas trouxe eu<br />dento do meu matulão<br />me apresentei rasgado<br />para ver nesse reinado<br />qual era a minha impressão.<br /><br />João Grilo tomou um banho<br />vestiu uma roupa de gala<br />então muito bem vestido<br />apresentou-se na sala<br />ao ver seu traje tão belo<br />houve gente no castelo<br />que quase perdia a fala.<br /><br />E então toda repulsa<br />transformou-se de repente<br />o rei chamou-o pra mesa<br />como homem competente<br />consigo dizia João:<br />na hora da refeição<br />vou ensinar essa gente.<br /><br />O almoço foi servido<br />porém João não quis comer<br />despejou vinho na roupa<br />só para vê-lo escorrer<br />ante a côrte estarrecida<br />encheu os bolsos de comida<br />para todo mundo ver.<br /><br />O rei muito aborrecido<br />perguntou para João:<br />por qual motivo o senhor<br />não come da refeição?<br />respondeu João com maldade:<br />tenha calma, majestade<br />digo já toda a razão.<br /><br />- Esta mesa tão repleta<br />de tanta comida boa<br />não foi posta para mim<br />um ente vulgar à toa;<br />desde a sobremesa à sopa<br />foram postas à minha roupa<br />e não à minha pessoa.<br /><br />Os comensais se olharam<br />o rei pergunta espantado:<br />por que o senhor diz isto<br />estando tão bem tratado?<br />disse João: isso se explica<br />por estar de roupa rica<br />não sou mais esmolambado.<br /><br />Eu estando esmolambado<br />ia comer na cozinha<br />mas como troquei de roupa<br />como junto da rainha<br />vejo nisto um grande ultraje<br />homenagem ao meu traje<br />e não à pessoa minha.<br /><br />Toda corte imperial<br />pediu desculpa a João<br />e muito tempo falou-se<br />naquela dura lição<br />e todo mundo dizia<br />que sua sabedoria<br />igualava a Salomão.<br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />História da donzela Teodora (Cordel), de Leandro Gomes de Barros<br /><br />Leandro Gomes de Barros, poeta criativo, recriou História da Donzela Teodora numa versão brasileira com uma produção bastante significativa, de grande divulgação e recepção.<br />No Brasil, a tradicional estória de Teodora, donzela-escrava-sábia-bela, que venceu os sábios do rei, livrando o seu amo da falência, cujas origens mais remotas são árabes, vem atravessando os tempos e encantando o nosso povo, notadamente no Nordeste brasileiro.<br />Composta poeticamente em sextilhas, nota-se na relação narrador-leitor (inicial e final), como Leandro, com grande poder de síntese e lisura, não esconde as fontes européias que lhe inspiraram a recriação poética do folheto luso em prosa (tradução do pliego suelto espanhol):<br /><br />Eis a real descrição<br />da história da donzela<br />dos sábios que ela venceu<br />e a aposta ganha por ela<br />tirado tudo direito<br />da história grande dela (...)<br /><br />"Caro leitor escrevi<br />tudo que no livro achei<br />só fiz rimar a história<br />nada aqui acrescentei<br />na história grande dela (...)<br />muitas coisas consultei"<br /><br />A sedutora narrativa dessa incomum donzela tem, em síntese, a seguinte fabulação: um negociante compra uma donzela e manda educá-la. Rapidamente ela torna-se muito sábia. Tendo o mercador perdido sua riqueza, ela propõe que tente vendê-la ao rei. Depois de ricamente vestida, eles vão ao palácio e a donzela enfrenta três sábios que lhe testam os conhecimentos, derrotando-os. O terceiro quase se ve nu, como haviam apostado, mas paga em dinheiro. O rei lhes dá o dinheiro pedido e eles vão para casa.<br /><br />Introdução: O narrador introduz a descrição-narração.<br /><br />Situação inicial: compra da donzela (escrava) pelo bom e rico mercador; exaltação às qualidades da Donzela: fidalga, espanhola e bela; o mercador manda educá-la e ela se torna excepcionalmente sábia.<br /><br />Situação de desiquilíbrio: falência do mercador.<br /><br />Contrato 1: proposta da Donzela - ser vendida ao Rei Almançor para salvar seu amo da falência.<br /><br />Contrato 2: contraposta do Rei - disputa entre Teodora (mulher-escrava) e os 3 sábios do Rei (homens letrados).<br /><br />Primeira prova: A Donzela enfrenta e vence o 1º sábio. Conseqüência glorificante para Teodora e deceptiva para o sábio.<br /><br />Segunda prova: a Donzela enfrenta e vence o 2º sábio. Conseqüência glorificante para ela e deceptiva para o 2º sábio.<br /><br />Contrato 3: aposta entre Teodora e o 3º sábio (Abraão de Trabador): o vencido ficará despido como nasceu.<br /><br />Terceira prova: Donzela versus Abraão de Trabador. Conseqüência glorificante para Teodora e deceptiva para ele que fica semi-despido, apenas, pagando à Donzela o acréscimo de cinco mil dobras de ouro).<br /><br />Contrato 4: palavra de honra do Rei (dar à Donzela o que esta lhe pedir).<br /><br />Prêmios: O Rei dá à Teodora mais dez mil dobras de ouro; a donzela-escrava e seu amo regressam ricos e felizes para casa.<br /><br />A estrutura profunda, formada pelas antinomias básicas (SABEDORIA x IGNORÂNCIA; JUSTIÇA x INJUSTIÇA e HONRA x DESONRA) que são de caráter universal, associadas aos traços marcantes da oralidade, à recorrência aos enigmas e adivinhações, ao processo de escritura e reescritura, vêm assegurando a permanência dessa sedutora estória, independentemente das peculiaridades regionais das diferentes comunidades (espanhola, portuguesa e brasileira) por onde ela tenha traçado uma trajetória.<br /><br />Leia o poema na íntegra:<br /><br />HISTÓRIA DA DONZELA TEODORA<br /><br />Eis a real descrição<br />Da história da donzela<br />Dos sábios que ela venceu<br />E a aposta ganha por ela<br />Tirado tudo direito<br />Da história grande dela<br /><br />Houve no reino de Túnis<br />Um grande negociante<br />Era natural da Hungria<br />E negociava ambulante<br />Uma alma pura e constante<br /><br />Andando um dia na praça<br />Numa porta pôde ver<br />Uma donzela cristã<br />Para ali se vender<br />O mercador vendo aquilo<br />Não pôde mais se conter<br /><br />Tinha feição de fidalga<br />Era uma espanhola bela<br />Ele perguntou ao mouro<br />Quanto queria por ela<br />Entraram então em negócio<br />Negociaram a donzela<br /><br />O húngaro conheceu nela<br />Formato de fidalguia<br />Mandou educá-la bem<br />Na melhor casa que havia<br />Em pouco tempo ela soube<br />O que ninguém mais sabia<br /><br />Mandou ensinar primeiro<br />Música e filosofia<br />Ela sem mestre aprendeu<br />Metafísica e astrologia<br />Descrever com distinção<br />História e anatomia<br /><br />Ela que já era um ente<br />Nascida por excelência<br />Como quem tivesse vindo<br />Das entranhas da ciência<br />Tinha por pai o saber<br />E por mãe a inteligência<br /><br />Em pouco tempo ela tinha<br />Tão grande adiantamento<br />Que só Salomão teria<br />Um igual conhecimento<br />Cantava música e tocava<br />A qualquer um instrumento<br /><br />Estudou e conhecia<br />As sete artes liberais<br />Conhecia a natureza<br />De todos os vegetais<br />Descrevia muito bem<br />A castra dos animais<br /><br />Descrevia os doze signos<br />De que é composto o ano<br />Da cabeça até os pés<br />Conhecia o corpo humano<br />E dava definição<br />De tudo do oceano<br /><br />Admirou todo mundo<br />O saber desta donzela<br />Tudo que era ciência<br />Podia se encontrar nela<br />O professor que ensinou-a<br />Depois aprendeu com ela<br /><br />Mas como tudo no mundo<br />É mutável e inconstante<br />Esse rico mercador<br />Negociava ambulante<br />E toda sua fortuna<br />Perdeu no mar num instante<br /><br />Atrás do bem vem o mal<br />Atrás da honra a torpeza<br />Quando ele saiu de casa<br />Levava grande riqueza<br />Voltou trazendo somente<br />Uma extrema pobreza<br /><br />Só via em torno de si<br />O vil manto da marzela<br />Em casa só lhe restava<br />A mulher e a donzela<br />Então chamou Teodora<br />E pediu o parecer dela<br /><br />Disse ele: minha filha<br />Bem vês minha natureza<br />E sabes que o oceano<br />Espoliou minha riqueza<br />Espero que teus conselhos<br />Me tirem desta pobreza<br /><br />Ela quando ouviu aquilo<br />Sentiu no peito uma dor<br />E lhe disse, tenha fé<br />Em Deus nosso salvador<br />Vou estudar um remédio<br />Que salvará o senhor<br /><br />E disse: meu senhor saia<br />Procure um amigo seu<br />É bom ir logo na casa<br />Do mouro que me vendeu<br />Chegue lá converse com ele<br />E conte o que lhe sucedeu<br /><br />O que ele oferecer-lhe<br />De muito bom grado aceite<br />E veja se ele lhe vende<br />Vestidos que me endireite<br />Compre a ele todas as jóias<br />Que uma donzela se enfeite<br /><br />Se o mouro vender-lhe tudo<br />Com que possa me compor<br />Vossa mercê vai daqui<br />Vender-me ao rei Almançor<br />É esse o único meio<br />Que salvará o senhor<br /><br />El-rei lhe perguntará<br />Por quanto vai me vender<br />Por dez mil dobras de ouro<br />Meu senhor há de dizer<br />Quando ele admirar-se<br />Veja o que vai responder<br /><br />Dizendo alto senhor<br />Não fique admirado<br />Eu vendo-a com precisão<br />Não peço preço alterado<br />Dobrada esta quantia<br />Tenho com ela gastado<br /><br />É esse o único meio<br />Para a sua salvação<br />Se o mouro vende-lhe tudo<br />Descanse seu coração<br />Daqui para o fim da vida<br />Não terá mais precisão<br /><br />O mercador seguiu tudo<br />Quando a donzela ditava<br />Chegou ao mouro e contou-lhe<br />O desespero em que estava<br />Então o mouro vendeu-lhe<br />Tudo quanto precisava<br /><br />Roupa, objetos e jóias<br />Para enfeitar a donzela<br />As roupas vinha que só<br />Sendo cortada pra ela<br />Ela quando vestiu tudo<br />Parecia ficar mais bela<br /><br />O mercador aprontou-se<br />E seguiu com brevidade<br />Falou ao guarda da corte<br />Com muita amabilidade<br />Para deixá-lo falar<br />Com a real majestade<br /><br />Então subiu um vassalo<br />Deu parte ao rei Almoçor<br />O rei chegou a escada<br />Perguntou ao mercador:<br />-- Amigo qual o negócio<br />Que tem comigo o senhor?<br /><br />Então disse o mercador<br />Sem grande humildade:<br />-- Senhor venho a vossa alteza<br />Com grande necessidade<br />Ver se vendo esta donzela<br />A vossa real majestade<br /><br />O rei olhou a donzela<br />E disse dentro de si:<br />Foi a mulher mais formosa<br />Que neste mundo já vi<br />Trinta ou quarenta minutos<br />O rei presenciou ela ali<br /><br />Perguntou ao mercador:<br />Por quanto vendes a donzela?<br />Por 10 mil dobras de outro<br />É o que peço por ela<br />E não estou pedindo caro<br />Visto a habilidade dela.<br /><br />Disse o rei ao mercador:<br />-- Senhor, estou surpreendido<br />Dez mil dobras de ouro<br />É preço desconhecido<br />Ou tu não queres vendê-la<br />Ou estás fora do sentido<br /><br />Disse o mercador: El rei<br />Não é caro esta donzela<br />Dobrado a esta quantia<br />Gastei para educar ela<br />Excede a todos os sábios<br />A sabedoria dela<br /><br />O rei mandou logo chamar<br />Um grande sábio que havia<br />O instrutor da cidade<br />Em física e astronomia<br />Em matemática e retórica<br />História e filosofia<br /><br />Esse veio e perguntou-lhe<br />-- Donzela estás preparada<br />Para responder-me tudo<br />Sem titubiar em nada?<br />Se não estiver seja franca<br />Se não sai envergonhada<br /><br />Então ela respondeu-lhe<br />-- Mestre pode perguntar<br />Eu lhe responderei tudo<br />Sem cousa alguma faltar<br />Farei debaixo da lei<br />Tudo que o senhor mandar<br /><br />O sábio ali preparou-se<br />Para entrar em discussão<br />Ela com muita vergonha<br />Ela não teve alteração<br />Pediu licença a El-rei<br />E ficou de prontidão<br /><br />-- Diz-me donzela o que Deus<br />Sob o céu primeiro fez<br />Respondeu o sol e a lua<br />E a lua por sua vez<br />É por uma obrigação<br />Cheia e nova todo mês<br /><br />-- Além do sol e a lua<br />Doze signos foram feitos<br />Formando a constelação<br />Sendo ao sol todos sujeitos<br />Desiguais na natureza<br />Com diversos preconceitos<br /><br />Como se chama esses signos?<br />Perguntou o emissário<br />A donzela respondeu:<br />-- Capricórnio e Aquário<br />Tauro, Câncer, Libra, Virgo<br />Pisces, Escórpio e Sagitário<br /><br />-- Existem outros três signos<br />Áries, Léo e Geminis<br />No signo Léo quem nascer<br />Será um homem feliz<br />Inclinado a viajar<br />Por fora de seu país<br /><br />O sábio disse: Donzela<br />É necessário dizer<br />Que condições tem o homem<br />Que em cada signo nascer<br />Por influência o signo<br />De que forma pode ser?<br /><br />Disse ela o signo Aquário<br />Reina o mês de janeiro<br />O homem que nascer nele<br />Tem o crescimento varqueiro<br />Será amante das mulheres<br />Ventaroso e lisonjeiro<br /><br />Pisces reina em fevereiro<br />Quem nesse signo nascer<br />É muito gentil de corpo<br />Muito guloso em comer<br />Risonho, gosta de viagem<br />Não faz o que prometer<br /><br />Em março governa Áries<br />Neste signo nascerão<br />Homens nem ricos nem pobres<br />Por nada se zangarão<br />Neles se notam um defeito<br />Falando sós andarão<br /><br />Em abril governa Tauro<br />Um signo bem conhecido<br />O homem que nascer nele<br />Será muito presumido<br />Altivo de coração<br />Será rico e atrevido<br /><br />Geminis governa em maio<br />Sua qualidade é quente<br />O homem que nascer nele<br />Será fraco e diligente<br />Para os palácios e cortes<br />Se inclina constantemente<br /><br />Em julho governa Câncer<br />Sua qualidade é fria<br />O homem que nascer nele<br />É forte e tem energia<br />É gentil e tem muita força<br />E sempre tem alegria<br /><br />Em julho governa Léo<br />Por um leão figurado<br />O homem que nascer nele<br />É lutador e honrado<br />Altivo de coração<br />Inteligente e letrado<br /><br />Em agosto reina Virgo<br />Vem da terra a natureza<br />O homem que nascer nele<br />Tem princípio tem riqueza<br />Depois se descuidará<br />Por isso cai em pobreza<br /><br />Em setembro reina Libra<br />A Vênus assinalado<br />O homem que nascer nele<br />Será um pouco inclinado<br />A viajar pelo mar<br />É lutador e honrado<br /><br />O que nascer em outubro<br />Será homem falador<br />Inclinado aos maus costumes<br />Teimoso e namorador<br />Pouco jeito nos negócios<br />Falso grave e enganador<br /><br />Então o mês de novembro<br />Sagitário é o reinante<br />O homem que nascer nele<br />Será cínico e inconstante<br />Desobediente aos pais<br />Intratável assim por diante<br /><br />Em dezembro é Capricórnio<br />Tem a natureza de terra<br />O homem que nascer nele<br />Será inclinado a guerra<br />Gosta de falar sozinho<br />E por qualquer coisa espera<br /><br />O sábio ali levantou-se<br />Disse ao rei esta donzela<br />Não há sábio aqui no mundo<br />Que tenha a ciência dela<br />E com isso vossa alteza<br />Que estou vencido por ela<br /><br />O rei ali ordenou<br />Que fosse o sábio segundo<br />Foi um matemático e clínico<br />Um gênio grande e fecundo<br />E conhecido por um<br />Dos sábios maior do mundo<br /><br />Chegou o segundo sábio<br />Que inda estava orelhudo<br />E disse: Donzela eu tenho<br />Dezoito anos de estudo<br />Não sou o que tu venceste<br />Conheço um pouco de tudo<br /><br />A donzela respondeu<br />Com licença de el-rei<br />Tudo que me perguntares<br />Aqui te responderei<br />Com brevidade e acerto<br />Tudo vos explicarei<br /><br />Perguntou o sábio a ela:<br />Em nosso corpo domina<br />Qualquer um dos doze signos<br />Que a donzela descrimina<br />Terá alguma influência<br />Os signos com a medicina?<br /><br />Então a donzela disse:<br />Descrito mestre direi<br />Sabe que os signos são doze<br />Como eu já expliquei<br />Compactam com a química<br />Quer saber? Explicarei<br /><br />Áries domina a cabeça<br />Uma parte melindrosa<br />Para quem nascer em março<br />A sangria é perigosa<br />A pessoa que sangrar-se<br />Deve ficar receosa<br /><br />Libra domina as espáduas<br />Câncer domina os peitos<br />Para os que são deste signo<br />Purgantes tem maus efeitos<br />E as sangrias também<br />Não serão de bons proveitos<br /><br />Tauro domina o pescoço<br />Léo domina o coração<br />Capricórnio influi nos olhos<br />Escórpio a organização<br />Geminis domina os braços<br />e influi na musculação<br /><br />Virgo domina o ventre<br />E Aquário nas canelas<br />Para os que são desses signos<br />Purgas e sangrias são belas<br />Então Sagitário e Pisces<br />Ambos têm igual tabelas<br /><br />O sábio dentro de si<br />Disse meio admirado<br />Onde esta discutir<br />Ninguém pode ser letrado<br />Esta só vindo a propósito<br />De planeta adiantado<br /><br />O sábio disse: Donzela<br />Eu quero se tu puderes<br />Isto é, eu creio que podes<br />Não dirás se não quiseres<br />O peso, idade e conduta<br />Que têm todas as mulheres<br /><br />Disse a donzela: A mulher<br />É sempre a arca do bem<br />Porém só quem a criou<br />Sabe o peso que ela tem<br />Isso é uma coisa ignota<br />Disso não sabe ninguém<br /><br />Que me dizes das donzelas<br />De vinte anos de idade?<br />Respondeu: Sendo formosa<br />Parece uma divindade<br />Principalmente ao homem<br />Que lhe tiver amizade<br /><br />As de trinta e quarenta<br />Que dizes tu que elas são?<br />Disse ela: Uma dessas<br />É de muita consideração<br />-- Das de 50 o que dizer?<br />-- Só prestam para oração<br /><br />-- Que dizes das de 70?<br />-- Deviam estar num castelo<br />Rezando por quem morreu<br />Lamentando o tempo belo<br />O que dizes das de 80?<br />-- Só prestam para o cutelo<br /><br />Então classificas as velhas<br />Tudo de mal a pior?<br />E nos defeitos de tantas<br />Não se encontra um menor<br />Disse ela: Deus me livre<br />De ser vizinho da melhor<br /><br />Donzela o sábio lhe disse<br />Sei que és caprichosa<br />Entre todas as pessoas<br />És a mais estudiosa<br />Diga que sinais precisam<br />Para a mulher ser formosa<br /><br />Então a donzela disse:<br />Para a mulher ser formosa<br />Terá dezoito sinais<br />Não tendo é defeituosa<br />A obra por seu defeito<br />Deixa de ser melindrosa<br /><br />Há de ter três partes negras<br />De cores bem reluzentes<br />Sobrancelhas, olhos, cabelos<br />De cores negras e ardentes<br />Branco o lacrimal dos olhos<br />Ter branca a face e os dentes<br /><br />Será comprida em três partes<br />A que tiver formosura<br />Compridos os dedos das mãos<br />O pescoço e a cintura<br />Rosada cútis e gengivas<br />Lábios cor de rosa pura<br /><br />Terá três partes pequenas<br />O nariz, boca e pé<br />Larga a cadeira e ombro<br />Ninguém dirá que não é<br />Cujos sinais teve-se todos<br />Uma virgem em Nazaré<br /><br />O sábio quando ouviu isto<br />Ficou tão surpreendido<br />E disse: El-rei Almançor<br />Confesso que estou vencido<br />E quem argumenta com ela<br />Se considera vencido<br /><br />El-rei mandou que outro sábio<br />Entrasse em discussão<br />Então escolheram um<br />Dos de maior instrução<br />A quem chamavam na Grécia<br />Professor da criação<br /><br />Abraão de Trabador<br />Veio argumentar com ela<br />E disse logo ao entrar:<br />Previne-te bem, donzela<br />Dizendo dentro si<br />Eu hoje hei de zombar dela<br /><br />Então a donzela disse:<br />Senhor mestre estarei disposta<br />De todas suas perguntas<br />O senhor terá resposta<br />Se tem confiança em si<br />Vamos fazer uma aposta?<br /><br />Minha aposta é a seguinte<br />De nós o que for vencido<br />Ficará aqui na corte<br />Publicamente despido<br />Ficando completamente<br />Como quando foi nascido<br /><br />O sábio disse que sim<br />Mandaram o termo lavrar<br />E a donzela pediu<br />Ao rei para assinar<br />Para a parte que perdesse<br />Depois não se recusar<br /><br />Lavraram o termo e foi<br />Às mãos do rei Almoçor<br />Pra fazer válido o trato<br />E ficar por fiador<br />Obrigando quem perdesse<br />Dar as roupas ao vencedor<br /><br />O sábio aí perguntou:<br />Qual é a coisa mais aguda?<br />Disse ela: é a língua<br />Duma mulher linguaruda<br />Que corta todos os nomes<br />E o corte nunca muda<br /><br />Donzela qual é a coisa<br />Mais doce do que mel?<br />-- O amor do pai a um filho<br />Ou dama esposa fiel<br />A ingratidão de um desses<br />Amarga mais do que fel<br /><br />O sábio disse: Donzela<br />Conheces os animais?<br />Quero agora que descrevas<br />Alguns irracionais<br />Me diga qual é o bicho<br />Que possui oito sinais<br /><br />Mestre, isto é gafanhoto<br />Vive embaixo dos outeiros<br />Tem pescoço como vaca<br />Esporas de cavaleiros<br />Tem olhos como marel<br />Um pássaro dos estrangeiros<br /><br />Focinho como de vaca<br />Tem pés como de cegonha<br />Tem cauda como de víbora<br />Uma serpente medonha<br />E é infeliz o vivente<br />Que a boca dela se oponha<br /><br />Tem peito como cavalos<br />E não ofende a ninguém<br />Tem asas como de águia<br />A que voa muito além<br />São antes oito sinais<br />Que o gafanhoto tem<br /><br />Perguntou o sábio a ela:<br />-- Que homem foi que viveu<br />Porém nunca foi menino<br />Existiu mas não nasceu<br />A mãe dele ficou virgem<br />Até que o neto morreu<br /><br />-- Este homem foi Adão<br />Que da terra se gerou<br />Foi feito já homem grande<br />Não nasceu, Deus o formou<br />A terra foi a mãe dele<br />E nela se sepultou<br /><br />Foi feita mas não nascida<br />Essa nobre criatura<br />A terra foi a mãe dele<br />Serviu-lhe de sepultura<br />Para Abel o neto dele<br />Fez-se a primeira abertura<br /><br />-- Donzela qual é a coisa<br />Que pode ser mais ligeira?<br />Respondeu: O pensamento<br />Que voa de tal maneira<br />Que vai ao cabo do mundo<br />Num segundo que se queira<br /><br />O sábio fitou-a e disse:<br />-- Donzela diga-me agora<br />Qual o prazer de um dia<br />Qual prazer duma hora?<br />-- Dum negócio que se ganha<br />Dum passeio que se queira<br /><br />A donzela respondeu<br />Com a maior rapidez<br />Disse: um homem viajando<br />E se bom negócio fez<br />É um dos grande prazeres<br />Que verá por sua vez<br /><br />Donzela o que é vida?<br />Disse ela: Um mar de torpeza<br />O que pode assemelhar-se<br />À vela que está acesa<br />Às vezes está tão formosa<br />E se apaga de surpresa<br /><br />Donzela por quantas formas<br />Mente a pessoa afinal?<br />Respondeu: Mente por três<br />Tendo como essencial<br />Exaltar a quem quer bem<br />E pôr taxa em quem quer mal<br /><br />Donzela que é velhice?<br />Respondeu com brevidade:<br />É vestidura de dores<br />É a mãe da mocidade<br />E o que mais aborrecemos?<br />Respondeu: É a idade<br /><br />Donzela qual é a coisa<br />Que quem tem muito ainda quer?<br />Disse ela: É o dinheiro<br />Que o homem e a mulher<br />Não se farta de ganhar<br />Tenha a soma que tiver<br /><br />Qual é a coisa que o homem<br />Possui e não pode ver?<br />Disse ela: O coração<br />Que aberto tem que nascer<br />Ver a raiz dos seus olhos<br />Não há quem possa obter<br /><br />Donzela qual foi o homem<br />Que por dois ventres passou?<br />Disse a donzela: Foi Jonas<br />Que uma baleia o tragou<br />Conservou-o dentro três dias<br />E depois o vomitou<br /><br />O sábio disse: Donzela<br />Qual o homem mais de bem?<br />Disse ela: É aquele<br />Que menos defeitos tem<br />Quem terá menos defeitos?<br />-- Isso não sabe ninguém<br /><br />-- Donzela qual é a coisa<br />Que não se pode saber?<br />O pensamento do homem<br />Se ele não quer dizer<br />Por mais que a mulher procure<br />Não poderá obter<br /><br />-- Donzela o que é a noite<br />Cheia de tantos horrores?<br />Disse ela: É descanso<br />Dos homens trabalhadores<br />É capa dos assassinos<br />Que encobre os malfeitores<br /><br />-- Onde a primeira cidade<br />Do mundo foi construída?<br />-- A cidade de Ninive<br />A primeira conhecida<br />Que depois de certo tempo<br />Foi pela Grécia abatida<br /><br />Perguntou: Qual o guerreiro<br />Que teve a antigüidade?<br />Respondeu: Foi Alexandre<br />Assombro da humanidade<br />Guerreou vinte e dois anos<br />E morreu na flor da idade<br /><br />Donzela falaste bem<br />Do maior conquistador<br />Diga dos homens qual foi<br />O maior sentenciador?<br />-- Pilatos que deu sentença<br />a Cristo Nosso Senhor<br /><br />De todos os patriarcas<br />qual seria o mais valente?<br />-- O patriarca Jacó<br />Que lutou heroicamente<br />Com os anjos mensageiros<br />Do monarca onipotente<br /><br />-- Qual foi a primeira nau<br />Que foi para o estaleiro<br />-- Foi a Arca de Noé<br />A que no mar foi primeiro<br />Onde escapou um casal<br />De tudo no mundo inteiro<br /><br />-- O que corta mais<br />Que a navalha afiada?<br />É a língua da pessoa<br />Depois de estar irada<br />Corta com mais rapidez<br />Que qualquer lâmina amolada<br /><br />-- Qual é o maior prazer<br />Com que se ocupa a história?<br />Respondeu: Quando um guerreiro<br />No campo ganha vitória<br />Sabei que não pode haver<br />Tanto prazer tanta glória<br /><br />O sábio disse: Donzela<br />Tens falado muito bem<br />Me diga que condições<br />O homem no mundo tem?<br />Disse a donzela: tem todas<br />Para o mal e para o bem<br /><br />É manso como a ovelha<br />E feroz como o leão<br />Seboso como o suíno<br />É limpo como o pavão<br />É falso como a serpente<br />É tão leal como o cão<br /><br />É fraco como o coelho<br />Arrogante como o gelo<br />Airoso como o furão<br />Forçoso como o cavalo<br />E mais te digo que o homem<br />Ninguém pode decifrá-lo<br /><br />É calado como peixe<br />Fala como papagaio<br />É lerdo como preguiça<br />É veloz igual ao raio<br />É sábio quando ouviu isto<br />Quase que dar-lhe um desmaio<br /><br />Então inventou um meio<br />Para ver se a pegaria<br />Perguntou: O sol da noite<br />Terá luz quente ou fria?<br />A donzela respondeu<br />Que à noite sol não havia<br /><br />Com a presença do sol<br />É que se conhece o dia<br />Se de noite houvesse sol<br />A noite não existia<br />E sem o sereno dela<br />Todo vivente morreria<br /><br />Sem água, sem ar, sem luz<br />A terra não tinha nada<br />Não tinha os seres que tem<br />Seria desabitada<br />A própria vegetação<br />Não podia ser criada<br /><br />Os reinos da natureza<br />Cada um possui um gênio<br />É necessário o azoto<br />Precisa o oxigênio<br />Para a infusão disso tudo<br />O carbono e o hidrogênio<br /><br />O dia Deus fez bem claro<br />A noite fez bem escura<br />Se de noite houvesse sol<br />Estava o homem à altura<br />De notar esse defeito<br />E censurar a natura<br /><br />O sábio baixou a vista<br />E ouviu tudo calado<br />Nada teve a dizer<br />Pois já estava esgotado<br />E tinha plena certeza<br />Que ficava injuriado<br /><br />Disse ao público: Senhores<br />A donzela me venceu<br />Não sei com qual professor<br />Esta mulher aprendeu<br />Aí a donzela disse:<br />Então o mestre perdeu?<br /><br />Ele vendo que estava<br />Esgotado e sem recursos<br />Ficou trêmulo e muito pálido<br />Fugiu-lho até os pulsos<br />Prostou-se aos pés de El-rei<br />Se sufocando em soluços<br /><br />E disse: Senhor, confesso<br />A vossa real majestade<br />Que vejo nesta donzela<br />A maior capacidade<br />Ela merece ter prêmio<br />Pois tem grande habilidade<br /><br />A donzela levantou-se<br />Foi ao soberano rei<br />Então beijando-lhe a mão<br />Disse: Vos suplicarei<br />Mande o sábio entregar-me<br />Tudo que dele ganhei<br /><br />O rei ali ordenou<br />Que o sábio se despojasse<br />De todas as vestes que tinha<br />E à donzela as entregasse<br />O jeito que tinha ali<br />Era ele envergonhar-se<br /><br />O sábio pôs-se a despir-se<br />Como quem estava doente<br />Fraque, colete e camisa<br />Ficando ali indecente<br />E pediu para ficar<br />Com a ceroula somente<br /><br />Depois sufocado em pranto<br />Prostrado disse à donzela:<br />Resta-me apenas a ceroula<br />Não posso me despir dela<br />A donzela perguntou-lhe:<br />O senhor nasceu com ela?<br /><br />O trato foi o seguinte<br />De nós quem fosse vencido<br />Perante a todos da corte<br />Havia de ficar despido<br />Como quando veio ao mundo<br />Na hora que foi nascido<br /><br />El-rei foi o fiador<br />Nosso ajuste foi exato<br />O senhor tem que despir-se<br />E dar-lhe fato por fato<br />Ficando com a ceroula<br />Não teve efeito o contrato<br /><br />E não quis dar a ceroula<br />O rei mandou que ele desse<br />Ou pagaria à donzela<br />O tanto que ela quisesse<br />Tanto que indenizasse-a<br />Embora que não pudesse<br /><br />Donzela quanto queres<br />Perguntou o sábio enfim<br />A donzela ali fitou-o<br />E lhe respondeu assim:<br />A metade do dinheiro<br />Que meu senhor quer por mim<br /><br />O rei ali conhecendo<br />O direito da donzela<br />Vendo que toda razão<br />Só podia caber nela<br />Disse ao sábio: Mande ver<br />O dinheiro e pague a ela<br /><br />Cinco mil dobras de ouro<br />A donzela recebeu<br />O sábio também ali<br />Nem mais satisfação deu<br />Aquele foi um exemplo<br />Que a donzela lhe vendeu<br /><br />O rei então disse à ela:<br />Donzela podes pedir<br />Dou-te a palavra de honra<br />Farei-te o que exigir<br />De tudo que pertencer-me<br />Poderás tu te servir<br /><br />Ela beijou-lhe a mão<br />Lhe disse peço que dê-me<br />A quantia do dinheiro<br />Que meu senhor quer vender-me<br />Deixando eu voltar com ela<br />Para assim satisfazer-me<br /><br />O rei julgou que a donzela<br />Pedisse para ficar<br />Tanto que se arrependeu<br />De tudo lhe franquear<br />Mas a palavra de rei<br />Não pode se revogar<br /><br />Mandou dar-lhe o dinheiro<br />Discutiu também com ela<br />Mas ciente de tudo<br />Quanto podia haver nela<br />E disse vinte mil dobras<br />Não pagam esta donzela<br /><br />Voltou ela e o senhor<br />À sua antiga morada<br />Por uma guarda de honra<br />Voltou ela acompanhada<br />O senhor dela trazendo<br />Uma fortuna avaliada<br /><br />Ficaram todos os sábios<br />Daquilo impressionados<br />Pois uma donzela escrava<br />Vencer três homens letrados<br />Professores de ciências<br />Doutores habilitados<br /><br />Abraão de Trabador<br />Com todos não discutia<br />Já tinha vencido muitos<br />Em música e filosofia<br />Em história natural<br />Matemática e astronomia<br /><br />Ele descrevia a fundo<br />Os reinos da natureza<br />Era engenheiro perito<br />De tudo tinha a certeza<br />Descrevia o oceano<br />Da flor d'água a profundeza.<br /><br />Tanto quando ele entrou<br />Que fitou bem a donzela<br />Calculou dentro de si<br />A força que havia nela<br />Confiando em sua força<br />Por isso apostou com ela<br /><br />Caro leitor escrevi<br />Tudo que no livro sabei<br />Só fiz rimar a história<br />Nada aqui acrescentei<br />Na história grande dela<br />Muitas coisas consultei<br /><br />Fonte: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/h/historia_da_donzela_teodor<br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Brosogó, Militão e o Diabo<br /><br />Patativa do Assaré<br /><br />"Eu contratrei um sanfonero<br />Para tocar a noite inteira sem parar<br />Puxando o fole quem quiser dançar<br />aproveita a brincadeira, lá no arraiar<br /><br /><br />No arraiar eu ganhei uma morena<br />Cheira açucena, lindo é seu olhar<br />Já fiz promessa com meu Santo Antonio<br />e se eu for atendido com ela vou me casar"<br /><br /><br /><br /><br />O melhor da nossa vida<br /><br />É paz, amor e união<br /><br />E em cada semelhante<br /><br />A gente ver um irmão<br /><br />E apresentar para todos<br /><br />O papel da gratidão<br /><br /><br />Quem faz um grande favor<br /><br />Mesmo desinteressado<br /><br />Por onde quer que ele ande<br /><br />Leva um tesouro guardado<br /><br />E um dia sem esperar<br /><br />Será bem recompensado<br /><br /><br />Em um dos nossos estados<br /><br />Do nordeste brasileiro<br /><br />Nasceu Chico Brosogó<br /><br />Era ele um miçangueiro<br /><br />Que é o mesmo camelô<br /><br />Lá no Rio de Janeiro<br /><br /><br />Brosogó era ingênuo<br /><br />Não tinha filosofia<br /><br />Mas tinha de honestidade<br /><br />A maior sabedoria<br /><br />Sempre vendendo ambulante<br /><br />A sua mercadoria<br /><br /><br />Em uma destas viagens<br /><br />Numa certa região<br /><br />Foi vender mercadoria<br /><br />Na famosa habitação<br /><br />De um fazendeiro malvado<br /><br />Por nome de Militão<br /><br /><br />O ricaço Militão<br /><br />Vivia a questionar<br /><br />Toda sorte de trapaça<br /><br />Era capaz de inventar<br /><br />Vendo assim desta maneira<br /><br />Sua riqueza aumentar<br /><br /><br />Brosogó naquele prédio<br /><br />Não apurou um tostão<br /><br />E como na mesma casa<br /><br />Não lhe ofereceram pão<br /><br />Comprou meia dúzia de ovos<br /><br />Para sua refeição<br /><br /><br />Quando a meia dúzia de ovos<br /><br />O Brosogó foi pagar<br /><br />Faltou dinheiro miúdo<br /><br />Para a paga efetuar<br /><br />E ele entregou uma nota<br /><br />Para o Militão trocar<br /><br /><br />O rico disse: ─ Eu não troco,<br /><br />Vá com a mercadoria<br /><br />Qualquer tempo você vem<br /><br />Me pagar esta quantia<br /><br />Mas peço que seja exato<br /><br />E aqui me apareça um dia<br /><br /><br />Brosogó agradeceu<br /><br />E achou o papel importante,<br /><br />Sem saber que o Militão<br /><br />Estava naquele instante<br /><br />Semeando uma semente<br /><br />Para colher mais adiante<br /><br /><br />Voltou muito satisfeito<br /><br />Na sua vida pensando<br /><br />Sempre arranjando fregueses<br /><br />No lugar que ia passando<br /><br />Vendo sua boa sorte<br /><br />Melhorar de quando em quando<br /><br /><br />Brosogó no seu comércio<br /><br />Tinha bons conhecimentos<br /><br />Possuía com os lucros<br /><br />Daqueles seus movimentos<br /><br />Além de casas e terrenos<br /><br />Meia dúzia de jumentos<br /><br /><br />De ano em ano ele fazia<br /><br />Naquele seu patrimônio<br /><br />Festejo religioso<br /><br />No dia de Santo Antônio<br /><br />Por ser o aniversário<br /><br />Do seu feliz matrimônio<br /><br /><br />No festejo oferecia<br /><br />Vela para São João<br /><br />Santo Ambrósio, Santo Antônio<br /><br />São Cosme e São Damião<br /><br />Para ele qualquer santo<br /><br />Dava a mesma proteção<br /><br /><br />Vela pra Santa Inês<br /><br />E para Santa Luzia<br /><br />São Jorge e São Benedito<br /><br />São José e Santa Maria<br /><br />Até que chegava à última<br /><br />Das velas que possuía<br /><br /><br />Um certo dia voltando<br /><br />Aquele bom sertanejo<br /><br />Da viagem lucrativa<br /><br />Com muito amor e desejo<br /><br />Trouxe uma carga de velas<br /><br />Para queimar no festejo<br /><br /><br /><br />A casa naquela noite<br /><br />Estava um belíssimo encanto<br /><br />Se via velas acesas<br /><br />Brilhando por todo canto<br /><br />Porém sobraram três velas<br /><br />Por faltar nome de santo<br /><br /><br />Era lindo a luminária<br /><br />O quadro resplandecente<br /><br />E o caboclo Brosogó<br /><br />Procurava impaciente<br /><br />Mas nem um nome de santo<br /><br />Chegava na sua mente<br /><br /><br />Disse consigo: o Diabo!<br /><br />Merece vela também<br /><br />Se ele nunca me tentou<br /><br />Para ofender a ninguém<br /><br />Com certeza me respeita<br /><br />Está me fazendo bem<br /><br /><br />Se eu fui um menino bom<br /><br />Fui também um bom rapaz<br /><br />E hoje sou pai de família<br /><br />Gozando da mesma paz<br /><br />Vou queimar estas três velas<br /><br />Em tenção do satanás<br /><br /><br />Tudo aquilo Brosogó<br /><br />Fez com naturalidade<br /><br />Como o justo que apresenta<br /><br />Amor e fraternidade<br /><br />E as virtudes preciosas<br /><br />De um coração sem maldade<br /><br /><br />Certo dia ele fazendo<br /><br />Severa reflexão<br /><br />Um exame rigoroso<br /><br />Sobre a sua obrigação<br /><br />Veio na mente os ovos<br /><br />Que devia ao Militão<br /><br /><br />Viajou muito apressado<br /><br />No seu jumento baixeiro<br /><br />Sempre atravessando rio<br /><br />E transpondo tabuleiro<br /><br />Chegou no segundo dia<br /><br />Na casa do trapaceiro<br /><br /><br /><br />Foi chegando e foi desmontando<br /><br />E logo que deu bom dia<br /><br />Falou para o coronel<br /><br />Com bastante cortesia:<br /><br />Venho aqui pagar os ovos<br /><br />Que fiquei devendo um dia<br /><br /><br />O Militão muito sério<br /><br />Falou para o Brosogó<br /><br />Para pagar esta dívida<br /><br />Você vai ficar no pó<br /><br />Mesmo que tenha recurso<br /><br />Fica pobre como Jó<br /><br /><br />Me preste bem atenção<br /><br />E ouça bem as razões minhas:<br /><br />Aqueles ovos no choco<br /><br />Iam tirar seis pintinhas<br /><br />Mais tarde as mesmas seriam<br /><br />Meia dúzia de galinhas<br /><br /><br />As seis galinhas botando,<br /><br />Veja só o quanto dá<br /><br />São quatrocentos e oitenta<br /><br />Ninguém me reprovará<br /><br />Pois a galinha aqui põe<br /><br />De oito ovos pra lá<br /><br /><br />Preste atenção Brosogó<br /><br />Sei que você não censura<br /><br />Veja que grande vantagem<br /><br />Veja que grande fartura<br /><br />E veja o meu resultado<br /><br />Só na primeira postura<br /><br /><br />Das quatrocentas e oitenta<br /><br />Podia a gente tirar<br /><br />Dos mesmos cento e cinquenta<br /><br />Para no choco aplicar<br /><br />Pois basta só vinte e cinco<br /><br />Que é pra o ovo não gourar<br /><br /><br />Os trezentos e cinquenta<br /><br />Que era a sobra eu vendia<br /><br />Depressa, sem demora<br /><br />Por uma boa quantia<br /><br />Aqui, procurando ovos<br /><br />Temos grande freguesia<br /><br /><br />Dos cento e cinquenta ovos<br /><br />Sairiam com despacho<br /><br />Cento e cinquenta pintinhas<br /><br />Pois tenho certeza e acho<br /><br />Que aqui no nosso terreiro<br /><br />Não se cria pinto macho<br /><br /><br />Também não há prejuízo<br /><br />Posso falar pra você<br /><br />Que maracajá e raposa<br /><br />Aqui a gente não vê<br /><br />Também não há cobra preta<br /><br />Gavião, nem saruê<br /><br /><br />Aqui de certas moléstias<br /><br />A galinha nunca morre<br /><br />Porque logo à medicina<br /><br />Com urgência se recorre<br /><br />Se o gogo aparecer<br /><br />A empregada socorre<br /><br /><br /><br />Veja bem, seu Brosogó<br /><br />O quanto eu posso ganhar<br /><br />Em um ano e sete meses<br /><br />Que passou sem me pagar<br /><br />A conta é de tal sorte<br /><br />Que eu mesmo não sei somar<br /><br /><br />Vou chamar um matemático<br /><br />Pra fazer o orçamento,<br /><br />Embora você não faça<br /><br />De uma vez o pagamento<br /><br />Mesmo com mercadoria<br /><br />Terreno, casa e jumento<br /><br /><br />Porém tenha paciência<br /><br />Não precisa se queixar,<br /><br />Você acaba o que tem<br /><br />Mas vem comigo morar<br /><br />E aqui, parceladamente,<br /><br />Acaba de me pagar<br /><br /><br />E se achar que estou falando<br /><br />Contra a sua natureza,<br /><br />Procure um advogado<br /><br />Pra fazer sua defesa,<br /><br />Que o meu eu já tenho e conto<br /><br />A vitória com certeza<br /><br /><br />Meu advogado é<br /><br />Um doutor de posição<br /><br />Pertencente à minha política<br /><br />E nunca perdeu questão<br /><br />E é candidato a prefeito<br /><br />Para a futura eleição<br /><br /><br />O coronel Militão<br /><br />Com engenho e petulância<br /><br />Deixou o Brosogó<br /><br />Na mais dura circunstância<br /><br />Aproveitando do mesmo<br /><br />Sua grande ignorância<br /><br /><br />Quinze dias foi o prazo<br /><br />Para o Brosogó voltar<br /><br />Presente ao advogado<br /><br />Um documento assinar<br /><br />E tudo o que possuía<br /><br />Ao Militão entregar<br /><br /><br />O pobre voltou bem triste<br /><br />Pensando a dizer consigo:<br /><br />Eu durante a minha vida<br /><br />Sempre fui um grande amigo,<br /><br />Qual será o meu pecado<br /><br />Para tão grande castigo?<br /><br /><br />Quando ia pensando assim<br /><br />Avistou um cavaleiro<br /><br />Bem montado e bem trajado<br /><br />Na sombra de um juazeiro<br /><br />O qual com modos fraternos<br /><br />Perguntou ao miçangueiro:<br /><br /><br />Que tristeza é esta?<br /><br />Que você tem, Brosogó?<br /><br />O seu semblante apresenta<br /><br />Aflição, pesar e dó,<br /><br />Eu estou ao seu dispor,<br /><br />Você não sofrerá só<br /><br /><br />Brosogó lhe contou tudo<br /><br />E disse por sua vez<br /><br />Que o coronel Militão<br /><br />O trato com ele fez<br /><br />Para às dez horas do dia<br /><br />Na data quinze do mês<br /><br /><br />E disse o desconhecido:<br /><br />Não tenha má impressão<br /><br />No dia quinze eu irei<br /><br />Resolver esta questão<br /><br />Lhe defender da trapaça<br /><br />Do ricaço Militão<br /><br /><br />Brosogó foi para casa<br /><br />Alegre sem timidez<br /><br />O que o homem lhe pediu<br /><br />Ele satisfeito fez<br /><br />E foi cumprir seu trato<br /><br />No dia quinze do mês<br /><br /><br />Quando chegou encontrou<br /><br />Todo povo algomerado<br /><br />Ele entrando deu bom dia<br /><br />E falou bem animado<br /><br />Dizendo que também tinha<br /><br />Achado um advogado<br /><br /><br />Marcou o relógio dez horas<br /><br />E sem o doutor chegar<br /><br />Brosogó entristeceu<br /><br />Silencioso a pensar<br /><br />E o povo do Militão<br /><br />Do coitado a criticar<br /><br /><br />Os puxa-sacos do rico<br /><br />Com ares de mangação<br /><br />Diziam: o miçangueiro<br /><br />Vai-se arrasar na questão<br /><br />Brosogó vai pagar caro<br /><br />Os ovos do Militão<br /><br /><br />Estavam pilheriando<br /><br />Quando se ouviu um tropel<br /><br />Era um senhor elegante<br /><br />Montado no seu corcel<br /><br />Exibindo em um dos dedos<br /><br />O anel de bacharel<br /><br /><br />Chegando disse aos ouvintes:<br /><br />Fui no trato interrompido<br /><br />Para cozinhar feijão<br /><br />Porque muito tem chovido<br /><br />E o meu pai em seu roçado<br /><br />Só planta feijão cozido<br /><br /><br />Antes que o desconhecido<br /><br />Com razão se desculpasse<br /><br />Gritou o outro advogado:<br /><br />Não desonre a nossa classe<br /><br />Com essa grande mentira!<br /><br />Feijão cozido não nasce<br /><br /><br />Respondeu o cavaleiro:<br /><br />Esta mentira eu compus<br /><br />Para fazer a defesa<br /><br />É ela um foco de luz<br /><br />Porque o ovo cozinhado<br /><br />Sabemos que não produz<br /><br /><br />Assim que o desconhecido<br /><br />Fez esta declaração<br /><br />Houve um silêncio na sala<br /><br />Foi grande a decepção<br /><br />Para o povo da política<br /><br />Do coronel Militão<br /><br /><br />Onde a verdade aparece<br /><br />A mentira é destruída<br /><br />Foi assim desta maneira<br /><br />Que a questão foi resolvida<br /><br />E o candidato político<br /><br />Ficou de crista caída<br /><br /><br />Mentira contra mentira<br /><br />Na reunião se deu<br /><br />E foi por este motivo<br /><br />Que a verdade apareceu<br /><br />Somente o preço dos ovos<br /><br />O Militão recebeu<br /><br /><br />Brosogó agradecendo<br /><br />O favor que recebia<br /><br />Respondeu o cavaleiro<br /><br />Eu era que lhe devia<br /><br />O valor daquelas velas<br /><br />Que me ofereceu um dia<br /><br /><br />Eu sou o Diabo a quem todos<br /><br />Chamam de monstro ruim<br /><br />E só você neste mundo<br /><br />Teve a bondade sem fim<br /><br />De um dia queimar três velas<br /><br />Oferecidas a mim<br /><br /><br /><br />Quando disse estas palavras<br /><br />No mesmo instante saiu<br /><br />Adiante deu um pipoco<br /><br />E pelo espaço sumiu<br /><br />Porém pipoco baixinho<br /><br />Que o Brosogó não ouviu<br /><br /><br />Caro leitor nesta estrofe<br /><br />Não queira zombar de mim<br /><br />Ninguém ouviu o estouro<br /><br />Mas juro que foi assim<br /><br />Pois toda história do Diabo<br /><br />Tem um pipoco no fim<br /><br /><br />Sertanejo, este folheto<br /><br />Eu quero lhe oferecer<br /><br />Leia o mesmo com cuidado<br /><br />E saiba compreender<br /><br />Encerra muita mentira<br /><br />Mas tem muito o que aprender<br /><br /><br /><br />Bom leitor, tenha cuidado,<br /><br />Vivem ainda entre nós<br /><br />Milhares de Militões<br /><br />Com o instinto feroz<br /><br />Com traçadas e mentiras<br /><br />Perseguindo os Brosogós.<br /><br /><br /><br /><br />Serra de Santana - Assaré - Ceará - BraPROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-54062073926759679732009-04-22T12:02:00.000-07:002009-05-06T05:06:37.236-07:00Poesia marginal<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpAYafeIrlQ0yV5kDrB-4GcitH6pQIIxI-LT3H_hXYpAvPIhmebQmBZCnomXfooawUfEHjvHpoW3a4HG82K4m7j3wAMY4o4B9D9z0yfVycuA2A31W0ZZbun4Zg0otmzZYy-MvZMkqxLEs/s1600-h/MARGINAL.gif"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329828800190335426" style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; WIDTH: 320px; CURSOR: hand; HEIGHT: 166px" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpAYafeIrlQ0yV5kDrB-4GcitH6pQIIxI-LT3H_hXYpAvPIhmebQmBZCnomXfooawUfEHjvHpoW3a4HG82K4m7j3wAMY4o4B9D9z0yfVycuA2A31W0ZZbun4Zg0otmzZYy-MvZMkqxLEs/s320/MARGINAL.gif" border="0" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkdOBdnHEwbh4Swx18ILlriCiZE84oqWyNR8hOmFGZC61qfowb0EsS4U5lBIlaZ63P1DVRFqKSEG8cdMeYFHRV3x3Y7oGqewTd0vEBNrJ7naTK2l7t6VpFN0aSGMjgHmFdNQeE5lZsZMA/s1600-h/SEJAMARGINA%C3%87L.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329828801884457506" style="FLOAT: right; MARGIN: 0px 0px 10px 10px; WIDTH: 111px; CURSOR: hand; HEIGHT: 123px" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkdOBdnHEwbh4Swx18ILlriCiZE84oqWyNR8hOmFGZC61qfowb0EsS4U5lBIlaZ63P1DVRFqKSEG8cdMeYFHRV3x3Y7oGqewTd0vEBNrJ7naTK2l7t6VpFN0aSGMjgHmFdNQeE5lZsZMA/s320/SEJAMARGINA%C3%87L.jpg" border="0" /></a><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Bráulio Tavares<br /><br />ENTREVISTA COM BRAULIO TAVARES (do Site BalacoBaco -http://www.geocities.com/SoHo/Lofts/1418/braulio.htm )<br /><br />Nascido em Campina Grande (PB) em 1950. Família paterna cheia de jornalistas e poetas. Uma das minhas irmãs, Clotilde, também escreve. Estudei cinema em Belo Horizonte (1970-71), ciências sociais em Campina Grande (1973-76). Toquei em banda de rock, fui professor do 2o. grau, fui repórter futebolístico e crítico de cinema em jornais, fui ator e escrevi peças de teatro-de rua, ajudei a organizar festivais de repentistas, traduzi muitos livros, escrevi roteiros para TV, fui puxador-de-samba em blocos de carnaval cariocas, pesquisei literatura fantástica brasileira e estrangeira, fiz shows voz-e-violão Brasil afora durante anos, publiquei mais de 10 livros, tenho mais de 40 músicas gravadas, 5 peças montadas profissionalmente. Tenho uma filha de 21 anos, Maria Nayara, e um filho de 6, Gabriel. Estou casado com Emilia Veras há 18 anos. Morei em BH e Salvador, e estou no Rio desde 1982. Torço pelo Treze de Campina Grande, Sport do Recife, Atlético Mineiro e Flamengo do Rio.<br /><br />Balacobaco - Quando foi inoculado pelo vírus da literatura? Como eram estes tempos? Quais as sensações que tinha?<br /><br />Braulio Tavares - Cresci numa familia onde se lia muito. Ler, lá em casa, era algo como respirar. Ainda hoje fico surpreso quando entro na casa de alguém e verifico que não há uma estante de livros. Uma casa sem livros é como um carro sem motor. A sensação-de-realidade que eu experimentava ao leré mais forte do que qualquer droga, e a sinto inteiramente, ainda hoje. Ler é como um hipnotismo, um fenômeno mediúnico, um transporte do corpo astral (para quem acredita nisto). Quando leio uma coisa, eu *vou* para lá.<br /><br />B - Quais escritores influenciaram? Quais o influenciam hoje? Como vai a poesia brasileira?<br /><br />BT - Não gosto de admitir influências, mas não é por orgulho, e sim por bom senso. Qualquer sujeitinho pretensioso sai por aí dizendo que é influenciado por Nabokov, Joyce, Balzac... No meu caso, dependendo do que pretendo escrever, resolvo imitar A, B ou C, cujo estilo ou "voz narrativa" me parece adequado para o que pretendo colocar no papel. Mas não é influência, é apropriação técnica. A poesia brasileira é uma espécie de floresta tropical, onde dá de tudo: plantas, insetos, bichos... Sinal de saúde verbal/cultural.<br /><br />B - Qual o poema mais personifica a sua obra?<br /><br />BT - Nenhum, porque a principal característica de minha obra é fazer poemas (contos, etc.) que pareçam ter sido escritos por pessoas completamente diferentes. Portanto, nenhum deles pode exprimir isto isoladamente.<br /><br />B - Como vê antologias dos "vinte mais", "dos com mais futuro" etc?<br /><br />BT - Qualquer publicação é boa. Os critérios não importam. Penso em editar antologias tipo "Assim escrevem os poetas com menos de 1,80 m de altura", ou "Antologia dos Capricornianos", ou "Os melhores 20 Poemas que começam com a letra J". Contando que se publiquem bons poemas, tá legal.<br /><br />B - Quantos livros publicou? Fale sobre eles?<br /><br />BT - Alguns livros de poemas com coisas magníficas e coisas que me fazem morrer de vergonha, mas que não retiraria numa reedição, porque sempre posso mudar de idéia. Um romance arrancado a fórceps durante quase 4 anos, que ficou totalmente diferente do plano inicial, mas que toca alguns temas profundamente importantes para mim. Ensaios sobre ficção científica, que serão muito úteis aos pesquisadores do próximo século.Folhetos de cordel com letras de canções, que hoje revejo com saudade. Um livro de humor que vendeu mais de 30 mil e me desobrigou de fazer sucesso novamente. E dois<br /><br />livros de contos fantásticos que talvez sejam o melhor da minha produção.<br /><br />B - Como utiliza a ficção científica na sua literatura?<br /><br />BT - Como pano-de-fundo para contar histórias meio grotescas, para experimentar vozes narrativas, ou para bordar<br /><br />estilisticamente temas já pisado e repisados. Posso afirmar que nenhuma das minhas histórias de FC tem uma só idéia original. Tudo é material reciclado, e digo isso com vaidade. "Ser original", "ter sido o único a ter feito algo" é a maior bobagem em literatura.<br /><br />B - Quais os paralelismos entre Drummond e Augusto dos Anjos?<br /><br />BT - A visão desencantada do Universo e do destino do homem dentro dele. No mais, são diferentíssimos.<br /><br />B - Como vê a internet como meio de veiculação de cultura?<br /><br />BT - Algo comparável ao que foi o rádio como meio de veiculação da música.<br /><br />B - Qual o papel do escritor na sociedade?<br /><br />BT - O meu é A-4, mas tem gente que prefere tamanho ofício.<br /><br />CAIS DO CORPO<br />eles<br />que têm<br />uma mulher<br />em cada porto<br /><br />elas<br />que têm<br />um homem<br />em cada navio<br /><br />(quente é o cais do corpo,<br />quando o mar é frio)<br /><br />OFÍCIO POÉTICO<br /><br />escreva no corpo dela<br />um poema<br />com seu pau.<br /><br />faça um poema<br />bem longo.<br /><br />goze no ponto final.<br /><br />POEMA DA BUCETA CABELUDA<br /><br />A buceta de minha amada<br />tem pelos barrocos,<br />lúdicos, profanos.<br />É faminta<br />como o polígono das secas<br />e cheia de ritmos<br />como o recôncavo baiano.<br /><br />A buceta de minha amada<br />é cabeluda<br />como um tapete persa.<br />É um buraco-negro<br />bem no meio do púbis<br />do universo.<br /><br />A buceta de minha amada<br />é cabeluda,<br />misteriosa, sonâmbula.<br />É bela como uma letra grega:<br />é o alfa-e-ômega dos meus segredos,<br />é um delta ardente sob os meus dedos<br />e na minha língua<br />é lambda.<br /><br />A buceta de minha amada<br />é um tesouro<br />é o Tosão de Ouro<br />é um tesão.<br />É cabeluda, e cabe, linda,<br />em minha mão.<br /><br />A buceta de minha amada<br />me aperta dentro, de um tal jeito<br />que quase me morde;<br />e só não é mais cabeluda<br />do que as coisas que ela geme ao meu ouvido<br />quando a gente fode.<br /><br />ESCRITO NO ESCURO<br /><br />Entre as negras paredes desta furna<br />eu incrusto meu ser. Aqui sucumbo.<br />Minhas asas, meus olhos são de chumbo,<br />o meu corpo insensível é uma urna<br />que encarcera a tarântula noturna<br />do pavor ante o próximo minuto;<br />um negror de pupila alastra o luto<br />sobre as faces imóveis que me escutam<br />(sobre os bichos, que, ávidos, disputam<br />meus despojos de espectro prostituto).<br /><br />Sempre isto, o Real: sempre o negrume<br />de uma noite implacável e absurda<br />onde a fauna das víboras chafurda:<br />esse pântano mau de fel e estrume.<br />Sempre isto, o que sonho: o ardente gume<br />das visões imbecis que arquiteturo,<br />pão de cinzas, trepada atrás do muro,<br />cem fogueiras de sal no corpo inútil,<br />gargalhada de onça, voz de bútio<br />que prediz o terror do meu futuro.<br /><br />Meus delírios que as frases não capturam.<br />Meus lacraus cravejados-me na nuca.<br />Minha mente-armadilha, uma cumbuca<br />onde aranhas ferozes retorturam<br />símias mãos que se arriscam, se aventuram<br />a colher os seus grãos ou suas frutas.<br />Vê, Razão: peias rotas e corrutas<br />mal sustentam o monstro, ele é só músculos,<br />os seus berros abalam os crepúsculos<br />e despertam morcegos lá nas grutas.<br />(Eu sofreio-te as rédeas) Ah, Loucura,<br />tu não vês que sou eu que te conduzo?<br />(Mas não sou, sei que não, estou confuso,<br />sei que é ela quem manda.) Esta procura<br />de desvãos vulneráveis na estrutura<br />do meu ser é em vão. (Não é: me oculto<br />procurando fugir a cada vulto<br />que a esconde.) Desiste: não me curvo.<br />(Curvarei, sei que um dia, e estarei turvo,<br />ressurreto, remorto e ressepulto).<br /><br />O CASO DOS DEZ NEGRINHOS<br />(romance policial brasileiro)<br /><br />Dez negrinhos numa cela e um deles não mais se move.<br />Manhã cedinho eles contam: e só tem nove.<br /><br />Nove negrinhos fugindo; um deles, o mais afoito<br />dançou -- os guardas pegaram -- fugiram oito.<br /><br />Oito negrinhos trabalham de revólver e canivete;<br />roupa cáqui vem chegando; correram sete.<br /><br />Sete negrinhos seguiam pela rua de vocês.<br />Um pai chamou a polícia; fugiram seis.<br /><br />Seis negrinhos dão o balanço: bolsa, anél, relógio, brinco...<br />houve um erro na partilha e viraram cinco.<br /><br />Cinco negrinhos de olho na saída do teatro;<br />um vacilou, deu bobeira, sobraram quatro.<br /><br />Quatro negrinhos tormbando. Todos quatro de uma vez.<br />Um deles o cara agarra -- mas não os três.<br /><br />Três negrinhos batalhando feijão, farinha e arroz.<br />Um deu-se mal: a comida... dava pra dois.<br /><br />Dois negrinhos se embebedam de brama, cachaça e rum;<br />discussão, briga, navalha... fica esse um.<br /><br />E um negrinho vem surgindo<br />do meio da multidão:<br /><br />por trás desse derradeiro<br />vem um milhão.<br /><br />A RESPOSTA DO COMPUTADOR<br /><br />homem com mulher<br />mulher com homem<br />homem com homem<br />mulher com mulher<br /><br />homem e mulher<br />com homem<br />mulher e homem<br />com mulher<br /><br />sexo não tem sexo<br />é quem gosta<br />com quem quer.<br /><br />ARTIGO DE FUNDO<br /><br />Eu quero é a orgia!<br />A safadeza!<br />A indecência!<br /><br />Deixo pros padres<br />e pros militares<br />a continência!<br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Cacaso<br /><br />Antonio Carlos Ferreira de Brito<br /><br />(Uberaba MG, 1944 - Rio de Janeiro RJ, 1987)<br /><br />Publicou seu primeiro livro de poesia, A Palavra Cerzida, em 1967. Dois anos depois formou-se bacharel em Filosofia pela UFRJ, em 1969. Na época já colaborava nos jornais cariocas Opinião e Movimento. Entre 1965 e 1975 foi professor de Teoria Literária na PUC/RJ. Participou nos movimentos estudantis contra o regime militar, em 1968. Em 1974 e 1975 integrou os grupos Frenesi, com Roberto Schwarz, Francisco Alvim, Geraldo Carneiro, João Carlos Pádua, e Vida de Artista, com Eudoro Augusto, Carlos Saldanha (Zuca Sardan), Chacal, Luiz Olavo Fontes, produzindo suas próprias coleções, antologias e revistas. Em 1987 conquistou o primeiro lugar no Festival de Música Som das Águas, realizado em Lambari MG, com a música O Dia do Juízo, em parceria com Sueli Costa. Sua obra poética inclui os livros Grupo Escolar (1974), Segunda Classe (1975), Beijo na Boca (1975), Na Corda Bamba (1978), Mar de Mineiro (1982) e Beijo na Boca e Outros Poemas (1985). Cacaso é um dos principais nomes da "poesia marginal" brasileira. Sua obra, influenciada por Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Oswald de Andrade, tematizou a política e o amor em tempos de ditadura e liberação sexual, com humor e crítica social.<br /><br />A Casa<br />Na minha infância quando chovia<br />batia sobre o telhado<br />uma pancada macia<br />a noite vinha de fora<br />e dentro de casa caía<br />meu olho esquerdo dormia<br />enquanto o outro velava<br />havia portas rangendo<br />lá fora o vento miava<br />no fundo da noite a casa<br />parece que navegava<br />meu coração passeava<br />por uma sala sombria<br />por este lado se entrava<br />por este outro se olhava<br />e por nenhum se saía<br /><br />Na minha infância quando chovia<br />batia sobre o meu peito<br />uma suave agonia<br />a noite vinha de longe<br />e dentro da gente caía<br />meu pai que sempre saía<br />numa viagem calada<br />havia vozes chamando<br />na boca da madrugada<br />no fundo da noite a casa<br />parece que despertava<br />assombração que passava<br />no sopro da ventania<br />por este lado se entrava<br />por este outro se olhava<br />e por nenhum se saía<br /><br />As Coisas<br /><br />O melão melou<br />A casa casou<br />A bola bolou<br />A rola rolou<br />O mato matou<br />O dia adiou<br />A gia giou<br />A pia piou<br />O pinto pintou<br />O boi boiou<br />O gato engatou<br />O pato empatou<br />A pomba empombou<br />A paca empacou<br />O galo galou<br />O ralo ralou<br />O calo calou<br />O barco embarcou<br />A vaca avacalhou<br />A banana embananou<br />A sombra assombrou<br />O raio raiou<br />O piru pirou<br /><br />Há uma Gota de Sangue no Cartão Postal<br /><br />eu sou manhoso eu sou brasileiro<br />finjo que vou mas não vou minha janela é<br />a moldura do luar do sertão<br />a verde mata nos olhos verdes da mulata<br /><br />sou brasileiro e manhoso por isso dentro<br />da noite e de meu quarto fico cismando na beira de um rio<br />na imensa solidão de latidos e araras<br />lívido<br />de medo e de amor<br /><br />Jogos Florais I<br /><br />Minha terra tem palmeiras<br />onde canta o tico-tico.<br />Enquanto isso o sabiá<br />vive comendo o meu fubá.<br /><br />Ficou moderno o Brasil<br />ficou moderno o milagre:<br />a água já não vira vinho,<br />vira direto vinagre.<br /><br />Lero-Lero<br /><br />Sou brasileiro<br />de estatura mediana<br />gosto muito de fulana<br />mas sicrana é quem me quer<br />porque no amor<br />quem perde quase sempre ganha<br />veja só que coisa estranha<br />saia dessa se puder<br /><br />Eu sou poeta<br />e não nego minha raça<br />faço verso por pirraça<br />e também por precisão<br />de pé quebrado<br />verso branco rima rica<br />negaceio dou a dica<br />tenho a minha solução<br /><br />Não guardo mágoa<br />não blasfemo não pondero<br />não tolero lero-lero<br />devo nada pra ninguém<br />sou esforçado<br />minha vida levo a muque<br />do batente pro batuque<br />faço como me convém<br />Sou brasileiro<br />tatu-peba taturana<br />bom de bola ruim de grana<br />tabuada sei de cor<br />4 x 7<br />28 noves fora<br />ou a onça me devora<br />ou no fim vou rir melhor<br /><br />Não entro em rifa<br />não adoço não tempero<br />não remarco o marco zero<br />se falei não volto atrás<br />por onde passo<br />deixo rastro deito fama<br />desarrumo toda trama<br />desacato satanás<br /><br />Diz um ditado<br />natural da minha terra<br />bom cabrito é o que mais berra<br />onde canta o sabiá<br />desacredito<br />no azar da minha sina<br />tico-tico de rapina<br />ninguém leva o meu fubá<br />O Fazendeiro do Mar<br />Mar de mineiro é<br />inho<br />mar de mineiro é<br />ão<br />mar de mineiro é<br />vinho<br />mar de mineiro é<br />vão<br />mar de mineiro é chão<br />Mar de mineiro é pinho<br />mar de mineiro é<br />pão<br />mar de mineiro é<br />ninho<br />mar de mineiro é não<br />mar de mineiro é<br />bão<br />mar de mineiro é garoa<br />mar de mineiro é<br />baião<br />mar de mineiro é lagoa<br />mar de mineiro é<br />balão<br />mar de mineiro é são<br />Mar de mineiro é viagem<br />mar de mineiro é<br />arte<br />mar de mineiro é margem<br /><br />(...)<br /><br />Mar de mineiro é<br />arroio<br />mar de mineiro é<br />zem<br />mar de mineiro é<br />aboio<br />mar de mineiro é nem<br />mar de mineiro é<br />em<br />Mar de mineiro é<br />aquário<br />mar de mineiro é<br />silvério<br />mar de mineiro é<br />vário<br />mar de mineiro é<br />sério<br />mar de mineiro é minério<br />Mar de mineiro é<br />gerais<br />mar de mineiro é<br />campinas<br />mar de mineiro é<br />Goiás<br />Mar de mineiro é colinas<br />mar de mineiro é<br />minas<br /><br />Poética<br /><br />Alguma palavra,<br />este cavalo que me vestia como um cetro,<br />algum vômito tardio modela o verso.<br /><br />Certa forma se conhece nas infinitas,<br />a fauna guerreira, a lua fria<br />encrustada na fria atenção.<br /><br />Onde era nuvem<br />sabemos a geometria da alma, a vontade<br />consumida em pó e devaneio.<br />E recuamos sempre, petrificados,<br />com a metafísica<br />nos dentes: o feto<br />fixado<br />entre a náusea e o lençol.<br /><br />Meu poema me contempla horrorizado.<br /><br />Rio, 1965<br /><br />Se Porém Fosse Portanto<br /><br />Se trezentos fosse trinta<br />o fracasso era um portento<br />se bobeira fosse finta<br />e o pecado sacramento<br />se cuíca fosse banjo<br />água fresca era absinto<br />se centauro fosse anjo<br />e atalho labirinto<br />Se pernil fosse presunto<br />armadilha era ornamento<br />se rochedo fosse vento<br />cabra vivo era defunto<br />se porém fosse portanto<br />vinho branco era tinto<br />se marreco fosse pinto<br />alegria era quebranto<br />se projeto fosse planta<br />simpatia era instrumento<br />se almoço fosse janta<br />e descuido fosse tento<br />se punhado fosse penca<br />se duzentos fosse vinte<br />se tulipa fosse avenca<br />e assistente fosse ouvinte<br />se pudim fosse polenta<br />se São Bento fosse santo<br />dona Benta fosse benta<br />e o capeta sacrossanto<br />se a dezena fosse um cento<br />se cutia fosse anta<br />se São Bento fosse bento<br />e dona Benta fosse santa<br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Chacal<br /><br />Ricardo de Carvalho Duarte<br /><br />(Rio de Janeiro RJ 1951)<br /><br />Publicou seu primeiro livro de poesia, Muito Prazer, Ricardo, em 1971. No ano seguinte colaborou na revista Navilouca e publicou seu livro/envelope Preço da Passagem. Passou a integrar, em 1975, a coleção literária Vida de Artista, com Cacaso, Eudoro Augusto, Francisco Alvim, entre outros; ainda em 1975 foi lançado seu livro América. De 1976 a 1977 foi integrante do grupo Nuvem Cigana, com Bernardo Vilhena e Ronaldo Bastos, entre outros poetas. Formou-se bacharel em Comunicação pela UFRJ em 1977. Entre 1978 e 1983 foi co-autor das peças teatrais Aquela Coisa Toda, com o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone e Recordações do Futuro, com o grupo Manhas & Manias. Na década de 1980 trabalhou como cronista do Correio Brasiliense e da Folha de S. Paulo, além de roteirista da TV Globo. Nos anos de 1990 foi produtor do Centro de Experimentação Poética - CEP 20000, da Rioarte, coordenador de oficinas de poesia na UERJ e no Parque Lage e editor da revista O Carioca. Sua obra poética inclui Nariz Aniz (1979), Boca Roxa (1979), Comício de Tudo (1986) e Letra Elétrika (1994). O poeta Paulo Leminski afirmou sobre a obra de Chacal, que é de tendência contemporânea: "A palavra 'lúdico' é a chave para a poesia de Chacal". Leminski também via nos poemas de Chacal a presença "da Poesia Concreta, das letras de música popular, do mundo industrial e urbano que se abateu, irremediavelmente, sobre nós."<br /><br />Papo de Índio<br />Veiu uns ômi di saia preta<br /><br />cheiu di caixinha e pó branco<br /><br />qui eles disserum qui chamava açucri<br /><br />aí eles falarum e nós fechamu a cara<br /><br />depois eles arrepitirum e nós fechamu o corpo<br /><br />aí eles insistirum e nós comemu eles.<br /><br />Reclame<br /><br />se o mundo não vai bem<br /><br />a seus olhos, use lentes<br /><br />... ou transforme o mundo.<br /><br />ótica olho vivo<br /><br />agradece a preferência<br /><br />20 anos recolhidos<br /><br />chegou a hora de amar desesperadamente<br /><br />apaixonadamente<br /><br />descontroladamente<br /><br />chegou a hora de mudar o estilo<br /><br />de mudar o vestido<br /><br />chegou atrasada como um trem atrasado<br /><br />mas que chega<br /><br />Ai de mim, aipim.<br /><br />ai de mim, aipim.<br /><br />ô inhame, a batata é uma puta barata. deixa<br /><br />ela pro nabo nababo que baba de bobo. transa<br /><br />uma com a cebola.<br /><br />aquele hálito? que hábito! me faz chorar.<br /><br />então procura uma cenoura.<br /><br />coradinha, mas muito enrustida.<br /><br />a abóbora tá aí mesmo.<br /><br />como eu gosto de abóbora.<br /><br />então namora uma.<br /><br />falô. vou pegar meu gorrinho e sair poraí pra<br /><br />procurar uma abóbora maneira<br /><br />té mais, aipim<br /><br />té mais, inhame<br /><br />Na porta lá de casa<br /><br />Na porta lá de casa<br /><br />tem dizendo lar romi lar<br /><br />uma bandeira de papel<br /><br />na porta lá de casa<br /><br />as crianças passam<br /><br />e se atiram no chão<br /><br />e se olham por dentro<br /><br />das bocas das palavras<br /><br />na falta de qualquer espelho<br /><br />na porta lá de casa<br /><br />passa o amor o calor<br /><br />de cada um que passa<br /><br />na porta lá de casa.<br /><br />Ponto de bala<br /><br />os mortos tecem considerações<br /><br />os tortos cozem quietos<br /><br />as crianças brincam<br /><br />e bordam desconsiderações<br /><br />Prezado Cidadão<br /><br />Colabore com a Lei<br /><br />Colabore com a Light<br /><br />mantenha luz própria.<br /><br />Primeiro eu quero falar de amor<br /><br />meu amor se esparrama na grama<br /><br />Meu amor se esparrama na cama<br /><br />meu amor se espreguiça<br /><br />meu amor deita e rola no planeta.<br /><br />Rápido e Rasteiro<br /><br />Vai ter uma festa<br /><br />que eu vou dançar<br /><br />até o sapato pedir pra parar.<br /><br />aí eu paro<br /><br />tiro o sapato<br /><br />e danço o resto da vida.<br /><br />Verão<br /><br />Revoada<br /><br />cabeleiras cambalache<br /><br />andarilha<br /><br />na trilha do sol.<br /><br />Bermuda Larga<br /><br />muitos lutam por uma causa justa<br />eu prefiro uma bermuda larga<br />só quero o que não me encha o saco<br />luto pelas pedras fora do sapato<br /><br />Caleidoscópio Cinemascope<br /><br />a vida é um cristal<br />que se reflete em pedaços<br />a vida como ela é<br />é a coleção dos cacos<br /><br />vi um filme que Aladim<br />da lâmpada tirava um gênio<br />ele era James Dean<br />que tinha a cabeça a prêmio<br /><br />eu parti do Irajá<br />passando por Paraty<br />eu ainda chego lá<br />até onde quero ir<br /><br />vi um filme que Fellini<br />fez num ensaio de orquestra<br />tinha tiro de canhão<br />e acabava numa festa<br /><br />se no mato me perdi<br />nesse mato me acharei<br />entre mais de mil picadas<br />numa delas sou o rei<br /><br />eu vi Deus e o diabo<br />dançando na terra do sol<br />Glauber Rocha era o máximo<br />tão bom quanto rock-and-roll<br /><br />minha estrada é um filme<br />cheio de amor e ódio<br />pra onde quer que me vire<br />cinemascope caleidoscópio<br />Espere, Baby<br />espere baby não desespere<br />não me venha com propostas tão fora de propósito<br />não acene com planos mirabolantes mas tão distantes<br /><br />espere baby não desespere<br />vamos tomar mais um e falar sobre o mistério da lua vaga<br />dylan na vitrola dedo nas teclas<br />canto invento enquanto o vento marasma<br /><br />espere baby não desespere<br />temos um quarto uma eletrola uma cartola<br />vamos puxar um coelho um baralho e um castelo de cartas<br />vamos viver o tempo esquecido do mago merlin<br />vamos montar o espelho partido da vida como ela é<br /><br />espere baby não desespere<br />a lagoa há de secar<br />e nós não ficaremos mais a ver navios<br />e nós não ficaremos mais a roer o fio da vida<br />e nós não ficaremos mais a temer a asa negra do fim<br /><br />espere baby não desespere<br />porque nesse dia soprará o vento da ventura<br />porque nesse dia chegará a roda da fortuna<br />porque nesse dia se ouvirá o canto do amor<br />e meu dedo não mais ferirá o silêncio da noite<br />com estampidos perdidos.<br /><br />Fogo-Fátuo<br /><br />ela é uma mina versátil<br />o seu mal é ser muito volúvel<br />apesar do seu jeito volátil<br />nosso caso anda meio insolúvel<br /><br />se ela veste seu manto diáfano<br />sai de noite e só volta de dia<br />eu escuto os cantores de ébano<br />e espero ela chegar da orgia<br /><br />ela pensa que eu sou fogo-fátuo<br />que me esquenta em banho-maria<br />se estouro sou pior que o átomo<br />ainda afogo essa nega na pia.<br /><br />Vamp<br /><br />a rua escura deserta<br />acelera o desejo<br />eu piso fundo no mundo<br />com o farol aceso<br /><br />uma sirene: polícia<br />no retrovisor<br />não sei se é paranóia<br />ou se sou infrator<br /><br />em cada curva fechada<br />espero pelo pior<br />estranho cheiro de sangue<br />ninguém ao redor<br /><br />no carro, o rádio anuncia<br />mais um assassinato<br />vejo seu corpo na esquina<br />paro o carro e salto<br /><br />como vou te esquecer<br />seu beijo é mesmo assim<br />marcas no pescoço dizem<br />que o tempo todo só<br />queria assistir a meu fim<br /><br />um dia seu nome é Ana<br />no outro dia Janette<br />o tempo todo na cama<br />afiando a gilete<br /><br />só sai na rua se for<br />em busca de uma brisa<br />e quando o dia começa<br />você corre da polícia<br /><br />a vida inteira agitou<br />e hoje vive no vício<br />um vai e vem, entra e sai<br />na porta do edifício<br /><br />seu veneno é cruel<br />seu olhar, assassina<br />me queimo no seu calor<br />seu coração de heroína<br /><br />como vou te esquecer<br />seu beijo é mesmo assim<br />marcas no pescoço dizem<br />que o tempo todo só<br />queria assistir a meu fim<br /><br />você só quer aplicar<br />você não quer nem saber<br />você só sabe iludir<br />você espalha o terror<br /><br />Ginga Genipapo<br /><br />aquela guitarrinha ranheta<br /><br />debochada disbocada<br /><br />my generation<br /><br />satisfaction<br /><br />aquela mina felina<br /><br />cuba sarro cocaína<br /><br />do you wanna dance<br /><br />don't let me down<br /><br />aquela ginga genipapo<br /><br />elástica solta rasteira<br /><br />i'm free<br /><br />like a rolling stone<br /><br />aquela ginga genipapo<br /><br />cheiro de porrada no ar<br /><br />street fighting man<br /><br />jumping jack flash<br /><br />aquele som de fuder<br /><br />orelhas pra que ti quero<br /><br />who knows<br /><br />straight ahead<br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Glauco Mattoso<br /><br />Pedro José Ferreira da Silva<br /><br />(São Paulo SP 1951)<br /><br />Glauco Mattoso, cujo nome real é Pedro José Ferreira da Silva, estudou Letras na Universidade de São Paulo, mas não chegou a completar o curso. Entre 1976 e 1994 colaborou em vários periódicos do Rio de Janeiro, como Pasquim e 34 Letras, e também de São Paulo, como Chiclete com Banana e Jornal da Tarde. Em 1977 organizou, com Nilto Maciel, Queda de Braço: Uma Antologia do Conto Marginal. Participante do grupo de poetas "marginais" que, nos anos de 1970, publicava em periódicos alternativos, Mattoso reuniu, em 1981, parte de sua produção poética no livro Jornal Dobrabil, 1977/1981. Ainda em 1981 escreveu, para a coleção Primeiros passos, da Brasiliense, O Que É Poesia Marginal. Nas décadas de 1980 e 1990 participou ativamente de palestras e debates sobre poesia e arte. Considerado uma das vozes mais fesceninas da poesia brasileira comtemporânea, o poeta, herdeiro de Gregório de Mattos e Bocage, é sempre lembrado pelo uso de linguagem obscena, satírica, por vezes chula. Sua trajetória poética abrange dos poemas concretos, visuais, da primeira fase, aos sonetos camonianos de Centopéia: Sonetos Nojentos & Quejandos (1991) e haicais de Haicais Paulistanos (1992).<br /><br />Hino Patriótico do Prisioneiro Político<br />para ser recitado em tom marcial,<br />com acompanhamento de castanholas,<br />trote de cascos (equinos) sobre paralelepípedos<br />ou tilintar de ossos (humanos)<br /><br />independen<br />te<br />men<br />te<br /><br />de quem<br />te<br />men<br />te<br /><br />tens o de<br />ver<br />de<br /><br />outra ver<br />dade de<br />fender<br /><br />Confessional<br /><br />Amar, amei. Não sei se fui amado,<br />pois declarei amor a quem odiara<br />e a quem amei jamais mostrei a cara,<br />de medo de me ver posto de lado.<br /><br />Ainda odeio quem me tem odiado:<br />devolvo agora aquilo que declara.<br />Mas quem amei não volta, e a dor não sara.<br />Não sobra nem a crença no passado.<br /><br />Palavra voa, escrito permanece,<br />garante o adágio vindo do latim.<br />Escrito é que nem ódio, só envelhece.<br /><br />Se serve de consolo, seja assim:<br />Amor nunca se esquece, é que nem prece.<br />Tomara, pois, que alguém reze por mim...<br /><br />Fique Ligado<br /><br />dentro de<br />um segundo<br />em primeira<br />mão<br />o terceiro<br />mundo<br />no seu<br />quarto<br />arregale<br />o globo e não<br />pisque<br /><br />Credo Progressista<br /><br />para Murilo Mendes & Chico Buarque<br /><br />Creio em Deus Pátria,<br />plenipotenciário,<br />criador do espaço aéreo<br />e das águas territoriais,<br />do Mal e do Bem,<br />do Visível e do Invisível.<br />E em Creso Justo,<br />Seu único Filho,<br />nosso Senhor feudal,<br />Que é filho procedente de Pai,<br />Peixinho de Peixe,<br />Nadador de Natação,<br />Sangue do Húmus.<br />O Qual foi concebido do 'Espírito das Leis';<br />nasceu da Mata Virgem;<br />padeceu sob o Poder Moderador;<br />foi seviciado, chacinado<br />e Seu cadáver abandonado em local ermo;<br />desceu ao proletariado,<br />ao terceiro Dia do Trabalho ressurgiu dos pobres,<br />segundo as Escrituras Definitivas<br />de Compra e Venda<br />devidamente inscritas no Cartório<br />de Registro de Imóveis da Capital;<br />subiu ao Planalto,<br />está sentado à mão direitista de Deus Pátria,<br />donde há de vir e julgar os ricos e os pobres;<br />e o Seu império não terá fim.<br />Creio no 'Espírito das Leis';<br />na Santa Aliança, no Santo Ofício,<br />na Família, na Propriedade<br />e na Traição, digo, na Tradição;<br />na mancomunação, perdão,<br />na comunhão dos santos cassados;<br />na cassação dos mandatos;<br />na ressurreição da carne de primeira;<br />na puxa vida eterna,<br />Amém.<br />Cansioneiro<br />viramundo vaila estrada violeiro<br />barravento ventania travessia disparada<br />arrastão veleiro saveiro jangadeiro canoeiro<br />caminhemos caminhando caminhada<br /><br />andança chegança ponteio boiadeiro<br />berimbau arueira aruanda enluarada<br />opinião louvação cantador cirandeiro<br />banda sarabanda porta-estandarte batucada<br /><br />incerteza insensatez inquietação<br />fracasso palhaço jurei errei sofri<br />antonico tico-tico maracangalha construção<br /><br />rosa roda ronda bodas baby zambi<br />cadência decadência aquarela conceição<br />adalgisa amélia aurora irene geni<br /><br />Enfim um Poeta Profissional<br /><br />alexandrinos a metro<br />RIMAS RICAS A PREÇOS POPULARES<br />chaves de ouro em cinco minutos<br />enjambements sem quebrar o pé<br />CESURA INVISÍVEL<br />elegias para plataformas<br />ACRÓSTICOS PARA PARTIDOS<br />Hai-Kais para Militares<br />QUADRINHAS - REDONDILHAS - CUBISMOS<br />GLAUCO (LIBERAL) MATTOSO<br /><br />SONETO SINTÉTICO<br /><br />De como a poesia é definida<br />depende da trajetória do poeta.<br />Qual é, pergunto, a fórmula secreta<br />que traça em poucas linhas uma vida?<br /><br />Segundo Rilke, a lira não duvida.<br />mas Eliot é turrão, e tudo objeta.<br />Bashô quanto mais crê menos se aquieta.<br />Pessoa diz que é fé na dor fingida.<br /><br />Divergem tantos mestres só no tom.<br />Não há por que dar tratos ao bestunto:<br />há química no verso, não um Dom.<br /><br />Qualquer opinião, qualquer assunto<br />será, verdade ou não, poema bom<br />se for densa a fração, breve o conjunto.<br /><br />Soneto Altissonante<br /><br />Barulho é o que se faz na poesia,<br />de dentro para fora do poema.<br />Se não for ruidoso o próprio tema,<br />a forma desafina a melodia.<br /><br />Se o atonal virou monotonia,<br />resolve-se na crítica o problema.<br />É só polemizar, com tinta extrema,<br />se a pança deve estar ou não vazia.<br /><br />A fome, última instância do organismo,<br />define o decibel do belo artístico,<br />que vai de zero a dez em ativismo.<br /><br />A coisa se resume neste dístico:<br />Mais pintam de fatídico um abismo,<br />maior seu interesse e grau turístico.<br /><br />SONETO 240 BARROCONCRETO (1999)<br /><br />Silvícolas cultivam terra aguada.<br />Ar puro, mar azul, fartura quente.<br />O verde acolhe os olhos e, silente,<br />desdobra-se na sílaba molhada.<br /><br />A mata a vaga alaga, e lá se nada.<br />Na grota sobra a luz sobrevivente.<br />Da guerra brota a cruz da nossa gente.<br />Brasil, assim a missa sela e brada.<br /><br />Semeia o grão, a prole, até a colheita.<br />Rebanhos cria, acorda proletário.<br />Saqueia, pilha e dorme. Come e deita.<br /><br />Nascente, o afluente, o tributário.<br />O rio poluído, a paz suspeita.<br />O traço de Brasília, agreste aquário.<br /><br />SONETO 670 LASCADO [a Arnaldo Antunes] (2003)<br /><br />Em vez do brontossauro que já aturo,<br />é dum tiranossauro que ora corro!<br />Já tive um mastodonte por cachorro,<br />mas nem com meu mamute estou seguro!<br /><br />Só pode ser castigo! Neste obscuro<br />inferno pré-histórico percorro<br />meu trágico caminho, sob o jorro<br />de intensos temporais, passando apuro!<br /><br />Do céu o pterodáctilo me ataca!<br />Na terra o megatério me ameaça!<br />Um antropopiteco sofre paca!<br /><br />Nem deixam que um poema em pedra eu faça!<br />Vou ter que usar a pena como faca,<br />salvando, entre os poetas, minha raça!<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Leila Miccolis<br /><br />(Rio de Janeiro RJ 1947)<br /><br />Formou-se bacharel em Direito no Rio de Janeiro RJ, em 1969. Na época, já havia publicado os livros de poesia Gaveta da Solidão (1965) e Trovas que a Vida Rimou (1967). Nas décadas seguintes, produziu poemas, romances, ensaios, comédias e roteiros para televisão. Entre 1975 e 1993 teve poemas publicados em várias antologias, entre as quais 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Participou de atividades com grupos feministas e homossexuais, através dos jornais Lampião e Auê, entre 1979 e 1981. Fundou, nas décadas de 1980 e 1990, as editoras Trote e Blocos. Em 1997 publicou o livro de haicais Estalos, em co-autoria com Urhacy Faustino, e Sangue Cenográfico, este sendo a neunião de todos seus livros até 1997 exceto o De 4 (1990), com prefácios de Ignácio Loyola Brandão, Heloisa Buarque de Hollanda, Gilberto Mendonça Teles e Nélida Piñon. Ignácio, no prefácio diz: "Nenhum poeta brasileiro me toca tanto, me reserva uma emoção, uma agressão, me apunhala, me deixa com vergonha das coisas que os homens fazem. Tem vezes que seus textos me lembram a crueldade com que Dalton Trevisan, na prosa, trata seus personagens". Sua obra poética inclui os livros Mercado de Escravas (1984), Só Se For a Dois (1990) e Sob o Céu de Maricá (1999), entre outros. A poesia de Leila Míccolis é de tendência contemporânea e tematiza, com freqüência, a condição feminina.<br /><br />A Seco<br />Tem coisas que a gente só diz de porre,<br />se não o outro corre;<br />mas passada a bebedeira,<br />a gente acha que fez besteira,<br />não devia ter falado,<br />que se expôs adoidado,<br />à toa e foi tolice.<br />Finge-se então que se esquece o que disse,<br />culpa-se a carência, a demência, a embriaguez,<br />responsáveis por tamanha estupidez.<br />E é aceitando este estranho cabedal<br />que quando se volta ao "estado normal",<br />cada vez mais sós, na defensiva,<br />corroídos morremos de cirrose afetiva.<br /><br />Arte Marajoara (II)<br /><br />Salgado por chorar há tanto tempo<br />a morte de seus filhos mais amados<br />-- peixes-bois e namorados,<br />muçuãs, atuns, baleias --,<br />o mar em extinção e em permanente vazante<br />entoa réquiem fúnebre e dissonante:<br />seu derradeiro canto da sereia.<br /><br />De Volta Para o Presente<br /><br />(Parte única - soneto indivisível...)<br /><br />Hipólita, Antíope ou simples colona,<br />temíveis perigos, feliz, desafio,<br />mostrando a potência do meu poderio,<br />dos campos, senhora, dos píncaros, dona,<br /><br />pois sou tua eterna e soberba Amazona,<br />com arco e com flecha, inclusive no cio,<br />num louco galope, em fatal desvario,<br />por ínvios caminhos que surgem à tona...<br /><br />Aquiles, Teseu, o que queres que sejas,<br />em mim acharás o que tanto desejas:<br />um misto de gozo, ternura e esplendor,<br /><br />por ser a Amazona das tuas florestas,<br />libertas, profundas, reais, manifestas,<br />sem fim cavalgando os sertões deste amor.<br /><br />Em Órbita<br /><br />(Para o show de Tereza Tinoco)<br /><br />Com você<br />quero todas as intimidades<br />de um amor escandalosamente carnudo,<br />sobretudo imperfeito,<br />que seja capaz de fazer<br />eles morderem a boca de despeito<br />e nós lambermos os beiços de prazer.<br />Com você<br />quero um amor que não precisem devassar<br />porque é claro e transparente;<br />daí ameaçar a tanta gente<br />pesada,<br />que não sabe flutuar<br />nem libertar-se da seriedade.<br />Com você<br />quero um amor tão à vontade<br />que muito mais leve que o ar<br />possa desafiar a lei da gravidade...<br /><br />Janela Tridimensional<br /><br />Quem é vivo sempre aparece;<br />mas dependendo do morto<br />ocorre o mesmo processo:<br />os poetas que eu mais amo<br />entram sempre em minha casa<br />pela porta dos seus versos.<br /><br />Aos independentes ausentes: Torquato Neto, Henrique do<br />Valle, Violeta Formiga, Geraldo Alverga, Barrozo Filho,<br />Paulo Veras, Ana Cristina, Batista Jorge, Tony Pereira,<br />Touchê, Cleide Veronesi, Cacaso, Leminski, João Carneiro,<br />Severino do Ramo, Francisco Igreja.<br /><br />Plano de Vôo<br /><br />Deixar de encarar nossos sentimentos<br />como fraquezas,<br />cheios de defesas e sigilos,<br />incomodados e culpados por senti-los,<br />para que nossos planos emocionais<br />aflorem em níveis<br />cada vez mais pessoais<br />... e transferíveis.<br />Vã filosofia...<br />Falas muito de Marx,<br />de divisão de tarefas,<br />de trabalho de base,<br />mas quando te levantas<br />nem a cama fazes...<br /><br />Prós e contras<br /><br />Defendemos a ecologia.<br />Mas engolimos sapos<br />todo dia.<br /><br />Confissão<br /><br />Dizem que o amor é cego,<br />não nego,<br />por isso te abro os olhos:<br />não tenho bens nem alqueires,<br />eu não sou flor que se cheire,<br />nem tão boa cozinheira,<br />(bem capaz que ainda me piches<br />por só comer sanduíches),<br />minha poesia é fuleira,<br />tenho idéias de jerico,<br />um cio meio impudico<br />como as cadelas e as gatas,<br />às vezes me torno chata<br />por me opor ao que comtemplo,<br />sei que sou péssimo exemplo,<br />por pouca coisa me grilo,<br />talvez por mim percas quilos,<br />eu não sei se valho a pena,<br />iguais a mim, há centenas,<br />desejo te ser sincera.<br />Mas no fundo o amor espera<br />que grudes qual carrapicho:<br />são tão grandes meu rabicho<br />e minha paixão por ti,<br />que não estão no gibi...<br />Ao te ver, viro pamonha,<br />sem ação, e sem vergonha<br />o meu ser inteiro goza.<br />Por isso, pra encurtar prosa,<br />do teu corpo, cada poro<br />eu adoro adoro adoro...<br /><br />NOVA INQUISIÇÃO<br /><br />Minha fama é negra,<br />sou mau elemento;<br />censurarão meus versos<br />pra servir de exemplo?<br /><br />PESSOAL E INTRANSFERÍVEL<br /><br />Chegou a "Pequena Notável",<br />de bolso, sou descartável;<br />mas não se deixe enganar<br />com o que eu posso aparentar:<br />se nos frascos pequeninos<br />há os perfumes mais finos,<br />é também neles que vemos<br />os mais terríveis venenos...<br />Não tenho nenhum complexo,<br />transo tudo, até em sexo,<br />eu gosto de ser assim,<br />ninguém esquece de mim...<br />Gasto pouco com feijão,<br />com roupa, e na condução,<br />-- se o trocador não bronqueia --,<br />eu às vezes pago meia...<br />Por fim, tenho outra vantagem:<br />eu caibo em qualquer bagagem.<br />E quem se atreve e se enleva<br />vê que sou leve e me leva...<br />Assim, por mais que eu ande,<br />com minha miudez eu venho sempre a aprender<br />que ninguém precisa ser gente grande.<br />Precisa é SER!<br /><br />SEREIA, JANAÍNA, IEMANJÁ<br /><br />Vem meu veleiro navegar-me lendas<br />que abro oceanos nunca desbravados,<br />as portas líquidas dos meus reinados,<br />e armo de pérolas as nossas tendas...<br /><br />Vê-me a nudez - afasta as alvas rendas,<br />que encontrarás tesouros afundados;<br />só que talvez, pra teres tais agrados,<br />ao mar pra sempre tua vida prendas.<br /><br />Se mesmo assim o novo lar não temes,<br />se não recuas, e se ainda gemes,<br />por meu amor, sedento de paixão,<br /><br />cheia de luzes, colorida amante,<br />eu verde, azul, e em brilhos deslumbrantes,<br />refratarei-me em tuas redes-mãos.<br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Paulo Leminski<br /><br />(Curitiba PR, 1944 - idem 1989)<br /><br />Publicou seus primeiros poemas em 1964, na revista Invenção, porta-voz da poesia concreta paulista. No período, trabalhava como Professor de História e Redação em cursos pré-vestibulares e professor de judô. Músico e letrista, nos anos de 1970 teve canções gravadas por A Cor do Som, Paulinho Boca de Cantor, Moraes Moreira. Em 1975 publicou o romance experimental Catatau. Na década de 1980, trabalhou como colaborador em periódicos, tradutor e redator de publicidade. Seu primeiro livro de poesia, Não fosse isso e era menos. Não fosse tanto e era quase, saiu em 1980. Seguiram-se Caprichos e Relaxos (1983) e Distraídos Venceremos (1987). Entre suas obras póstumas estão La vie en close (1991) e Winterverno (1994). Leminski fez parte da geração de "poetas marginais" que, nos anos de 1970, publicava em revistas alternativas; a partir dos anos 80, no entanto, tornou-se um dos nomes mais populares da poesia contemporânea brasileira. Sua obra assimilou elementos da primeira fase do modernismo, como o coloquialismo e o bom-humor, do concretismo e também da poesia oriental, que inspirou a criação de seus famosos haicais.<br /><br />A Lua no Cinema<br />A lua foi ao cinema,<br />passava um filme engraçado,<br />a história de uma estrela<br />que não tinha namorado.<br /><br />Não tinha porque era apenas<br />uma estrela bem pequena,<br />dessas que, quando apagam,<br />ninguém vai dizer, que pena!<br /><br />Era uma estrela sozinha,<br />ninguém olhava pra ela,<br />e toda a luz que ela tinha<br />cabia numa janela.<br /><br />A lua ficou tão triste<br />com aquela história de amor,<br />que até hoje a lua insiste:<br />-- Amanheça, por favor!<br /><br />Bem no Fundo<br /><br />no fundo, no fundo,<br />bem lá no fundo,<br />a gente gostaria<br />de ver nossos problemas<br />resolvidos por decreto<br /><br />a partir desta data,<br />aquela mágoa sem remédio<br />é considerada nula<br />e sobre ela -- silêncio perpétuo<br /><br />extinto por lei o remorso,<br />maldito seja quem olhar pra trás,<br />lá pra trás não há nada,<br />e nada mais<br /><br />mas problemas não se resolvem,<br />problemas têm família grande,<br />e aos domingos saem todos passear<br />o problema, sua senhora<br />e outros pequenos probleminhas<br /><br />Claro Calar sobre uma Cidade sem Ruínas (Ruinogramas)<br /><br />Em Brasília, admirei.<br />Não a niemeyer lei,<br />a vida das pessoas<br />penetrando nos esquemas<br />como a tinta sangue<br />no mata borrão,<br />crescendo o vermelho gente,<br />entre pedra e pedra,<br />pela terra a dentro.<br /><br />Em Brasília, admirei.<br />O pequeno restaurante clandestino,<br />criminoso por estar<br />fora da quadra permitida.<br />Sim, Brasília.<br />Admirei o tempo<br />que já cobre de anos<br />tuas impecáveis matemáticas.<br /><br />Adeus, Cidade.<br />O erro, claro, não a lei.<br />Muito me admirastes,<br />muito te admirei.<br /><br />Desmontando o Frevo<br /><br />desmontando<br />o brinquedo.<br />eu descobri<br />que o frevo<br />tem muito a ver<br />com certo<br />jeito mestiço de ser<br />um jeito misto<br />de querer<br />isto e aquilo<br />sem nunca estar tranquilo<br />com aquilo<br />nem com isto<br /><br />de ser meio<br />e meio ser<br />sem deixar<br />de ser inteiro<br />e nem por isso<br />desistir<br />de ser completo<br />mistério<br /><br />eu quero<br />ser o janeiro<br />a chegar<br />em fevereiro<br />fazendo o frevo<br />que eu quero<br />chegar na frente<br />em primeiro<br /><br />Ler pelo Não<br /><br />Ler pelo não, quem dera!<br />Em cada ausência, sentir o cheiro forte<br />do corpo que se foi,<br />a coisa que se espera.<br />Ler pelo não, além da letra,<br />ver, em cada rima vera, a prima pedra,<br />onde a forma perdida<br />procura seus etcéteras.<br />Desler, tresler, contraler,<br />enlear-se nos ritmos da matéria,<br />no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora,<br />navegar em direção às Índias<br />e descobrir a América.<br /><br />Limites ao Léu<br /><br />POESIA: "words set to music" (Dante<br />via Pound), "uma viagem ao<br />desconhecido" (Maiakovski), "cernes e<br />medulas" (Ezra Pound), "a fala do<br />infalável (Goethe), "linguagem<br />voltada para a sua própria<br />materialidade" (Jakobson),<br />"permanente hesitação entre som e<br />sentido" (Paul Valéry), "fundação do<br />ser mediante a palavra" (Heidegger),<br />"a religião original da humanidade"<br />(Novalis), "as melhores palavras na<br />melhor ordem" (Coleridge), "emoção<br />relembrada na tranquilidade"<br />(Wordsworth), "ciência e paixão"<br />(Alfred de Vigny), "se faz com<br />palavras, não com idéias" (Mallarmé),<br />"música que se faz com idéias"<br />(Ricardo Reis/ Fernando Pessoa), "um<br />fingimento deveras" (Fernando<br />Pessoa), "criticism of life" (Mathew<br />Arnold), "palavra-coisa" (Sartre),<br />"linguagem em estado de pureza<br />selvagem" (Octavio Paz), "poetry is to<br />inspire" (Bob Dylan), "design de<br />linguagem" (Décio Pignatari), "lo<br />imposible hecho posible" (García<br />Lorca), "aquilo que se perde na<br />tradução" (Robert Frost), "a liberdade<br />da minha linguagem" (Paulo<br />Leminski)...<br />Sujeito Indireto<br />Quem dera eu achasse um jeito<br />de fazer tudo perfeito,<br />feito a coisa fosse o projeto<br />e tudo já nascesse satisfeito.<br />Quem dera eu visse o outro lado,<br />o lado de lá, lado meio,<br />onde o triângulo é quadrado<br />e o torto parece direito.<br />Quem dera um ângulo reto.<br />Já começo a ficar cheio<br />de não saber quando eu falto,<br />de ser, mim, indireto sujeito.<br /><br />[Marginal é quem escreve à margem,]<br /><br />Marginal é quem escreve à margem,<br />deixando branca a página<br />para que a paisagem passe<br />e deixe tudo claro à sua passagem.<br /><br />Marginal, escrever na entrelinha,<br />sem nunca saber direito<br />quem veio primeiro,<br />o ovo ou a galinha.<br /><br />en la lucha de clases<br /><br />en la lucha de clases<br /><br />todas las armas son buenas<br />piedras<br />moches<br />poemas<br /><br />WITH THE MAN<br /><br />aqui<br />no oeste<br />todo homem tem um preço<br />uma cabeça a prêmio<br />índio bom é índio morto<br />sem emprego<br />referência<br />ou endereço<br />tenho toda a liberdade<br />pra traçar meu enredo<br /><br />nasci<br />numa cidade pequena<br />cheia de buracos de balas<br />porres de uísque<br />grandes como o grand cayon<br />tiroteios noturnos<br />entre pistoleiros brilhantes<br />como o ouro da califórnia<br />me segue uma estrela<br />no peito do xerife de denver<br /><br />manchete<br /><br />CHUTES DE POETA<br />NÃO LEVAM PERIGO À META<br /><br />quero a vitória<br /><br />quero a vitória<br />do time de várzea<br /><br />valente<br />covarde<br /><br />a derrota<br />do campeão<br /><br />5 X 0<br />em seu próprio chão<br /><br />circo<br />dentro<br />do pão<br /><br />eu queria tanto<br /><br />eu queria tanto<br />ser um poeta maldito<br />a massa sofrendo<br />enquanto eu profundo medito<br /><br />eu queria tanto<br />ser um poeta social<br />rosto queimado<br />pelo hálito das multidões<br /><br />em vez<br />olha eu aqui<br />pondo sal<br />nesta sopa rala<br />que mal vai dar para dois<br /><br />podem ficar com a realidade<br /><br />podem ficar com a realidade<br />esse baixo astral<br />em que tudo entra pelo cano<br /><br />eu quero viver de verdade<br />eu fico com o cinema americano<br /><br />Haicai<br />1.<br /><br />a estrela cadente<br />me caiu ainda quente<br />na palma da mão<br />2.<br /><br />cortinas de seda<br />o vento entra<br />sem pedir licença<br /><br />[poeta de província]<br /><br />um dia<br /><br />a gente ia ser Homero<br /><br />a obra nada menos que uma ilíada<br /><br />depois<br /><br />a barra pesando<br /><br />dava pra ser aí um rimbaud<br /><br />um ungaretti um fernando pessoa qualquer<br /><br />um lorca um éluard um ginsberg<br /><br />por fim<br /><br />acabamos o pequeno poeta de província<br /><br />que sempre fomos<br /><br />por trás de tantas máscaras<br /><br />que o tempo tratou como a flores<br /><br />[poeta inglês]<br /><br />um dia desses quero ser<br /><br />um grande poeta inglês<br /><br />do século passado<br /><br />dizer<br /><br />ó céu ó mar ó clã ó destino<br /><br />lutar na índia em 1866<br /><br />e sumir num naufrágio clandestino<br /><br />um bom poema<br /><br />um bom poema<br /><br />leva anos<br /><br />cinco jogando bola,<br /><br />mais cinco estudando sânscrito,<br /><br />seis carregando pedra,<br /><br />nove namorando a vizinha,<br /><br />sete levando porrada,<br /><br />quatro andando sozinho,<br /><br />três mudando de cidade,<br /><br />dez trocando de assunto,<br /><br />uma eternidade, eu e você,<br /><br />caminhando junto<br /><br /><br />Catatau - fragmento inicial<br /><br />ergo sum, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui presente, neste labirinto de enganos deleitáveis, - vejo o mar, vejo a baía e vejo as naus. Vejo mais. Já lá vão anos III me destaquei da Europa e a gente civil, lá morituro. Isso de "bárbarus - non intellegor ulli" - dos exercícios de exílio de Ovídio é comigo. Do parque do príncipe, a lentes de lintera, CONTEMPLO A CONSIDERAR O CAIS, O MAR, AS NUVENS, OS ENIGMAS E OS PRODÍGIOS DE BRASÍLIA. Desde verdes anos, via de regra, medito horizontal manhã cedo, só vindo à luz já sol meiodia. Estar, mister de deuses, na atual circunstância, presença no estanque dessa Vrijburg, gaza de mapas, taba rasa de humores, orto e zôo, oca de feras e casa de flores. Plantas sarcófagas e carnívoras atrapalham-se, um lugar ao sol e um tempo na sombra. Chacoalham, cintila a água gota a gota, efêmeros chocam enxames. Cocos fecham-se em côas, mamas ampliam: MAMÕES. O vapor umedece o bolor, abafa o mofo, asfixia e fermenta fragmentos de fragrâncias. Cheiro um palmo à frente do nariz, mim, imenso e imerso, bom. Bestas, feras entre flores circulam em jaula tripla - as piores, dupla as maiores; em gaiolas, as menores, à ventura - as melhores. Animais anormais engendra o equinócio, desleixo no eixo da terra, desvio das linhas de fato. Pouco mais que o nome o toupinambaoults lhes signou, suspensos apenas pelo nó do apelo. De longe, três pontos... em foco, Tatu, esferas rolando de outras eras, escarafuncham mundos e fundos. Saem da mãe com setenta e um dentes, dos quais dez caem aí mesmo, vinte e cinco ao primeiro bocado de terra, vinto o vento leva, quatorze a água, e um desaparece num acidente. Um, na algaravia geral, por nome Tamanduá, esparrama língua no pó de incerto inseto, fica de pé, zarolho de tão perto, cara a cara, ali, aí, esdruxula num acúmulo e se desfaz eclipsado em formigas. Pela ou na rama, você mettalica longisonans, a araponga malha ferro frio bentevi no mal-me-quer-bem-me-quer. A dois lances de pedra daqui, volta e meia, dois giros; meia volta, vultos a três por dois. De onde em onde, vão e vêm; de quando em vez, vêem o que tem. Perante o segundo elemento, a manda anda e desanda, papa e bebe, mama e baba. Depois da laguna, enchem a anterior lacuna. Anta, nunca a vi tão gorda. Nuvens que o gambá fede empalidecem o nariz das pacas. Capirava, estômago a sair pelas órbitas, ou, porque fartas se estatelam arrotando capinzais ou, como são sabem senão comer, jogam o gargalo para o alto, arreganhando a dentadura, tiriricas de estar sem fome. Ensy, João chamado bobo, não tuge nem muge, não foge tiro, brilho nem barulho - gálbula brachyptera, insectívora, tacitura, non scansoria, stupida -, para jogar sério a esmo. Monos se penteando espelham-se no banho das piranhas, botam mau olhando anulando-lhes a estampa, símios para sempre. Na aguada, o corpanzil réptil entretec e lagartos e lagostas. Monstros da natura desvairada nestes ares, à tona, boquiaberta, à toa, cabisbaixa, o mesmo nenhum afã. Tira pestana ao sol uma jibóia que é só borboletas. Tucanos atrás dos canos, máscara sefardim, arcanos no tutano. Jibóia, no local do crime, desamarram espirais englobando cabras, ovelhas, bois. Chifres da boca para fora - esfinges bucéfalas entre aspas - decompõem pelos mangues o conteúdo: cospem cornos o dobro. Exorbitantes, duram contos de séculos, estabelece Marcgravf, na qualidade de profeta. Vegetam eternidades. Crias? Mudas? Cruzam e descruzam entre si? Não, esse pensamento, não, - é sístole dos climas e sintomas do calor em minha cabeça. Penso mas não compensa: a sibila me belisca, a pitonisa me hipnotiza, me obelisco, essa python medusa e visa, eu paro, viro paupau, pedrapedra. Dédalos de espelho de Elísio, torre babéu, hortus urbis diaboli, furores de Thule, delícias de Menrod, curral do pasmo, cada bicho silencia e sleciona andamentos e paramentos. Bichos bichando, comigo que se passa?<br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Régis Bonvicino<br /><br />PÉTALA<br />Pétala retoma o espaço<br />extraviado<br />e fios-favila<br />- o inverno<br />uma âncora irremovível? -<br />reanima o espaço<br />perdido<br />pétalas tornam ruminantes<br />as pedras<br />lâmpadas?<br />noitepétala<br />alarme de cor<br />espaço a pino<br />um pássaro pousa<br />bica a flor e asas<br />linhas que são só<br />ângulos<br />que o sol nada revela<br />que a claridade<br />reitera : ângulos<br />aqui<br />pó nos<br />postes<br />teias<br />de amarelo<br />vivas<br />como pontos avançados do universo<br />andando<br />e salta à vista<br /><br />INSETOS<br /><br />Insetos pensos<br />em seguida corolas<br />secas gravetos flores<br />no confronto<br /><br />com tensos<br />fios fachadas fixas<br />mesmo à sombra<br />cor<br /><br />em círculos como<br />sinos do esguio<br />irrompem na calçada<br />e ao vento<br /><br />EGO<br /><br />Ego desprega<br />sereia e caveira<br /><br />Narciso<br />de um eu<br /><br />impreciso Bosch<br />na altura da clavícula<br /><br />Espécie de cogito<br />do signo incógnito<br /><br />Homem sem sombra<br /><br />Na pele,<br />corpo em torno do quase nada<br />LUA<br />Lua inteira<br />( sol insone )<br />junto<br />à montanha<br /><br />Itabirito<br />minério de ferro<br />e quartzito<br />mirante<br /><br />de dentro do céu<br />ao redor,<br /><br />que importa<br />o infinito ?<br /><br />OLHAR DE DENTRO<br /><br />Olhar de dentro,<br />tocar de dentro -<br />só, em si mesmo,<br />onde em silêncio<br />adentro,<br />onde os de fora,<br />avessos,<br />me concentro<br />de estar<br />dentro<br /><br />que se concentra<br />numa rajada<br />de vento<br />mas está dentro<br />do dentro -<br />às vezes, monumento<br /><br />os dos outros e os meus<br />de fora<br />com eles entro -<br />cabelos de dentro,<br />unhas de dentro -<br />miragem-fragmento<br />de peitos<br /><br />LEGENDA, Nº 2<br /><br />Fragmento de árvore<br />que o espaço impõe<br />à vista<br /><br />Vermelho de não,<br />a automóveis,<br />sob fios<br /><br />Em silêncio como o<br />vidro da janela<br />este momento vazio.<br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Jayro Luna<br /><br />(1960)<br /><br />O webdesigner destas apostilas e páginas de Internet. Ouso me colocar aqui, entre tantos e grandes poetas e escritores. Afinal de contas, a página é minha e se a gente não se dá o valor, quem dará?<br /><br />Formei-me em Letras pela PUC-SP em 1986. Fiz mestrado em literatura brasileira (FFLCH/USP, 1997) com a dissertação Retórica da Poesia Épica Brasileira: De Bento Teixeira à Sousândrade, e o doutoramento em literatura portuguesa (FFLCH/USP, 2002) com a tese José de Almada Negreiros, poeta: Do Futurismo e do Sensacionismo à Poética da Ingenuidade. Como poeta, na década de 80 publiquei fanzines e plaquettes de poesia marginal. Mais recentemente os livros de poesia Infernália Tropicalis (1999), Florilégio de Alfarrábio (2001) e Manual Secreto de Rapsodomancia (no prelo, 2005). Como estudioso e crítico de literatura, os livros de ensaios Monografias de Literatura, Teatro, Comunicação e Semiótica (1998), Participação e Forma (2001) e Caderno de Anotações (no prelo, 2005). Fui duas vezes vencedor do concurso Projeto Nascente/Cadê o seu talento? (USP/Abril, 1991 e 1992) na categoria livro de poesia. Minha poesia chafurda nas águas das vanguardas poéticas do século XX (Futurismo, Cubismo, Surrealismo, Dadaísmo, Concretismo) e na reinvenção de formas da tradição (soneto, baladas, odes). A intertextualidade se desenvolve por meio de paródias, paráfrases, alusões, citações. A contracultura e a beat generation compõem o panorama final.<br /><br />A Obra de Arte Na Época de suas Técnicas de<br />Reprodução (Hipótese Estética).<br /><br />Para Walter Benjamim e Antero de Quental<br /><br />Já não sei quanto vale a nova arte<br /><br />Quando a vejo nas galerias rifadas,<br /><br />Turva de aspecto, à luz fotografada,<br /><br />Como chocante pós-tudo encarte...<br /><br />Sonolento meu olhar se esvai destarte,<br /><br />Respira fumo e logo embriagada<br /><br />A artista de alma vasta e agitada<br /><br />Desfaz-se dos últimos baluartes...<br /><br />Nossa era irritada e virulenta<br /><br />Chama à glossolalia experimento,<br /><br />Verbo ao ruído de fragmentos e caos...<br /><br />Mas a Arte é no mundo insustentável,<br /><br />Num céu volátil de ordem fractável...<br /><br />Tu, sentimento, não és mar, és nau... 9;<br /><br />Farenheit 451<br /><br />Fogo! Fire! Queimarão todos os livros!<br /><br />Ardem nas ruas as odes, albas, liras!<br /><br />Quando o saber é subversivo, a ira<br /><br />Louca em trevas lança a alma dos vivos!<br /><br />O inferno de Dante, o Uivo, a Ilíada!<br /><br />Bombeiros incendiando uma Odisséia;<br /><br />A magia dos Tiranos: sua panacéia!<br /><br />Sopra Adamastor as letras lusíadas!<br /><br />Cante Menestrel! Pé na estrada, Hippie!<br /><br />Guarde uma estória ulisseida leitor,<br /><br />Pois se amanhã calar-te o ditador,<br /><br />Às ocultas, numa das últimas trips<br /><br />De segunda, foges para a floresta,<br /><br />Qual Montag, cante sua canção de gesta!<br /><br />Gotham City<br /><br />Mas é preciso ser batman em gotham city,<br /><br />É preciso ler gibi antigo e desfolhado,<br /><br />Sendo morcego, não ser vampiro, ser beat,<br /><br />Besouro caindo nos ouvidos deflorados.<br /><br />Mas é preciso ser batman em gotham city,<br /><br />Roncando o motor turbinado do bat-carro,<br /><br />Gostar de Liszt, saber tudo e tudo cite!<br /><br />Tomar copos de leite e não fumar cigarro!<br /><br />Sendo o batman enfrento o coringa e o pingouin,<br /><br />A sensual mulher gato que me arranha as pernas<br /><br />E o peito e declara estranha paixão por mim!<br /><br />Ter sempre ao meu lado um Robbin longe a tavernas;<br /><br />É preciso ser batman em gothan city enfim,<br /><br />Pra a luta ao som do rock, morar em caverna!<br /><br />Body Modification<br /><br />Tatto tribal nas costas: Poeta Maldito!<br /><br />A ferro e fogo marca-se a pele em dor!<br /><br />Suportar a dor e o medo, soltar o grito!<br /><br />Ser diferente, ser estranho, ser senhor<br /><br />De mim mesmo, de meus signos e de meus sonhos...<br /><br />Body piercing na língua, no verbo, na voz...<br /><br />Se à hipertrofia do lóbulo me imponho,<br /><br />É para marcar o que ouço na alma veloz...<br /><br />Pocketing fulgurante marca-me os braços<br /><br />Chifres implantados na testa a profanar<br /><br />As visões do paraíso e dos anjos sem traços!<br /><br />Jóias, alargadores, barbells, tudo usar<br /><br />Para dizer ao Mundo quem eu sou e o que penso<br /><br />Que se encontra em mim um amor em ira imenso!<br /><br />Poema Concreto Pau-Brasil<br /><br />9; A Oswald, Macunaíma, Ronald, Blaise, Tarsila e Pagu.<br /><br />"porque o mundo namorado / he lá, senhor, outro mundo / que esta além do Brasil" Gil Vicente.<br /><br />"Nem o canhão ribomba, que assinale / Que este Dia ao Brasil é consagrado. / Só o escritor ressoa / de turbulento povo, indiferente / Da Pátria minha à glória." Gonçalves de Magalhães.<br /><br />"Festa na mesa do horizonte / eis a paisagem que eu fitava: / pontas de estrela, arcos e flora / postos na terra, entre as estátuas." Ledo Ivo.<br /><br />v e r d e a m a r e<br /><br />l o v e r d e a m a<br /><br />r e l o v e r d e a<br /><br />m a r e l o v e r d<br /><br />e a m a r e l o v e<br /><br />r d e a m a r e l o<br /><br />v e r d e a m a r e<br /><br />l o v e r d e a m a<br /><br />r e l o v e r d e a<br /><br />m a r e l o v e r d<br /><br />e a m a r e l o v e<br /><br />Catetinho, Brasília, 07/09/2000.<br />O Capitão Crunch Contra O Gigante dos Portões<br />9; A Wosniak, Bill Gates, Linus Torvalds<br /><br />I<br /><br />Salve! Salve!<br /><br />O Capitão Crunch<br /><br />Vem voando pelos céus<br /><br />Entre torres e fios de telefone,<br /><br />Lá vem o herói ao léu<br /><br />Com sua caixa azul<br /><br />Que emite sons dissonantes<br /><br />E de Norte a Sul<br /><br />Nos traz informações intrigantes!<br /><br />Salve! Salve!<br /><br />O Capitão Crunch<br /><br />Vem chegando para nos dizer<br /><br />Do que sua caixa azul<br /><br />É capaz de fazer!<br /><br />II<br /><br />Seu infiel escudeiro,<br /><br />Ozzy já aprendeu<br /><br />A construir sua própria caixinha<br /><br />E agora também<br /><br />Segue o herói<br /><br />Pela terra inteirinha<br /><br />Pousando como andorinha<br /><br />Nos fios de telefone...<br /><br />III<br /><br />Mas eis que o herói<br /><br />É chamado a viajar<br /><br />Até ao sistema solar de Altair<br /><br />E lá vai o herói<br /><br />Buscando entender<br /><br />Como Altair é diferente<br /><br />De tudo que ele<br /><br />Já havia visto pela frente!<br /><br />IV<br /><br />Mas no Clube Homebrew,<br /><br />Os fazedores de cerveja<br /><br />Estão brindando agora, veja,<br /><br />Ao novo brinquedinho<br /><br />Que inventaram...<br /><br />Os amigos do clube descobriram<br /><br />Que não é preciso bat-caverna<br /><br />Nem ser agente da Uncle<br /><br />Ou James Bond<br /><br />Para poder ter um computador<br /><br />E ficam a inventar joguinhos<br /><br />Em seus pcs!<br /><br />Juntaram isto à caixa azul do Ozzy<br /><br />E agora pelos fios de telefone<br /><br />Sem descanso e insones<br /><br />Correm idéias<br /><br />Que giram mais que disco no gramophone!<br /><br />V<br /><br />O Gigante dos Portões do Inferno<br /><br />Insatisfeito com essa bonança<br /><br />Destituído de temperança<br /><br />Resolve, depois dum último gole no falerno,<br /><br />Cercar o clube e atacar os amigos do Herói...<br /><br />Até o quatro-olhos do Mitnick<br /><br />Que brincava de inventar senhas<br /><br />E sonhava voar num sputinik<br /><br />Foi ver o Sol nascer quadrado<br /><br />Foi levar lenha<br /><br />Foi engavetado!<br /><br />Cerceados da liberdade que constrói<br /><br />Tanto como a criatividade, os caubóis<br /><br />Chamam a ajuda de Altair<br /><br />Para livrar o clube prestes a ruir!<br /><br />VI<br /><br />Lá vem o Capitão Crunch<br /><br />Com sua caixa azul<br /><br />Lançando raios dissonantes<br /><br />Buscando um novo tom<br /><br />Buscando num rompante<br /><br />Derrubar o temível Gigante!<br /><br />Numa feroz batalha virtual<br /><br />A terra treme e é um sinal<br /><br />Que se chega à luta final<br /><br />Luta entre o bem relativo<br /><br />E o transparente mal...<br /><br />VII<br /><br />Depois daquela lida feroz<br /><br />Num épico ao estilo homérico,<br /><br />Mas Homero era cego<br /><br />E acho que ele nem existiu,<br /><br />Depois daquele instante histérico,<br /><br />Dos lances mais feéricos,<br /><br />Que um novo mundo surgiu<br /><br />Não, não nego,<br /><br />E agora todos podem<br /><br />Voar pelos céus,<br /><br />Navegar pelos mares,<br /><br />Pousar nos fios ao léu,<br /><br />Viajar pelo mundo<br /><br />Sem sair dos lares!<br /><br />VIII<br /><br />Mas o Gigante dos Portões do Inferno<br /><br />Derrotado, humilhado<br /><br />Pelo grande herói, Capitão Crunch<br /><br />Preparou sua revanche<br /><br />E trancado às margens do Cocito,<br /><br />Olhando para a luz de uma vela,<br /><br />Tem a feliz idéia<br /><br />De inventar uma máquina<br /><br />Cheia de janelas,<br /><br />E como a Máquina do Mundo de Tétis<br /><br />Leva todo mundo ao Letes,<br /><br />A botar a cara nas janelas<br /><br />Para ver que tudo cabe numa cela!<br /><br /><br /><br /><br /><br />Notas: Os tipos que compõem este poema foram xerocopiados a partir das seguintes obras:<br /><br />1) - Homero. Ilíada, tradução de Manuel Odorico Mendes, p. 275, Clássicos Jackson, vol. 21.Rio de Janeiro, W.M. Jackson Editores inc., Rio de Janeiro, 1952.<br /><br />2) - James Joyce. Ulisses, trad. Antônio Houaiss, p. 683. São Paulo, Abril, 1983.<br /><br />3) - Carlos Drummond de Andrade. Obra Completa, org. Afrânio Coutinho, p. 135. Rio de Janeiro, Aguilar editora, 1967.<br /><br />4) - Revista Portugal Futurista, capa. Lisboa, Novembro, 1917.<br /><br />5) - Luís de Camões. Os Lusíadas, 1.ª edição, capa, 1572.<br /><br />6) - Revista Klaxon, capa. São Paulo, Brasil.<br /><br />7) - Homero. Odisséia, trad. Manuel Odorico Mendes, p. 219, Biblioteca clássica, vol. 34, 2.ª ed. São Paulo, Atena, 1957.<br /><br />8) - Décio Pignatari. Poesia Pois É Poesia, poema "Organismo". São Paulo, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1977.<br /><br />9) - Goethe. Fausto, trad. Jenny Klabin Segall, p. 43. Belo Horizonte, Itatiaia, 1981.<br /><br />10) - Umberto Eco. O Nome da Rosa, trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade, 11.ª edição. São Paulo, Nova Fronteira, 1983.<br /><br />11) - Mário Faustino. Poesia Completa, p. 305. São Paulo, Max Limonad, 1985 (trata-se da tradução do poema de Bertolt Brecht, "Na Die Nachgeborenen", p. 304, op. Cit.)<br /><br />12) - Raul Bopp. Cobra Norato e Outros Poemas, coleção Vera Cruz, vol. 168, p. 40. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 12.ª edição, 1978.<br /><br />13) - Gonçalves Dias. Coleção Nossos Clássicos, p. 36, v. 18, poema "I - Juca Pirama". Rio de Janeiro, Agir, 13.ª edição, 1989.<br /><br />14) - Paulo Leminski. Distraídos Veceremos, p. 87. São Paulo, Brasiliense, 1984.<br /><br />15) - Homero. Ilíada, ibidem, p. 277.<br /><br />16) - Gregório de Matos. Poemas Escolhidos, org. José Miguel Wisnik, p. 58. São Paulo, Cultrix, s.d.<br /><br />17) - João Cabral de Melo Neto. Antologia Poética, p. 9. Rio de Janeiro, José Olympio, 1979.<br /><br />18) - Augusto de Campos. Viva Vaia, poema "Rever". São Paulo, Duas Cidades, 1979 (a letra "v" a seguir é do mesmo poema).<br /><br />19) - Poesia Russa Moderna. Vários Autores, trad. Boris Schnaiderman, Haroldo de Campos e Augusto de Campos, poema de Vassili Kamienski, p. 65, 2.ª edição. São Paulo, Brasiliense, 1985. (Veja também a letra "p" invertida, retirada do mesmo poema).<br /><br />Demais letras do poema são da separata "Um Coup de Dés Jamais N'Abolira le Hasard". Stéphane Mallarmé. Col. Signos, vol. 2, Mallarmé, trad. Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. São Paulo, Perspectiva, 1974.PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-6736139900349344542009-04-22T11:59:00.000-07:002009-05-07T09:41:52.755-07:00Tropicalismo<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh24Ceq3rWav7t_Gu4TuA46fXX-pVcY3RLxim-PoSS9XNIWVm-pm7dtmmsohG6sqhcXAsVbOfJxa9MA6y7P6WN85dZlvEZHz-DUvYh67_27p8hb_AEE_pU3nlU9XxSBknzvD0P8RJFaIzQ/s1600-h/TROP2.bmp"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 255px; height: 255px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh24Ceq3rWav7t_Gu4TuA46fXX-pVcY3RLxim-PoSS9XNIWVm-pm7dtmmsohG6sqhcXAsVbOfJxa9MA6y7P6WN85dZlvEZHz-DUvYh67_27p8hb_AEE_pU3nlU9XxSBknzvD0P8RJFaIzQ/s320/TROP2.bmp" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329824785272442818" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjU5A6_H97ZvttuGelMbYyQ3xxk4O-OCkOQKjt0J0IM0Yp-TB00w3NqzJEBIUy4Wsu0r2k395GtQlg1_QTIKUo_oBtYvv6bZm362m5ZW8JCfi0TWYBtLBSKnbPuAZKnx3u1moqTX1TDBu8/s1600-h/TRO.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 300px; height: 215px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjU5A6_H97ZvttuGelMbYyQ3xxk4O-OCkOQKjt0J0IM0Yp-TB00w3NqzJEBIUy4Wsu0r2k395GtQlg1_QTIKUo_oBtYvv6bZm362m5ZW8JCfi0TWYBtLBSKnbPuAZKnx3u1moqTX1TDBu8/s320/TRO.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329824782287844322" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg0dQ2QgFwGlje2oqIl9KfMhciH0dx9vgFS8_bE01yZPI5XtQ8AEPODtJLrJVx1fxDmTU610fNFA-Rh8DGnra0D0z3S1MpSxI-6a3Lzwum9Fgb-ihPeftdcwN-uwmPlrJIbf8ElJ9xxEa4/s1600-h/capa-tropicalismo.gif"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 234px; height: 320px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg0dQ2QgFwGlje2oqIl9KfMhciH0dx9vgFS8_bE01yZPI5XtQ8AEPODtJLrJVx1fxDmTU610fNFA-Rh8DGnra0D0z3S1MpSxI-6a3Lzwum9Fgb-ihPeftdcwN-uwmPlrJIbf8ElJ9xxEa4/s320/capa-tropicalismo.gif" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329824777087056194" /></a><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br /><br /><br />Caetano Veloso <br /><br />(Santo Amaro da Purificação BA, 1942) <br /><br />Ingressou na Faculdade de Filosofia da UFB, em 1963, mas não chegou a concluir o curso. No ano seguinte, estreou o show Nós, Por Exemplo, em Salvador, com Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Tom Zé. Em 1967 sua canção Alegria, Alegria ganhou o quarto lugar no III Festival de MPB da TV Record e ele gravou seu primeiro disco, Domingo. Em 1968 ocorreu o lançamento do LP Tropicália ou Panis et Circensis, com Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Rogério Duprat, Tom Zé e Os Mutantes, disco-manifesto do Tropicalismo. A oposição ao regime militar custou-lhe dois meses de prisão e o exílio na Inglaterra, em 1969. De volta ao Brasil, prosseguiu compondo e realizando shows; fez trilhas sonoras para filmes e lançou diversos álbuns, entre os quais Doces Bárbaros (1976), Estrangeiro (1989) e Circuladô (1991). Publicou Verdade Tropical, livro de memórias, em 1997. Um dos criadores do Tropicalismo, Caetano Veloso está entre os principais compositores da Música Popular Brasileira do século XX. Músico inovador, introduziu em suas canções elementos do pop e do rock, entre outros gêneros, criando obras que modificaram o panorama da música popular no país.<br /><br />Acrilírico <br />Caetano Veloso <br />Rogério Duprat <br /> <br />Olhar colírico <br />Lirios plásticos do campo e do contracampo <br />Telástico cinemascope teu sorriso tudo isso <br />Tudo ido e lido e lindo e vindo do vivido <br />Na minha adolescidade <br />Idade de pedra e paz <br /> <br />Teu sorriso quieto no meu canto <br /> <br />Ainda canto o ido o tido o dito <br />O dado o consumido <br />O consumado <br />Ato <br />Do amor morto motor da saudade <br /> <br />Diluído na grandicidade <br />Idade de pedra ainda <br />Canto quieto o que conheço <br />Quero o que não mereço <br />O começo <br />Quero canto de vinda <br />Divindade do duro totem futuro total <br />Tal qual quero canto <br />Por enquanto apenas mino o campo ver-te <br />Acre e lírico o sorvete <br />Acrilíco Santo Amargo da Putrificação <br />A rã <br />Caetano Veloso <br />João Donato <br /> <br />Coro de cor <br />Sombra de som de cor <br />De mal-me-quer <br />De mal-me-quer de bem <br />De bem-me-diz <br />De me dizendo assim <br />Serei feliz <br />Serei feliz de flor <br />De flor em flor <br />De samba em samba em som <br />De vai e vem <br />De ver de verde ver <br />Pé de capim <br />Bico de pena pio <br />De bem-te-vi <br />Amanhecendo sim <br />Perto de mim <br />Perto da claridade <br />Da manhã <br />A grama a lama tudo <br />É minha irmã <br />A rama o sapo o salto <br />De uma rã<br /><br />Alegria, alegria <br />Caetano Veloso <br /> <br />Caminhando contra o vento <br />Sem lenço sem documento <br />No sol de quase dezembro <br />Eu vou <br /> <br />O sol se reparte em crimes <br />Espaçonaves, guerrilhas <br />Em Cardinales bonitas <br />Eu vou <br /> <br />Em caras de presidentes <br />Em grandes beijos de amor <br />Em dentes pernas bandeiras <br />Bomba e Brigitte Bardot <br /> <br />O sol nas bancas de revista <br />Me enche de alegria e preguiça <br />Quem lê tanta notícia? <br />Eu vou <br /> <br />Por entre fotos e nomes <br />Os olhos cheios de cores <br />O peito cheio de amores vãos <br />Eu vou <br /> <br />Por que não? Por que não? <br /> <br />Ela pensa em casamento <br />E eu nunca mais fui à escola <br />Sem lenço sem documento <br />Eu vou <br /> <br />Eu tomo uma coca-cola <br />Ela pensa em casamento <br />E uma canção me consola <br />Eu vou <br /> <br />Por entre fotos e nomes <br />Sem livros e sem fuzil <br />Sem fome sem telefone <br />No coração do Brasil <br /> <br />Ela nem sabe até pensei <br />Em cantar na televisão <br />O sol é tão bonito <br />Eu vou <br /> <br />Sem lenço sem documento <br />Nada no bolso ou nas mãos <br />Eu quero seguir vivendo amor <br />Eu vou <br /> <br />Por que não? Por que não?<br /><br />Cá já <br />Caetano Veloso <br /> <br />Vejo que areia linda <br />Brilhando cada grão <br />Graças do sol ainda <br />Vibram pelo chão <br /> <br />Vejo que a água deixa <br />As cores de outra cor <br />Volta pra si sem queixa <br />Tudo é tanto amor <br /> <br />Esteja cá já <br />Pedra vida flor <br />Seja cá já <br />Esteja cá já <br />Tempo bicho dor <br />Seja cá já <br />Doce jaca já <br />Jandaia aqui agora <br /> <br />Ouço que tempo imenso <br />Dentro de cada som <br />Música que não penso <br />Pássaro tão bom <br /> <br />Ouço que vento, vento <br />Ondas asas capim <br />Momento movimento <br />Sempre agora em mim <br /> <br />Esteja cá já <br />Pedra vida flor <br />Seja cá já <br />Esteja cá já <br />Tempo bicho dor <br />Seja cá já <br />Doce jaca já <br />Jandaia aqui agora<br /><br />Deus e o diabo <br />Caetano Veloso <br /> <br />Você tenha ou não tenha medo <br />Nego, nega, o carnaval chegou <br />Mais cedo ou mais tarde acabo <br />De cabo a rabo com essa transação de pavor <br />O carnaval é invenção do diabo <br />Que Deus abençoou <br />Deus e o diabo no Rio de Janeiro <br />Cidade de São Salvador <br />Não se grile <br />A rua Chile sempre chega pra quem quer <br />Qual é! qual é! qual é! <br />Qual é! Qual é!... <br />Quem pode, pode <br />Quem não pode vira bode <br />Foge pra Praça da Sé <br />Cidades maravilhosas <br />Cheias de encantos mil <br />Cidades maravilhosas <br />Os pulmões do meu Brasil<br /><br />Divino maravilhoso <br />Caetano Veloso <br />Gilberto Gil <br /> <br />Atenção <br />Ao dobrar uma esquina <br />Uma alegria <br /> <br />Atenção, menina <br />Você vem <br />Quantos anos você tem? <br /> <br />Atenção <br />Precisa ter olhos firmes <br />Pra este sol, para esta escuridão <br /> <br />Atenção <br />Tudo é perigoso <br />Tudo é divino maravilhoso <br /> <br />Atenção para o refrão <br />É preciso estar atento e forte <br />Não temos tempo de temer a morte <br /> <br />Atenção <br />Para a estrofe e pra o refrão <br />Pra o palavrão, para a palavra de ordem <br /> <br />Atenção <br />Para o samba exaltação <br /> <br />Atenção <br />Tudo é perigoso <br />Tudo é divino maravilhoso <br /> <br />Atenção para o refrão <br />É preciso estar atento e forte <br />Não temos tempo de temer a morte <br /> <br />Atenção <br />Para as janelas no alto <br /> <br />Atenção <br />Ao pisar o asfalto mangue <br /> <br />Atenção <br />Para o sangue sobre o chão <br /> <br />É preciso estar atento e forte <br />Não temos tempo de temer a morte<br /><br />É proibido proibir <br />Caetano Veloso <br /> <br />A mãe da virgem diz que não <br />E o anúncio da televisão <br />E estava escrito no portão <br />E o maestro ergueu o dedo <br />E além da porta há o porteiro, sim <br />Eu digo não <br />Eu digo não ao não <br />Eu digo <br />É proibido proibir <br />É proibido proibir <br />É proibido proibir <br />É proibido proibir <br /> <br />Me dê um beijo, meu amor <br />Eles estão nos esperando <br />Os automóveis ardem em chamas <br />Derrubar as prateleiras <br />As estantes, as estátuas <br />As vidraças, louças, livros, sim <br />Eu digo sim <br />Eu digo não ao não <br />Eu digo <br />É proibido proibir <br />É proibido proibir <br />É proibido proibir <br />É proibido proibir<br /><br />Épico <br />Caetano Veloso <br /> <br />ê, saudade <br /> <br />Todo mundo protestando contra a poluição <br />Até as revistas de Walt Disney <br />Contra a poluição <br /> <br />ê, Hermeto <br /> <br />Smetak, Smetak & Musak & Smetak <br />& Musak & Smetak & Musak <br />& Razão <br /> <br />ê, cidade <br /> <br />Sinto calor, sinto frio <br />Nor-destino no Brasil? <br />Vivo entre São Paulo e Rio <br />Porque não posso chorar <br /> <br />ê, começo <br /> <br />Destino eu faço não peço <br />Tenho direito ao avesso <br />Botei todos os fracassos <br />Nas paradas de sucessos <br /> <br />ê, João<br /><br />Genipapo absoluto <br />Caetano Veloso <br /> <br />Como será pois se ardiam fogueiras <br />Com olhos de areia quem viu <br />Praias, paixões fevereiras <br />Não dizem o que junhos de fumaça e frio <br />Onde e quando é genipapo absoluto <br />Meu pai, seu tanino, seu mel <br />Prensa, esperança, sofrer prazeria <br />Promessa, poesia, Mabel <br /> <br />Cantar é mais do que lembrar <br />É mais do que ter tido aquilo então <br />Mais do que viver do que sonhar <br />É ter o coração daquilo <br /> <br />Tudo são trechos que escuto - vêm dela <br />Pois minha mãe é minha voz <br />Como será que isso era este som <br />Que hoje sim, gera sóis, dói em dós <br />"Aquele que considera" <br />A saudade de uma mera contraluz que vem <br />Do que deixou pra trás <br />Não, esse só desfaz o signo <br />E a "rosa também"<br /><br />Haiti <br />Caetano Veloso <br />Gilberto Gil <br /> <br />Quando você for convidado pra subir no adro <br />Da Fundação Casa de Jorge Amado <br />Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos <br />Dando porrada na nuca de malandros pretos <br />De ladrões mulatos <br />E outros quase brancos <br />Tratados como pretos <br />Só pra mostrar aos outros quase pretos <br />(E são quase todos pretos) <br />E aos quase brancos, pobres como pretos <br />Como é que pretos, pobres e mulatos <br />E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados <br />E não importa se olhos do mundo inteiro <br />Possam estar por um momento voltados para o largo <br />Onde os escravos eram castigados <br />E hoje um batuque, um batuque <br />Com a pureza de meninos uniformizados <br />De escola secundária em dia de parada <br />E a grandeza épica de um povo em formação <br />Nos atrai, nos deslumbra e estimula <br />Não importa nada <br />Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico <br />Nem o disco de Paul Simon <br />Ninguém, ninguém é cidadão <br />Se você for ver a festa do Pelô <br />E se você não for <br />Pense no Haiti <br />Reze pelo Haiti <br /> <br />O Haiti é aqui <br />O Haiti não é aqui <br /> <br />E na TV se você vir um deputado <br />Em pânico mal dissimulado <br />Diante de qualquer, mas qualquer mesmo <br />Qualquer qualquer <br />Plano de educação que pareça fácil <br />Que pareça fácil e rápido <br />E vá representar uma ameaça de democratização <br />Do ensino de primeiro grau <br />E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital <br />E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto <br />E nenhum no marginal <br />E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual <br />Notar um homem mijando na esquina da rua <br />Sobre um saco brilhante de lixo do Leblon <br />E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo <br />Diante da chacina: 111 presos indefesos <br />Mas presos são quase todos pretos <br />Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres <br />E pobres são como podres <br />E todos sabem como se tratam os pretos <br />E quando você for dar uma volta no Caribe <br />E quando for trepar sem camisinha <br />E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba <br />Pense no Haiti <br />Reze pelo Haiti <br /> <br />O Haiti é aqui <br />O Haiti não é aqui.<br /><br />Jóia <br />Caetano Veloso <br /> <br />Beira de mar <br />Beira de mar <br />Beira de mar na América do Sul <br />Um selvagem levanta o braço <br />Abre a mão e tira um caju <br />Um momento de grande amor <br />De grande amor <br /> <br />Copacabana <br />Copacabana <br />Louca total e completamente louca <br />A menina muito contente <br />Toca a coca-cola na boca <br />Um momento de puro amor <br />De puro amor<br /><br />Livros <br />Caetano Veloso <br /> <br />Tropeçavas nos astros desastrada <br />Quase não tínhamos livros em casa <br />E a cidade não tinha livraria <br />Mas os livros que em nossa vida entraram <br />São como a radiação de um corpo negro <br />Apontando pra expansão do Universo <br />Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso <br />(E, sem dúvida, sobretudo o verso) <br />É o que pode lançar mundos no mundo <br /> <br />Tropeçavas nos astros desastrada <br />Sem saber que a ventura e a desventura <br />Dessa estrada que vai do nada ao nada <br />São livros e o luar contra a cultura <br /> <br />Os livros são objetos transcendentes <br />Mas podemos amá-los do amor táctil <br />Que votamos aos maços de cigarro <br />Domá-los, cultivá-los em aquários <br />Em estantes, gaiolas, em fogueiras <br />Ou lançá-los pra fora das janelas <br />(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos) <br />Ou - o que é muito pior - por odiarmo-los <br />Podemos simplesmente escrever um: <br />Encher de vãs palavras muitas páginas <br />E de mais confusão as prateleiras <br /> <br />Tropeçavas nos astros desastrada <br />Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.<br /><br />London, London <br />Caetano Veloso <br /> <br />I'm wandering round and round nowhere to go <br />I'm lonely in London London is lovely so <br />I cross the streets without fear <br />Everybody keeps the way clear <br />I know, I know no one here to say hello <br />I know they keep the way clear <br />I am lonely in London without fear <br />I'm wandering round and round here nowhere to go <br /> <br />While my eyes <br />Go looking for flying saucers in the sky <br /> <br />Oh Sunday, Monday, Autumm pass by me <br />And people hurry on so peacefully <br />A group approaches a policeman <br />He seems so pleased to pleace them <br />It's good at least to live and I agree <br />He seems so pleased at least <br />And it's so good to live in peace and <br />Sunday, Monday, years and I agree <br /> <br />While my eyes <br />Go looking for flying saucers in the sky <br /> <br />I choose no face to look at <br />Choose no way <br />I just happen to be here <br />And it's ok <br />Green grass, blue eyes, gray sky, God bless <br />Silent pain and happiness <br />I came around to say yes, and I say <br /> <br />But my eyes <br />Go looking for flying saucers in the sky.<br /><br />Lost in the paradise <br />Caetano Veloso <br /> <br />My little grasshopper <br />Airplane cannot fly very high <br />I find you so far from my side <br />I'm lost in my old in my own green light <br /> <br />Don't help me, my love <br />My brother, my girl <br />Just tell her name <br />Just let me say who am I <br /> <br />Her big white plastic finger <br />Surrounds my dark green hair, <br />But it's not your unknown right hand <br />But it's not your unknown right hand <br /> <br />Oh, don't help me, my love <br />My brother, my girl <br />Just tell her name <br />Just let me say who am I <br /> <br />I am the sun, the darkness, <br />My name is green wave death, salt <br />South America's my name <br />World is my name, my size <br />And honor my name <br />Hear my <br /> <br />My little grasshopper airplane <br />Cannot fly very high <br /> <br />Oh, don't help me, my love <br />My brother, my girl <br />Just tell her name <br />Just let me say who am I.<br /> O conteúdo <br />Caetano Veloso <br /> <br />Deita numa cama de prego e cria fama de faquir <br />Não tentes fugir ao sossêgo, meu nêgo <br />Tu és fraco como um anjo <br />E sabes voar <br />Teu gênio alegre, não fujas daqui <br />Todos os anos, passar pela casa dos Novos Baianos <br />Manos, jogar capitão <br />Como é bonito o Pão de Açucar visto daquele ângulo <br />E aquele cara falou que é pra ver se eu não brinco <br />Com o ano de mil novecentos e setenta e cinco <br />Aquele cara na Bahia me falou que eu morreria dentro de três anos <br />Minha alma e meu corpo disseram: não! <br />E por isso eu canto essa canção - Jorge <br />E por isso eu canto essa canção - Jorge Ben <br />E por isso eu canto essa canção - Jorge Mautner <br />E por isso eu canto essa canção - Jorge Salomão <br />Roge, Roge, Roge, Roge <br />Cadê vocês, oh Mãe de Deus? <br />Jorge, cadê vocês? Ninguém <br />Tudo vai bem, Jorge? <br />Tudo vai bem, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo <br />E o divino conteúdo <br />A íris do olho de Deus tem muitos arcos <br />E há muitos barcos no mar <br />Se fugires - não fujas - te perderás <br />Pra onde, pra onde, pra onde, para onde, para onde, para onde <br />Vais, aliás? <br />Tire o pé da lama <br />Tendo somente a quem te ama <br />Pela insistência com que chama <br />Pela exuberância da chama <br />É proibido pisar na grama <br />Pela insistiencia das folhas na rama <br />E pela insistência da rima <br />Cria fama e deita-te na cama <br />Cria fama e deita-te na cama <br /> <br />O cu do mundo <br />Caetano Veloso <br /> <br />O furto, o estupro, o rapto pútrido <br />O fétido seqüestro <br />O adjetivo esdrúxulo em U <br />Onde o cujo faz a curva <br />(O cu do mundo, esse nosso sítio) <br />O crime estúpido, o criminoso só <br />Substantivo, comum <br />O fruto espúrio reluz <br />À subsombra desumana dos linchadores <br /> <br />A mais triste nação <br />Na época mais podre <br />Compõe-se de possíveis <br />Grupos de linchadores. <br />Peixe <br />Caetano Veloso <br /> <br />Peixe <br />Deixa eu te ver, peixe <br />Verde <br />Deixa eu ver o peixe <br />Vi o brilho verde <br />Peixe prata.<br /><br />Pássaro proibido <br />Caetano Veloso <br />Maria Bethânia <br /> <br />Solto está o pássaro proibido <br />Perigo, cuidado, sinal nas ruas <br />Plumagem clara, brilhante <br />Ao sol e à lua transparente <br />Ao corisco e à maré <br />Ao corisco e à maré <br /> <br />Eu canto o sonho na cama <br />Do jeito doce e moreno <br />Eu canto pássaro proibido de sonhar <br />O canto macio, olhos molhados <br />Sem medo do erro maldito <br />De ser um pássaro proibido <br />Mas com o poder de voar <br /> <br />Voar até a mais alta árvore <br />Sem medo, tranqüilo, iluminado <br />Cantando o que quer dizer <br />Perguntando o que quer dizer <br />Que quer dizer meu cantar <br />Que quer dizer meu cantar.<br /><br />Peter Gast <br />Caetano Veloso <br /> <br />Sou um homem comum <br />Qualquer um <br />Enganando entre a dor e o prazer <br />Hei de viver e morrer <br />Como um homem comum <br />Mas o meu coração de poeta <br />Projeta-me em tal solidão <br />Que às vezes assisto a guerras <br />E festas imensas <br />Sei voar e tenho as fibras tensas <br />E sou um <br /> <br />Ninguém é comum <br />E eu sou ninguém <br />No meio de tanta gente <br />De repente vem <br />Mesmo eu no meu automóvel <br />No trânsito vem <br />O profundo silêncio <br />Da música límpida de Peter Gast <br /> <br />Escuto a música silenciosa de Peter Gast <br />Peter Gast, o hóspede do profeta sem morada <br />O menino bonito, Peter Gast <br />Rosa do crepúsculo de Veneza <br />Mesmo aqui no samba-canção do meu rock'n'roll <br />Escuto a música silenciosa de Peter Gast <br /> <br />Sou um homem comum.<br /><br />Qualquer coisa <br />Caetano Veloso <br /> <br />Esse papo já tá qualquer coisa <br />Você já tá pra lá de Marrakesh <br />Mexe qualquer coisa dentro, doida <br />Já qualquer coisa doida, dentro, mexe <br /> <br />Não se avexe não, baião de dois <br />Deixe de manha, deixe de manha <br />Pois, sem essa aranha, sem essa aranha, sem essa aranha <br />Nem a sanha arranha o carro <br />Nem o sarro arranha a Espanha <br />Meça tamanha, meça tamanha <br />Esse papo seu já tá de manhã <br /> <br />Berro pelo aterro, pelo desterro <br />Berro por seu berro, pelo seu erro <br />Quero que você ganhe, que você me apanhe <br />Sou o seu bezerro gritando mamãe <br />Esse papo meu tá qualquer coisa e você tá pra lá de Teerã.<br /><br />Rapte-me camaleoa <br />Caetano Veloso <br /> <br />Rapte-me camaleoa <br />Adapte-me a uma cama boa <br />Capte-me uma mensagem à-toa <br />De um quasar pulsando loa <br />Interestelar canoa <br /> <br />Leitos perfeitos <br />Seus peitos direitos me olham assim <br />Fino menino me inclino pro lado do sim <br />Rapte-me, adapte-me, capte-me, it's up to me, coração <br />Ser querer, ser merecer, ser um camaleão <br /> <br />Rapte-me camaleoa <br />Adapte-me ao seu ne me quitte pás.<br /><br />Samba da cabeça <br />Caetano Veloso <br /> <br />A cabeça samba <br />A cabeça blusa <br />A cabeça rumba <br />A cabeça reggae <br /> <br />A cabeça agora <br />A cabeça fora <br />A cabeça adora <br />A cabeça nova <br /> <br />A cabeça pouca <br />A cabeça oca <br />A cabeça louca <br />A cabeça rouca <br /> <br />A cabeça ovo <br />A cabeça olho <br />A cabeça pouca <br />A cabeça todo <br /> <br />A cabeça lúdica <br />A cabeça América <br />A cabeça África <br />A cabeça música <br /> <br />A cabeça à toa <br />A cabeça boa <br />A cabeça voa <br />A cabeça.<br /><br />Santa Clara, padroeira da televisão <br />Caetano Veloso <br /> <br />Santa Clara, padroeira da televisão <br />Que o menino de olho esperto saiba ver tudo <br />Entender certo o sinal certo se perto do encoberto <br />Falar certo desse perto e do distante porto aberto <br />Mas calar <br />Saber lançar-se num claro instante <br /> <br />Santa Clara, padroeira da televisão <br />Que a televisão não seja o inferno, interno, ermo <br />Um ver no excesso o eterno quase nada (quase nada) <br />Que a televisão não seja sempre vista <br />Como a montra condenada, a fenestra sinistra <br />Mas tomada pelo que ela é <br />De poesia <br /> <br />Quando a tarde cai onde o meu pai <br />Me fez e me criou <br />Ninguém vai saber que cor me dói <br />E foi e aqui ficou <br />Santa Clara <br /> <br />Saber calar, saber conduzir a oração <br />Possa o vídeo ser a cobra de outro éden <br />Porque a queda é uma conquista <br />E as miríades de imagens suicídio <br />Possa o vídeo ser o lago onde Narciso <br />Seja um deus que saberá também <br />Ressuscitar <br /> <br />Possa o mundo ser como aquela ialorixá <br />A ialorixá que reconhece o orixá no anúncio <br />Puxa o canto pra o orixá que vê no anúncio <br />No caubói, no samurai, no moço nu, na moça nua <br />No animal, na cor, na pedra, vê na lua, vê na lua <br />Tantos níveis de sinais que lê <br />E segue inteira <br /> <br />Lua clara, trilha, sina <br />Brilha, ensina-me a te ver <br />Lua, lua, continua em mim <br />Luar, no ar, na TV <br />São Francisco.<br /><br />Sampa <br />Caetano Veloso <br /> <br />Alguma coisa acontece no meu coração <br />Que só quando cruza a Ipiranga e Av. São João <br />É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi <br />Da dura poesia concreta de tuas esquinas <br />Da deselegância discreta de tuas meninas <br />Ainda não havia para mim Rita Lee <br />A tua mais completa tradução <br />Alguma coisa acontece no meu coração <br />Que só quando cruza a Ipiranga e avenida São João <br /> <br />Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto <br />Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto <br />É que Narciso acha feio o que não é espelho <br />E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho <br />Nada do que não era antes quando não somos mutantes <br />E foste um difícil começo <br />Afasto o que não conheço <br />E quem vem de outro sonho feliz de cidade <br />Aprende depressa a chamar-te de realidade <br />Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso <br /> <br />Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas <br />Da força da grana que ergue e destrói coisas belas <br />Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas <br />Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços <br />Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva <br />Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba <br />Mas possível novo quilombo de Zumbi <br />E os Novos Baianos passeiam na tua garoa <br />E novos baianos te podem curtir numa boa.<br /><br />Terra <br />Caetano Veloso <br />Quando eu me encontrava preso <br />Nas celas de uma cadeia <br />Foi que eu vi pela primeira vez <br />As tais fotografias <br />Em que apareces inteira <br />Porém lá não estavas nua <br />E sim coberta de nuvens <br /> <br />Terra, Terra <br />Por mais distante o errante navegante <br />Quem jamais te esqueceria? <br /> <br />Ninguém supõe a morena <br />Dentro da estrela azulada <br />Na vertigem do cinema <br />Manda um abraço pra ti, pequenina <br />Como se eu fosse o saudoso poeta <br />E fosses a Paraíba <br /> <br />Terra, Terra <br />Por mais distante o errante navegante <br />Quem jamais te esqueceria? <br /> <br />Eu estou apaixonado <br />Por uma menina terra <br />Signo do elemento terra <br />Do mar se diz terra à vista <br />Terra para o pé, firmeza <br />Terra para a mão, carícia <br />Outros astros lhe são guia <br /> <br />Terra, Terra <br />Por mais distante o errante navegante <br />Quem jamais te esqueceria? <br /> <br />Eu sou um leão de fogo <br />Sem ti me consumiria <br />A mim mesmo eternamente <br />E de nada valeria <br />Acontecer de eu ser gente <br />E gente é outra alegria <br />Diferente das estrelas <br /> <br />Terra, Terra <br />Por mais distante o errante navegante <br />Quem jamais te esqueceria? <br /> <br />De onde nem tempo nem espaço <br />Que a força mande coragem <br />Pra gente te dar carinho <br />Durante toda a viagem <br />Que realizas no nada <br />Através do qual carregas <br />O nome da tua carne <br /> <br />Terra, Terra <br />Por mais distante o errante navegante <br />Quem jamais te esqueceria? <br /> <br />"Nas sacadas dos sobrados <br />Da velha São Salvador <br />Há lembranças de donzelas <br />Do tempo do imperador <br />Tudo, tudo na Bahia <br />Faz a gente querer bem <br />A Bahia tem um jeito" <br /> <br />Terra,Terra <br />Por mais distante o errante navegante <br />Quem jamais te esqueceria?<br /><br />Um índio <br />Caetano Veloso <br /> <br />Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante <br />De uma estrela que virá numa velocidade estonteante <br />E pousará no coração do hemisfério sul <br />Na América, num claro instante <br />Depois de exterminada a última nação indígena <br />E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida <br />Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias <br /> <br />Virá <br />Impávido que nem Muhammad Ali <br />Virá que eu vi <br />Apaixonadamente como Peri <br />Virá que eu vi <br />Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee <br />Virá que eu vi <br />O axé do afoxé Filhos de Gandhi <br />Virá <br /> <br />Um índio preservado em pleno corpo físico <br />Em todo sólido, todo gás e todo líquido <br />Em átomos, palavras, alma, cor <br />Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico <br />Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico <br />Do objeto-sim resplandecente descerá o índio <br />E as coisas que eu sei que ele dirá, fará <br />Não sei dizer assim de um modo explícito <br /> <br />Virá <br />Impávido que nem Muhammad Ali <br />Virá que eu vi <br />Apaixonadamente como Peri <br />Virá que eu vi <br />Tranqüilo e infálivel como Bruce Lee <br />Virá que eu vi <br />O axé do afoxé Filhos de Gandhi <br />Virá <br /> <br />E aquilo que nesse momento se revelará aos povos <br />Surpreenderá a todos não por ser exótico <br />Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto <br />Quando terá sido o óbvio.<br /><br />Uns <br />Caetano Veloso <br /> <br />Uns vão <br />Uns tão <br />Uns são <br />Uns dão <br />Uns não <br />Uns hão de <br />Uns pés <br />Uns mãos <br />Uns cabeça <br />Uns só coração <br />Uns amam <br />Uns andam <br />Uns avançam <br />Uns também <br />Uns cem <br />Uns sem <br />Uns vêm <br />Uns têm <br />Uns nada têm <br />Uns mal <br />Uns bem <br />Uns nada além <br />Nunca estão todos <br /> <br />Uns bichos <br />Uns deuses <br />Uns azuis <br />Uns quase iguais <br />Uns menos <br />Uns mais <br />Uns médios <br />Uns por demais <br />Uns masculinos <br />Uns femininos <br />Uns assim <br />Uns meus <br />Uns teus <br />Uns ateus <br />Uns filhos de Deus <br />Uns dizem fim <br />Uns dizem sim <br />E não há outros.<br /><br />Pipoca moderna <br />Caetano Veloso <br />Sebastião Biano <br /> <br />E era nada de nem noite de negro não <br />E era nê de nunca mais <br />E era noite de nê nunca de nada mais <br />E era nem de negro não <br />Porém parece que hágolpes de pê, de pé, de pão <br />De parecer poder <br />(E era não de nada nem) <br />Pipoca ali, aqui, pipoca além <br />Desanoitece a manhã <br />Tudo mudou.<br /><br />Podres poderes <br />Caetano Veloso <br /> <br />Enquanto os homens exercem seus podres poderes <br />Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos <br />E perdem os verdes <br />Somos uns boçais <br /> <br />Queria querer gritar setecentas mil vezes <br />Como são lindos, como são lindos os burgueses <br />E os japoneses <br />Mas tudo é muito mais <br /> <br />Será que nunca faremos senão confirmar <br />A incompetência da América católica <br />Que sempre precisará de ridículos tiranos? <br /> <br />Será, será que será que será que será <br />Será que essa minha estúpida retórica <br />Terá que soar, terá que se ouvir <br />Por mais zil anos? <br /> <br />Enquanto os homens exercem seus podres poderes <br />Índios e padres e bichas, negros e mulheres <br />E adolescentes fazem o carnaval <br /> <br />Queria querer cantar afinado com eles <br />Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase <br />Ser indecente <br />Mas tudo é muito mau <br /> <br />Ou então cada paisano e cada capataz <br />Com sua burrice fará jorrar sangue demais <br />Nos pantanais, nas cidades, caatingas <br />E nos Gerais? <br /> <br />Será que apenas os hermetismos pascoais <br />Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais <br />Nos salvam, nos salvarão dessas trevas <br />E nada mais? <br /> <br />Enquanto os homens exercem seus podres poderes <br />Morrer e matar de fome, de raiva e de sede <br />São tantas vezes gestos naturais <br /> <br />Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo <br />Daqueles que velam pela alegria do mundo <br />Indo mais fundo <br />Tins e bens e tais.<br /> <br /><br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Capinan<br /><br />José Carlos Capinan <br /><br />(Esplanada BA, 1941) <br /><br />Iniciou os cursos de Direito e Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia, mas não chegou a conclui-los. Em 1962, trabalhava como jornalista no Jornal da Bahia, quando teve poemas publicados na antologia Violão de Rua, organizada pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes. Em 1965 ocorreu a apresentação, no Rio de Janeiro, de sua peça Pois É, com Torquato Neto e Caetano Veloso, interpretada por Gilberto Gil, Vinicius de Moraes e Maria Bethânia, no Teatro Opinião. No ano seguinte, sairia seu livro de poemas Inquisitorial. Em 1967 e 1968 integrou o movimento tropicalista, e compôs com Gilberto Gil a canção Soy Loco por Ti, América. Foi vencedor do Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, em 1967, com a canção Ponteio, parceria com Edu Lobo. Poeta, compositor, roteirista, produtor, Capinan foi um dos criadores do Tropicalismo, e em sua obra estão presentes as preocupações sociais e políticas características do movimento.<br /><br />Bandeira de Brasil <br />Terra <br />Vê a cana verde, <br />o nascer do céu, ô. <br /> <br />Verde mar, <br />Maracanã, <br />onde há progresso <br />fica o mato em paz. <br /> <br />Campo <br />Verde, bananeira, <br />amarela fruta <br />do Brasil azul, ô. <br /> <br />Ouro <br />Vê em cada estrela <br />brilha a nossa terra, <br />terra brasileira.<br /><br />Canção de Minha Descoberta <br /><br />Eis-me resignado. <br />Fugi de tudo que fui <br />E pelo caminho de minha renúncia <br />Venho buscar banceiras novas. <br /> <br />Agora persigo a palavra nova <br />Por eles que esperam com o coração amargo <br />E o grito dentro do coração. <br /> <br />Não poderei aceitar o silêncio <br />E ficar em paz com a morte dos desgraçados <br />Caídos sem voz em nossa porta. <br /> <br />As crianças minhas morreram todas. <br />Possuo cada vontade, cada medo, cada ternura morta <br />Agitados de dor pela mão dos homens.<br /><br />No Coração da Saideira <br /><br />Hoje não tem dança <br />Não tem mais menina de trança <br />Nem cheiro de lança no ar <br />Hoje não tem frevo <br />Tem gente que passa com medo <br />E na praça, ninguém pra cantar <br />Me lembro tanto <br />É tão grande a saudade <br />Que até parece verdade que o tempo <br />Ainda pode voltar <br />Tempo de praia <br />De ponta de pedra <br />Das noites de lua <br />Dos blocos de rua <br />Do susto e a carreira <br />Da caramboleia <br />Do bumba-meu-boi <br />Que tempo que foi <br />Agulha frita, mugunzá cravo e canela (BIS) <br />Serenata eu fiz pra ela <br />Cada noite de luar <br />Tempo do corso <br />Na rua da Aurora <br />Moço na praça <br />Menina e senhora <br />No bonde de Olinda <br />Pra baixo e pra cima do caramanchão <br />Esqueço mais não <br />E frevo ainda <br />Apesar da quarta-feira <br />No coração da saideira <br />Vendo a vida se enfeitar<br /><br />O Poeta <br /><br />O poeta não mente. Dificulta. <br />Como ser falso o caminho? <br />A mensagem é luminosa, flui, a mensagem é líquida. <br /> <br />Mentira que o poema sublime <br />O medo e o sofrimento. <br />O poema é trabalhado, dói, o poema é amargo. <br /> <br />O poeta não fugiu ao poema. <br />O verso amadurece como fruto: <br />Revela-se a semente quando a fome o parte. <br /> <br />O poeta não idealiza. <br />Seu caminho é humano <br />(Mas que pode o poeta se não lhe alcançam o símbolo?) <br /> <br />O poeta é gago. <br />Se não o amam, se não o esperam, <br />Não se elucida a palavra e o vôo cai. <br /> <br />A ponte ou às vezes o rio: <br />O poeta não está sobre as coisas, <br />O poeta depende, o poeta as sofre. <br /> <br />É homem o poeta. <br />Sofre o tempo, a fome e o corpo <br />Da mulher amada, como chora e morre e chora. <br /> <br />O poeta é livre para danificar a ave. <br />O poeta não danifica a ave, <br />Executa sem matar, porque o poema é propriamente e não ave.<br /> Ponteio <br />Era um, era dois, era cem <br />era o mundo chegando e ninguém <br />que soubesse que eu sou violeiro <br />que me desse amor ou dinheiro <br />era um, era dois, era cem <br />e vieram pra me perguntar <br />ô você de onde vai, de onde vem <br />diga logo o que tem pra contar <br />parado no meio do mundo <br />pensei chegar meu momento <br />olhei pro mundo e nem via <br />nem sombra, nem sol, nem vento <br />quem me dera agora <br />eu tivesse a viola pra cantar, ponteio <br /> <br />(refrão) <br /> <br />Era um dia, era claro, quase meio <br />era um canto calado, sem ponteio <br />violência, viola, violeiro <br />era noite em redor, mundo inteiro <br />era um que jurou me quebrar <br />mas não me lembro de dor ou receio <br />só sabia das ondas do mar <br />jogaram a viola no mundo <br />mas fui lá no fundo buscar <br />se tomo a viola eu ponteio <br />meu canto não posso parar, não <br /> <br />(refrão) <br /> <br />Era um, era dois, era cem <br />era um dia, era claro, quase meio <br />encerrar meu canto já convém <br />prometendo um novo ponteio <br />certo dia que sei por inteiro <br />eu espero não vai demorar <br />este dia estou certo que vem <br />digo logo que vim pra buscar <br />correndo no meio do mundo <br />não deixo a viola de lado <br />vou ver o tempo mudado <br />e um novo lugar pra cantar <br />(refrão)<br /><br />Soy Loco Por Ti, America <br /><br />Soy loco por ti, America <br />Yo voy traer una mujer playera <br />Que su nombre sea amarte <br />Que su nombre sea amarte <br />Soy loco por ti de amores <br />Tenga como colores <br />La espuma blanca de Latino America <br />Y el cielo como bandera <br />Soy loco por ti, America <br />Soy loco por ti de amores <br />Soy loco por ti, America <br />Soy loco por ti de amores <br />Sorriso de quase nuvem <br />Os rios, canções, o medo <br />O corpo cheio de estrelas <br />O corpo cheio de estrelas <br />Como se chama a amante <br />Desse país sem nome <br />Esse tango, esse rancho <br />Esse povo, dizei-me <br />Arde o fogo de conhecê-la <br />Soy loco por ti, America <br />Soy loco por ti de amores <br />Soy loco por ti, America <br />Soy loco por ti de amores <br />El nombre del hombre muerto <br />Ya no se puede decirlo <br />Quem sabe <br />Antes que o dia arrebente <br />Antes que o dia arrebente <br />El nombre del hombre muerto <br />Antes que a definitiva noite <br />Se espalhe em Latino America <br />El nombre del hombre es pueblo <br />Soy loco por ti, America <br />Soy loco por ti de amores <br />Soy loco por ti, America <br />Soy loco por ti de amores <br />Espero a manhã que cante <br />El nombre del hombre muerto <br />Não sejam palavras tristes <br />Soy loco por ti de amores <br />Um poema ainda existe <br />Com palmeiras, com trincheiras <br />Canções de guerra, quem sabe <br />Canções de mar, ay hasta te conmover <br />Soy loco por ti, America <br />Soy loco por ti de amores <br />Soy loco por ti, America <br />Sou loco por ti de amores <br />Estou aqui de passagem <br />Sei que adiante <br />Um dia vou morrer <br />De susto, de bala ou vício <br />De susto, de bala ou vício <br />No precipício de luzes <br />Entre saudades, soluços <br />Eu vou morrer de bruços <br />Nos braços, nos olhos <br />Nos braços de uma mulher <br />Mais apaixonado ainda <br />Dentro dos braços da camponesa <br />Guerrilheira, manequim <br />Ai de mim <br />Nos braços de quem me queira<br /> <br /><br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Duda Machado<br /><br /><br /><br /><br />POEMA 1922<br /><br />o maluco irrompeu<br /><br />nu na igreja<br /><br />tirou o santo do altar<br /><br />se aninhou no nicho<br /><br />e entrou em êxtase<br /><br />foi um auê geral<br /><br />mas uma das beatas<br /><br />não notou nada<br /><br />[sem título]<br /><br />cachê<br /><br />michê<br /><br />clichê<br /><br />Doente, morena <br />letra: Duda Machado <br />música: Gilberto Gil <br />1972<br /><br /> <br />De manhã cedo ela sai <br />Leva a chave <br />Me deixa trancado <br />O dia inteiro <br />Não ligo <br />Deito sobre os trilhos <br />E vejo o trem passar <br />Entre brinquedos, cigarros <br />O Tesouro da Juventude <br />Em não sei quantos volumes <br />E quando canto <br />Deixo a imaginação voar <br />Mas ontem à noite <br />A mão sobre meus cabelos <br />Ela me disse: <br />"Meu bem, não tenha medo <br />No verão que vem <br />Nós vamos à praia" <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Gilberto Gil <br /><br />(Salvador BA 1942) <br /><br />Gravou em 1963 seu disco de estréia, Gilberto Gil - Sua Música, Sua Interpretação. No ano seguinte terminou curso de Administração de Empresas na Universidade Federal da Bahia e participou do show Nós, Por Exemplo, em Salvador, com Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e Tom Zé. Em 1967 lançou seu primeiro LP, Louvação, e conquistou o segundo lugar no III Festival de MPB da TV Record, com a música Domingo no Parque. Em 1968 participou do lançamento do LP Tropicália ou Panis et Circensis, com Caetano Veloso, Gal Costa, Nara Leão, Rogério Duprat, Tom Zé e Os Mutantes, disco-manifesto do Tropicalismo. Ainda em 1968, foi preso pela ditadura militar e, em 1969, exilou-se na Inglaterra. Nas décadas de 1970 e 1980 realizou vários shows no Brasil e no exterior, fez trilhas sonoras para filmes e lançou diversos álbuns. Ganhou o 10º Prêmio Shell para a Música Brasileira, pelo conjunto de sua obra, em 1990. Em 1993 lançou o cd Tropicália 2, com Caetano Veloso, em comemoração aos 26 anos de Tropicalismo e 30 anos de amizade. Gil é um dos principais compositores da Música Popular Brasileira contemporânea.<br /><br />Banda Um <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1982 <br /> <br />BandaUmBandaUmBandaUmBanda - ô-iê <br />Iê-iê-iê-iê <br />BandaUmBandaUmBandaUmBanda - ô-ô <br />(Iô-iô-iô-iô) <br /> <br />Banda Um que toca um balanço parecendo polka <br />UmBandaUmBandaUm <br />Banda Um que toca um balanço parecendo rumba <br />UmBandaUmBandaUm <br /> <br />Banda Um que é África, que é Báltica, que é Céltica <br />UmBanda América do Sul <br />Banda Um que evoca um bailado de todo planeta <br />UmBandaUm, Banda Um <br /> <br />BandaUmBandaUmBandaUmBanda - ô-iê <br />Iê-iê-iê-iê <br />BandaUmBandaUmBandaUmBanda - ô-ô <br />(Iô-iô-iô-iô) <br /> <br />Banda pra tocar por aí <br />No Zanzibar <br />Pro negro zanzibárbaro dançar <br />Pra agitar o Baixo Leblon <br />O Cariri <br />Pra loura blumenáutica dançar <br />(Hum...) Banda Um, Banda Um <br /> <br />BandaUmBandaUmBandaUmBanda - ô-iê <br />Iê-iê-iê-iê <br />BandaUmBandaUmBandaUmBanda - ô, ô <br /> <br />Banda Um que soa um barato pra qualquer pessoa <br />UmBanda pessoa afins <br />Banda Um que voa, uma asa delta sobre o mundo <br />UmBanda sobre patins <br /> <br />Banda Um surfística nas ondas da manhã nascente <br />UmBanda, banda feliz <br />Banda Um que ecoa uma cachoeira desabando <br />UmBandaUm, bandas mis <br /> <br />BandaUmBandaUmBandaUmBanda - ô-iê <br />Iê-iê-iê-iê <br />BandaUmBandaUmBandaUmBanda - ô-ô <br />(Iô-iô-iô-iô)<br /><br />Bat-staka <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1984 <br /> <br />Pego e ligo o rádio <br />Busco algum remédio para o tédio <br />A música soa <br />Como o som da construção de um prédio <br /> <br />Zoada de serra <br />Onde eu deveria ouvir guitarra <br />Como numa obra <br />Vozes que sugerem uma algazarra <br /> <br />Mexo no ponteiro <br />Corro atrás de nova sintonia <br />A música soa <br />E com ela a mesma fantasia <br /> <br />Mais um movimento <br />Tudo igual na próxima estação <br />Tijolo, cimento <br />Pedra, areia e muito vergalhão <br /> <br />De onde viria, oh, de onde viria <br />Toda essa engenharia civil? <br />Rock maçom, funk de alvenaria <br />Disconcreto, deus, onde já se viu!? <br /> <br />Fico mais atento <br />Tento achar nessa alucinação <br />Qual o elemento <br />Que por trás faz toda a ligação <br /> <br />Súbito o estalo <br />O abalo no meu coração <br />Nítido badalo <br />Lá está o bat-staka <br />Está lá o bat-bat-stakato <br />Bat-bat-batidão <br /> <br />Não adianta mudar <br />Não adianta mudar de estação <br />O bat-staka estala <br />O bat-staka está lá de plantão<br /><br />Batmakumba <br />letra e música: Gilberto Gil, Caetano Veloso <br />1968<br /><br /> <br />Batmakumbayêyê batmakumbaoba <br />Batmakumbayêyê batmakumbao <br />Batmakumbayêyê batmakumba <br />Batmakumbayêyê batmakum <br />Batmakumbayêyê batman <br />Batmakumbayêyê bat <br />Batmakumbayêyê ba <br />Batmakumbayêyê <br />Batmakumbayê <br />Batmakumba <br />Batmakum <br />Batman <br />Bat <br />Ba <br />Bat <br />Batman <br />Batmakum <br />Batmakumba <br />Batmakumbayê <br />Batmakumbayêyê <br />Batmakumbayêyê ba <br />Batmakumbayêyê bat <br />Batmakumbayêyê batman <br />Batmakumbayêyê batmakum <br />Batmakumbayêyê batmakumbao <br />Batmakumbayêyê batmakumbaoba.<br /><br />Cérebro eletrônico <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1969<br /><br /> <br />O cérebro eletrônico faz tudo <br />Faz quase tudo <br />Quase tudo <br />Mas ele é mudo <br /> <br />O cérebro eletrônico comanda <br />Manda e desmanda <br />Ele é quem manda <br />Mas ele não anda <br /> <br />Só eu posso pensar se Deus existe <br />Só eu <br />Só eu posso chorar quando estou triste <br />Só eu <br />Eu cá com meus botões de carne e osso <br />Hum, hum <br />Eu falo e ouço <br />Hum, hum <br />Eu penso e posso <br /> <br />Eu posso decidir se vivo ou morro <br />Porque <br />Porque sou vivo, vivo pra cachorro <br />E sei <br />Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro <br />Em meu caminho inevitável para a morte <br /> <br />Porque sou vivo, ah, sou muito vivo <br />E sei <br />Que a morte é nosso impulso primitivo <br />E sei <br />Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro <br />Com seus botões de ferro e seus olhos de vidro.<br /><br />Cibernética <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1974<br /><br /> <br />Lá na alfândega Celestino era o Humphrey Bogart <br />Solino sempre estava lá <br />Escrevendo: "Dai a César o que é de César" <br />César costumava dar <br /> <br />Me falou de cibernética <br />Achando que eu ia me interessar <br />Que eu já estava interessado <br />Pelo jeito de falar <br />Que eu já estivera estado interessado nela <br /> <br />Cibernética <br />Eu não sei quando será <br />Cibernética <br />Eu não sei quando será <br /> <br />Mas será quando a ciência <br />Estiver livre do poder <br />A consciência, livre do saber <br />E a paciência, morta de esperar <br /> <br />Aí então tudo todo o tempo <br />Será dado e dedicado a Deus <br />E a César dar adeus às armas caberá <br /> <br />Que a luta pela acumulação de bens materiais <br />Já não será preciso continuar <br />A luta pela acumulação de bens materiais <br />Já não será preciso continuar <br /> <br />Onde lia-se alfândega leia-se pândega <br />Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá <br /> <br />Cibernética <br />Eu não sei quando será <br />Cibernética <br />Eu não sei quando será.<br /><br />Copo vazio <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1974<br /><br /> <br />É sempre bom lembrar <br />Que um copo vazio <br />Está cheio de ar <br /> <br />É sempre bom lembrar <br />Que o ar sombrio de um rosto <br />Está cheio de um ar vazio <br />Vazio daquilo que no ar do copo <br />Ocupa um lugar <br /> <br />É sempre bom lembrar <br />Guardar de cor <br />Que o ar vazio de um rosto sombrio <br />Está cheio de dor <br /> <br />É sempre bom lembrar <br />Que um copo vazio <br />Está cheio de ar <br /> <br />Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho <br />Que o vinho busca ocupar o lugar da dor <br />Que a dor ocupa a metade da verdade <br />A verdadeira natureza interior <br />Uma metade cheia, uma metade vazia <br />Uma metade tristeza, uma metade alegria <br />A magia da verdade inteira, todo poderoso amor <br />A magia da verdade inteira, todo poderoso amor <br /> <br />É sempre bom lembrar <br />Que um copo vazio <br />Está cheio de ar.<br /><br />Cultura e civilização <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1969<br /><br /> <br />A cultura, a civilização <br />Elas que se danem <br />Ou não <br /> <br />Somente me interessam <br />Contanto que me deixem meu licor de genipapo <br />O papo <br />Das noites de São João <br />Somente me interessam <br />Contanto que me deixem meu cabelo belo <br />Meu cabelo belo <br />Como a juba de um leão <br />Contanto que me deixem <br />Ficar na minha <br />Contanto que me deixem <br />Ficar com minha vida na mão <br />Minha vida na mão <br />Minha vida <br /> <br />A cultura, a civilização <br />Elas que se danem <br />Ou não <br /> <br />Eu gosto mesmo <br />É de comer com coentro <br />Eu gosto mesmo <br />É de ficar por dentro <br />Como eu estive algum tempo <br />Na barriga de Claudina <br />Uma velha baiana <br />Cem por cento.<br /><br />Dança de Shiva <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1995<br /><br /> <br />Dança de Shiva <br />Repare a dança de Shiva <br />Enquanto a reta se curva <br />Cai chuva da nuvem de pó <br />Fraude do Thomas <br />Repare a fraude do Thomas <br />Os deuses todos em coma <br />Enquanto Exu não dá o nó <br /> <br />Nó se dá um só <br />Se dói de dó <br />Se mói na mó <br />Pulverizar <br />Se foi na avó <br />No neto irá <br /> <br />Não, não irá <br />Quiçá morrerão <br />Deuses em coma <br />Homens em vão <br />Pela ciência <br />Pela canção <br />Deuses do sim <br />Deuses do não <br /> <br />Quem me vir dançar <br />Verá que quem dança é Shiva <br />Quem dança, quem dança é Shiva <br />Quem me vir já não me verá <br />Verá no Thomas <br />Por trás da fraude do Thomas <br />Alguns verazes sintomas <br />De um passageiro mal-estar.<br /><br />De Bob Dylan a Bob Marley - um samba-provocação <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1989<br /><br /> <br />Quando Bob Dylan se tornou cristão <br />Fez um disco de reggae por compensação <br />Abandonava o povo de Israel <br />E a ele retornava pela contramão <br /> <br />Quando os povos d'África chegaram aqui <br />Não tinham liberdade de religião <br />Adotaram Senhor do Bonfim: <br />Tanto resistência, quanto rendição <br /> <br />Quando, hoje, alguns preferem condenar <br />O sincretismo e a miscigenação <br />Parece que o fazem por ignorar <br />Os modos caprichosos da paixão <br /> <br />Paixão, que habita o coração da natureza-mãe <br />E que desloca a história em suas mutações <br />Que explica o fato da Branca de Neve amar <br />Não a um, mas a todos os sete anões <br /> <br />Eu cá me ponho a meditar <br />Pela mania da compreensão <br />Ainda hoje andei tentando decifrar <br />Algo que li que estava escrito numa pichação <br />Que agora eu resolvi cantar <br />Neste samba em forma de refrão: <br /> <br />"Bob Marley morreu <br />Porque além de negro era judeu <br />Michael Jackson ainda resiste <br />Porque além de branco ficou triste".<br /><br />Domingo no parque <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1967<br /><br /> <br />O rei da brincadeira - ê, José <br />O rei da confusão - ê, João <br />Um trabalhava na feira - ê, José <br />Outro na construção - ê, João <br /> <br />A semana passada, no fim da semana <br />João resolveu não brigar <br />No domingo de tarde saiu apressado <br />E não foi pra Ribeira jogar <br />Capoeira <br />Não foi pra lá pra Ribeira <br />Foi namorar <br /> <br />O José como sempre no fim da semana <br />Guardou a barraca e sumiu <br />Foi fazer no domingo um passeio no parque <br />Lá perto da Boca do Rio <br />Foi no parque que ele avistou <br />Juliana <br />Foi que ele viu <br /> <br />Juliana na roda com João <br />Uma rosa e um sorvete na mão <br />Juliana, seu sonho, uma ilusão <br />Juliana e o amigo João <br />O espinho da rosa feriu Zé <br />E o sorvete gelou seu coração <br /> <br />O sorvete e a rosa - ô, José <br />A rosa e o sorvete - ô, José <br />Oi, dançando no peito - ô, José <br />Do José brincalhão - ô, José <br /> <br />O sorvete e a rosa - ô, José <br />A rosa e o sorvete - ô, José <br />Oi, girando na mente - ô, José <br />Do José brincalhão - ô, José <br /> <br />Juliana girando - oi, girando <br />Oi, na roda gigante - oi, girando <br />Oi, na roda gigante - oi, girando <br />O amigo João - João <br /> <br />O sorvete é morango - é vermelho <br />Oi, girando, e a rosa - é vermelha <br />Oi, girando, girando - é vermelha <br />Oi, girando, girando - olha a faca! <br /> <br />Olha o sangue na mão - ê, José <br />Juliana no chão - ê, José <br />Outro corpo caído - ê, José <br />Seu amigo, João - ê, José <br /> <br />Amanhã não tem feira - ê, José <br />Não tem mais construção - ê, João <br />Não tem mais brincadeira - ê, José <br />Não tem mais confusão - ê, João.<br /><br />Drão <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1982<br /><br /> <br />Drão <br />O amor da gente é como um grão <br />Uma semente de ilusão <br />Tem que morrer pra germinar <br />Plantar nalgum lugar <br />Ressuscitar no chão <br />Nossa semeadura <br />Quem poderá fazer <br />Aquele amor morrer! <br />Nossa caminhadura <br />Dura caminhada <br />Pela estrada escura <br /> <br />Drão <br />Não pense na separação <br />Não despedace o coração <br />O verdadeiro amor é vão <br />Estende-se, infinito <br />Imenso monolito <br />Nossa arquitetura <br />Quem poderá fazer <br />Aquele amor morrer! <br />Nossa caminha dura <br />Cama de tatame <br />Pela vida afora <br /> <br />Drão <br />Os meninos são todos sãos <br />Os pecados são todos meus <br />Deus sabe a minha confissão <br />Não há o que perdoar <br />Por isso mesmo é que há <br />De haver mais compaixão <br />Quem poderá fazer <br />Aquele amor morrer <br />Se o amor é como um grão! <br />Morrenasce, trigo <br />Vivemorre, pão <br /> <br />Drão.<br /><br />Entre os ateus <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1978 <br /> <br />Jogo Batalha Naval <br />Também brinco o carnaval <br />Rezo, medito, me irrito <br />Dou grito por dentro <br />Esperando por Deus <br />Não tenho muito de bom <br />Tampouco muito de mal <br />Não acredito em crenças <br />Não temo doenças <br />E vivo contente entre os ateus <br /> <br />Penso que tudo dá nada <br />E que nada dá tudo que a gente quiser <br />E se alma não é pequena vai saber <br />Que vale a pena viver <br />Pena e mais pena <br />O tribunal condena <br />Julgando ensinar a lição <br />Eu só me condeno a mim <br />Quando me esqueço o perdão.<br /><br />Esotérico <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1976<br /><br /> <br />Não adianta nem me abandonar <br />Porque mistério sempre há de pintar por aí <br />Pessoas até muito mais vão lhe amar <br />Até muito mais difíceis que eu pra você <br />Que eu, que dois, que dez, que dez milhões <br />Todos iguais <br /> <br />Até que nem tanto esotérico assim <br />Se eu sou algo incompreensível <br />Meu Deus é mais <br />Mistério sempre há de pintar por aí <br /> <br />Não adianta nem me abandonar <br />Nem ficar tão apaixonada, que nada! <br />Que não sabe nadar <br />Que morre afogada por mim.<br /><br />Expresso 2222 <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1971<br /><br /> <br />Começou a circular o Expresso 2222 <br />Que parte direto de Bonsucesso pra depois <br />Começou a circular o Expresso 2222 <br />Da Central do Brasil <br />Que parte direto de Bonsucesso <br />Pra depois do ano 2000 <br /> <br />Dizem que tem muita gente de agora <br />Se adiantando, partindo pra lá <br />Pra 2001 e 2 e tempo afora <br />Até onde essa estrada do tempo vai dar <br />Do tempo vai dar <br />Do tempo vai dar, menina, do tempo vai <br /> <br />Segundo quem já andou no Expresso <br />Lá pelo ano 2000 fica a tal <br />Estação final do percurso-vida <br />Na terra-mãe concebida <br />De vento, de fogo, de água e sal <br />De água e sal <br />De água e sal <br />Ô, menina, de água e sal <br /> <br />Dizem que parece o bonde do morro <br />Do Corcovado daqui <br />Só que não se pega e entra e senta e anda <br />O trilho é feito um brilho que não tem fim <br />Oi, que não tem fim <br />Que não tem fim <br />Ô, menina, que não tem fim <br /> <br />Nunca se chega no Cristo concreto <br />De matéria ou qualquer coisa real <br />Depois de 2001 e 2 e tempo afora <br />O Cristo é como quem foi visto subindo ao céu <br />Subindo ao céu <br />Num véu de nuvem brilhante subindo ao céu.<br /><br />Figura de retórica <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1971 <br /> <br />Eu sou uma figura de retórica <br />Eu sou a frase de um discurso de paraninfia <br />Da turma de bacharelandos <br />Da Universidade da Bahia <br />A popular figura metafórica <br />Eu sou a beca preta que o doutor vestia <br />Na tarde daquele memorável samba <br />No salão nobre da reitoria <br /> <br />Beca preta, doutor de anedotas, normalista linda <br />Nossas fantasias não têm igual <br />Aos Fantasmas de Hamilton, Coemo, Rubinho e Mutinha <br />Nossas simpatias neste carnaval.<br /><br />Futurível <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1969<br /><br /> <br />Você foi chamado, vai ser transmutado em energia <br />Seu segundo estágio de humanóide hoje se inicia <br />Fique calmo, vamos começar a transmissão <br />Meu sistema vai mudar <br />Sua dimensão <br />Seu corpo vai se transformar <br />Num raio, vai se transportar <br />No espaço, vai se recompor <br />Muitos anos-luz além <br />Além daqui <br />A nova coesão <br />Lhe dará de novo um coração mortal <br /> <br />Pode ser que o novo movimento lhe pareça estranho <br />Seus olhos talvez sejam de cobre, seus braços de estanho <br />Não se preocupe, meu sistema manterá <br />A consciência do ser <br />Você pensará <br />Seu corpo será mais brilhante <br />A mente, mais inteligente <br />Tudo em superdimensão <br />O mutante é mais feliz <br />Feliz porque <br />Na nova mutação <br />A felicidade é feita de metal.<br /><br />Jeca total <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1975<br /><br /> <br />Jeca Total deve ser Jeca Tatu <br />Presente, passado <br />Representante da gente no senado <br />Em plena sessão <br />Defendendo um projeto <br />Que eleva o teto <br />Salarial no sertão <br /> <br />Jeca Total deve ser Jeca Tatu <br />Doente curado <br />Representante da gente na sala <br />Defronte da televisão <br />Assistindo Gabriela <br />Viver tantas cores <br />Dores da emancipação <br /> <br />Jeca Total deve ser Jeca Tatu <br />Um ente querido <br />Representante da gente no olimpo <br />Da imaginação <br />Imaginacionando o que seria a criação <br />De um ditado <br />Dito popular <br />Mito da mitologia brasileira <br />Jeca Total <br /> <br />Jeca Total deve ser Jeca Tatu <br />Um tempo perdido <br />Interessante a maneira do tempo <br />Ter perdição <br />Quer dizer, se perder no correr <br />Decorrer da história <br />Glória, decadência, memória <br />Era de Aquarius <br />Ou mera ilusão <br /> <br />Jeca Total deve ser Jeca Tatu <br />Jorge Salomão <br /> <br />Jeca Total Jeca Tatu Jeca Total Jeca Tatu <br />Jeca Tatu Jeca Total Jeca Tatu Jeca Total.<br /><br />Jubiabá <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1986<br /><br /> <br />Negro Balduíno, belo negro baldo <br />Filho malcriado de uma velha tia <br />Via com seus olhos de menino esperto <br />Luzes onde luzes não havia <br /> <br />Cresce, vira um forte, evita a morte breve <br />Leve, gira o pé na capoeira, luta <br />Bruta como a pedra, sua vida inteira <br />Cheira a manga-espada e maresia <br /> <br />Tinha a guia que lhe deu Jubiabá <br />Que lhe deu Jubiabá <br />A guia <br /> <br />Trava com o destino uma batalha cega <br />Pega da navalha e retalha a barriga <br />Fofa, tão inchada e cheia de lombriga <br />Da monstra miséria da Bahia <br /> <br />Leva uma trombada do amor cigano <br />Entra pelo cano do esgoto e pula <br />Chula na quadrilha da festa junina <br />Todo santo de vida vadia <br /> <br />Tinha a guia que lhe deu Jubiabá <br />Que lhe deu Jubiabá <br />A guia <br /> <br />Alva como algodão e tão macia <br />Como algo bom pra lhe estancar o sangue <br />Como álcool pra desinfetar-lhe o corte <br />Como cura para a hemorragia <br /> <br />Moça Lindinalva, morta, vira fardo <br />Carga para os ombros, suor para o rosto <br />Luta no labor, novo sabor, labuta <br />Feito a mão e não mais por magia <br /> <br />Tinha a guia que lhe deu Jubiabá <br />Que lhe deu Jubiabá <br />A guia <br /> <br />Negro Balduíno, belo negro baldo <br />Saldo de uma conta da história crua <br />Rua, pé descalço, liberdade nua <br />Um rei para o reino da alegria <br /> <br />Tinha a guia que lhe deu Jubiabá <br />Que lhe deu Jubiabá <br />A guia.<br /><br />Logos versus logo <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1985<br /><br /> <br />Trocar o logos da posteridade <br />Pelo logo da prosperidade <br /> <br />Celebra-se, poeta que se é <br />Durante um tempo a idéia radical <br />De tudo importar, se para o supremo ser <br />De nada importar, se para o homem mortal <br /> <br />Abarrotam-se os cofres do saber <br />Um saber que se torne capital <br />Um capital que faça o futuro render <br />Os juros da condição de imortal <br /> <br />(Mas a morte é certa!) <br /> <br />Trocar o logos da posteridade <br />Pelo logo da prosperidade <br /> <br />E assim por muito tempo busca-se <br />O cuidadoso esculpir da estátua <br />Que possa atravessar os séculos intacta <br />Tornar perpétua a lembrança do poeta <br /> <br />Mas chega-se ao cruzamento da vida <br />O ser pra um lado, pra outro lado o mundo <br />Sujeita-se o poeta à servidão da lida <br />Quando a voz da razão fala mais fundo <br /> <br />E essa voz comanda: <br /> <br />Trocar o logos da posteridade <br />Pelo logo da prosperidade <br /> <br />E o bom poeta, sólido afinal <br />Apossa-se da foice ou do martelo <br />Para investir do aqui e agora o capital <br />No produzir real de um mundo justo e belo <br /> <br />Celebra assim, mortal que já se crê <br />O afazer como bem ritual <br />Cessar da obsessão pelo supremo ser <br />Nascer do prazer pelo social <br /> <br />E o poeta grita: <br /> <br />Trocar o logos da posteridade <br />Pelo logo da prosperidade <br /> <br />Eis o papel da grande cidade <br />Eis a função da modernidade.<br /> Lunik 9 <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1966 <br /> <br />Poetas, seresteiros, namorados, correi <br />É chegada a hora de escrever e cantar <br />Talvez as derradeiras noites de luar <br /> <br />Momento histórico <br />Simples resultado <br />Do desenvolvimento da ciência viva <br />Afirmação do homem <br />Normal, gradativa <br />Sobre o universo natural <br />Sei lá que mais <br /> <br />Ah, sim! <br />Os místicos também <br />Profetizando em tudo o fim do mundo <br />E em tudo o início dos tempos do além <br />Em cada consciência <br />Em todos os confins <br />Da nova guerra ouvem-se os clarins <br /> <br />Guerra diferente das tradicionais <br />Guerra de astronautas nos espaços siderais <br />E tudo isso em meio às discussões <br />Muitos palpites, mil opiniões <br />Um fato só já existe <br />Que ninguém pode negar <br />7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, já! <br /> <br />Lá se foi o homem <br />Conquistar os mundos <br />Lá se foi <br />Lá se foi buscando <br />A esperança que aqui já se foi <br />Nos jornais, manchetes, sensação <br />Reportagens, fotos, conclusão: <br />A lua foi alcançada afinal <br />Muito bem <br />Confesso que estou contente também <br /> <br />A mim me resta disso tudo uma tristeza só <br />Talvez não tenha mais luar <br />Pra clarear minha canção <br />O que será do verso sem luar? <br />O que será do mar <br />Da flor, do violão? <br />Tenho pensado tanto, mas nem sei <br /> <br />Poetas, seresteiros, namorados, correi <br />É chegada a hora de escrever e cantar <br />Talvez as derradeiras noites de luar.<br /><br />Maracujá <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1972 <br /> <br />Mara <br />Maracu <br />Maracujá <br />Maracujá agora <br />Maracujá a qualquer hora <br />Maracujá em qualquer lugar.<br /><br />Meu amigo, meu herói <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1980 <br /> <br />Ó, meu amigo, meu herói <br />Ó, como dói <br />Saber que a ti também corrói <br />A dor da solidão <br /> <br />Ó, meu amado, minha luz <br />Descansa a tua mão cansada sobre a minha <br />Sobre a minha mão <br /> <br />A força do universo não te deixará <br />O lume das estrelas te alumiará <br />Na casa do meu coração pequeno <br />No quarto do meu coração menino <br />No canto do meu coração espero <br />Agasalhar-te a ilusão <br /> <br />Ó, meu amigo, meu herói <br />Ó, como dói <br />Ó, como dói <br />Ó, como dói.<br /><br />Metáfora <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1982<br /><br /> <br />Uma lata existe para conter algo <br />Mas quando o poeta diz: "Lata" <br />Pode estar querendo dizer o incontível <br /> <br />Uma meta existe para ser um alvo <br />Mas quando o poeta diz: "Meta" <br />Pode estar querendo dizer o inatingível <br /> <br />Por isso, não se meta a exigir do poeta <br />Que determine o conteúdo em sua lata <br />Na lata do poeta tudonada cabe <br />Pois ao poeta cabe fazer <br />Com que na lata venha caber <br />O incabível <br /> <br />Deixe a meta do poeta, não discuta <br />Deixe a sua meta fora da disputa <br />Meta dentro e fora, lata absoluta <br />Deixe-a simplesmente metáfora.<br /><br />Meteorum <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1995<br /><br /> <br />( <br />oio <br />oio cum <br />oio cuma <br />oio cuma eí <br />oio cuma eio auma <br />oio cuma eio auma auma oio <br />) <br /> <br />oio cuma eio <br />auma auma <br />oio cuma eio <br />auma auma <br />( <br />meteorum <br />) <br />meteorum aieô <br />meteô <br />meteorum aieô <br />meteô <br />eô eô eô ê <br />( <br />eô eô eô eô <br />)<br /><br />Nos barracos da cidade (Barracos) <br />letra: Gilberto Gil <br />música: Liminha <br />1985<br /><br /> <br />Nos barracos da cidade <br />Ninguém mais tem ilusão <br />No poder da autoridade <br />De tomar a decisão <br />E o poder da autoridade <br />Se pode, não fez questão <br />Se faz questão, não consegue <br />Enfrentar o tubarão <br /> <br />Ô-ô-ô, ô-ô <br />Gente estúpida <br />Ô-ô-ô, ô-ô <br />Gente hipócrita <br /> <br />O governador promete <br />Mas o sistema diz não <br />Os lucros são muito grandes <br />Mas ninguém quer abrir mão <br />Mesmo uma pequena parte <br />Já seria a solução <br />Mas a usura dessa gente <br />Já virou um aleijão <br /> <br />Ô-ô-ô, ô-ô <br />Gente estúpida <br />Ô-ô-ô, ô-ô <br />Gente hipócrita.<br /><br />O eterno deus Mu dança! <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1989<br /><br /> <br />Sente-se a moçada descontente onde quer que se vá <br />Sente-se que a coisa já não pode ficar como está <br />Sente-se a decisão dessa gente em se manifestar <br />Sente-se o que a massa sente, a massa quer gritar: <br />"A gente quer mu-dança <br />O dia da mu-dança <br />A hora da mu-dança <br />O gesto da mu-dança" <br /> <br />Sente-se tranqüilamente e ponha-se a raciocinar <br />Sente-se na arquibancada ou sente-se à mesa de um bar <br />Sente-se onde haja gente, logo você vai notar <br />Sente-se algo diferente: a massa quer se levantar <br />Pra ver mu-dança <br />O time da mu-dança <br />O jogo da mu-dança <br />O lance da mu-dança <br /> <br />Sente-se - e não é somente aqui, mas em qualquer lugar: <br />Terras, povos diferentes - outros sonhos pra sonhar <br />Mesmo e até principalmente onde menos queixas há <br />Mesmo lá, no inconsciente, alguma coisa está <br />Clamando por mu-dança <br />O tempo da mu-dança <br />O sinal da mu-dança <br />O ponto da mu-dança <br /> <br />Sente-se, o que chamou-se Ocidente tende a arrebentar <br />Todas as correntes do presente para enveredar <br />Já pelas veredas do futuro ciclo do ar <br />Sente-se! Levante-se! Prepare-se para celebrar <br />O deus Mu dança! <br />O eterno deus Mu dança! <br />Talvez em paz Mu dança! <br />Talvez com sua lança.<br /><br />O veado <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1983<br /><br /> <br />O veado <br />Como é lindo <br />Escapulindo pulando <br />Evoluindo <br />Correndo evasivo <br />Ei-lo do outro lado <br />Quase parado um instante <br />Evanescente <br />Quase que olhando pra gente <br />Evaporante <br />Eva pirante <br /> <br />O veado <br />Greta Garbo <br />Garbo, a palavra mais justa <br />Que me gusta <br />Que me ocorre <br />Para explicar um veado <br />Quando corre <br />Garbo esplendor de uma dama <br />Das camélias <br />Garbo vertiqualidade <br />Animália <br />Anamélia <br /> <br />Ó, veado <br />Quanto tato <br />Preciso pra chegar perto <br />Ando tanto <br />Querendo o teu pulo certo <br />Teu encanto <br />Teu porte esperto, delgado <br /> <br />Ser veado <br />Ser veado <br />Ter as costelas à mostra <br />E uma delas <br />Tê-la extraída das costas <br />Tê-la Eva bem exposta <br />Tê-la Eva bem à vista.<br /><br />Parabolicamará <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1991<br /><br /> <br />Antes mundo era pequeno <br />Porque Terra era grande <br />Hoje mundo é muito grande <br />Porque Terra é pequena <br />Do tamanho da antena parabolicamará <br />Ê, volta do mundo, camará <br />Ê, ê, mundo dá volta, camará <br /> <br />Antes longe era distante <br />Perto, só quando dava <br />Quando muito, ali defronte <br />E o horizonte acabava <br />Hoje lá trás dos montes, den de casa, camará <br />Ê, volta do mundo, camará <br />Ê, ê, mundo dá volta, camará <br /> <br />De jangada leva uma eternidade <br />De saveiro leva uma encarnação <br /> <br />Pela onda luminosa <br />Leva o tempo de um raio <br />Tempo que levava Rosa <br />Pra aprumar o balaio <br />Quando sentia que o balaio ia escorregar <br />Ê, volta do mundo, camará <br />Ê, ê, mundo dá volta, camará <br /> <br />Esse tempo nunca passa <br />Não é de ontem nem de hoje <br />Mora no som da cabaça <br />Nem tá preso nem foge <br />No instante que tange o berimbau, meu camará <br />Ê, volta do mundo, camará <br />Ê, ê, mundo da volta, camará <br /> <br />De jangada leva uma eternidade <br />De saveiro leva uma encarnação <br />De avião, o tempo de uma saudade <br /> <br />Esse tempo não tem rédea <br />Vem nas asas do vento <br />O momento da tragédia <br />Chico, Ferreira e Bento <br />Só souberam na hora do destino apresentar <br />Ê, volta do mundo, camará <br />Ê, ê, mundo dá volta, câmara.<br /><br />Patumbalacundê <br />letra: Gilberto Gil <br />música: João Donato, Durval Ferreira, Orlandivo <br />1975 <br /> <br />Patumbalacundê - um dá <br />Patumbalacundê - um pé <br />Patumbalacundê - um lá <br /> <br />Patumbalacundê - um sol <br />Patumbalacundê - um faz <br />Patumbalacundê - um diz <br /> <br />Patumbalacundê - um dez <br />Patumbalacundê - um ás <br />Patumbalacundê - um giz <br /> <br />Patumbalacundê - um tom <br />Patumbalacundê - talvez <br />Patumbalacundê - um gás.<br /><br />Pela Internet <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1996<br /><br /> <br />Criar meu web site <br />Fazer minha home-page <br />Com quantos gigabytes <br />Se faz uma jangada <br />Um barco que veleje <br /> <br />Que veleje nesse infomar <br />Que aproveite a vazante da infomaré <br />Que leve um oriki do meu velho orixá <br />Ao porto de um disquete de um micro em Taipé <br /> <br />Um barco que veleje nesse infomar <br />Que aproveite a vazante da infomaré <br />Que leve meu e-mail até Calcutá <br />Depois de um hot-link <br />Num site de Helsinque <br />Para abastecer <br /> <br />Eu quero entrar na rede <br />Promover um debate <br />Juntar via Internet <br />Um grupo de tietes de Connecticut <br /> <br />De Connecticut acessar <br />O chefe da Macmilícia de Milão <br />Um hacker mafioso acaba de soltar <br />Um vírus pra atacar programas no Japão <br /> <br />Eu quero entrar na rede pra contactar <br />Os lares do Nepal, os bares do Gabão <br />Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular <br />Que lá na praça Onze tem um vídeopôquer para se jogar.<br /><br />Pega a voga, cabeludo <br />adaptação: Gilberto Gil <br />recolhida e adaptada por: Juan Arcon <br />1967<br /><br /> <br />Pega a voga, cabeludo <br />Que eu não sou cascudo <br />Tenho muito estudo <br />Pra fazer minha embolada <br />Cá na batucada não me falta nada <br />Eu tenho tudo <br /> <br />Tenho uma tinta <br />Que no dia que não pinta fica feia <br />Tenho uma barca <br />Que no dia de fuzarca fica cheia <br />E a mulata que tem ouro <br />Que tem prata, que tem tudo <br />É quem grita: "Pega a voga <br />Pega a voga, cabeludo!"<br /><br />Pílula de alho <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1982<br /><br /> <br />Você já ouviu falar <br />Da pílula de alho? <br />É uma pílula amarela <br />Cê toma uma daquela <br />Nem sabe o que é que sente <br />Mas a infecção já era <br /> <br />Eu tive dor de dente <br />Tomei algumas delas <br />As bichinhas logo agiram <br />Depois de certo (pouco) tempo <br />Senti-me melhorado <br />E os sintomas maus sumiram <br /> <br />A pílula de alho <br />Feita de alho e calor <br />É puro óleo de alho <br />É como a flor de dendê <br />É mel da planta isenta <br />De qualquer outro fator <br />A pílula de alho <br />Feita de alho e calor <br /> <br />A luminosidade <br />É de bola de gude <br />A transparência é cristalina <br />Vê-se que é coisa pura <br />Sente-se que é coisa nova <br />Sabe-se que é coisa fina <br /> <br />A pílula de alho <br />Da planta antibiótica <br />Da velha medicina <br />Que desenvolvimento! <br />Que belo (lindo) ensinamento <br />A pílula de alho ensina! <br /> <br />A pílula de alho <br />Feita de alho e calor <br /> <br />É puro óleo de alho <br />É como a flor de dendê <br />É mel da planta isenta <br />De qualquer outro fator <br />A pílula de alho <br />Feita de alho e calor.<br /><br />Punk da periferia <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1983<br /><br /> <br />Das feridas que a pobreza cria <br />Sou o pus <br />Sou o que de resto restaria <br />Aos urubus <br />Pus por isso mesmo este blusão carniça <br />Fiz no rosto este make-up pó caliça <br />Quis trazer assim nossa desgraça à luz <br /> <br />Sou um punk da periferia <br />Sou da Freguesia do Ó <br />Ó <br />Ó, aqui pra vocês! <br />Sou da Freguesia <br /> <br />Ter cabelo tipo índio moicano <br />Me apraz <br />Saber que entraremos pelo cano <br />Satisfaz <br />Vós tereis um padre pra rezar a missa <br />Dez minutos antes de virar fumaça <br />Nós ocuparemos a Praça da Paz <br /> <br />Sou um punk da periferia <br />Sou da Freguesia do Ó <br />Ó <br />Ó, aqui pra vocês! <br />Sou da Freguesia <br /> <br />Transo lixo, curto porcaria <br />Tenho dó <br />Da esperança vã da minha tia <br />Da vovó <br />Esgotados os poderes da ciência <br />Esgotada toda a nossa paciência <br />Eis que esta cidade é um esgoto só <br /> <br />Sou um punk da periferia <br />Sou da Freguesia do Ó <br />Ó <br />Ó, aqui pra vocês! <br />Sou da Freguesia.<br /><br />Procissão <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1964<br /><br /> <br />Olha lá vai passando a procissão <br />Se arrastando que nem cobra pelo chão <br />As pessoas que nela vão passando <br />Acreditam nas coisas lá do céu <br />As mulheres cantando tiram versos <br />Os homens escutando tiram o chapéu <br />Eles vivem penando aqui na terra <br />Esperando o que Jesus prometeu <br /> <br />E Jesus prometeu vida melhor <br />Pra quem vive nesse mundo sem amor <br />Só depois de entregar o corpo ao chão <br />Só depois de morrer neste sertão <br />Eu também tô do lado de Jesus <br />Só que acho que ele se esqueceu <br />De dizer que na terra a gente tem <br />De arranjar um jeitinho pra viver <br /> <br />Muita gente se arvora a ser Deus <br />E promete tanta coisa pro sertão <br />Que vai dar um vestido pra Maria <br />E promete um roçado pro João <br />Entra ano, sai ano, e nada vem <br />Meu sertão continua ao deus-dará <br />Mas se existe Jesus no firmamento <br />Cá na terra isto tem que se acabar.<br /><br />Quanta <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1995<br /><br /> <br />Quanta do latim <br />Plural de quantum <br />Quando quase não há <br />Quantidade que se medir <br />Qualidade que se expressar <br /> <br />Fragmento infinitésimo <br />Quase que apenas mental <br />Quantum granulado no mel <br />Quantum ondulado no sal <br />Mel de urânio, sal de rádio <br />Qualquer coisa quase ideal <br /> <br />Cântico dos cânticos <br />Quântico dos quânticos <br /> <br />Canto de louvor <br />De amor ao vento <br />Vento, arte do ar <br />Balançando o corpo da flor <br />Levando o veleiro pro mar <br />Vento de calor <br />De pensamento em chamas <br />Inspiração <br />Arte de criar o saber <br />Arte, descoberta, invenção <br />Theoría em grego quer dizer <br />O ser em contemplação <br /> <br />Cântico dos cânticos <br />Quântico dos quânticos <br /> <br />Sei que a arte é irmã da ciência <br />Ambas filhas de um deus fugaz <br />Que faz num momento e no mesmo momento desfaz <br />Esse vago deus por trás do mundo <br />Por detrás do detrás <br /> <br />Cântico dos cânticos <br />Quântico dos quânticos.<br /><br />Refavela <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1977<br /><br /> <br />Iaiá, kiriê, kiriê, iaiá <br /> <br />A refavela <br />Revela aquela <br />Que desce o morro e vem transar <br />O ambiente <br />Efervescente <br />De uma cidade a cintilar <br /> <br />A refavela <br />Revela o salto <br />Que o preto pobre tenta dar <br />Quando se arranca <br />Do seu barraco <br />Prum bloco do BNH <br /> <br />A refavela, a refavela, ó <br />Como é tão bela, como é tão bela, ó <br /> <br />A refavela <br />Revela a escola <br />De samba paradoxal <br />Brasileirinho <br />Pelo sotaque <br />Mas de língua internacional <br /> <br />A refavela <br />Revela o passo <br />Com que caminha a geração <br />Do black jovem <br />Do black-Rio <br />Da nova dança no salão <br /> <br />Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá <br /> <br />A refavela <br />Revela o choque <br />Entre a favela-inferno e o céu <br />Baby-blue-rock <br />Sobre a cabeça <br />De um povo-chocolate-e-mel <br /> <br />A refavela <br />Revela o sonho <br />De minha alma, meu coração <br />De minha gente <br />Minha semente <br />Preta Maria, Zé, João <br /> <br />A refavela, a refavela, ó <br />Como é tão bela, como é tão bela, ó <br /> <br />A refavela <br />Alegoria <br />Elegia, alegria e dor <br />Rico brinquedo <br />De samba-enredo <br />Sobre medo, segredo e amor <br /> <br />A refavela <br />Batuque puro <br />De samba duro de marfim <br />Marfim da costa <br />De uma Nigéria <br />Miséria, roupa de cetim <br /> <br />Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá.<br /><br />Refazenda <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1975<br /><br /> <br />Abacateiro <br />Acataremos teu ato <br />Nós também somos do mato <br />Como o pato e o leão <br />Aguardaremos <br />Brincaremos no regato <br />Até que nos tragam frutos <br />Teu amor, teu coração <br /> <br />Abacateiro <br />Teu recolhimento é justamente <br />O significado <br />Da palavra temporão <br />Enquanto o tempo <br />Não trouxer teu abacate <br />Amanhecerá tomate <br />E anoitecerá mamão <br /> <br />Abacateiro <br />Sabes ao que estou me referindo <br />Porque todo tamarindo tem <br />O seu agosto azedo <br />Cedo, antes que o janeiro <br />Doce manga venha ser também <br /> <br />Abacateiro <br />Serás meu parceiro solitário <br />Nesse itinerário <br />Da leveza pelo ar <br />Abacateiro <br />Saiba que na refazenda <br />Tu me ensina a fazer renda <br />Que eu te ensino a namorar <br /> <br />Refazendo tudo <br />Refazenda <br />Refazenda toda <br />Guariroba.<br /><br />Sítio do Pica-Pau-Amarelo <br />letra e música: Gilberto Gil <br />1976<br /><br /> <br />Marmelada de banana <br />Bananada de goiaba <br />Goiabada de marmelo <br />Sítio do Pica-Pau-Amarelo <br /> <br />Boneca de pano é gente <br />Sabugo de milho é gente <br />O sol nascente é tão belo <br />Sítio do Pica-Pau-Amarelo <br /> <br />Rios de prata piratas <br />Vôo sideral na mata <br />Universo paralelo <br />Sítio do Pica-Pau-Amarelo <br /> <br />No país da fantasia <br />Num estado de euforia <br />Cidade Polichinelo <br />Sítio do Pica-Pau-Amarelo.<br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Jorge Mautner<br /><br />Henrique George Mautner, o Jorge Mautner, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, no dia 17 de Janeiro de 1941. Filho de pai judeu vienense, foi descoberto em 1958 pelo poeta Paulo Bonfim e o filósofo Vicente Ferreira da Silva, que publicaram um texto seu na revista Diálogo.<br /><br />Mautner é multimídia. Além de conhecido compositor e cantor, com sucessos gravados por vários nomes da MPB, entre eles: ("O Vampiro" com Caetano Veloso); ("Maracatu Atômico" com Gilberto Gil); ("Filho Predileto de Xangô" com Celson Sim); ("Lágrimas Negras" com Gal Costa); ("Samba dos Animas" com Lulu Santos); ("Rock Comendo Cereja" e "Samba Jambo" com Jongê); ("Orquídia Negra" com Zé Ramalho), Jorge Mautner é interprete, tendo participações em songsbooks e shows em homenagem a Ismael Silva, Wilson Batista e Noel Rosa.<br /><br />Como se não bastasse, Jorge Mautner é também conhecido e conceituado escritor, tendo recebido o prêmio Jabuti de literatura na ocasião de seu primeiro livro, chamado "Deus da Chuva e da Morte".<br /><br />O Jorge não fica só aqui, ele também é diretor de cinema, como no filme, longa metragem, "O Demiurgo" de 1970.<br /><br />Tarado <br />Caetano Veloso / Jorge Mautner<br /><br />Gosto de ficar na praia deitado <br />Com a cabeça no travesseiro de areia <br />Olhando coxas gostosas por todo lado <br />Das mais lindas garotas, também das mais feias <br />Porque são todas gostosas e sereias <br />Pro meu olhar de supremo tarado <br />Tarado.<br /><br />Maracatú Atômico <br />Nelson Jacobina / Jorge Mautner<br /><br />Atrás do arranha-céu, tem o céu, tem o céu <br />E depois tem outro céu sem estrelas <br />Em cima do guarda-chuva , tem a chuva, tem a chuva <br />Que tem gotas tão lindas que até dá vontade de comê-las<br /><br />No meio da couve-flor, tem a flor, tem a flor <br />Que além de ser uma flor tem sabor <br />Dentro do porta-luva, tem a luva, tem a luva <br />Que alguém de unhas negras e tão afiadas esqueceu de pôr<br /><br />No fundo do para-raio, tem o raio, tem o raio <br />Caiu da nuvem negra do temporal <br />Todo quadro-negro, é todo negro, é todo negro <br />E eu escrevo o seu nome nele só pra demonstrar o meu apego<br /><br />O bico do beija-flor, beija a flor, beija a flor <br />E toda a fauna a flora grita de amor <br />Quem segura o porta-estandarte, tem arte, tem arte <br />E aqui passa com raça eletrônico, maracatu atômico<br /><br />O bico do beija-flor, beija a flor, beija a flor <br />E toda a fauna a flora grita de amor <br />Quem segura o porta-estandarte, tem arte, tem arte <br />E aqui passa com raça eletrônico, maracatu atômico<br /><br />Urge Dracon <br />Jorge Mautner <br /><br />Urge dracon <br />Ave cesar <br />Urge dracon <br />Ave cesar<br /><br />Magnificus, supremus, augustus <br />Divinus, superbus, vitalicius <br />Professor, diktator, imperator <br />Professor, diktator, imperator <br />Evoé colofé<br /><br />Salve o nosso guia <br />Pro que der e o que vier <br />Salve o nosso guia <br />Jorge mautner<br /><br />Ou o mundo se brasilifica <br />Ou vira nazista <br />Jesus de nazaré <br />E os tambores do candomblé<br /><br />Homem Bomba <br />Jorge Mautner / Caetano veloso<br /><br />Lá vem o homem bomba <br />Que não tem medo algum <br />Porque daqui a pouco <br />Vai virar egun<br /><br />Lá vem o homem bomba <br />Que não tem medo algum <br />Porque daqui a pouco <br />Vai virar egun<br /><br />Mas até lá, mata um, mata dois <br />Mata mais de um milhão <br />Não vai deixar sobrar nenhum <br />Mas eu sou contra essa ideologia da agonia <br />Sou a favor do investimento <br />Pra acabar com a pobreza <br />Sou pelo estudo e o trabalho em harmonia <br />O amor e o cristo redentor <br />Poesia na democracia<br /><br />Conde Drácula (Blue Chinês)<br /><br />(Jorge Mautner)<br /><br />Na noite mais sombria <br /><br />Das sombras da lua morna<br /><br />Saio do castelo na hora mais tardia <br /><br />E vagueio no meio do som de veludo<br /><br />Do conteúdo sem forma <br /><br />No buraco negro da noite mais escura<br /><br />Se esconde sem mácula <br /><br />A figura da criatura do Conde Drácula<br /><br />Sou um rei que canta no meu retiro<br /><br />Tenho cabelos ruivos da cor do fogo mais insano<br /><br />Por isso sei, sou vampiro<br /><br />E canto feito lobo bo.....bo<br /><br />Porque aaaa...moooo<br /><br />Encantador de Serpentes<br /><br />(Jorge Mautner)<br /><br />Sobe cobra, a cobra tem que subir<br /><br />Sobe cobra, mas ela não quer subir<br /><br />Lá na Índia todo mundo sabe é mandinga do faquir<br /><br />Saber tocar a flauta e fazer a cobra subir<br /><br />Por isso eu toco essa guitarra e tento conseguir<br /><br />Um jeito, uma manobra de fazer subir a cobra <br /><br />Um jeito, uma manobra de ver subir a cobra<br /><br />O Relógio Quebrou<br /><br />(Jorge Mautner)<br /><br />O relógio quebrou<br /><br />E o ponteiro parou<br /><br />Em cima da meia-noite, em cima do meio-dia<br /><br />Tanto faz porque depois de um vem dois, e vem três e vem quatro<br /><br />E eu fico olhando o rato<br /><br />Saindo do buraco do meu quarto<br /><br />E você de bonezinho caiu de lado<br /><br />Fazendo cena de cinema, cena de teatro<br /><br />Com seu charme de Wanderléa (Gal Costa, Greta Garbo)<br /><br />Seu jeitinho de Babyvit<br /><br />Sacou o meu recado?<br /><br />Samba dos Animais<br /><br />(Jorge Mautner)<br /><br />O homem antigamente falava com a cobra, o jabuti e o leão<br /><br />Olha o macaco na selva. Aonde? Alí, no coqueiro<br /><br />Não é macaco baby! É o meu irmão!<br /><br />Porém durou pouquíssimo tempo esta incrível curtição<br /><br />Pois o homem rei do planeta logo fez sua careta<br /><br />E começou a sua civilização. Agora já é tarde<br /><br />Ninguém nunca volta jamais, o jeito é tomar esse foguete<br /><br />É comer desse banquete para obter a paz-aquela paz<br /><br />Que a gente tinha quando falava com os animais<br /><br />Quém, Quém, Quém, que a gente tinha quando falava com os animais<br /><br />Oinc, oinc, oinc, que a gente tinha quando falava com os animais<br /><br />Miau, miau, miau, que a gente tinha quando falava com os animais<br /><br />Mu, mu, mu, que a gente tinha quando falava com os animais<br /><br />Vampiro<br /><br />(Jorge Mautner)<br /><br />Eu uso óculos escuros pras minhas lágrimas esconder<br /><br />E quando você vem para o meu lado, ai, as lágrimas começam a correr<br /><br />E eu sinto aquela coisa no meu peito<br /><br />Eu sinto aquela grande confusão<br /><br />Eu sei que eu sou um vampiro que nunca vai ter paz no coração<br /><br />Às vezes eu fico pensando porque é que eu faço as coisas assim<br /><br />E a noite de verão ela vai passando, com aquele seu cheiro louco de jasmim<br /><br />E eu fico embriagado de você<br /><br />Eu fico embriagado de paixão<br /><br />No meu corpo o sangue não corre, não, corre fogo e lava de vulcão<br /><br />Eu fiz uma canação cantando todo o amor que eu sinto por você<br /><br />Você ficava escutando impassível e eu cantando do teu lado a morrer<br /><br />E ainda teve a cara de pau<br /><br />De dizer naquele tom tão educado<br /><br />"Oh! pero que letra más hermosa, que habla de un corazón apasionado"<br /><br />Por isso é que eu sou um vampiro e com meu cavalo negro eu apronto<br /><br />E vou sugando o sangue dos meninos e das meninas que eu encontro<br /><br />Por isso é bom não se aproximar<br /><br />Muito perto dos meus olhos<br /><br />Senão eu te dou uma mordida que deixa na sua carne aquela ferida<br /><br />Na minha boca eu sinto a saliva que já secou<br /><br />De tanto esperar aquele beijo, ai, aquele beijo que nunca chegou<br /><br />Você é uma loucura em minha vida<br /><br />Você é uma navalha para os meus olhos<br /><br />Você é o estandarte da agonia que tem a lua e o sol do meio-dia <br /><br />Prosa:<br /><br />(trechos de livros)<br /><br />Fundamentos do Kaos <br />"Kaos = tensão dramática, enlouquecedora, purificadora, da existência. Tensão que aumenta sempre, tensão contraditória com estados de alma os mais opostos e diversos, convergindo sempre para uma tensão maior e para uma ampliação maior dos opostos em intensidade e fúria, aumentando assim a intensidade da tensão. Sado-masoquismo, depois um supra sado-masoquismo, e depois um supra-supra sado-masoquismo, e assim por diante, cosciência-intuição, razão-irracional, triste-alegre, luz-escuridão, Yang-yin, tudo aumentando sem cessar, em intensidade e fúria, aumentando assim a tensão que une os opostos em crescimento contínuo, crescimento que inclui recuos, mortes, não-crescimentos, assassinatos."<br /><br />Miséria Dourada <br />"Sim, desde 1958, ano que estreei como escritor e compositor, poeta e pensador, nesta terra de Pindorama, que as lágrimas me vêm aos olhos, e quase me afogam e só param de rolar da minha face quando, como agora, consigo comunicar este escândalo de sofrimento e proclamá-lo aos quatro cantos do universo, para que alguém me ouça, quem sabe outros seres humanos que comigo e conosco decidam modificar para sempre este horror."<br /><br />Fragmentos de Sabonete e Outros Fragmentos <br />"Quem não presta são as desilusões do tédio sem remédio! O resto, nem tem bosta nem resposta! Você gosta? De levitar? Ou apenas zanzar em Zanzibar? Vieram aqui de mil lugares e a triste-tristeza uivou e urrou! Despedaçam-se os lares. Milenares e totais. Eu sou o teu ardor. De tardes e alardes de alardeador! A liberdade completa é um eterno curtir nas centrais do coração. É preciso ter coragem para realizar e perceber que em Persépolis e em Bagdá a torre de Babel era o papai-noel do pobres."<br /><br />Mitologia do Kaos - Obras Completas (comentário acerca da obra) <br />Obra literária completa de Jorge Mautner. Não é à toa que o autor, desde seu primeiro livro, em 1962, afirmava que só uma leitura global da obra possibilitaria sua correta compreensão. Ao contrario de escritores cujos livros são independentes, Jorge mautner pertence à gama de autores que, na recorrência e dissonância, na síntese e no paradoxo, criam uma obra contínua, una e interligada. mais que proteus, o deus capaz de se transformar em qualquer forma, a quem é recorrentemente comparado pela sua capacidade e facilidade de uso de diversas mídias, jorge assemelha-se ao carvalho de Heidegger, permanecendo em suas transformações. Essas obras completas são um documento no sentido mais rico do termo. Não só pelo seu valor poético e artístico, mas pelo valor histórico, de relato pessoal de momentos e personagens marcantes destes últimos 50 anos, feitos por um artista sempre atento e perspicaz <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Tom Zé<br /><br />(Irará BA, 1936)<br /><br />Fez curso de Música na Universidade Federal da Bahia entre 1963 e 1967. Na época, já trabalhava como cronista dos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Bahia, nos quais colaborou até 1988. Em 1965 participou como ator, compositor e cantor nas peças Arena Canta Bahia, com direção de Augusto Boal, no Teatro Arena (SP), e Rock Horror Show, dirigido por Rubens Correia, no Teatro da Praia (RJ). Entre 1967 e 1969 integrou o movimento Tropicalista, com Caetano Veloso, Torquato Neto, Gilberto Gil e Gal Costa, entre outros. Em 1968 ganhou o Prêmio Viola de Ouro no Festival de Música da TV Record, com a canção "São São Paulo, Meu Amor", e o quarto lugar com a canção "2001", parceria com Rita Lee. Nos anos seguintes dedicou-se à intensa produção cultural, lançando álbuns e realizando shows pelo país. Em 1993 fez os shows de abertura do Festival Internacional de Teatro de Londres (Inglaterra) e da exposição de Hélio Oiticica no Walker Art Centers de Minneapolis (EUA), além de show no Museu de Arte Moderna de Nova York (EUA), onde foi convidado do evento Artistas Século XX. O cancionista Tom Zé absorveu em sua obra influências da Literatura de Cordel e do Movimento Concretista; participante do Tropicalismo, criou uma das obras mais originais da canção popular brasileira.<br /><br />IDENTIFICAÇÃO <br />(Tom Zé) Ed. Irara (Trama) <br />Produzido por Tom Zé <br />Gravado ao Vivo no Campus da USP - 2003 <br />Identificação <br />Identificação <br />RG 1231232 São Paulo <br />CIC 743748747-00 <br />ISS 1231558-06 <br />INPS 452749-748 <br />Ordem dos Músicos do Brasil 0840 Bahia <br />CGC 958.74210000-001 <br />Títulos protestados, 7 <br />Impulsos de medo, 1.106 <br />Sintomas neuróticos, 36 <br />Horas semanais de catequização pela TV, 16 <br />Ôô, 16, êê, 16, ôô, 16, êê, 16 <br />Impulsos de amor, de amor, 3 <br />Propaganda consumida, 1.106 <br />Alegrias, alegriazinhas espontâneas, 2 <br />Idas ao banheiro para atividades diversas, 36 <br />Ôô, 36, êê, 36, êê, 36, êê, 36 <br />Tempo de vida previsto para o cidadão <br />Tempo de vida previsto para o cidadão <br />600 mil horas de vida, de vida, de vida <br />Abatimento pelo consumo de alimentos envenenados <br />Refrigerantes, remédios e enlatados, 1.125 horas <br />Abatimento pelo desgosto que se padece <br />Naquela filado INPS, 1.125 horas <br />Abatimento por ficar só no desejo <br />Daquela mulher bonita que aparece na propaganda <br />de cigarro, 1.125 horas <br />Pelo medo de doenças incuráveis <br />Como cólera, câncer e meningite, ê ê ê <br />1.125 horas <br />Abate aqui <br />Abate ali <br />Abate isto <br />Abate aquilo <br />E jaz pela cidade <br />Um zumbi sem sepultura <br />Classificado, numerado <br />É o cidadão bem-comportado<br /><br />A BRIGA DO EDIFÍCIO ITÁLIA E DO HILTON HOTEL <br />(TOM ZÉ)<br /><br />O Edifício Itália <br />era o rei da Avenida Ipiranga: <br />alto, majestoso e belo, <br />ninguém chegava perto <br />da sua grandeza. <br />Mas apareceu agora <br />o prédio do Hilton Hotel <br />gracioso, moderno e charmoso <br />roubando as atenções pra sua beleza.<br /><br />O Edifício Itália ficou enciumado <br />e declarou a reportagem de amiga: <br />que o Hilton, pra ficar todo branquinho <br />toma chá de pó-de-arroz. <br />Só anda na moda, se veste direitinho <br />e se ele subir de branco pela Consolação <br />até no cemitério vai fazer assombração <br />o Hilton logo logo respondeu em cima: <br />a mania de grandeza não te dá vantagem <br />veja só, posso até ser requintado <br />mas não dou o que falar <br />Contigo é diferente, <br />porque na vizinhança <br />apesar da tua pose de rapina <br />já andam te chamando <br />Zé-Boboca da esquina<br /><br />E o Hilton sorridente <br />disse que o Edifício Itália <br />tem um jeito de Sansão descabelado <br />e ainda mais, só pensa em dinheiro <br />não sabe o que é amor <br />tem corpo de aço, <br />alma de robô, <br />porque coração ele não tem pra mostrar <br />Pois o que bate no seu peito <br />é máquina de somar.<br /><br />O Edifício Itália sapateou de raiva <br />rogou praga e <br />até insinuou que o Hilton <br />tinha nascido redondo <br />pra chamar a atenção <br />abusava das curvas <br />pra fazer sensação <br />e até parecia uma menina louca <br />Ou a torre de Pisa <br />vestida de noiva <br /><br />A CHEGADA DE RAUL SEIXAS E LAMPIÃO NO FMI <br />(Tom Zé) <br />Gênero: baiãolenda <br />ARRASTÃO DE CANÇÃO FOLCLÓRICA E DO ESTILO TROVADOR NORDESTINO <br />Ed. Irará (Trama) 70274730 <br /><br />É Raul, Raul, Raul, <br />É Raul Seixas, é Lampião <br />Chegaram no FMI <br />Que nem tentou resistir<br /><br />É Raú, Raú, Raú, <br />Lampião não anda só <br />Trouxe Deus e o diabo <br />Raul, a terra do sol<br /><br />Lampião com o clavinote <br />Raul trouxe o Ylê Ai Ê <br />Tiraram os colhões do rock <br />Enrabaram o iê-iê-iê.<br /><br />Chegaram na Casa Branca <br />Os dois de carro-de-boi <br />Tio Sam fugiu de tamanca <br />Ninguém viu para onde foi<br /><br />Wall Street fechou <br />E a ONU não deixou pista <br />O presidente jurou <br />Que sempre foi comunista<br /><br />Mano Brown disse a Raul <br />O dinheiro a gente investe <br />No Banco Carandiru <br />Xingu, favela e Nordeste<br /><br />Todo-poderoso e rico <br />O grande senhor dali <br />Cagou-se, pediu pinico <br />Aflito, fora de si<br /><br />Pois o FMI <br />Viu que não tinha mais jeito <br />E entregou todo o dinheiro <br />Para o pobre dividir<br /><br />E o mundo se viu diante <br />De grande felicidade: <br />Trabalho pra todo o dia <br />Comida pra toda a tarde<br /><br />Mas entre os países pobres <br />Não houve fazer acordo <br />Para dividir os cobres <br />E a guerra pegou fogo <br /> <br />TRECHOS DE LETRA INCOMPLETA: SUGESTÃO PARCERIA <br /> <br />Mas chegou Renato Russo <br />De Belém trouxe Fafá <br />E ela só trouxe um busto <br />Pra Ásia toda mamar <br /><br />Nesse dia moribundo <br />O FMI se fechou <br />E o povo inteiro do mundo <br />Sofrido comemorou<br /><br />AUGUSTA, ANGÉLICA E CONSOLAÇÃO <br /><br />Augusta, graças a Deus, <br /><br />graças a Deus,<br /><br />entre você e a Angélica<br /><br />eu encontrei a Consolação<br /><br />que veio olhar por mim <br /><br />e me deu a mão.<br /><br />Augusta, que saudade,<br /><br />você era vaidosa, <br /><br />que saudade,<br /><br />e gastava o meu dinheiro, <br /><br />que saudade,<br /><br />com roupas importadas <br /><br />e outras bobagens.<br /><br />Angélica, que maldade,<br /><br />você sempre me deu bolo, <br /><br />que maldade,<br /><br />e até andava com a roupa, <br /><br />que maldade,<br /><br />cheirando a consultório médico,<br /><br />Angélica.<br /><br />Quando eu vi<br /><br />que o Largo dos Aflitos<br /><br />não era bastante largo<br /><br />ora caber minha aflição,<br /><br />eu fui morar na Estação da Luz,<br /><br />porque estava tudo escuro<br /><br />dentro do meu coração.<br /><br />BOTARAM TANTA FUMAÇA <br /><br />Botaram tanto lixo,<br /><br />botaram tanta fumaça,<br /><br />Botaram tanto lixo <br /><br />por baixo da consciência da cidade,<br /><br />que a cidade<br /><br />tá, tá tá tá tá<br /><br />com a consciência podre,<br /><br />com a consciência podre.<br /><br />Botaram tanto lixo, <br /><br />botaram tanta fumaça,<br /><br />Botaram tanta fumaça <br /><br />por cima dos olhos dessa cidade,<br /><br />que essa cidade<br /><br />tá, tá tá tá tá<br /><br />está com os olhos ardendo,<br /><br />está com os olhos ardendo.<br /><br />Botaram tanto lixo, <br /><br />botaram tanta fumaça,<br /><br />botaram tanto metrô e minhocão<br /><br />nos ombros da cidade, <br /><br />que a cidade<br /><br />tá, tá tá tá ta.<br /><br />Está cansada,<br /><br />sufocada,<br /><br />está doente,<br /><br />tá gemendo<br /><br />de dor de cabeça,<br /><br />de tuberculose,<br /><br />tá com o pé doendo,<br /><br />está de bronquite,<br /><br />de laringite,<br /><br />de hepatite,<br /><br />de faringite,<br /><br />de sinusite,<br /><br />de meningite.<br /><br />Está, se... <br /><br />ta tá tá tá tá <br /><br />com a consciência podre.<br /><br />Botaram tanto lixo, <br /><br />botaram tanta fumaça,<br /><br />botaram tanta preocupação <br /><br />nos miolos da cidade<br /><br />que a cidade<br /><br />tá, tá tá tá tá<br /><br />está de cuca quente.<br /><br />Marcha Partido <br />(TOM ZÉ) <br /><br />Com um beijo na vanguarda <br />e uma palmada na retaguarda <br />do bebê bumbum de anjo <br />e a política <br />petife patifo patifa patifa patifafafá<br /><br />E o PMDB padece patifa patifa fafá <br />no colo do PDS patifa patifa fafafá <br />o PTB percebeu patifa patifa fafafá <br />mas o PDT quer deter <br />se apetece ao PT ter poder <br />pode ser, pode não ser<br /><br />Segura o pé, neném <br />porque na política do amor <br />só tem sufrágio direto <br />aqui também quem decide a eleição <br />é o voto do analfabeto.<br /> Catecismo, Creme Dental e Eu <br />(Tom Zé) <br /> <br />Vou morrer nos braços da asa branca, <br />No lampejo do trovão <br />De um lado ladainha, <br />Sem soluço e solução. <br /><br />Nasci no dia do medo <br />Na hora de ter coragem <br />Fui lançado no degredo <br />Diplomado em malandragem<br /><br />Caminho, luz e risco, <br />Aflito, <br />Xingo, minto, arrisco, tisco, <br />E por onde andei <br />Eu encontrei o bendito fruto em vosso dente, <br />Catecismo de fuzil <br />E creme dental em toda a frente.<br /><br />Pois um anjo do cinema <br />Já revelou que o futuro <br />Da família brasileira <br />Será um hálito puro.<br /><br />Nasci no dia do medo, etc. etc. <br /><br />Pinta -la - inha <br />Da cana vintinha <br />Mandei dizer pro meu amor <br />Faça a cama na varanda <br />E não esqueça o cobertor<br /><br />Não quero ser cantador <br />Só fazer valentia <br />Também gasto heroísmo <br />Nos braços de uma Maria. <br />Nos braços de uma Maria. <br /><br />Classe Operária <br />(TOM ZÉ) <br /><br />Sobe no palco o cantor engajado Tom Zé,<br /><br />que vai defender a classe operária,<br /><br />salvar a classe operária<br /><br />e cantar o que é bom para a classe operária.<br /><br />Nenhum operário foi consultado<br /><br />não há nenhum operário no palco<br /><br />talvez nem mesmo na platéia,<br /><br />mas Tom Zé sabe o que é bom para os operários.<br /><br />Os operários que se calem,<br /><br />que procurem seu lugar, com sua ignorância,<br /><br />porque Tom Zé e seus amigos <br /><br />estão falando do dia que virá<br /><br />e na felicidade dos operários.<br /><br />Se continuarem assim, <br /><br />todos os operários vão ser demitidos,<br /><br />talvez até presos, <br /><br />porque ficam atrapalhando<br /><br />Tom Zé e o seu público, que estão cuidando<br /><br />do paraíso da classe operária.<br /><br />Distante e bondoso, Deus cuida de suas ovelhas,<br /><br />mesmo que elas não entendam seus desígnios.<br /><br />E assim,, depois de determinar<br /><br />qual é a política conveniente para a classe operária,<br /><br />Tom Zé e o seu público se sentem reconfortados e felizes<br /><br />e com o sentimento de culpa aliviado.<br /><br />Fliperama <br />(by Tom Zé ) <br /><br />Flip, flip, flip <br />Filip, flip, filip, filip, flip <br />Flipé - pépé - pépé - pépé<br /><br />Rará - rará - rará - rará <br />Rará - rará - rará - rá <br />Râ - mamá - mâma - mamá - mamá <br />Fliperama<br /><br />O louco comandante Flip <br />com a sua moedinha <br />quer fazer uma guerra na Terra<br /><br />Oferece um caminhão e o seu cinturão <br />Que para a batalha não falha. <br />E no quarto faz com ela <br />A terceira arruela <br />Do amor que tem a violência, <br />Com o pirulito da ciência - á - á - á <br />Com o pirulito da ciência - á - á <br />Pelo pirulito da ciência - â - â <br />Pelo pirulito da ciência - â <br />Apelo.<br /><br />Jimmy, Renda-se <br /><br />Guta me look mi look love me<br /><br />Tac sutaque destaque tac she<br /><br />Tique butique que tique te gamou<br /><br />Toque-se rock se rock rock me<br /><br />Bob Dica, diga,<br /><br />Jimi renda-se!<br /><br />Cai cigano, cai, camóni bói <br /><br />Jarrangil century fox<br /><br />Galve me a cigarrete<br /><br />Billy Halley Roleiflex<br /><br />Jâni chope chope chope chope<br /><br />Ô Jâni chope chope<br /><br />Ie relê reiê relê<br /><br />LÍNGUA BRASILEIRA <br />(Tom Zé) Ed. lrara (Trama) <br />Produzido por Jair Oliveira <br /><br />Quando me sorris, <br />Visigoda e celta, <br />Dama culta e bela, <br />Língua de Aviz...<br /><br />Fado de punhais, <br />Inês e desventuras, <br />Lá onde costuras, <br />Multidão de ais.<br /><br />Mel e amargura, <br />Fatias de medo, <br />Vinho muito azedo, <br />Tudo com fartura.<br /><br />Cravos da paixão, <br />Com dores me serves, <br />Com riso me pedes <br />Vida e coração, <br />Vida e coração.<br /><br />Babel das línguas em pleno cio, <br />Seduz a África, cede ao gentio, <br />Substantivos, verbos, alfaias de ouro, <br />Os seus olhares conquistam do mouro.<br /><br />Mares-algarismos, <br />Onde um seu piloto <br />Rouba do ignoto <br />Almas e abismos.<br /><br />Verbo das correntes <br />Com seu candeeiro <br />Todo marinheiro <br />Caça continentes.<br /><br />E o gajeiro real, <br />Ao cantar matinas, <br />Acha três meninas <br />Sob um laranjal.<br /><br />Última das filhas, <br />Ventre onde os mapas <br />Bordam suas cartas <br />Linhas Tordesilhas, <br />Linhas Tordesilhas.<br /><br />Em nossas terras continentais <br />A cartomante abre o baralho, <br />Abismada vê, entre o sim e o não, <br />Nosso destino ou um samba-canção.<br /><br />O ABACAXI DE IRARÁ <br />(RIBEIRO -TOM ZÉ - PERNA) <br /><br />Minha terra é boa, <br />plantando dá <br />o famoso abacaxi de Irará. <br />Minha terra é boa, <br />plantando dá <br />o famoso abacaxi de Irará.<br /><br />Moça emperrada namora <br />e o noivo não quer casar <br />se apega ao bom Santo Antônio <br />e o noivo este ano ainda vai pensar...<br /><br />Falou véio <br />dá um chá de abacaxi <br />de Irará <br />que é pro noivo se animar.<br /><br />Minha terra é boa <br />plantando dá <br />o famoso abacaxi de Irará.<br /><br />Véio viúvo com setenta anos <br />ainda quer casar <br />Pergunto pra ele o segredo <br />e peço pra me contar.<br /><br />Falou o veio: <br />Vá comendo abacaxi <br />de Irará <br />que você vai se animar. <br /><br />Parque Industrial <br />(Tom Zé) <br /> <br />Retocai o céu de anil <br />Bandeirolas no cordão <br />Grande festa em toda a nação. <br /><br />Despertai com orações <br />O avanço industrial <br />Vem trazer nossa redenção.<br /><br />Tem garota-propaganda <br />Aeromoça e ternura no cartaz, <br />Basta olhar na parede, <br />Minha alegria <br />Num instante se refaz<br /><br />Pois temos o sorriso engarrafado <br />Já vem pronto e tabelado <br />É somente requentar <br />E usar, <br />É somente requentar <br />E usar, <br />Porque é made, made, made, made in Brazil. <br />Porque é made, made, made, made in Brazil.<br /><br />Retocai o céu de anil, ... ... ... etc.<br /><br />A revista moralista <br />Traz uma lista dos pecados da vedete <br />E tem jornal popular que <br />Nunca se espreme <br />Porque pode derramar.<br /><br />É um banco de sangue encadernado <br />Já vem pronto e tabelado, <br />É somente folhear e usar, <br />É somente folhear e usar. <br /><br />São São Paulo <br />(Tom Zé) <br /> <br />São São Paulo quanta dor <br />São São Paulo meu amor <br /><br />São oito milhões de habitantes <br />De todo canto e nação <br />Que se agridem cortesmente <br />Correndo a todo vapor <br />E amando com todo ódio <br />Se odeiam com todo amor <br />São oito milhões de habitantes <br />Aglomerada solidão <br />Por mil chaminés e carros <br />Gaseados a prestação <br />Porém com todo defeito <br />Te carrego no meu peito<br /><br />São São Paulo quanta dor <br />São São Paulo meu amor<br /><br />Salvai-nos por caridade <br />Pecadoras invadiram <br />Todo o centro da cidade <br />Armadas de ruge e batom <br />Dando vivas ao bom humor <br />Num atentado contra o pudor <br />A família protegida <br />O palavrão reprimido <br />Um pregador que condena <br />Um festival por quinzena <br />porém com todo defeito <br />Te carrego no meu peito<br /><br />São São Paulo quanta dor <br />São São Paulo meu amor<br /><br />Santo Antonio foi demitido <br />E os ministros de Cupido <br />Armados da eletrônica <br />Casam pela tevê <br />Crescem flores de concreto <br />Céu aberto ninguém vê <br />Em Brasília é veraneio <br />No Rio é banho de mar <br />O país todo de férias <br />E aqui é só trabalhar <br />Porém com todo defeito <br />Te carrego no meu peito<br /><br />São São Paulo quanta dor <br />São São Paulo meu amor.<br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Torquato Neto<br /><br />(Teresina PI, 1944 - Rio de Janeiro RJ, 1972)<br /><br />Cursou Jornalismo no Rio de Janeiro, por volta de 1966, mas não chegou a concluir a faculdade. Nos anos seguintes compôs letras musicadas por Gilberto Gil ("Geléia Geral", "Louvação"), Caetano Veloso ("Deus Vos Salve a Casa Santa", "Ai de Mim", "Copacabana", "Mamãe, Coragem") e Edu Lobo ("Lua Nova", "Pra Dizer Adeus"). Entre 1970 e 1972 atuou nos filmes Nosferatu no Brasil e A Múmia Volta a Atacar, de Ivan Cardoso, e Helô e Dirce, de Luiz Otávio Pimentel. No período também criou e redigiu a coluna Geléia Geral no jornal carioca Última Hora. Em 1973 ocorreu a publicação póstuma de seu livro de poesia Os Últimos Dias de Paupéria, organizado por Ana Maria S. de Coraújo Duarte e Waly Salomão. Três anos depois, foram incluídos alguns de seus poemas na antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda em 1976. Em 1997 foram publicados quatro de seus poemas na antologia bilíngüe Nothing the Sun Could Not Explain, organizada por Michael Palmer, Régis Bonvicino e Nelson Ascher. Torquato Neto foi um dos compositores mais inovadores da canção popular dos anos de 1970.<br /><br />A Rua <br />toda rua tem seu curso <br />tem seu leito de água clara <br />por onde passa a memória <br />lembrando histórias de um tempo <br />que não acaba <br /> <br />de uma rua de uma rua <br />eu lembro agora <br />que o tempo ninguém mais <br />ninguém mais canta <br />muito embora de cirandas <br />(oi de cirandas) <br />e de meninos correndo <br />atrás de bandas <br /> <br />atrás de bandas que passavam <br />como o rio parnaíba <br />rio manso <br />passava no fim da rua <br />e molhava seu lajedos <br />onde a noite refletia <br />o brilho manso <br />o tempo claro da lua <br /> <br />ê são joão ê pacatuba <br />ê rua do barrocão <br />ê parnaíba passando <br />separando a minha rua <br />das outras, do maranhão <br /> <br />de longe pensando nela <br />meu coração de menino <br />bate forte como um sino <br />que anuncia procissão <br /> <br />ê minha rua meu povo <br />ê gente que mal nasceu <br />das dores que morreu cedo <br />luzia que se perdeu <br />macapreto zé velhinho <br />esse menino crescido <br />que tem o peito ferido <br />anda vivo, não morreu <br /> <br />ê pacatuba <br />meu tempo de brincar <br />já foi-se embora <br />ê parnaíba <br />passando pela rua <br />até agora <br />agora por aqui estou <br />com vontade <br />e eu vou volto pra matar <br />essa saudade <br /> <br />ê são joão ê pacatuba <br />ê rua do barrocão.<br /><br />Coisa Mais Linda que Existe <br /><br />coisa linda nesse mundo <br />é sair por um segundo <br />e te encontrar por aí <br />pra fazer festa ou comício <br />com você perto de mim <br />na cidade em que me perco <br />na praça em que me resolvo <br />na noite da noite escura <br />é lindo ter junto ao corpo <br />ternura de um corpo manso <br />na noite da noite escura <br />a coisa mais linda que existe <br />é ter você perto de mim <br />o apartamento, o jornal <br />o pensamento, a navalha <br />a sorte que o vento espalha <br />essa alegria, o perigo <br />eu quero tudo contigo <br />com você perto de mim <br />coisa linda nesse mundo <br />é sair por um segundo <br />e te encontrar por aí <br />e ficar sem compromisso <br />pra fazer festa ou comício <br />com você perto de mim <br />a coisa mais linda que existe <br />é ter você perto de mim<br /><br />Geléia Geral <br /><br />um poeta desfolha a bandeira <br />e a manhã tropical se inicia <br />resplandente cadente fagueira <br />num calor girassol com alegria <br />na geléia geral brasileira <br />que o jornal do brasil anuncia <br /> <br />ê bumba iê, iê boi <br />ano que vem mês que foi <br />ê bumba iê, iê iê <br />é a mesma dança, meu boi <br /> <br />"a alegria é a prova dos nove" <br />e a tristeza é teu porto seguro <br />minha terra é onde o sol é mais limpo <br />e mangueira é onde o samba é mais puro <br />tumbadora na selva-selvagem <br />pindorama, país do futuro <br /> <br />ê bumba iê, iê boi <br />ano que vem mê que foi <br />ê bumba iê, iê iê <br />é a mesma dança, meu boi <br /> <br />é a mesma dança na sala <br />no canecão na TV <br />e quem não dança não fala <br />assiste a tudo e se cala <br />não vê no meio da sala <br />as relíquias do brasil: <br />doce mulata malvada <br />um elepê da sinatra <br />maracujá mês de abril <br />santo barroco baiano <br />superpoder de paisano <br />formiplac e céu de anil <br />três destaques da portela <br /> <br />carne seca na janela <br />alguém que chora por mim <br />um carnaval de verdade <br />hospitaleira amizade <br />brutalidade jardim <br /> <br />ê bumba iê, iê boi <br />ano que vem mês que foi <br />ê bumba iê, iê iê <br />é a mesma dança, meu boi <br /> <br />plurialva contente e brejeira <br />miss linda brasil diz bom dia <br />e outra moça também carolina <br />da janela examina a folia <br />salve o lindo pendão dos seus olhos <br />e a saúde que o olhar irradia <br /> <br />ê bumba iê, iê boi <br />ano que vem mês que foi <br />ê bumba iê, iê iê <br />é a mesma dança, meu boi <br /> <br />um poeta desfolha a bandeira <br />e eu me sinto melhor colorido <br />pego um jato viajo arrebento <br />como roteiro do sexto sentido <br />foz do morro, pilão de concreto <br />tropicália, bananas ao vento <br /> <br />ê bumba iê, iê boi <br />ano que vem mês que foi <br />ê bumba iê, iê iê <br />é a mesma dança meu boi<br /><br />Hoje Tem Espetáculo <br /><br />Vá ao cinema: presta? <br />Vá ao teatro: presta? <br />Esses filmes servem a quê? <br />Servem a quem? <br />Essas peças: servem? Pra quê? <br />Divirta-se: teu programa é esse, <br />bicho: vá ao cinema <br />vá ao teatro, vá ao concerto <br />disco é cultura, vá para o inferno: <br />o paraíso na tela no palco na boca <br />do som <br />e nas palavras todas <br />na ferrugem dos gestos e nas trancas <br />da porta da rua <br />no movimento das imagens: violência <br />e frescura: montagem. <br />Divirta-se. O inferno <br />é perto é longe, o paraíso <br />custa muito pouco. <br />Pra que serve este filme, serve a <br />quem? <br />Pra que serve esse tema, serve a <br />quem? <br />De churrasco em churrasco encha <br />o seu caco, <br />amizade. Cante seresta na churrascaria <br />e arrote filmes-teatros-marchas-ranchos <br />alegrias e tal: volte (como sempre) <br />atrás, <br />fique na sua <br />bons tempos são para sempre -- jamais <br />bata no peito, bata no prato, é <br />assim que se faz <br />a festa. Reclame isso: esse filme <br />não presta <br />o diretor é fraco e essa história eu <br />conheço <br />esse papo é pesado demais pras <br />crianças na sala <br />é macio, é demais: serve a quem, <br />amizade? <br />Teu roteiro hoje é esse, meu bicho: cante <br />tudo na churrascaria <br />não saia nunca mais da frente fria <br />sirva, serve, bicho, criança, bonecão <br />sirva sirva sirva mais <br />churrasco churrasquinho churrascão. <br />Sirva um samba de Noel, uma ciranda <br />uma toada do Gonzaga (o pai), <br />aquele samba <br />aquela exaltação de um iê-iê-iê <br />romanticosuavespuma <br />bem macio <br />um filme de mocinho e de bandidos <br />uma peça qualquer com muito <br />drama: <br />encha o caco, amizade, tudo é <br />porta <br />e vá entrando à vontade, a casa <br />é sua, entre <br />pelos filmes em cartaz, pelas peças <br />sobre os palcos <br />vá entrando pelo papo, entrando <br />pelo cano <br />geral; coma churrasco, sirva, vá <br />entrando <br />e servindo (a quê a quem?) <br />encha o seu caco. Divirta-se, bata <br />no prato <br />e peça bis, reclame, cante o quanto <br />queira <br />afaste o lixo, nem pense: <br />teu programa é esse mesmo, bicho.<br /> Louvação <br />Vou fazer a louvação, louvação, louvação <br />Do que deve ser louvado, ser louvado, ser louvado. <br />Meu povo, preste atenção, atenção, atenção. <br />Repare se estou errado. <br />Louvando o que bem merece, <br />Deixo o que é ruim de lado. <br />E louvo, pra começar, <br />Da vida o que é bem maior: <br />Louvo a esperança da gente <br />Na vida, pra ser melhor. <br />Quem espera sempre alcança, <br />Três vezes salve a esperança! <br />Louvo quem espera sabendo <br />Que, pra melhor esperar, <br />Procede bem quem não pára <br />De sempre, mais, trabalhar. <br />Que só espera sentado <br />Quem se acha conformado. <br /> <br />Vou fazendo a louvação, louvação, louvação <br />Do que deve ser louvado, ser louvado, ser louvado. <br />Quem 'tiver me escutando, atenção, atenção, <br />Que me escute com cuidado, <br />Louvando o que bem merece, <br />Deixo o que é ruim de lado. <br />Louvo agora e louvo sempre <br />O que grande sempre é: <br />Louvo a força do homem <br />E a beleza da mulher, <br />Louvo a paz pra haver na Terra, <br />Louvo o amor que espanta a guerra, <br />Louvo a amizade do amigo <br />Que comigo há de morrer, <br />Louvo a vida merecida <br />De quem morre pra viver, <br />Louvo a luta repetida <br />Da vida, pra não morrer. <br /> <br />Vou fazendo a louvação, louvação, louvação <br />Do que deve ser louvado, ser louvado, ser louvado. <br />De todos peço atenção, atenção, atenção, <br />Falo de peito lavado. <br />Louvando o que bem merece, <br />Deixo o que é ruim de lado. <br />Louvo a casa onde se mora <br />De junto da companheira, <br />Louvo o jardim que se planta <br />Pra ver crescer a roseira, <br />Louvo a canção que se canta <br />Pra chamar a primavera, <br />Louvo quem canta e não canta <br />Porque não sabe cantar, <br />Mas que cantará na certa <br />Quando, enfim, se apresentar <br />O dia certo e preciso <br />De toda a gente cantar. <br />E assim fiz a louvação, louvação, louvação <br />Do que vi pra ser louvado, ser louvado, ser louvado. <br />Se me ouviram com atenção, atenção, atenção, <br />Saberão se estive errado <br />Louvando o que bem merece, <br />Deixando o ruim de lado.<br /><br />Marginália II <br /><br />eu, brasileiro, confesso<br /><br />minha culpa meu pecado<br /><br />meu sonho desesperado<br /><br />meu bem guardado segredo<br /><br />minha aflição<br /><br />eu, brasileiro, confesso<br /><br />minha culpa meu degredo<br /><br />pão seco de cada dia<br /><br />tropical melancolia<br /><br />negra solidão:<br /><br />aqui é o fim do mundo<br /><br />aqui é o fim do mundo<br /><br />ou lá<br /><br />aqui o terceiro mundo<br /><br />pede a bênção e vai dormir<br /><br />entre cascatas palmeiras<br /><br />araçás e bananeiras<br /><br />ao canto da juriti<br /><br />aqui meu pânico e glória<br /><br />aqui meu laço e cadeia<br /><br />conheço bem minha história<br /><br />começa na lua cheia<br /><br />e termina antes do fim<br /><br />aqui é o fim do mundo<br /><br />aqui é o fim do mundo<br /><br />ou lá<br /><br />minha terra tem palmeiras<br /><br />onde sopra o vento forte<br /><br />da fome do medo e muito<br /><br />principalmente<br /><br />da morte<br /><br />o-lelê, lalá<br /><br />a bomba explode lá fora<br /><br />e agora, o que vou temer?<br /><br />yes: nós temos banana<br /><br />até pra dar,<br /><br />e vender<br /><br />aqui é o fim do mundo<br /><br />aqui é o fim do mundo<br /><br />ou lá<br /><br />Zabelê <br /><br />minha sabiá <br />minha zabelê <br />toda meia noite <br />eu sonho com você <br />se você duvida <br />eu vou sonhar pra você ver <br /> <br />minha sabiá <br />vem me dizer por favor <br />o quanto que eu devo amar <br />pra nunca morrer de amor <br />minha zabelê <br />vem correndo me dizer <br />porque eu sonho toda noite <br />e sonho só com você <br />se você não me acredita <br />vem pra cá <br />vou lhe mostrar <br />que riso largo é o meu sonho <br />quando eu sonho <br />com você <br />mas anda logo <br />vem que a noite <br />já não tarda a chegar <br />vem correndo <br />pro meu sonho escutar <br />que eu sonho falando alto <br />com você no meu sonhar<br /><br />Cogito<br /><br />eu sou como eu sou <br />pronome <br />pessoal intransferível <br />do homem que iniciei <br />na medida do impossível <br /> <br />eu sou como eu sou <br />agora <br />sem grandes segredos dantes <br />sem novos secretos dentes <br />nesta hora <br /> <br />eu sou como eu sou <br />presente <br />desferrolhado indecente <br />feito um pedaço de mim <br /> <br />eu sou como eu sou <br />vidente <br />e vivo tranqüilamente <br />todas as horas do fim.<br /><br />O Poeta é a Mãe das Armas <br /> <br />O Poeta é a mãe das armas <br />& das Artes em geral -- <br />alô, poetas: poesia <br />no país do carnaval; <br />Alô, malucos: poesia <br />não tem nada a ver com os versos <br />dessa estação muito fria. <br /> <br />O Poeta é a mãe das Artes <br />& das armas em geral: <br />quem não inventa as maneiras <br />do corte no carnaval <br />(alô, malucos), é traidor <br />da poesia: não vale nada, lodal. <br /> <br />A poesia é o pai da ar- <br />timanha de sempre: quent <br />ura no forno quente <br />do lado de cá, no lar <br />das coisas malditíssimas; <br />alô poetas: poesia! <br />poesia poesia poesia poesia! <br />O poeta não se cuida ao ponto <br />de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo <br />já sabe: não está cortando nada <br />além da MINHA bandeira ////////// = <br />sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar. <br />Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a <br />r: em primeiríssimo, o lugar. <br /> <br />poetemos pois <br /> <br />torquato neto /8/11/71 & sempre.<br /><br />Go Back <br /> <br />Você me chama <br />Eu quero ir pro cinema <br />Você reclama <br />Meu coração não contenta <br />Você me ama <br /> <br />Mas de repente <br />A madrugada mudou <br />E certamente <br />Aquele trem já passou <br />E se passou, passou <br />Daqui pra melhor, foi! <br /> <br />Só quero saber <br />do que pode dar certo <br />Nao tenho tempo a perder<br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Waly Salomão<br /><br />Filho de pai sírio e mãe baiana, Waly Salomão nasceu em Jequié, na Bahia, e nos anos 60 aproximou-se de artistas que se identificaram com o movimento tropicalista, como Torquato Neto, Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gil e Jards Macalé. No entanto, Salomão nunca se identificou como integrante do movimento estético tropicalista. Poeta e letrista -- além de produtor cultural e diretor artístico --, é co-autor de músicas como "Mel" e "Talismã", ambas com Caetano e que viraram título dos discos de Maria Bethânia de 1979 (ultrapassando a marca de 1 milhão de cópias) e 1980, "Anjo Exterminado" (com Macalé, também título do disco de Bethânia de 72), "Mal Secreto" (com Macalé), "Assaltaram a Gramática" (com Lulu Santos, grande sucesso dos Paralamas), "Balada de um Vagabundo" (com Roberto Frejat, gravada por Cazuza), "Pista de Dança" (com Adriana Calcanhotto, gravada pela própria em "Marítimo") e "Vapor Barato" (com Jards Macalé), composta em 1968 e gravada por Gal Costa no disco "Fa-tal" em 1972, que voltou a fazer sucesso em 1995 na trilha sonora do filme "Terra Estrangeira". Ainda na década de 70 desenvolveu a "Morbeza (morbidez + beleza) Romântica", linha pela qual Jards Macalé lançou o disco "Aprender a Nadar". O espetáculo "Fa-tal", marco na carreira de Gal, foi dirigido por Waly. Lançou seu primeiro livro do poemas em 1971, "Me Segura que Eu Vou Dar um Troço", com textos escritos durante uma temporada passada na prisão, paginados e diagramados pelo artista plástico Hélio Oiticica, amigo de toda a vida e de quem escreveu a biografia, "Qual É o Parangolé". No ano seguinte participou da organização e edição de "Os Últimos Dias de Paupéria", coletânea de artigos do poeta e amigo Torquato Neto, morto em 1972. Junto com Torquato fez a revista "Navilouca", que só teve um número mas fez história. Nessa época, passou a assinar como Wally Sailormoon, pseudônimo que logo abandonou. Outros de seus livros foram "Gigolô de Bibelôs", "Surrupiador de Souvenirs", "Algaravias", "Lábia" e "Tarifa de Embarque", lançado em 2000.<br /><br />A morte de Waly Salomão, poeta da Tropicália<br /><br />O baiano, co-autor de Vapor Barato, tinha 59 anos e tratava-se de um câncer no Rio de Janeiro<br /><br />Marco Antônio Barbosa<br /><br />6/05/2003<br /><br />"(...) Estou tão cansado / Mas não pra dizer / Que estou indo embora". Impossível não se recordar dos versos do clássico Vapor Barato ao se tomar conhecimento da morte, na manhã de ontem (dia 5), de Waly Salomão, poeta, letrista, ator e Secretário Nacional do Livro e da Leitura. Baiano, 58 anos, Salomão estava internado há 12 dias na Clínica São Vicente (RJ), tratando-se de um câncer no intestino. A causa mortis oficial foi a falência múltipla de órgãos, depois que a doença causou metástase para o fígado. Depois do velório, ocorrido na tarde de ontem, no Cemitério São João Baptista, também no Rio de Janeiro, o corpo de Waly será cremado na manhã de hoje (dia 6). À parte sua intensa atuação em vários meios de expressão artística ao longo de mais de três décadas, Waly também foi peça-chave - ainda que não uma figura de proa - no movimento tropicalista, e assinou versos em parceria com compositores como Caetano Veloso, Antônio Cicero, Lulu Santos, Jards Macalé e Adriana Calcanhoto. <br />Verborrágico, por vezes polêmico e até contraditório, Waly por mais de uma vez negou fazer parte de qualquer movimento - até mesmo da Tropicália, responsável por sua projeção inicial na mídia. Baiano (de Jequié, nascido em 3 de setembro de 1944) como o núcleo dos tropicalistas, sempre foi um homem de letras, escrevendo sob influência da geração concretista de Décio Pignatari e dos irmãos Campos. A conexão com a turma de Gil, Gal, Caetano e Bethânia se deu através de Hélio Oiticica, cuja instalação Tropicália inspirou Caetano a compor a canção de título homônimo. Amigo e biógrafo de Oiticica (é autor de Qual É o Parangolé, sobre a vida do artista plástico), Waly aproximou-se dos tropicalistas e logo estava tendo poemas seus musicados pela turma. <br />Sua atuação junto aos tropicalistas foi sendo construída em dupla com sua carreira como escritor. Em 1971 assumiu posto-chave na trajetória de Gal Costa, dirigindo o clássico show Fa-Tal, que tinha como pontos altos duas de suas parcerias com Jards Macalé (Vapor Barato e Mal Secreto), além de Luz do Sol (composta com Carlos Pinto). O show virou disco ao vivo e trilha sonora oficial do hippieismo pós-tropicalista. À essa altura, Waly já tinha uma recheada lista de canções compostas com Caetano, Torquato Neto e outros. No mesmo ano de 71, lançou seu primeiro livro de poesias, Me Segura que eu Vou Dar um Troço. <br />Nunca assumindo posição clara em relação à sua influência na Tropicália ("Não me sinto atrelado a qualquer movimento, como se fosse um figurino de época", disse ele certa vez), Waly Salomão atravessou os anos 70 fornecendo canções para os remanescentes da turma baiana. Os Doces Bárbaros (que reunia Caetano, Gil, Gal e Bethânia) gravaram sua Tarasca Guidon; solo, Bethânia transformou várias de suas parcerias com Caetano em sucessos (A Voz de uma Pessoa Vitoriosa, Mel, Talismã). A inquietação artística o levou a buscar desafios em pólos opostos. Também pode ser creditada à Salomão a revelação de Luiz Melodia - foi por sua sugestão que Gal lançou Pérola Negra, primeiro sucesso de Melodia como autor. Nos anos 80, podia tanto trabalhar com Lulu Santos (é deles Assaltaram a Gramática, gravada pelos Paralamas do Sucesso) quanto com Itamar Assumpção (Zé Pelintra), ou então escrever todo um disco, em parceria com Antonio Cícero, para João Bosco gravar (Zona de Fronteira ). <br />Fechando um ciclo geracional, Salomão aproximou-se mais recentemente das vozes femininas dos anos 90. Trabalhou com Cássia Eller no show e disco Veneno Antimonotonia, como produtor. Adriana Calcanhoto musicou dois de seus poemas (Pista de Dança e A Fábrica do Poema). Desde janeiro deste ano, tinha nas mãos um novo desafio: a pedido do eterno amigo Gilberto Gil, hoje Ministro da Cultura, aceitou o cargo de Secretário Nacional do Livro e Leitura. Waly queria popularizar e baratear o hábito de leitura do brasileiro. Casado, pai de dois filhos, Salomão preparava-se para lançar em breve mais um volume de poesias.<br /><br />(Fonte: Clic Music - http://cliquemusic.uol.com.br/br/Acontecendo/Acontecendo.asp?Nu_materia=3985)<br /><br />Entrevista:<br /><br />O poeta Waly Salomão, novo secretário nacional do livro, expõe suas metas de trabalho <br /><br />Heloísa Buarque de Hollanda <br />Professora e editora <br /><br />O poeta Waly Salomão é o novo secretário nacional do livro, integrando a nova equipe do Ministério da Cultura. Sem dúvida, essa equipe, que tomou posse cantando, pega-nos de surpresa e sugere uma gestão promissora pautada pela bandeira da ''Imaginação no poder''. Segundo o poeta, que inicia a nova missão com o espírito cheio de gás e otimismo, seu maior sonho é trabalhar para a divulgação da leitura no sentido da libertação - ''Sonho com um povo mais bem alimentado, letrado, gostando de livro mas sem estar oprimido pela leitura. Minha meta é transformar o livro numa carta de alforria'', falou em entrevista ao Jornal do Brasil. Aqui ele contou sua história desde as primeiras leituras, na casa dos pais, onde livros eram saboreados com entusiasmo e idealismo. <br /><br />- Qual é o espaço da leitura na sua vida? <br /><br />- Desde que me entendo por gente, o livro tem uma posição central, como se fosse um ícone dentro de casa. Lembro-me de minha mãe discutindo com meus irmãos e irmãs os dois volumes da velha edição da Editora Globo de Guerra e paz, de Tolstoi. Eles discutiam, com grande entusiasmo, como se estivessem discutindo uma novela mexicana. A personagem da Ana Karenina, por exemplo, era centro de conversa como se ela fosse uma personagem da Glória Perez. Minha tia Etelvina, mulher de Tio Bento, lia sem parar. E eu, que já freqüentava a Biblioteca Pública de Jequié, onde morávamos, tirei para ela a edição de D. Quixote numa tradução bem rococó, de Antônio Feliciano de Castilho. Adorava aquele português rebuscado, com palavras difíceis e decorava trechos enormes do texto. Quando saiu Gabriela Cravo e Canela, compramos logo três volumes, porque todo mundo queria ler e não dava tempo. Minha irmã tinha Os sertões em capa dura e me obrigou a ler. Eu lia tudo o que me caía nas mãos e me fundia com aquelas páginas que me faziam transcender a coisa tacanha, acanhada, da vida em cidade do interior. <br /><br />- Como se insere o livro na luta pela diversidade cultural? <br /><br />- No respeito a todos os falares, por exemplo. Não podemos ter um falar único regido por leis gramaticais rígidas. Na Bahia, muitas vezes eu parava e ficava ouvindo um camelô e uma mulher falarem na Ladeira de São Bento. Ficava horas absorvendo aquela verve. Eu detesto é salazarismo, galinha verde de Plínio Salgado, fascismo, generalíssimo Franco. É evidente que você pode ver percepções inusitadas em pessoas carentes da ''sabença'' oficial. Não perceber isso é agir como no leito de Procusto, onde ou você corta a cabeça ou corta o pé porque ele é curto, não cabe o corpo todo. Temos que fazer o corpo inteiro da cultura esplender. <br /><br />- Vem daí a invenção de seu programa Fome de Livro? <br /><br />- É claro. Estamos vivendo um momento fecundo com essa capacidade de liderança do Lula, de aglutinar as vontades de um povo na sua diversidade. Aí, com o Fome Zero, um programa justíssimo do Lula, fui percebendo que no Brasil, ao lado da música popular, do pagode, do futebol, que são responsáveis pela ascensão social de setores sem saída, o livro também pode ser, e tem sido, essa alavanca de modificação da posição subalterna das pessoas na sociedade. O Fome de Livro é um projeto complementar, que considera a leitura ferramenta social. <br /><br />- Você já teve uma experiência com o trabalho em comunidades no Rio, não é mesmo? <br /><br />- Tive. Sou diretor de Comunicação da ONG Vigário Geral, Afroreggae cultural há muitos anos. O Júnior e o Zé Renato, há quase 10 anos, me viram no Jô Soares uma vez e me procuraram. Vi aquilo como uma coisa muito forte, me integrei logo, sem hesitação. Gosto desses cruzamentos, dessas misturas, intercâmbios. <br /><br />- Como tais experiências, aliadas à sua militância, relacionam-se com a paixão pela revolução do livro na Secretaria? <br /><br />- Eu vi em grupos culturais como o Afroreggae de Vigário Geral garotos anêmicos ficando mais alimentados, estimulados, aprendendo coisas, ascendendo socialmente. É por isso que aprendi a ser otimista no meio de um país encalacrado como o Brasil. Por isso não tive medo. Preferi a esperança. <br /><br />- Você nem hesitou quando o Gil te chamou? <br /><br />- Nem hesitei. Fui chamado na realidade por João Santana, ligado ao Pallocci, que tinha visto meu desempenho administrativo em Salvador. Essas coisas ou você não topa. Tem de dar total dedicação. É sempre uma experiência enriquecedora. <br /><br />- Como foi o primeiro dia de trabalho? <br /><br />- Fui chegando com bastante cautela, precaução, visitando cada setor, tentando apagar até um lado público meu espalhafatoso. Eu obedeço fielmente à liturgia do poder. Ando de paletó, gravata, tudo. Como sou barroco sei que a vida é um teatro. Não adianta ir com a roupa errada, não fazer os usos de tratamento. Entrei querendo entender em minúcia aquele espaço, querendo distinguir quem é o servidor qualificado para formar equipe. Entrei procurando uma conjunção interministerial com os outros poderes. <br /><br />- E tem muita briga por lá? <br /><br />- Eu acho muita graça em ver tanta briga pelo Ministério da Cultura, um ministério paupérrimo. Por que será que mesmo assim pessoas brigam por cargos, tiram os tapetes, mandam flechas venenosas para todo lado? Para a chefia da Biblioteca Nacional foi uma guerra de foice como eu nunca tinha visto. De repente, um amigo me soprou o nome do Pedro Corrêa do Lago e essa indicação caiu pra mim como uma perfeição. A gente precisa ouvir muito. É assim que pretendo agir, de uma forma pausada e com o travesseiro me servindo de sibila. Se eu errar, sei que é apenas como parte do percurso para acertar. No caso da Biblioteca Nacional, quero garantir que aquele acervo, além de ser preservado e exposto, tenha a mesma acessibilidade de padrão internacional que você encontra, por exemplo, na Biblioteca do Congresso, em Washington. Pensar a Biblioteca Nacional não como espaço imperial, mas um espaço de utilidade pública, que possa servir à população . <br /><br />- Você se formou em direito no calor dos anos 60. Nessa época, já era de esquerda? Conhecia os baianos que iam arrasar depois no Rio e em SP? <br /><br />- Eu convivia com eles todos. O Gil eu conheci ainda no Colégio Central, no clássico. Uma colega de classe, Vânia Bastos, fez uma reunião na casa dela e apareceu um garoto gorducho, tocando violão. Era o Gilberto Gil. Isso era em 1961, 62. Éramos uma esquerda marxista-existencialista, porque líamos Marx, Camus, Sartre e Merleau Ponty, quer dizer, essa encruzilhada de paradoxos. Assisti aos primeiros shows deles, da Bethânia, do Tom Zé. Era uma época de grande fermentação na Bahia. <br /><br />- E a militância mais diretamente política? <br /><br />- Participei do CPC baiano, com Geraldo Sarno, Capinan, Tom Zé. A gente levava as peças ou na Concha Acústica do Teatro Castro Alves de Salvador, ou nas favelas nascentes da cidade, como no Nordeste de Amaralina. Eu dava aula sobre Feuerbach de Marx, fazia palestras na faculdade de Medicina. Organizei também um centro de estudos chamado Antônio Gramsci, bem antes de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder traduzirem Gramsci na capital. <br /><br />- E depois de 1964? <br /><br />- Em 1964, o corte foi o mais abrupto possível. Mas foi também nessa época que li Tremor e temor, de Kiekergaard, genial protestante existencialista que contava de repetidos ângulos a história de Abrahão, incumbido por Deus de matar Isaac. Um livro de perspectiva cinética. Fiquei com isso na cabeça. Em volta, as pessoas andavam assombradas, amedrontadas, perdidas. Comecei a olhar outros caminhos. Na vida, se a via fica estreita, você tem de descobrir como seguir. Busquei uma sofrida vereda: a de ultrapassar a província. <br /><br />- E qual vereda foi essa? <br /><br />- Decidi vir para o Rio de Janeiro. Era a época em que Caetano já estava explodindo com Alegria alegria e a gente ficava conversando, lendo Clarice Lispector, discutindo Guimarães Rosa, Cinema Novo. Depois Dedé e Caetano me convidaram para ir a SP, e acabei indo morar com eles na Rua São Luiz. Era o auge do tropicalismo, e vivi lá até eles serem presos. Depois ficava entre Rio e SP. Eu escrevia coisas que eu mostrava a todo mundo, mas que ninguém lia. Teve até um texto escrito no Carandiru chamado Apontamentos do Pav 2, que parece um hip hop avant la lettre. Ali representou um momento de deflagração da aventura de escrever. Foi ali que eu me concentrei e me liberei como escritor. Mostrei esse texto para diferentes pessoas, mas ninguém dava retorno. Aí é que entra a figura do Hélio Oiticica, que levou o texto a sério e que, por conta própria, sentou na prancheta e fez uma diagramação especialíssima para o texto, que mais tarde foi apreendida pela polícia, na casa de Rogério Duarte. <br /><br />- Bem, 40 anos depois de uma história enviesada, com direito a prisões, repressão, milagres brasileiros, e à onda neoliberal, essa mesma geração que você estava descrevendo toma o poder, cantando o sonho como se tivesse sido apenas casualmente interrompida por alguns minutos. Como você vê essa mágica? <br /><br />- No dia da posse, senti que era a primeira vez no Brasil que acontecia um tipo de posse tão alegre e diversificada. Ali estavam diferentes ângulos, picadas, perspectivas, possibilidades fecundas da cultura brasileira. Nunca acreditei em ''the dream is over''. Sinto-me mais próximo da frase de Shakespeare: ''Somos feitos do mesmo material de que são feitos os sonhos.'' O sonho não pode acabar. <br /><br />- O sonho é uma metodologia desejável para o bom administrador? <br /><br />- Eu sou de Virgem. Então muitas vezes a cabeça está nas nuvens e os pés no chão. Quando fui nomeado diretor da Fundação Gregório de Matos, de Salvador, trabalhei pesado. Na minha gestão eu me pautei antes de tudo por um modo de pensar desconfiado da relação do artista com o poder. E em algum tempo minhas habilidades administrativas e de flexibilidade política foram reconhecidas e fui designado Coordenador do carnaval da Bahia. Minha luta foi toda em cima de defender o carnaval não como um fato turístico e pitoresco, mas fundamentalmente como um fato cultural. Nasci e briguei muito na Bahia naquele momento para dar valor aos blocos afros que estavam nascendo, como o afro de Itapuã, Male Debale - esse nome ajudei a dar que significava a Revolução Islâmica do século 19 em Salvador. Ajudei o Olodum, ajudei o Ilê Ayê. Sabia que estava ajudando a representação da maior cidade negra fora da Africa, que é Salvador. Eu digo que tenho experiência administrativa porque o carnaval demandava 7 mil pessoas trabalhando diretamente sob meu comando, e eu chegava mais cedo do que todo mundo, enfrentando os pelegos do carnaval, que me chamavam de estrangeiro, não baiano. Mas fui provando não só que era de Jequié, mas que tinha muito conhecimento da cultura baiana, das populações mais pobres, da população negro-mestiça, intimidade nas festas e nas agruras dos pescadores, das feiras, com o candomblé. <br /><br />- A idéia da leitura é fundamental. Mas fazer livro no Brasil é muito caro. É aventura economicamente quase inviável. A secretaria vai ter algum projeto nesse sentido? <br /><br />- Eu já fui um pequeno editor, junto a minha mulher Marta. Tivemos a Editora Pedra Que Ronca. Lançamos o primeiro livro do Caetano, Alegria alegria, e outro livro chamado Baticum de Sônia Lins, a irmã da Ligia Clark. Aí tivemos que fechar. Hoje estou vendo com muito gosto a multiplicação de boas pequenas e médias editoras. Vai chegar o momento em que esse quadro de dificuldades vai ser superado. Vou trabalhar para isso. <br /><br />- Qual seria o grande gol de sua gestão na secretaria? <br /><br />- Penso agir com muita dedicação, sonho e catimba, que é uma palavra que vem da África. Sonho com um povo mais bem alimentado, letrado, gostando de livro, mas sem estar oprimido pela leitura. Sonho com o Brasil, nesta gestão Lula, assumindo sua face original e diversificada perante o mundo. O livro pode ajudar nisso. Minha meta é transformar o livro numa carta de alforria. <br /><br />[01/FEV/2003] <br /><br />Fonte: Jornal de Poesia (http://secrel.com.br/jpoesia/wsalomao.html#heloisa)<br /><br />Devenir, Devir<br /><br />Término de leitura <br />de um livro de poemas <br />não pode ser o ponto final. <br /> <br />Também não pode ser <br />a pacatez burguesa do <br />ponto seguimento. <br /> <br />Meta desejável: <br />alcançar o <br />ponto de ebulição. <br /> <br />Morro e transformo-me. <br /> <br />Leitor, eu te reproponho <br />a legenda de Goethe: <br />Morre e devém <br /> <br />Morre e transforma-te. <br /><br />Nova Cozinha Poética<br /><br />Pegue uma fatia de Theodor Adorno <br />Adicione uma posta de Paul Celan <br />Limpe antes os laivos de forno crematório <br />Até torná-la magra-enigmática <br />Cozinhe em banho-maria <br />Fogo bem baixo <br />E depois leve ao Departamento de Letras <br />Para o douto Professor dourar. <br /><br />Hoje<br /><br />O que menos quero pro meu dia <br />polidez,boas maneiras. <br />Por certo, <br />um Professor de Etiquetas <br />não presenciou o ato em que fui concebido. <br />Quando nasci, nasci nu, <br />ignaro da colocação correta dos dois pontos, <br />do ponto e vírgula, <br />e, principalmente, das reticências. <br />(Como toda gente, aliás...)<br /><br />Hoje só quero ritmo. <br />Ritmo no falado e no escrito. <br />Ritmo, veio-central da mina. <br />Ritmo, espinha-dorsal do corpo e da mente. <br />Ritmo na espiral da fala e do poema.<br /><br />Não está prevista a emissão <br />de nenhuma "Ordem do dia". <br />Está prescrito o protocolo da diplomacia. <br />AGITPROP - Agitação e propaganda: <br />Ritmo é o que mais quero pro meu dia-a-dia. <br />Ápice do ápice.<br /><br />Alguém acha que ritmo jorra fácil, <br />pronto rebento do espontaneísmo? <br />Meu ritmo só é ritmo <br />quando temperado com ironia. <br />Respingos de modernidade tardia? <br />E os pingos d'água <br />dão saltos bruscos do cano da torneira <br />e <br />passam de um ritmo regular <br />para uma turbulência <br />aleatória.<br /><br />Hoje... <br /><br />ARTE ANTI-HIPNÓTICA<br /><br />Espia a flor da aurora que já vem raiando ! <br />Mal a barra do dia rompia <br />saía pra rua <br />a caçar trabalho. <br />Lavrador desempregado <br />morador de casebre de pau-a-pique <br />3 cômodos <br />em Araçatuba <br />cumpre pena de prisão domiciliar <br />por furto de luz <br />do programa de energia rural <br />para a população de baixa-renda. <br />4 lâmpadas <br />sendo que duas queimadas <br />e uma geladeira imprestável. <br />Sem dinheiro para pagar a conta <br />teve o marcador de quilowatts arrancado. <br />Um compadre compadecido armou o "Gato". <br />70 anos incompletos. <br />Não compareceu ao fórum <br />pois só possuía chinelo <br />despossuía sapato e roupa decente.<br /><br /> <br />Aqui firma e dá fé um Bertold Brecht de arrabalde: <br />o sumo do real extraído da notícia do jornal: <br />....................................................................a arte ilusória <br />..............................................................................idílica <br />..............................................................................hipnótica <br />..............................................................................do fait divers.<br /><br />JARDIM DE ALÁ <br /><br /><br />EMBRIAGUEZ/cesto de caju/ claro de luna/ olor de jasmin/ teto de estrelas. <br />Recostado nas almofadas, ouve leitura da ata de reunião da célula <br /><br />Tupinambá guerreiro <br />Rei da Turquia <br />Pisa no chão devagar <br />Que a noite está <br />que é um dia <br /><br />OUTROS QUINHENTOS <br /> <br />Abr'olhos ! <br />Apuro juízo e vista : <br />em matéria de previsão eu deixo furo <br />futuro, eu juro, é dimensão <br />que não consigo ver <br />nem sequer rever <br />isto porque no lusco-fusco <br />ora pitombas! <br />minha bola de cristal fica fosca <br />mando bala no escuro <br />acerto tiro na boca da mosca <br />outras tantas giro a terra toda às tontas <br />dobro o Cabo das Tormentas <br />rebatizo-o de Boa-Esperança <br />e nessa espécie de caça ao vento leviano <br />vou pegando pelo rabo <br />a lebre de vidro do acaso. <br />Por acaso, <br />em matéria de previsão só deixo furo <br />- o juízo e a vista apuro - <br />futuro, juro, d'imensidão q ignoro <br />abr'olhos <br />vejo bem no claro <br />turvo no escuro <br />minha vida afinal navega taliqual <br />caravela de Cabral <br />um marinheiro enfia a cara na escotilha <br />um grumete na gávea ziguezagueia e berra <br />sinal <br />de terra, terra ignota à vista ! <br />tanto faz Brasil, Índia Ocidental Índia Oriental, <br /><br />ó sina, toucinho do céu e tormento, <br />ó fado, amo e odeio <br />o vira, a volta e o volteio <br />da sinuca <br />da sempre mesma <br />d <br />a <br />n <br />ç <br />a <br />- <br />l <br />e <br />s <br />m <br />a <br />da sinuca-de-bico vital. <br />Açorda ! <br />Vatapá ! <br /><br />VAPOR BARATO <br />( WALLY SALOMÃO / JARDS MACALÉ )<br /><br />Oh Sim, Eu Estou Tão Cansado <br />Mas Não Pra Dizer Que Eu Não Acredito Mais Em Você <br />Com Minhas Calças Vermelhas, Meu Casaco De General <br />Cheio De Anéis, Eu Vou Descendo Por Todas As Ruas <br />Eu Vou Tomar Aquele Velho Navio <br />Eu Não Preciso De Muito Dinheiro <br />E Não Me Importa Honey <br />Baby, Baby, Honey Baby<br /><br />Oh Sim, Eu Estou Tão Cansado <br />Mas Não Pra Dizer Que Estou Indo Embora <br />Talvez Eu Volte, Um Dia Eu Volto <br />Mas Eu Quero Esquecê-La, Eu Preciso <br />Oh! Minha Grande Oh! Minha Pequena <br />Oh! Minha Grande, Minha Pequena Obsessão <br />Eu Embora Naquele Velho Navio <br />E Não Me Importa, Honey <br />Baby, Baby, Honey Baby...PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-38833957703901101392009-04-22T11:57:00.000-07:002009-05-09T12:52:15.875-07:00Poesia Visual<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgVtVruqHA-UIVgQ0n4sXNoR16L-bmFxRi4Cc6BoXqISPXnyUHLbDAi0X0g_jon8gJ-RPlWDrk0ewLdykrgC-R_cAN-n2etx-wPzEb319eBehvfBuzMy97a65OoXC-Ptuk6YZyf7PjR2Gg/s1600-h/VISUAL.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 253px; height: 320px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgVtVruqHA-UIVgQ0n4sXNoR16L-bmFxRi4Cc6BoXqISPXnyUHLbDAi0X0g_jon8gJ-RPlWDrk0ewLdykrgC-R_cAN-n2etx-wPzEb319eBehvfBuzMy97a65OoXC-Ptuk6YZyf7PjR2Gg/s320/VISUAL.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329829192995210002" /></a><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />Eduardo Kac<br /> <br />Uirapuru<br /><br /> <br />Transgenic Installation Espelho<br /><br /> <br />Datilograma <br />Olhão<br /><br /> <br />Bunny <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Hugo Mund Jr.<br /> <br /><br /> <br />branco é o raio de luz antes de passar<br />pelo prisma branco é a origem b<br />ranco é o lugar da dança branco é<br />o motivo da criação<br />guarda este sol antigo<br />estrela que te dou agora<br />pássaros leves de verão<br />acodem à janela aberta<br />harpa de sombra errante<br />tocando o perfil da luz<br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Hugo Mund Jr.<br /> <br /><br /> <br />branco é o raio de luz antes de passar<br />pelo prisma branco é a origem b<br />ranco é o lugar da dança branco é<br />o motivo da criação<br />guarda este sol antigo<br />estrela que te dou agora<br />pássaros leves de verão<br />acodem à janela aberta<br />harpa de sombra errante<br />tocando o perfil da luz<br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Hugo Pontes<br />Hugo Pontes é natural de Três Corações, Sul de Minas Gerais, nascido a 22 de Julho de 1945. Foi muito cedo para Conceição do Rio Verde. Sua trajetória na vida literária inicia-se, no ano de 1963, em Oliveira, junto com Márcio Almeida e o Grupo VIX de poesia de vanguarda. <br />Desde o começo, revela-se um poeta preocupado com o espaço branco do papel, tanto que cria o primeiro poema (visual) símbolo do Grupo. <br />No final dos anos 60 integra o movimento de Poema/Processo. A partir de 70, volta-se para o poema visual e desenvolve intenso trabalho. Integrando o movimento visual brasileiro e o Mail Art no exterior. <br />Reside, por opção, na cidade de Poços de Caldas há 24 anos. É Supervisor Educacional na Prefeitura e professor de Português. Hugo Pontes é natural de Três Corações, Sul de Minas Gerais, nascido a 22 de Julho de 1945. Foi muito cedo para Conceição do Rio Verde. Sua trajetória na vida literária inicia-se, no ano de 1963, em Oliveira, junto com Márcio Almeida e o Grupo VIX de poesia de vanguarda. <br />Desde o começo, revela-se um poeta preocupado com o espaço branco do papel, tanto que cria o primeiro poema (visual) símbolo do Grupo. <br />No final dos anos 60 integra o movimento de Poema/Processo. A partir de 70, volta-se para o poema visual e desenvolve intenso trabalho. Integrando o movimento visual brasileiro e o Mail Art no exterior. <br />Reside, por opção, na cidade de Poços de Caldas há 24 anos. É Supervisor Educacional na Prefeitura e professor de Português na PUC-Minas.Casado, tem dois filhos. No "Jornal da Cidade" edita uma página dedicada ao poema visual, ComunicARTE, há sete anos.<br /> <br /> <br />SCH SHEV<br />WAR AR<br />ZEN<br />DNA EGG<br />DZE ER<br /> <br /> ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Joaquim Branco<br />Joaquim Branco (Cataguases-MG, 1940). Poeta, escritor, jornalista, professor universitário, formado em Direito, mestre em Letras e doutorando em Literatura Comparada. Publicou Concreções da fala (poemas, edição do autor, Cataguases, 1969), Consumito (poemas, Edição da Impresa Oficial de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1975), Laser para lazer (poemas, edições Totem, Cataguases, 1984), 500 anos do descobrimento da América (edição Hidroazul, Cataguases, 1993), O caça-palavras (poemas, edição da Fundação Cultural Ormeo J. Botelho, Cataguases, 1997), Do pré ao pós-moderno (manual de literatura, edição Proler/Cataguases, Cataguases, 1998), Ascânio, o poeta da Verde (edições Totem, Cataguases, 1998), Recr(e,i)ações críticas (artigos críticos, edição Fundação Ormeo J.Botelho, Cataguases, 1999), Passagem para a Modernidade (Instituto Francisca de Souza Peixoto, Cataguases, 2002) e O menino que procurava o reino da poesia (narrativa de ficção, Instituto Francisca de Souza Peixoto, Cataguases, 2005). Recebeu variados prêmios culturais, destacando-se entre eles o Prêmio Oscar Mendes da Academia Mineira de Letras, 3º ensaio, pelo livro Passagem para a Modernidade, 2002 e o Prêmio de distinção como o melhor Suplemento de Arte e Cultura do Brasil para o "Caderno C — Arte e Cultura", ed. Joaquim Branco, (Jornal Cataguases), em 2004, pelo International Writers and Artists Association, dos Estados Unidos, conferido pela escritora Teresinka Pereira. Desde 1968, participa de exposições e eventos de poesia, nacionais e internacionais, sendo os últimos: Market (a square) — exposição de arte postal, de 17 abril a 16 maio/2004, org. Ko de Jonge, Middelburg, Holanda; Creación de Arte Postal, org. Dan Bouchoux, "La Mujer — La Señora", 2004, em Peronnas, França; Fighting Back, org. Amnesty Internaztional Group 78, an English-speaking group of Al Japan (Janny Mclay e Chris Pitts), sob o tema "Stop violence against women", Tóquio, Japan, março/2004; Un Ulivo per l'Europa, arte postal, no Circolo degli Artisti, Pozzo Garitta, 32, Albissola Marina, de 17a 24 de abril 2004, Savona, Itália. Poeta e crítico literário com atividade em inúmeros jornais, suplementos e revistas literárias no Brasil (Jornal do Brasil, Tribuna da Imprensa, Suplemento Literário de Minas Gerais e outros) e no exterior.<br /> <br /><br /> <br /><br /> COMO DADOS<br />COME DIDOS<br />COLO RIMOS<br />COLI DIMOS<br />kolynos<br /> <br /><br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Philadelpho Menezes<br />Nasceu em São Paulo, em 1960. Mestre e doutor em comunicação e semiótica pela PUC/SP, com pesquisa de doutoramento na Universidade de Bolonha, Itália.<br />Foi professor do programa de pós-graduação em comunicação e semiótica da PUC/SP. Morreu em um trágico acidente de carro, em 23 de julho de 2000.<br />IMPORTÂNCIA DE SUA OBRA<br />Philadelpho Menezes se destacou tanto na área acadêmica quanto na produção de eventos culturais-artísticos. Organizou a mostra Poesia Intersignos (1985) e a 1ª Mostra Internacional de Poesia Visual de São Paulo (1988), ambas no Centro Cultural São Paulo. Em 1997, organizou a sala especial Poesia Sonora do evento Arte Tecnologia, promovido pelo Itaú Cultural, São Paulo. Em 1998, foi curador do evento Intersignos, do impresso ao sonoro e ao digital, realizado no Paço das Artes. Entre seus livros publicados podemos citar: Signos Plurais - Mídia, Arte e Cotidiano na Globalização (organização e apresentação, São Paulo: Experimento, 1997); A Crise do Passado - Modernidade. Vanguarda. Metamodernidade (São Paulo: Experimento, 1994); Poesia Sonora - Poéticas Experimentais da Voz no Século XX (organização e introdução, São Paulo: Educ, 1992); e Poética e Visualidade - Uma Trajetória da Poesia Brasileira Contemporânea (Campinas: Editora da Unicamp, 1991).<br />POESIA INTERSIGNOS<br />Do impresso ao sonoro e ao digital<br />(acerca da exposição da Mostra de Poesia Intersignos - 1985)<br />Há treze anos, realizou-se a primeira exposição de Poesia Intersignos no Centro Cultural São Paulo, com pouco mais de três dezenas de poemas visuais expostos em painéis, todos de poetas brasileiros, sob minha curadoria. Eu tentava delimitar uma vertente da poesia visual brasileira que, distanciando-se do poema visual eminentemente verbal, feito exclusivamente de formas gráficas do texto, colocasse no centro da comunicação poética a imagem em suas mais variadas configurações: desenhos, fotos, numerais, rabiscos, gráficos, cores. A idéia era mostrar poemas em que a imagem participasse como elemento de significação na construção semântica do trabalho, que ela exigisse uma decifração conceitual do observador para a interpretação do poema como um todo. De sua intersemiose plena (conceitual e formal) com o verbal, nasce o poema intersignos.<br />A presente exposição dá continuidade a essas idéias, mas agora tendo em vista a explosão das formas comunicacionais que levou a poesia a experimentar com o universo do som, da imagem videográfica e com o vasto campo das novas tecnologias, sem deixar de lado o registro impresso. Se a poesia visual intersignos efetuava a exploração das possibilidades do impresso na fusão palavra/imagem, os poemas que aqui se exibem ultrapassam o espaço material do livro para se dar enquanto poemas-objeto, penetram no espaço ambiental do som para produzir a poesia sonora e incidem no espaço virtual das tecnologias para criar poemas digitais.<br />Assim como a poesia intersignos de anos atrás não queria inventar a poesia visual, mas distinguir-se enquanto um "setor" especial dela, a poesia exposta no Paço das Artes não quer criar a "nova poesia experimental" do próximo milênio, ou a poesia do "novo homem" das tecnologias da comunicação. Ela só quer expor como é possível encontrar uma poética espraiada pelos espaços extra-livros, em que permaneça a idéia de que a poeticidade é feita de uma interação formal e uma composição conceitual entre os signos verbais e os demais signos provientes de cada uma das técnicas que o poema usa. Dessa maneira, de uma lado, distingue-se de uma poesia pretensamente experimental que, no entanto, só reproduz a forma clássica da poesia como processo específico da verbalidade, mas envolto pelos artifícios das outras linguagens. De outro, distancia-se de uma postura ingênua que vê o simples uso da palavra em novas tecnologias como a invenção do novo mundo poético-midiático. A exposição procura incitar o observador a deslocar sua atenção das técnicas usadas para os modos como os signos se combinam e se articulam dentro dessas técnicas, em processos poéticos intersígnicos que destacam as funções formais, estruturais e semânticas de todos os signos involvidos no poema.<br />Com isso, a exposição intencionalmente faz conviver no mesmo espaço o impresso, o objeto tridimensional, o sonoro, o performático e o tecnológico, sem qualquer proposição de caráter evolutivo, afirmando a natureza cumulativa e interagente de técnicas de diferentes períodos da cultura, e contaminando a pretensa pureza tecnológica com a artesanalidade e o hibridismo de técnicas "obsoletas" e com a materialidade do corpo e dos gestos.<br />Um lugar privilegiado de discussão dessas questões, central para a poética e a estética contemporâneas, é a própria tecnologia digital em suas possibilidades ainda abertas de uso, tanto pelas novidades que elas podem vir a apresentar para a configuração da linguagem comunicacional quanto pelo impacto delas na sociedade que vai surgindo. Poesia Intersignos exibe uma série de poemas em CD-ROM, na chamada linguagem "multimídia". Primeiramente, eles não são "experimentos de textos poéticos escritos", mas processos intersígnicos de palavra, imagem, som, movimento, direções variáveis de leitura, em que imagem e som não se dão apenas enquanto acabamento da palavra. Adentrando uma nova configuração espacial que já não é mais o da forma códice do livro, a poesia necessariamente ultrapassa os limites do próprio signo verbal. Se o hipertexto se torna naturalmente hipermídia pela tendência à integração das linguagens dentro das tecnologias digitais, o poema digital também se faz de um tráfego entre signos de diferentes linguagens que, quando melhor realizado, bem poderia ser denominado intermídia (em substituição ao atual estágio inicial multimídia de exploração da linguagem digital em que há mais o acúmulo e sobreposição de diversos signos do que propriamente integração semântico-funcional entre eles).<br />No entanto, o poema, antes de penetrar o espaço digital, já havia saltado, na poética intersígnica, do livro para o objeto e para a sonoridade, onde, respectivamente, elementos como interatividade e imaterialidade, dois totens das nascentes (e ainda fragilíssimas) teorias de poéticas em novas mídias, estão realizados. O que importa, então, no uso dessas novas tecnologias é primeiramente a facilitação e o incitamento às realizações integrativas entre linguagens, em que, de novo, signos não-verbais não se reduzam ao papel de elementos meramente reforçadores do verbal. Por fim, fusão intersígnica dirige a prática criativa à fusão entre os gêneros do texto, onde a poesia penetra o campo da teoria, do conto, da informação enciclopédica. Tudo caminha para a formação de grandes sistemas de vasos comunicantes em que poesia, ficção narrativa, jogo, pesquisa científica, informação trivial, contato interpessoal sejam momentos de uma mesma prática produtiva.<br />Poesia Sonora<br />"Poesia sonora pode ter várias definições e manifestações. Mas alguns pontos são comuns em qualquer de suas vertentes. Primeiramente, ela é um tipo de poesia oral, mas associado a uma característica especial: ele é essencialmente experimental. Isso significa que a poesia sonora se distancia claramente da poesia declamada.<br />Diferenciar-se da poesia declamada quer dizer não reproduzir as formas tradicionais de declamação emotiva e lírica, teatral e dramática do texto. Em seu lugar, entram o humor, as técnicas fonéticas, o rumorismo, a utilização de meios tecnológicos. Por conseqüência, a poesia sonora se distancia da idéia de texto: o poema sonoro nunca é um texto lido oralmente, por mais que um texto se pretenda experimental enquanto discurso verbal. A poesia sonora parte da idéia de que a poesia nasce antes do texto e do discurso e não depende dele para existir. Ela se cria com certas conjunções sonoras (sendo a palavra apenas um de seus elementos possíveis) que, organizadas numa certa ordem, exprimem conceitos, sensações e impressões.<br />Portanto, não se deve confundir poesia sonora com poesia musicada ou musicalização de poemas (sejam estes em forma de verso ou mesmo poemas visuais), porque os sons não entram no poema sonoro com a função que possuem na música: não apresentam problemas de combinação com um texto (porque não há texto), nem de harmonia, nem de desenvolvimento melódico. A vinculação histórica da poesia sonora é com a poesia fonética das vanguardas futuristas e dadaístas do início do século.<br />Quando vem apresentado ao vivo, o poema sonoro se preenche de outras questões que partem da sua integração a outros meios e linguagens: espaço, gestualidade, vídeo, interação com o público. Porém, todos esses elementos devem participar dirigidos pelo projeto do poema sonoro e a ele se integrar num processo de montagem, de relação intersígnica, intermídia (não de colagem, de multimídia). Ao contrário dos anos 50, quando Henri Chopin criou o nome poesia sonora para seus poemas em aparelhagem eletroacústica (primeiras manifestações de poesia tecnológica da história), hoje se assiste a uma revisão do uso da tecnologia: ainda que extremamente rica e útil, a tecnologia deve se subordinar a um projeto poemático que escape dos meros efeitos eletroacústicos, reponha em jogo o corpo e a voz em suas possibilidades expressivas e tenha em vista a complexidade semântica da comunicação poética."PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-87301704790844452522009-04-22T11:56:00.000-07:002009-04-28T12:40:41.486-07:00POEMA PROCESSO E POESIA PRÁXIS<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgYE4U4Y8-cPlFB9agsIdu8ILQYhWT3_m9BMHtySlS7LKw2Tz4jhyf9eKkTJHMhAHRw75yPEfR63_FRH3Ul2WUKSxN1hDJNnHf3C9QCXFlKTmFWx3pNd8XsEot7dORxSirI-InN8WZRF6s/s1600-h/TN_filosofia_praxis.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 180px; height: 265px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgYE4U4Y8-cPlFB9agsIdu8ILQYhWT3_m9BMHtySlS7LKw2Tz4jhyf9eKkTJHMhAHRw75yPEfR63_FRH3Ul2WUKSxN1hDJNnHf3C9QCXFlKTmFWx3pNd8XsEot7dORxSirI-InN8WZRF6s/s320/TN_filosofia_praxis.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329829478691646754" /></a><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Arnaldo Antunes <br /><br />(São Paulo SP 1960) <br /><br />Cursou Linguística na Universidade de São Paulo - USP, mas não chegou a concluir a faculdade; em 1980 já fazia parte da banda Performática, com a qual lançaria um álbum em 1981. No ano seguinte passaria a integrar o grupo de rock Titãs, cujos sete álbuns ganhariam vários discos de ouro e platina. Em 1983 sairia seu álbum de poemas visuais Ou E; seguiram-se várias participações em exposições, como Poesiaevidência, na PUC/SP e Palavra Imágica, no MAC/USP. Em 1992 lançou o vídeo, livro e cd Nome, projeto multimídia com poesia, música e animação em computador. Em 1995 saiu o cd Ninguém; em 1996, foi a vez do cd O Silêncio, com participação de Carlinhos Brown e Chico Science. Dois anos depois, lançou o cd Um Som. Seu último livro, 40 Escritos (2000), é uma coletânea de artigos, prefácios e releases de CDs. A obra poética de Antunes, influenciada pelo concretismo de Haroldo e Augusto de Campos e pelos hai-kais de Paulo Leminsky, explora sons, imagens, movimento, e questiona as convenções linguísticas ao utilizar a linguagem de novas mídias na construção de seus versos.<br /><br />[Estou cego a todas as músicas,] <br />Estou cego a todas as músicas, <br />Não ouvi mais o cantar da musa. <br />A dúvida cobriu a minha vida <br />Como o peito que me cobre a blusa. <br />Já a mim nenhuma cena soa <br />Nem o céu se me desabotoa. <br />A dúvida cobriu a minha vida <br />Como a língua cobre de saliva <br />Cada dente que sai da gengiva. <br />A dúvida cobriu a minha vida <br />Como o sangue cobre a carne crua, <br />Como a pele cobre a carne viva, <br />Como a roupa cobre a pele nua. <br />Estou cego a todas as músicas. <br />E se eu canto é como um som que sua.<br /><br />As Coisas <br /><br />As coisas têm peso, <br />massa, volume, tama- <br />nho, tempo, forma, cor, <br />posição, textura, dura- <br />ção, densidade, cheiro, <br />valor, consistência, pro- <br />fundidade, contorno, <br />temperatura, função, <br />aparência, preço, desti- <br />no, idade, sentido. As <br />coisas não têm paz.<br /><br />Dorme <br /><br />PÁRA-RAIO, DORME <br />TEMPORAL, DORME <br /> <br />VAGA-LUME, DORME <br />ABAJUR, DORME <br /> <br />AMBULÂNCIA, DORME <br />CAMBURÃO, DORME <br /> <br />TRAVESSEIRO, DORME <br />MEU AMOR, DORME <br /> <br />LUIZ GONZAGA, DORME <br />LUZ DO SOL, DORME <br /> <br />SENTINELA, DORME <br />GENERAL, DORME <br /> <br />CARAVELA, DORME <br />CARNAVAL, DORME <br /> <br />CANDELÁRIA, DORME <br />CANDOMBLÉ, DORME <br /> <br />CAMBALHOTA, DORME <br />BAMBOLÊ, DORME <br /> <br />PENSAMENTO, DORME <br />SENSAÇÃO, DORME <br /> <br />AMANHÃ, DORME<br /><br />Imagem <br /> Lavar as Mãos <br />Uma <br />Lava outra, lava uma <br />Lava outra, lava uma <br />Mão <br />Lava outra, lava uma <br />Mão <br />Lava outra, lava uma <br />Depois de brincar no chão de areia <br />a tarde inteira <br />Antes de comer, beber, lamber, <br />pegar na mamadeira <br />Lava uma <br />Lava outra, lava uma <br />Lava outra, lava uma <br />A doença vai embora junto com a <br />sujeira <br />Verme, bactéria, manda embora <br />embaixo da torneira <br />Água uma <br />Água outra, água uma <br />Água outra, água uma <br />Na segunda, terça, quarta, quinta <br />e sexta-feira <br />Na beira da pia, tanque, bica, <br />bacia, banheira <br />Lava uma <br />Mão <br />Mão <br />Mão <br />Mão <br />Água uma <br />Lava outra, lava uma <br />Lava outra, lava uma<br /><br />O Macaco <br /><br />o macaco se parece com o homem <br />a macaca parece mulher <br />algumas pessoas se parecem <br />outras pessoas se parecem com outras <br />as macacas de auditório são meninas <br />as crianças parecem micos <br />os papagaios falam o que pessoas falam <br />mas não parecem pessoas <br />para os cegos os papagaios se parecem pessoas <br />o homem veio do macaco <br />mas antes o macaco veio do cavalo <br />e o cavalo veio do gato <br />então o homem veio do gato <br />o gato veio do coelho <br />que veio do sapo que veio do lagarto <br />então o homem veio do lagarto <br />o lagarto veio da borboleta <br />que veio do pássaro que veio do peixe <br />pessoas se parecem com peixes <br />quando nadam <br />pessoas se parecem com peixes <br />quando olham o vazio <br />pessoas se parecem com peixes <br />quando ainda não nasceram <br />pessoas se parecem com peixes <br />quando fazem bolas de chiclete <br />macacos desaparecem <br />peixes parecem peixes <br />micróbios não aparecem <br />todos se parecem <br />pois se diferem<br /><br />Tudo <br /><br />Todas as coisas <br />do mundo não <br />cabem numa <br />idéia. Mas tu- <br />do cabe numa <br />palavra, nesta <br />palavra tudo.<br /><br />[Pensamento]<br /><br />Pensamento vem de fora <br />e pensa que vem de dentro, <br />pensamento que expectora <br />o que no meu peito penso. <br />Pensamento a mil por hora, <br />tormento a todo momento. <br />Por que é que eu penso agora <br />sem o meu consentimento? <br />Se tudo que comemora <br />tem o seu impedimento, <br />se tudo aquilo que chora <br />cresce com o seu fermento; <br />pensamento, dê o fora, <br />saia do meu pensamento. <br />Pensamento, vá embora, <br />desapareça no vento. <br />E não jogarei sementes <br />em cima do seu cimento.<br /> <br />palavra lê <br />paisagem contempla <br />cinema assiste <br />cena vê <br />cor enxerga <br />corpo observa <br />luz vislumbra <br />vulto avista <br />alvo mira <br />céu admira <br />célula examina <br />detalhe nota <br />imagem fita <br />olho olha <br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Augusto de Campos<br /><br />(São Paulo SP, 1931) <br /><br />Formou-se em Direito na Universidade de São Paulo, em 1953 , mesmo ano em que compôs a série de poemas em cores Poetamenos, primeira manifestação da poesia concreta brasileira. Na época, ele já integrava o Grupo Noigandres, do qual fora fundador, com Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Em 1956 e 1957, participaria do lançamento oficial da Poesia Concreta na I Exposição Nacional de Arte Concreta, no MAM/SP e no saguão do MEC/RJ; em 1958, publicaria o Plano-Piloto para Poesia Concreta, em co-autoria com Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Nos anos seguintes, publicou estudos críticos e teóricos, além de traduções e poesia. Em 1984, iniciou sua produção de poemas em computador e novos meios tecnológicos. Suas obras poéticas mais recentes são Despoesia e Poema Avulso (1994). Poeta fundador do movimento concretista, Augusto de Campos utiliza recursos visuais, acústicos, de movimento e de disposição espacial dos versos em diferentes suportes de leitura para propor uma nova sintaxe estrutural para a poesia. <br /><br />Diálogo a Dois <br />"A Angústia, Augusto, esse leão de areia"<br /><br />Décio Pignatari<br /><br />A Angústia, Augusto, esse leão de areia <br />Que se abebera em tuas mãos de tuas mãos <br />E que desdenha a fronte que lhe ofertas <br />(Em tuas mãos de tuas mãos por tuas mãos) <br />E há de chegar paciente ao nervo dos teus olhos, <br />É o Morto que se fecha em tua pele? <br />O Expulso do teu corpo no teu corpo? <br />A Pedra que se rompe dos teus pulsos? <br />A Areia areia apenas mais o vento? <br /><br />A Angústia, Pignatari, Oleiro de Ouro, <br />Esse leão de areia digo este leão <br />(Ah! O longo olhar sereno em que nos empenhamos, <br />Que é como se eu me estrangulasse com os olhos) <br />De sangue: <br />Eu mesmo, além do espelho. <br /><br />O Vivo<br /><br />Não queiras ser mais vivo do que és morto. <br />As sempre-vivas morrem diariamente <br />Pisadas por teus pés enquanto nasces. <br />Não queiras ser mais morto do que és vivo. <br />As mortas-vivas rompem as mortalhas <br />Miram-se umas nas outras e retornam <br />(Seus cabelos azuis, como arrastam o vento!) <br />Para amassar o pão da própria carne. <br />Ó vivo-morto que escarnecem as paredes, <br />Queres ouvir e falas. <br />Queres morrer e dormes. <br />Há muito que as espadas <br />Te atravessando lentamente lado a lado <br />Partiram tua voz. Sorris. <br />Queres morrer e morres. <br /><br />Pós Tudo<br /><br /><br /><br /> Sim <br />sim<br /><br />poeta<br /><br />infin<br /><br />itesi<br /><br />(tmese)<br /><br />mal<br /><br />(em tese)<br /><br />existe<br /><br />e se mani-<br /><br />(ainda)<br /><br />festa<br /><br />nesta<br /><br />ani<br /><br />(triste)<br /><br />mal<br /><br />espécie<br /><br />que lhe é<br /><br />funesta<br /><br />se<br /><br />tem<br /><br />fome<br /><br />come<br /><br />fama<br /><br />como<br /><br />cama<br /><br />leão<br /><br />come<br /><br />ar<br /><br />al<br /><br />moço<br /><br />antes<br /><br />doce<br /><br />do<br /><br />intes<br /><br />tino<br /><br />fino<br /><br />ao<br /><br />gr<br /><br />osso<br /><br />mais<br /><br />baixo<br /><br />que<br /><br />o<br /><br />lixeiro<br /><br />que<br /><br />cheira<br /><br />a<br /><br />lixo<br /><br />mas<br /><br />ao<br /><br />menos<br /><br />tem <br /><br />cheiro<br /><br />o<br /><br />poeta<br /><br />lagartixa<br /><br />no<br /><br />escuro<br /><br />bicho<br /><br />inodoro<br /><br />e<br /><br />solitário<br /><br />em<br /><br />seu<br /><br />labor<br /><br />atório<br /><br />sem<br /><br />sol<br /><br />ou<br /><br />sal<br /><br />ário <br /> <br /><br />poesia concreta: um manifesto <br /><br />- a poesia concreta começa por assumir uma responsabilidade total perante a linguagem: aceitando o pressuposto do idioma histórico como núcleo indispensável de comunicação, recusa-se a absorver as palavras com meros veículos indiferentes, sem vida sem personalidade sem história - túmulos-tabu com que a convenção insiste em sepultar a idéia.<br /><br />- o poeta concreto não volta a face às palavras, não lhes lança olhares oblíquos: vai direto ao seu centro, para viver e vivificar a sua facticidade.<br /><br />- o poeta concreto vê a palavra em si mesma - campo magnético de possibilidades - como um objeto dinâmico, uma célula viva, um organismo completo, com propriedades psicofisicoquímicas tacto antenas circulação coraação: viva.<br /><br />- longe de procurar evadir-se da realidade ou iludí-la, pretende a poesia concreta, contra a introspecção autodebilitante e contra o realismo simplista e simplório, situar-se de frente para as coisas, aberta, em posição de realismo absoluto.<br /><br />- o velho alicerce formal e silogístico-discursivo, fortemente abalado no começo do século, voltou a servir de escora às ruínas de uma poética comprometida, híbrido anacrônico de coração atômico e couraça medieval.<br /><br />- contra a organização sintática perspectivista, onde as palavras vêm sentar-se como "cadáveres em banquete", a poesia concreta opõe um novo sentido de estrutura, capaz de, no momento histórico, captar, sem desgaste ou regressão, o cerne da experiência humana poetizável.<br /><br />- mallarmé (un coup de dés-1897), joyce (finnegans wake), pound (cantos-ideograma), cummings e, num segundo plano, apollinaire (calligrammes) e as tentativas experimentais futuristasdadaistas estão na raíz do novo procedimento poético, que tende a imporse à organização convencional cuja unidade formal é o verso (livre inclusive).<br /><br />- o poema concreto ou ideograma passa a ser um campo relacional de funções.<br /><br />o núcleo poético é posto em evidencia não mais pelo encadeamento sucessivo e linear de versos, mas por um sistema de relações e equilíbrios entre quaisquer parses do poema.<br /><br />- funções-relações gráfico-fonéticas ("fatores de proximidade e semelhança") e o uso substantivo do espaço como elemento de composição entretêm uma dialética simultânea de olho e fôlego, que, aliada à síntese ideogrâmica do significado, cria uma totalidade sensível "verbivocovisual", de modo a justapor palavras e experiência num estreito colamento fenomenológico, antes impossível.<br /><br />- POESIA-CONCRETA: TENSÃO DE PALAVRAS-COISAS NO ESPAÇO-TEMPO.<br /><br />(publicado originalmente na revista ad - arquitetura e decoração, são paulo, novembro/dezembro de 1956, n° 20) <br /><br /> <br />Poemóbiles, "Abre" (acima) e "Incomunicable" (abaixo)<br /><br /><br /> <br />Morituro<br /> <br /><br /> <br /><br /><br />Código<br /> <br />Greve, página inferior.<br /> <br /><br /> <br /><br />Pop Olho <br /><br /> <br /><br /> <br />Pó do Cosmos<br /> <br /><br /> <br /><br />Psiu <br />Reflete<br /> <br /><br /> <br /><br />Tensão<br /> Tudo está dito <br /><br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Décio Pignatari <br /><br />(Jundiaí SP 1927) <br /><br />Publicou, em 1949, os poemas Noviciado e Unha e Carne na Revista Brasileira de Poesia. Na época, integrava o Clube de Poesia, em São Paulo SP, liderado por poetas e críticos da Geração de 45. Em 1952 fundou o Grupo Noigandres, com Augusto de Campos e Haroldo de Campos, que publicou cinco antologias poéticas. Entre 1956 e 1957 participou do lançamento oficial da Poesia Concreta na Iº Exposição Nacional de Arte Concreta, no MAM/SP e no saguão do MEC/RJ. Publicou, em 1958, o Plano-Piloto para Poesia Concreta, em co-autoria com Augusto de Campos e Haroldo de Campos, em Noigandres n.4. Nas décadas seguintes, traduziu várias obras em francês, inglês e russo. Foi um dos criadores da editora e da revista Invenção, lançada em 1962 como veículo da Poesia Concreta. Em 1964 lançou o Manifesto do Poema-Código ou Semiótico, com Luiz Angelo Pinto. Foi membro-fundador da Associação Internacional de Semiótica, em Paris (França), em 1969. Nas décadas de 1980 e 1990 colaborou em vários periódicos, entre os quais a Folha de S. Paulo, e foi professor de Semiótica e Comunicação da FAU/USP. Publicou vários livros de ensaios, entre eles Cultura Pós-Nacionalista (1998). Sua obra poética inclui os livros Carrossel (1950), Exercício Findo (1958), Poesia pois é Poesia (1977) e Poesia pois é Poesia, 1950/1975. Poetc, 1976/1986 (1986). Décio Pignatari, criador do poema-código e semiótico, é um dos principais nomes da poesia Concreta. <br /><br />beba coca cola <br />babe cola <br />beba coca <br />babe cola caco <br />caco <br />cola <br />c l o a c a <br />ra terra ter<br /><br />rat erra ter<br /><br />rate rra ter<br /><br />rater ra ter<br /><br />raterra terr<br /><br />araterra ter<br /><br />raraterra te<br /><br />rraraterra t<br /><br />erraraterra<br /><br />terraraterra<br /><br />caviar o prazer<br /><br />prazer o porvir<br /><br />porvir o torpor<br /><br />contemporalizar<br /><br />abrir as portas<br /><br />abrir as pernas<br /><br />abrir os corpos<br /><br />um <br />movi <br />mento <br />compondo <br />além <br />da <br />nuvem <br />um <br />campo <br />de <br />combate<br /><br /> <br />mira <br />gem <br />ira <br />de <br />um <br />horizonte <br />puro <br />num <br />mo <br />mento <br />vivo <br /> O Lobisomem <br />O amor é para mim um Iroquês<br /><br />De cor amarela e feroz catadura<br /><br />Que vem sempre a galope, montado<br /><br />Numa égua chamada Tristeza.<br /><br />Ai, Tristeza tem cascos de ferro<br /><br />E as esporas de estranho metal<br /><br />Cor de vinho, de sangue, e de morte,<br /><br />Um metal parecido com ciúme.<br /><br />(O Iroquês sabe há muito o caminho e o lugar<br /><br />Onde estou à mercê:<br /><br />É uma estrada asfaltada, tão solitária quanto escura,<br /><br />Passando por entre uns arvoredos colossais<br /><br />Que abrem lá em cima suas enormes bocas de silêncio e solidão).<br /><br />Outro dia eu senti um ladrido<br /><br />De concreto batendo nos cascos:<br /><br />Era o meu Iroquês que chegava<br /><br />No seu gesto de anti-Quixote.<br /><br />Vinha grande, vestido de nada<br /><br />Me empolgou corações e cabelos<br /><br />Estreitou as artérias nas mãos<br /><br />E arrancou minha pele sem sangue<br /><br />E partiu encoberto com ela<br /><br />Atirando-me os poros na cara.<br /><br />E eu parti travestido de Dor,<br /><br />Dor roubada da placa da rua<br /><br />Ululando que o vento parasse<br /><br />De açoitar minha pele de nervos.<br /><br />Veio o frio com olhos de brasa<br /><br />Jogou olhos em todo o meu corpo;<br /><br />Encontrei uma moça na rua,<br /><br />Implorei que me desse sua pele<br /><br />E ela disse, chorando de mágua,<br /><br />Que era mãe, tinha seios repletos<br /><br />E a filhinha não gosta de nervos;<br /><br />Encontrei um mendigo na rua<br /><br />Moribundo de fome e de frio:<br /><br />"Dá-me a pele, mendigo inocente,<br /><br />Antes que Ela te venha buscar."<br /><br />Respondeu carregado por Ela:<br /><br />"Me devolves no Juízo Final?"<br /><br />Encontrei um cachorro na rua:<br /><br />"Ó cachorro, me cedes tua pele?"<br /><br />E ele, ingênuo, deixando a cadela<br /><br />Arrancou a epiderme com sangue<br /><br />Toda quente de pêlos malhados<br /><br />E se foi para os campos da lua<br /><br />Desvestido da própria nudez<br /><br />Implorando a epiderme da lua.<br /><br />Fui então fantasiado a travesti<br /><br />Arrojado na escala do mundo<br /><br />E não houve lugar para mim.<br /><br />Não sou cão, não sou gente - sou Eu.<br /><br />Iroquês, Iroquês, que fizeste?<br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Edgard Braga <br /><br />(Maceió AL 1897 - São Paulo SP 1985) <br /><br />Concluiu a Faculdade de Medicina, na Universidade do Brasil, Rio de Janeiro RJ, por volta de 1922. Nas décadas seguintes, se dedicou à profissão de médico obstetra. Foi membro-correspondente da Academia de Alagoana de Letras e publicou seu primeiro livro de poesia, A Senha, em 1935. Seguiram-se Odes (1951), Inútil Acordar (1953), Extralunário (1960), Algo (1971) e Desbragada (1984), entre outros. Em 1984 ocorreu em São Paulo SP exposição promovida pelo Centro Cultural São Paulo, com o lançamento do livro Desbragada. A poesia de Edgar Braga é concretista. Sobre sua obra, o poeta Augusto de Campos, também concretista, escreveu, no poema Algo sobre Algo: "o que espanta em edgard braga é a liberdade total da criação. que faz com que, perto de seus poemas, as mais ousadas tentativas de atualização ou rejuvenescimento de certos poetas da velha geração pareçam tímidos ensaios de recauchutagem." <br /><br />[máquina como se fosse fazer costura] <br />máquina como se fosse fazer costura <br />nada mais fazer do que signos <br />)p-preto o-preto e-preto <br />um-m <br />um-a <br />tudo diferente de um coser qualquer <br />que se fechasse em pontilhado branco <br /> <br />máquina como quem quer desfazer <br />costura de coisas no papel branco <br />entre um hífen ponte de meditação <br /> <br />dedos-dados dados em lanço de pontos pretos <br />um lenço um cachimbo <br />em preto-branco espaço <br />remate do poema <br />branco<br /><br />[na minha luva de ouro] <br /><br />na minha luva de ouro na minha luva de prata <br />escondi raças e povos escondi minha vergonha <br /> <br />na minha luva de pedra <br />escondi a minha morte <br /> <br />na minha luva de ferro <br />escondi o meu silêncio <br /> <br />cavaleiro cavaleiro cavaleiro cavaleiro <br />joga tua luva ao vento joga tua luva ao vento <br /> <br />cavaleiro cavaleiro <br />joga tua luva ao vento <br /> <br />cavaleiro cavaleiro <br />guarda tua luva <br />e <br />vento<br /> mal me quer <br />se mal me queres <br />mal <br />se mal me queres <br />bem mal queres <br />bem mal <br />se bem <br />queres <br /><br />bem bem me queres <br />se bem mal queres <br />se bem bem mal queres <br /><br />mal me queres <br />mal me quer <br />bem bem queres <br /><br /> <br />mal me quer <br />mal me queres <br /><br />bem <br />me <br /><br />se <br /><br /><br /><br /> <br /><br /> <br /><br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Haroldo de Campos<br /><br />(São Paulo SP, 1929 - idem 2003) <br /><br />Formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo em 1952, mesmo ano em que fundava, com Augusto de Campos e Décio Pignatari, o Grupo Noigandres, de poesia concretista. Em 1956 e 1957 participou do lançamento oficial da Poesia Concreta na I Exposição Nacional de Arte Concreta, no MAM/SP e no saguão do MEC/RJ. Em 1958, publicaria o Plano-Piloto Para Poesia Concreta, com Augusto de Campos e Décio Pignatari. Nos anos seguintes trabalhou como tradutor, crítico e teórico literário, além de Professor Titular do curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Literatura na PUC/SP. Em 1992 foi laureado com o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do Ano; em 1999 o Prêmio Jabuti de Poesia foi conferido para seu livro Crisantempo: No Espaço Curvo Nasce Um (1998). Considerado o "mais barroco" dos concretistas, Haroldo de Campos tem sua obra poética intimamente ligada ao movimento. A crença em uma "crise no verso" o levou ao experimentalismo, à busca de novas formas de estruturação e sintaxe, em curtos poemas-objeto ou longos poemas em prosa.<br /><br />HIERÓGLIFO PARA MÁRIO SCHENBERG <br />o olhar transfinito do mário<br /><br />nos ensina<br /><br />a ponderar melhor a indecifrada<br /><br />equação cósmica<br /><br />cinzazul<br /><br />semicerrando verdes<br /><br />esse olhar<br /><br />nos incita a tomar o sereno<br /><br />pulso das coisas<br /><br />a auscultar<br /><br />o ritmo micro -<br /><br />macrológico da matéria<br /><br />a aceitar<br /><br />o spavento della materia (ungaretti)<br /><br />onde kant viu a cintilante lei das estrelas<br /><br />projetar-se no céu interno da ética<br /><br />na estante de mário<br /><br />física e poesia coexistem<br /><br />como asas de um pássaro -<br /><br />espaço curvo -<br /><br />colhidas pela têmpera absoluta de volpi<br /><br />seu marxismo zen<br /><br />é dialético<br /><br />e dialógico<br /><br />e deixa ver que a sabedoria<br /><br />pode ser tocável como uma planta<br /><br />que cresce das raízes e deita folhas<br /><br />e viça<br /><br />e logo se resolve numa flor de lótus<br /><br />de onde<br /><br />- só visível quando damos conta -<br /><br />um bodisatva nos dirige seu olhar transfinito.<br /><br />***<br /><br />céu: pistilos<br /><br />faíscas do sagrado <br />sob um ponteiro de diamante<br /><br />escrever no vidro <br />sentenças de vidro<br /><br />in <br />visíveis<br /><br />Transideração <br /><br />Ungaretti Conversa com Leopardi <br /><br />Um leão: ruivando arde -- <br /><br />na voz do leão -- Leopardi <br /><br />(céu noturno em Recanati) <br /><br />virando constelação: <br /><br />Odi, Melisso... E o leão <br /><br />resgata a um fausto de estrelas <br /><br />caídas, a lua jamais cadente <br /><br />e a Ursa, magas centelhas. <br /><br />Depois, o leão (a Leopardi <br /><br />tendo dado o que lhe cabe) <br /><br />passa a medir o infinito <br /><br />ou desmedi-lo: ao longe <br /><br />daquela estrela (tão longe) <br /><br />ao longe daquela estrela. <br /><br />Fragmento de Galáxias:<br /><br />isto não é um livro de viagem pois a viagem não é um livro de viagem pois um livro de viagem quando muito advirto é um baedeker de epifanias quando pouco solerto é uma epifania em baedeker pois zimbórios de ouro duma ortodoxia igreja russobizantina encravada em genebra na descida da route de malagnout demandando o centro da cidade através entrevista visão de cidadevelha e canais se pode casar porquenão com os leões chineses que alguém que padrefrade viajor de volta de que viagem peregrinagem a orientes missões ensinou a esculpir na entrada esplanada do convento de são francisco paraíba do oirte na entrada empedrada refluindo de oito bocas de portasportais em contidos logo espraiados degraus estendais de pedra e joão pessoa sob a chuva de verão não era uma ilha de gauguin morenando nos longes paz paraísea num jambo de sedas e cabelos ao vento pluma plúmea no verão bochorno e sentado num café<br /> circuladô de fulô <br />circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie <br />porque eu não posso guiá e viva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá <br /><br />soando como um shamisen e feito apenas com um arame <br />tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no <br />pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais megera miséria física e doendo doendo como um prego na palma da mão um ferrugem prego cego na <br />palma espalma da mão coração exposto como um nervo <br />tenso retenso um renegro prego cego durando na palma <br />polpa da mão ao sol circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá <br />o povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do sol circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre que me ensinou já não dá ensinamento circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu <br /><br />Provença : Motz e L. Son <br /><br />contra uma luz <br /><br />sem falha <br /><br />o olho <br /><br />se esmeralda <br /><br />o olho <br /><br />(contra uma luz <br /><br />sem falha) <br /><br />se esmigalha <br /><br />o olho de esmeralda <br /><br />à luz: migalha <br /><br />(que esmigalha) <br /><br />e concrescia a luz <br /><br />som de cigarra <br /><br />Rima Petrosa - 1 <br /><br />uma bruteza <br /><br />límpida <br /><br />que em nada se detém <br /><br />uma crueza <br /><br />lâmina <br /><br />que se apaga em ninguém <br /><br />uma lindeza <br /><br />nítida <br /><br />que a si mesma sustém <br /><br />uma ingênua fereza <br /><br />feita só de desdém <br /><br />uma dura candura <br /><br />que nem loba que nem <br /><br />uma beleza absurda <br /><br />sem porquê nem porém <br /><br />um negar-se tão rente <br /><br />que soa um shamisen <br /><br />uma causa perdida <br /><br />um não vem que não tem<br /> <br /><br /> <br /><br /> <br /><br /> <br /><br />âmago do ômega <br />no <br /> <br />â mago do ô mega <br />um olho <br />um ouro <br />um osso <br />sob <br />essa pe( vide de vácuo) nsil <br />pétala p a r p a d e a n d o cilios <br />pálpebra <br />amêndoa do vazio pecíolo: a coisa <br />da coisa <br />da coisa <br /><br />um duro <br />tão oco <br />um osso <br />tão centro <br /><br />um corpo <br />cristalino a corpo <br />fechado em seu alvor <br /> <br />Z ero <br />ao <br />ênit <br />nitescendo ex-nihilo <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />José Lino Grunewald <br /><br />(Rio de Janeiro RJ 1931 - idem 2000) <br /><br />Começou a colaborar na imprensa em 1956; nas décadas seguintes, se destacou como crítico literário e, principalmente, de cinema. Até 1993, produziu textos para o Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Globo, Tribuna da Imprensa, Última Hora, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e Folha de S. Paulo. Em 1957 tornou-se membro do grupo Noigandres, ao lado de Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Ronaldo Azevedo. Em 1969, organizou e traduziu A Idéia do Cinema, com ensaios de Walter Benjamin, Eisenstein, Godard, Merlean-Ponty, entre outros. Como crítico de cinema, foi o divulgador da obra de Jean-Luc Godard no Brasil. Nas décadas de 1980 e 1990 traduziu inúmeras obras, entre elas Os Cantos, de Ezra Pound, e Grandes Poetas da Língua Inglesa do Século XIX, pelas quais recebeu prêmios Jabuti de Tradução de Obra Literária em 1987 e 1989. Publicou, em 1987, o livro de poesia Escreviver, de estética concretista. Segundo os críticos Iumna Maria Simon e Vinicius de Avila Dantas, "o que José Lino Grünewald diz a respeito do cinema de Jean-Luc Godard vale para sua poesia: 'O ato de filmar (poetar) é a experiência, e, por isso, viver a vida é viver o cinema (a poesia)'. A busca de sentido existencial através da substantivação das palavras, num movimento circular de repetição, é o que singulariza boa parte de sua poesia."<br /><br />As Alienações, 1964/1985 <br />1 <br />nos conventos fala-se em marx <br />nas casernas fala-se em deus <br /> <br />entre a cruz e a espada paira deus <br />entre farda e batina paira marx <br /> <br />a deus o que é de deus <br />a marx o que é de marx <br /> <br />deus ex marxina <br /> <br />2 <br /> <br />pingue pongue <br />pingue pongue <br />sábado domingo <br /> <br />pingue pongue <br />pingue pongue <br />puteiro missa <br /> <br />pingue pongue <br />pingue pongue <br />vagina hóstia <br /> <br />pinguepongue <br />sabadomingo <br />pumisseteiro <br />vaginóstia <br /><br /> 3 (haikais/1964) <br /> <br />oh, "paus d'arco em flor" <br />bashô! 1o. de abril <br />pau-brasil em dor <br /> <br />faunos verde-oliva <br />desfilam na linha dura <br />os phalos falidos <br /> <br />marcha da família <br />com deus pela liberdade <br />masturbam-se hienas <br /> <br />desemprego em minas <br />porta-aviões bebe bilhões <br />oh, minas gerais! <br /> <br />filhas de maria <br />cardeal contra o monoquíni <br />filhas de biquíni <br /> <br />família unida <br />reza & rouba sempre unida <br />oh, tempos de paz! <br /> <br />reformas de base <br />a grama já amarelece <br />bashô, nada muda <br /> <br />castelo de cartas <br />castelo mal-assombrado <br />brasil branco, branco <br /><br /> <br /><br />1 <br />2 2 <br /><br />3 3 3 <br /><br />4 4 4 4 <br /><br />c i n c o<br /><br />f o r m a<br /><br />r e f o r m a<br /><br />d i s f o r m a<br /><br />t r a n s f o r m a<br /><br />c o n f o r m a<br /><br />i n f o r m a<br /><br />f o r m a<br /> r i o <br />r i o<br /><br />r i o<br /><br />r a i o<br /><br />r a i o<br /><br />r a i o<br /><br />r a i o<br /><br />r a i o<br /><br />r i o<br /><br />r i o<br /><br />r i o <br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Mário Faustino<br /><br />O Poeta Mário Faustino<br /><br />Por: Gilfrancisco<br /><br /> <br />A rigor, Mário Faustino dispensa apresentação, mas nunca é demais insistir na sua permanente atualidade e no seu alto nível de realização literária. Jornalista, poeta, tradutor, crítico literário e advogado provisionado, foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Escritores do Pará,pertenceu ao Conselho Nacional de Economistas, ocupou o cargo de chefia na superintendência do Plano de Valorização Econômica da amazonas. Mário Faustino dos Santos e Silva, nasceu em Teresina-Piauí, a 22 de outubro de 1930.<br /><br />Em 1956, passa a morar no Rio de Janeiro, sobrevivendo como professor de várias matérias na Escola de Administração Pública da fundação Getúlio Vargas. Concomitantemente, passou a assinar a página Poesia-Experiência do suplemento Dominical do Jornal do Brasil, mantida de 23 de setembro de 1956 até 1º de novembro de 1958. Somente em 1977 parte destes artigos foram compilados pelo crítico Benedito Nunes e publicados em livro, prefaciado por esse mesmo crítico, pela Editora Perspectiva.<br /><br />Em 1959, Mário Faustino foi incorporado ao quadro de redatores do Jornal do Brasil. Em dezembro do mesmo ano, segue para os Estados Unidos para trabalhar na ONU, onde permanece até 1962. Tendo estagiado em vários jornais da América do Norte, Faustino falava fluentemente o inglês, francês, alemão, italiano e espanhol. Realizou importantes trabalhos de interpretação para o Museu de Arte Moderna e continuava ligado a ONU como diretor-adjunto do Centro de informações, em Nova Iorque.<br /><br />Ainda em 1962, foi editor-geral da Tribuna de Imprensa por curto período. Sua vida, bruscamente interrompida a 27 de novembro daquele mesmo ano, quando o avião em que viajava com destino ao México, em missão jornalística, chocou-se com uma montanha em Las Palmas, subúrbio de Lima-Peru, depois de uma escala.<br /><br />Suplemento Literário - Matutino fundado no Rio de Janeiro a 9 de abril de 1891, o Jornal do Brasil sofreu a primeira reforma gráfica na gestão de Rui Barbosa, que trocou o "z" de Brasil por um "s". Seis meses depois da fundação, Joaquim Nabuco assumiu a chefia da redação e escreveu uma série de artigos (As ilusões republicanas e outras ilusões) que provocaram o empastelamento do jornal.<br /><br />Em 1892, a sua propriedade passou a uma sociedade anônima. A 21 de maio de 1893, Rui Barbosa assumiu a direção de redação, que logo foi forçado a deixar, asilando-se na embaixada do Chile. O jornal passou, então, à propriedade de Fernando Mendes de Almeida, transferindo-se em 1918, para o conde Ernesto Pereira Carneiro, que o conservou até a morte em 1954, quando o controle foi assumido por sua viúva, Maurina Dunshee de Abranches Pereira. Após sua morte em 1983, assumiu a presidência M. F. do Nascimento Brito.<br /><br />Mesmo o Jornal do Brasil, tradicional periódico especializado em anúncios classificados, não escaparia ao surto da modernidade desenvolvimentista do país. Desta forma, é que, em 1958, sob a responsabilidade do poeta maranhense Odylo Costa Filho (1914-1979), o JB passa por mais uma mudança.<br /><br />De layout novo, teve em Reinaldo Jardim e no artista plástico Amílcar de Castro os operadores da modificação, que sob as ordens do signo construtivista, direcionavam-se para a criação de novo modelo gráfico-visual.<br /><br />Lançado a 3 de junho de 1956 o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil -SDJB, a primeira fase foi preparatória e anunciadora da reformulação geral de 1958. A segunda fase, que terminaria na virada de 1959 para 1960, sentiu o ápice de importância, ao padronizar sua diagramação e pauta em torno das questões da vanguarda concretista, da ensaística e da tradução de inéditos textos críticos acerca da literatura e das artes.<br /><br />A página-seção Livro de Ensaios - dividida em boxes que representam páginas de livros - surge para prover essa rápida atualização, revelam críticos como Augusto e Haroldo de Campos, José Lino Grünewald, Ferreira Gullar, Oliveira Bastos que manifestam os seus pontos de vista. Ezra Pound, Mallarmé, Sartre, Segui Eisenstein, Henry James, Beckett, Apollinaire freqüentam, semanalmente as edições dominicais.<br /><br />As mudanças aceleradas do SDJB no espaço jornalístico e da cena cultural brasileira, chegam através da arrojada página Poesia-Experiência, dirigida por Mário Faustino entre 1956 e 1958, que teve atuação importante como poeta e crítico de poesia, é um autor de feição moderna, renovador e aperfeiçoador de formas herdadas da tradição, inventor de formas novas flexíveis.<br /><br />Eclética como o próprio suplemento, propõe-se promover os novos poetas e operar uma ampla revisão da poesia antiga, mostrando o moderno que existe tanto em Lucrécio quanto em Mallarmé. O lema, estampado na página, é "Repetir para aprender, criar para renovar". Esse credo de origem poundiana "make it new", capar de re-atualizar as formas do passado em função das exigências do presente, praticado com rigor por Mário Faustino, reveste-se de um tom grave que é próprio das diversas experiências artísticas da década.<br /><br />Aprendendo e ensinando foi o principal papel da página Poesia-Experiência, uma peça importante na construção da modernidade. Pois Mário Faustino cumpriu esse papel com eficiência, estampando "exemplos" a cada semana em suas páginas, preenchendo os requisitos de racionalidade e economia para atingir a "eficácia" poética.<br /><br />Poesia - Poeta circular, que se reescreve retomando os mesmos temas fundamentais, e que também reescreve a poesia, Mário Faustino tem uma obra pontilhada de referências. Não é só um dos maiores poetas contemporâneos brasileiros, mas também um poeta por excelência, modelar, por ser o poeta da experiência do poético, da essência da poesia como participação e amplicidade, como um complexo emaranhado de textos e biografias.<br /><br />Considerado um poeta de síntese e de confluência de linguagem, cultor de versos inventivos, é detentor de um estilo pessoal e inconfundível, que confere unidade e esta variedade de tratamentos formais,fazendo com que cada poema sempre remeta ao conjunto, à totalidade de sua obra. Ou seja, como seu vasto campo de referências ampliando o próprio espaço da linguagem, Mário Faustino, nos remete a um tema que continua atual e presente.<br /><br />Não há dúvida que o concretismo provocou uma quase radical transformação na maneira como Mário Faustino abordava o poema. E é fácil verificar tal transformação ao se confrontar os trabalhos do seu primeiro livro publicado em 1955, O Homem e sua Hora. Com suas últimas produções, reunindo toda a experiência de um poeta que se sobressai por sua cultura extraordinária e um alto sentido de pesquisa da linguagem, elevando o verso àquela tensão decorrente de um conceito de que a poesia é concentração, é alta voltagem.<br /><br />Sobre essa influência, Mário Faustino esclarece: " Não, não sou concretista. Minha formação é muito parecida com a dos poetas Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos e José Lino Grünewald, mas certos aspectos e maneira dessa mesma formação, bem como, e sobretudo, certas condições pessoais, nos colocaram e nos colocam em posição bem distintas, por mais que pareçam aproximadas aos menos informados. Os poetas acima são nitidamente inventores, no sentido poundiano, por mais que este ou aquele venha a ser também um mestre".[1] Portanto, a poesia de Mário Faustino é leitura obrigatória a todo jovem que se disponha a exercer uma vocação para a qual não basta o talento, a inteligência, a experiência.<br /><br />Livro Póstumo - Foi através do poeta/ensaísta Haroldo de Campos (1929-2003) que fiquei sabendo da existência dos originais da "Evolução da Poesia Brasileira", publicado por Mário Faustino em Poesia-Experiência, Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, entre 31 de agosto a 21 de dezembro de 1958, em dez números consecutivos, que se encontrava em poder do escritor e professor da Universidade Federal do Pará, Benedito Nunes.<br /><br />Em outubro de 1989, na qualidade de pesquisador da Fundação Casa de Jorge Amado e participante do X Encontro Nacional dos Estudantes de Letras -ENEL (9 a 13 de outubro), que se realizaria em Belém do Pará, recebi incumbência do editor desta instituição, Claudius Portugal, para convencer Benedito Nunes a ceder os originais para publicação em forma de livro, a ser incluído na coleção Casa de Palavra da FCJA.<br /><br />Em 5 de janeiro de 1990, recebo a primeira correspondência de Benedido Nunes, a cerca dos originais: "... está sendo datilografado o trabalho de Mário Faustino - Evolução da Poesia Brasileira - para os cadernos. Quando estiver pronto, um amigo meu lhe enviará. Sigo amanhã para os Estados Unidos: Universidad de Vanderbilt, Nashville, Tennessee - Department of Spanish and Portuguese". Vinte meses depois, receberia a segunda correspondência, datada de 20 de setembro de 1991: "Eis o escrito de Mário Faustino. Estou à sua disposição para esclarecer qualquer dúvida e, se for o seu interesse, apesar da demora na remessa, mando-lhe cordial abraço".<br /><br />Graças a minha insistência de baiano, após várias conversas por telefone e cartas, consegui finalmente os originais do poeta/tradutor Mário Faustino, que foram publicados em noite de autógrafo de 23 de agosto de 1993, com a presença do próprio Benedito Nunes. Evolução da Poesia Brasileira, reúne treze artigos de Mário Faustino, que de cada vez ocupava uma página inteira, ou seja, o espaço todo do folhetim Poesia-Experiência.<br /><br />Como bem observou o crítico Benedito Nunes "A crítica de Mário Faustino, escrevi na apresentação de Evolução da Poesia Brasileira que a Fundação Casa de Jorge Amado acaba de editar, é uma crítica que fez de um legado poético a resguardar; anti-tradicionalista, pela sua inclinação inventiva e descobridora, ai ao encontro do presente, pondo-se a serviço da inovação que abriria essa linguagem para as suas possibilidades futuras. Talvez se possa falar nos mesmos termos, como um misto de tradicionalismo e anti-tradicionalismo - o que tentarei fazer aqui - da poesia de Mário Faustino, da obra poética desse crítico de poesia". [2]<br /><br />Obras - Embora falecido aos 32 anos de idade os apreciadores de sua obra estranham a raridade de menções para com o legado qualitativo deste poeta e crítico aguçado, tanto em relação à nossa literatura, quanto em relação as literaturas inglesa e francesa, das quais foi grande estudioso. Mário Faustino deixou-nos ricos ensinamentos, igualmente no campo jornalístico ao colaborar, desde os dezesseis anos de idade (1946), numa coluna diária no jornal Província do Pará, e na Folha do Norte, onde foi diretor de redação e publicou seus primeiros poemas e traduções da poesia norte-americana, inglesa e francesa.<br /><br />Ao viajar por longo período pelos Estados Unidos da América estudioso obsessivo como era, pode colher intensa experiência literária e vivencial que, conseqüentemente, ajudou-o a elaborar uma poesia densa e elevada, forjando-o crítico audaz e seguro.<br /><br />Mário Faustino continua sendo subestimado, pois raros foram os artigos publicados até hoje a respeito deste poeta. Após sua morte foram publicados cinco livros que ajudam a revelar sua grandeza: O Homem e sua Hora, Ed. Civilização Brasileira, 1955; Cinco ensaios sobre Mário Faustino, ( texto: Assis Brasil), Série Coletânea, nº2, Editora GRD, 1964; Poesia de Mário Faustino, antologia poética (textos: Paulo Francis e Benedito Nunes), Editora Civilização Brasileira,1966; Poesia-Experiência, (Texto: Benedito Nunes) Editora Perspectiva, coleção Debates nº136, 1977; Poesia Completa-Poesia Traduzida (texto: Benedito Nunes), Editora Max Limonad, 1985; Os Melhores Poemas de Mário Faustino (texto: Benedito Nunes), Global, 1985, 2ª ed. 1988; Ezra Pound- Poesia (tradução Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, J. L. Grünewald e Mário Faustino), Editora da Universidade de Brasília, 1983; Evolução da Poesia Brasileira (texto:Benedito Nunes), Fundação Casa de Jorge Amado, 1993.<br /><br />Dentre os trabalho publicados sobre o poeta Mário Faustino, destacamos: Mário Faustino-Poeta e Crítico, J.L. Grünewald. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 15.dez.1962; Cinco ensaios sobre poesia, J.L. Grünewald. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 19.dez.1964; O poeta e sua vida, Haroldo Maranhão. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 9.jul.1966; Introdução ao Fim, Benedido Nunes. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 9.jul.1966; A poesia de Mário Faustino, Foed Castro Chamma. Rio, Leitura, Ano XXIV, nº106/107 -mai/jun. 1966; Últimos Livros, Wilson Martins. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 14.jan.1967; A Nova Literatura-II Poesia, Assis Brasil (A tradição da Imagem). CEA/MEC, 1975; Oficina da Palavra - Ensaio intertextual, Ivo Barbieri. Rio de Janeiro, Edições Achiamé, 1979; Tradição & Modernidade em Mário Faustino, Albeniza de Carvalho e Chaves (tese de Mestrado em teoria literária). Piauí, 1986; Mário Faustino ou a importância órfica, Haroldo de Campos. Cadernos de Teresina, Ano I, nº1 abr.1987; Uma peça na construção da Modernidade, Antônio Manoel Nunes. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil (idéias Ensaios), 7. jan.1990; Mário Faustino, J.L. Grünewald. Folha de São Paulo, 2.dez.1992; Literatura Piauiense no Vestibular, Alcenor Candeira Filho. Parnaíba -Piauí, 1995; Poesia de Mão Dupla, Benedito Nunes. Salvador, Exu Documento - Fundação Casa de Jorge Amado, 1997; Mário Faustino, poeta e crítico subestimado, Carlos Frydman. São Paulo, O Escritor, fev.1998. <br /><br /><br />[1] Mário Faustino, Poesia-Experiência. São Paulo, Editora Perspectiva, col. Debates nº136, p. 279, 1977.<br /><br />[2] Benedito Nunes, Poesia de Mão Dupla. Salvador, Exu Documento, Fundação Casa de Jorge Amado, 1997.<br /><br />Aracaju. Jornal da Cidade, 25/26.dez.2003.<br /><br />Sobre o autor:<br /><br />Gilfrancisco é jornalista, pesquisador, escritor, com alguns trabalhos publicado, e professor universitário.<br /><br />E-mail: gilfrancisco.santos@ig.com.br <br /><br />Fonte: http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=251&rv=Literatura<br /><br />A Reconstrução <br /><br />(...) <br />E nos irados olhos das bacantes <br />Finalmente descubro quem procuro. <br />Não eras tu, Poesia, meras armas, <br />Pura consolação de minha luta. <br />Nem eras tu, Amor, meu camarada, <br />Às costas me levando, após a luta. <br />Procurava-me a mim, e ora me encontro <br />Em meu reflexo, nos olhares duros <br />De ébrios que me fuzilam contra o muro <br />E o perdão de meu canto. Sobre as nuvens <br />Defronte mãos escrevem numa estranha, <br />Antiquíssima língua estas palavras <br />Que afinal compreendo: toda vida <br />É perfeita. E pungente, e raro, e breve <br />É o tempo que me dão para viver-me, <br />Achado e precioso. Mas saúdo <br />Em mim a minha paz final. Metade <br />Infame de homem beija os pés da outra <br />Diva metade, enquanto esta se curva <br />E retribui, humilde, a reverência. <br />A serpente tritura a própria cauda, <br />O círculo de fogo se devora, <br />Arrasta-se o cadáver bem ferido <br />Para fora do palco: <br />este cevado <br />Bezerro justifica minha vida.<br /><br />Alba <br /><br />Enquanto o rouxinol à sua amante <br />Gorjeia a noite inteira e o dia entrante <br />Com meu amor observo arfante <br />Cada flor, <br />Cada odor, <br />Até que o vigilante lá da torre <br />Grite: <br />"Levanta patife, sus! <br />Vê, já reluz <br />A luz <br />Depressa, corre,<br /><br />Carpe Diem <br /><br />Que faço deste dia, que me adora? <br />Pegá-lo pela cauda, antes da hora <br />Vermelha de furtar-se ao meu festim? <br />Ou colocá-lo em música, em palavra, <br />Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra? <br />Força é guardá-lo em mim, que um dia assim <br />Tremenda noite deixa se ela ao leito <br />Da noite precedente o leva, feito <br />Escravo dessa fêmea a quem fugira <br />Por mim, por minha voz e minha lira. <br /> <br />(Mas já de sombras vejo que se cobre <br />Tão surdo ao sonho de ficar -- tão nobre. <br />Já nele a luz da lua -- a morte -- mora, <br />De traição foi feito: vai-se embora.)<br /><br />Romance <br /><br />Para as Festas da Agonia <br />Vi-te chegar, como havia <br />Sonhado já que chegasses: <br />Vinha teu vulto tão belo <br />Em teu cavalo amarelo, <br />Anjo meu, que, se me amasses, <br />Em teu cavalo eu partira <br />Sem saudade, pena, ou ira; <br />Teu cavalo, que amarraras <br />Ao tronco de minha glória <br />E pastava-me a memória, <br />Feno de ouro, gramas raras. <br />Era tão cálido o peito <br />Angélico, onde meu leito <br />Me deixaste então fazer, <br />Que pude esquecer a cor <br />Dos olhos da Vida e a dor <br />Que o Sonho vinha trazer. <br />Tão celeste foi a Festa, <br />Tão fino o Anjo, e a Besta <br />Onde montei tão serena. <br />Que posso, Damas, dizer-vos <br />E a vós, Senhores, tão servos <br />De outra Festa mais terrena -- <br /> <br />Não morri de mala sorte, <br />Morri de amor pela Morte.<br /><br />Sextina: Altaforte <br /><br />Loquitur: En Bertrans de Born <br />Dante Alighieri pôs este homem no inferno por <br />tratar-se de um provocador de desordens. <br /> <br />Eccovi! <br />Julgai-o vós! <br />Será que o desenterrei de novo? <br /> <br />A cena é em seu castelo, Altaforte. "Papiols" é seu jongleur. <br />"O Leopardo", a device de Ricardo Coeur de Lion. <br /> <br /> <br />I <br /> <br />Tudo prós diabos! Todo este Sul já fede a paz. <br />Anda cachorro bastardo, Papiols! À música! <br />Só sei que vivo se ouço espadas que ressoam. <br />Mas ah! Com os estandartes ouro e roxo e vair se opondo <br />Por cima de amplos campos encharcados de carmim <br />-- Uiva meu peito então doido de júbilo. <br /> <br />II <br /> <br />Se é verão quente, encho-me então de júbilo <br />Quando a tormenta mata a horrenda paz, <br />E do negro os relâmpagos reboam seu carmim, <br />E os tremendos trovões rugindo-me, que música! <br />Doidos ventos e nuvens ululando e se opondo <br />Céu rachando e teus gládios, Deus, ressoam. <br /> <br />III <br /> <br />Praza aos diabos de novo que ressoem! <br />E os corcéis na batalha relinchando de júbilo, <br />De espigão na peitarra às peitarras se opondo: <br />Melhor o tremor de uma hora do que meses de paz <br />Mesa gorda, fêmeas, vinho, débil música! <br />Não há vinho como o sangue e seu carmim! <br /> <br />IV <br /> <br />E adoro ver o sol subir sangue-e-carmim. <br />E contemplo-lhe as lanças que no escuro ressoam <br />E transborda meu peito, dilatado de júbilo, <br />E rasgo minha boca de ágil música <br />Quando o vejo zombar, desafiando a paz, <br />Seu poder solitário contra o escuro se opondo. <br /> <br />V <br /> <br />Esse que teme a guerra e se acocora opondo- <br />Se ao que digo, não tem sangue carmim, <br />Só serve pra feder em feminina paz <br />Longe donde as aspadas trazem glória e ressoam <br />-- Vossa morte, cadelas, recrudesce-me o júbilo <br />E por isso encho o ar com minha música. <br /> <br />VI <br /> <br />Papiols! papiols! Música, música! <br />Não há som como espadas às espadas se opondo, <br />Não há grito como na batalha o júbilo, <br />Cotovelos e espadas gotejando carmim, <br />Quando contra "O Leopardo" nossas cargas ressoam. <br />Deus maldiga quem quer que grite "Paz!" <br /> <br />VII <br /> <br />Que a música da espada os cubra de carmim! <br />Praza ao diabo, de novo, espadas que ressoam! <br />Praza ao diabo apagar o pensamento "Paz!"<br /><br />O SOM DESTA PAIXÃO ESGOTA A SEIVA<br /><br />O som desta paixão esgota a seiva <br />Que ferve ao pé do torso; abole o gesto <br />De amor que suscitava torre e gruta, <br />Espada e chaga à luz do olhar blasfemo; <br />O som desta paixão expulsa a cor <br />Dos lábios da alegria e corta o passo <br />Ao gamo da aventura que fugia; <br />O som desta paixão desmente o verbo <br />Mais santo e mais preciso e enxuga a lágrima <br />Ao rosto suicida, anula o riso; <br />O som desta paixão detém o sol, <br />O som desta paixão apaga a lua. <br />O som desta paixão acende o fogo <br />Eterno que roubei, que te ilumina <br />A face zombeteira e me arruína. <br /> <br />O MÊS PRESENTE<br /><br />Sinto que o mês presente se assassina, <br />As aves atuais nascem mudas <br />E o tempo na verdade tem domínio <br />Sobre homens nus ao sul de luas curvas. <br />Sinto que o mês presente me assassina, <br />Corro despido atrás de cristo preso, | <br />Cavalheiro gentil que me abomina <br />E atrai-me ao despudor da luz esquerda <br />Ao beco de agonia onde me espreita <br />A morte espacial que me ilumina. <br />Sinto que o mês presente me assassina <br />E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas <br />De apóstolos marujos que me arrastam <br />Ao longo da corrente onde blasfemas <br />Gaivotas provam peixes de milagre. <br />Sinto que o mês presente me assassina, <br />Há luto nas rosáceas desta aurora, <br />Há sinos de ironia em cada hora <br />(Na libra escorpiões pesam-me a sina) <br />Há panos de imprimir a dura face <br />A força do suor de sangue e chaga. <br />Sinto que o mês presente me assassina, <br />Os derradeiros astros nascem tortos <br />E o tempo na verdade tem domínio <br />Sobre o morto que enterra os próprios mortos. <br />O tempo na verdade tem domínio. <br />Amen, amen vos digo, tem domínio. <br />E ri do que desfere verbos, dardos <br />De falso eterno que retornam para <br />Assassinar-nos num mês assassino.<br /><br />SONETO <br /><br />Necessito de um ser, um ser humano <br />Que me envolva de ser <br />Contra o não ser universal, arcano <br />Impossível de ler <br /><br />À luz da lua que ressarce o dano <br />Cruel de adormecer <br />A sós, à noite, ao pé do desumano <br />Desejo de morrer. <br /><br />Necessito de um ser, de seu abraço <br />Escuro e palpitante <br />Necessito de um ser dormente e lasso <br /><br />Contra meu ser arfante: <br />Necessito de um ser sendo ao meu lado <br />Um ser profundo e aberto, um ser amado. <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Pedro Xisto<br /><br />(Limoeiro PE, 1901 - São Paulo SP, 1987) <br /><br />Cursou a Faculdade de Direito, em Recife PE, por volta de 1918 e 1922. Nos anos de 1950, publicou haicais, poemas concretos e criações visuais na revista concretista Invenção. Seu primeiro livro de poesia, Haikais & Concretos, foi publicado em 1960. Aliou a produção poética ao exercício das profissões de procurador do Estado e adido cultural em embaixadas brasileiras nos EUA, Canadá e Japão. Sua obra poética inclui os livros 8 Haikais de Pedro Xisto (1960), Caderno de Aplicação (1966), Logogramas (1966), a e i o u; ou Vogaláxia (1966), Caminho (1979) e Partículas (1984). Os críticos Vinicius de Avila Dantas e Iumna Maria Simon afirmaram, sobre a obra de Xisto: "não tendo participado do Grupo Noigandres, Pedro Xisto aderiu ao Concretismo no final da década de 50, através da preocupação comum com a cultura oriental e com a Física Moderna. Sua obra está cindida entre acompanhar as últimas experiências concretas e produzir um verdadeiro manancial de haikais (...).".<br /><br />Haicai <br />1<br /><br />ao lado da lua<br /><br />neste pinheiro vetusto<br /><br />uma ave noturna<br /><br />2<br /><br />abro após as sombras<br /><br />de par em par as vidraças:<br /><br />alçam vôo as pombas<br /> <br /><br /> <br /><br />astro star <br />ostra rats<br /> <br />"Labirinto" (acima) e "Longing" (abaixo)<br /><br /><br /><br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Mário Chamie <br /><br />(Cajobi SP, 1933) <br /><br />Fez o curso de Direito entre 1952 e 1956. Seu primeiro livro de poesia, Espaço Inaugural, foi lançado em 1955. Seguiram-se O Lugar (1957) e Os Rodízios (1958). Em 1962, publicou Lavra Lavra, que instaurou o "poema-praxis"; o livro recebeu o Prêmio Jabuti, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. No mesmo ano, fundou a revista Praxis. Realizou, em 1963, conferências sobre a nova literatura brasileira na Itália, Alemanha, Suíça, Líbano, Egito e Síria. Também fez palestras sobre problemas da vanguarda artística nas universidades de Nova York, Colúmbia, Harvard, Princeton, Wisconsin e Califórnia, nos Estados Unidos, em 1964. Recebeu, em 1977, o Prêmio de Poesia, pelo livro Objeto Selvagem, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Entre 1979 e 1983 foi Secretário Municipal de Cultura de São Paulo SP, atuando na criação da Pinacoteca Municipal, do Museu da Cidade de São Paulo e do Centro Cultural São Paulo. Sua obra poética inclui os livros Now Tomorrow Mau (1963), Planoplenário (1974), Objeto Selvagem (1977), Natureza da Coisa (1993) e Caravana Contrária (1998), entre outros. Mário Chamie é um dos principais nomes da tendência de vanguarda surgida no final dos anos de 1950, como dissidência do Concretismo: a poesia-práxis. Para a crítica Nelly Novaes Coelho, "altamente consciente da revolução da linguagem que se vinha operando na poesia brasileira desde as conquistas de 22, Chamie assume-a como 'revolução do conhecimento' e como 'consciência política'.". <br /><br />O OPERÁRIO <br />3. <br /><br />-- Sobre os meus ombros <br />recebo a carga <br />e chego à fábrica. <br />Com minha farda, <br />limpa de graxa, <br />eu movimento <br />o descompasso <br />da vossa estrada. <br />Agito a máquina, <br />registro a marca <br />de meu trabalho. <br />Sobre os meus ombros <br />nada desaba. <br />Produzo o tempo, <br />produzo o uso <br />dos meus comparsas. <br />Não danço, <br />embora mexa meu corpo <br />que vai e volta. <br />Mexo meus braços, <br />seguro a mola <br />que me assalta <br />atrás da porta <br />da vossa tática. <br /><br />OS DARDOS DA PALAVRA<br /><br />Os boiardos<br /><br />não são<br /><br />os goliardos,<br /><br />mas usam<br /><br />as mesmas<br /><br />armas do seu passado:<br /><br />uns atacam<br /><br />com as armas<br /><br />dos seus dardos,<br /><br />outros com o dardo<br /><br />de suas palavras<br /><br />de enfado.<br /><br />Frente a frente,<br /><br />boiardos e goliardos<br /><br />não são clementes<br /><br />com os seus<br /><br />dardos trocados.<br /><br />Nem rangem<br /><br />os dentes<br /><br />se se cruzam<br /><br />em seus caminhos<br /><br />outros cruzados<br /><br />e suas armas<br /><br />para cima e para os lados.<br /> Apenas, <br />perto ou distantes,<br /><br />com seus exércitos<br /><br />montados,<br /><br />boiardos e goliardos<br /><br />são os cossacos<br /><br />constantes<br /><br />de nossos futuros passados.<br /><br />Nobreza de Hermógenes<br /><br />Hermógenes guardava selos, <br />estranhas marcas do seu passado. <br />Erguia contra a luz <br />finos prefis do sobressalto. <br /> <br />No sono, <br />sua efígie ficava entre o soluço <br />e o susto. <br />Sua heráldica de brasões <br />e moedas cunhadas dormia <br />entre os achados que já perdia. <br /> <br />Hermógenes colava selos <br />no álbum da memória. <br />(Mesmo os de vagos palácios <br />e castelos, seus fantasmas). <br /> <br />Um dia perdeu-se a estampa <br />de sua estirpe em sua Casa. <br />No sonho, <br />um guia de capa e espada <br />abriu as portas de sua morada: <br />- nenhuma pista, nenhum vestígio <br />por entre urnas, colchões <br />rasgados, arcas sob as escadas. <br /> <br />Hermógenes guardava selos. <br />Hoje só guarda a casaca <br />de aristocrata <br />entre a estampa do seu sigilo <br />e os portões do seu asilo <br />sem cão de guarda.<br /><br />Forca na força<br /><br />1.<br /><br />a palavra na boca<br /><br />na boca a palavra: força<br /><br />a força da palavra força<br /><br />a palavra rolha fofa<br /><br />a rolha fofa sem força<br /><br />a palavra em folha solta<br /><br />a força da palavra forca<br /><br />a palavra de boca em boca<br /><br />na boca a palavra forca<br /><br />a palavra e sua força<br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Wlademir Dias Pino<br /><br />Wlademir Dias Pino lança o movimento Intensivista (Cuiabá, 1951) por "um simbolismo duplo, para além das imagens" e realiza "Poemas Desmontáveis" (1952). Dedica-se à pintura (1952/55). Publica o livro-poema A Ave (1956). Lança, com outros poetas, a Poesia Concreta (1956/57), expondo Sólida (Poema Espacional). Na fase concreta cria, entre outros, Sólida (1960), versão para participação, Elementos(1962), poemas para o computador, e Numéricos (1964), poema problema. Em 1967 é co-fundador do Poema/Processo: expõe Brasil Meia-Meia, codificação para colagem; Metacódigo; e poemas-conceitos. Entre 1967 e 1972, edita revistas, participa das exposições e de vários "happenings" do movimento. Participa da IX e da XIV Bienais de São Paulo (1967/77). Em 1971, publica Processo: Linguagem e Comunicação. Em 1974, A Marca e o Logotipo Brasileiros, primeiro volume de enciclopédia visual em progresso, com outros volumes editados nos anos 90. Lecionou Comunicação Visual nas universidades Católica, Rio (1973/78) e Federal de Mato Grosso, Cuiabá (1978/93).<br /><br /> <br /><br /> <br /><br /> <br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Wlademir Dias Pino<br /><br />Wlademir Dias Pino lança o movimento Intensivista (Cuiabá, 1951) por "um simbolismo duplo, para além das imagens" e realiza "Poemas Desmontáveis" (1952). Dedica-se à pintura (1952/55). Publica o livro-poema A Ave (1956). Lança, com outros poetas, a Poesia Concreta (1956/57), expondo Sólida (Poema Espacional). Na fase concreta cria, entre outros, Sólida (1960), versão para participação, Elementos(1962), poemas para o computador, e Numéricos (1964), poema problema. Em 1967 é co-fundador do Poema/Processo: expõe Brasil Meia-Meia, codificação para colagem; Metacódigo; e poemas-conceitos. Entre 1967 e 1972, edita revistas, participa das exposições e de vários "happenings" do movimento. Participa da IX e da XIV Bienais de São Paulo (1967/77). Em 1971, publica Processo: Linguagem e Comunicação. Em 1974, A Marca e o Logotipo Brasileiros, primeiro volume de enciclopédia visual em progresso, com outros volumes editados nos anos 90. Lecionou Comunicação Visual nas universidades Católica, Rio (1973/78) e Federal de Mato Grosso, Cuiabá (1978/93).<br /><br /> <br /><br /> <br /><br /> <br /><br /><br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Moacy Cirne<br /><br />Moacy Cirne, poeta e cangaceiro, nasceu em Jardim do Seridó, interior do Rio Grande do Norte, em 1943. Tendo se mudado para Caicó, cidade vizinha, em 1945, aprendeu a ler com O Tico-Tico e a se interessar por literatura através da Edição Maravilhosa, da EBAL. Torcedor do Fluminense (RJ) e do ABC (RN), morou em Natal e hoje reside no Rio de janeiro, fevereiro e março. Publicou seu primeiro livro em 1970: "A explosão criativa dos quadrinhos".<br /><br />Antes, em 1967, participara da fundação do poema/processo. Ingressou na Universidade Federal Fluminense, no Departamento de Comunicação Social, em 1971. Entre seus livros de poesia,"Objetos verbais" (1979), "Cinema Pax" (1983), "Docemente experimental" (1988), "Continua na próxima" (1994) e "Rio Vermelho" (1998). Edita a "folha porreta" Balaio desde 1986.<br /><br />A PRAÇA <br />joão da paraíba oferece a alguém, <br />com <br />muito <br />amor <br />e carinho, <br />"lábios que beijei", na voz de orlando silva<br /><br />NÃO BEBA<br /><br />ESTE POEMA<br /><br />você <br />pode <br />virar <br />um<br /><br />VAMPIRO<br /><br />RECOMEÇO<br /><br />Sei do sonho:<br /><br />procuro tua sombra na<br /><br />penumbra<br /><br />da memória líquida<br /><br />e nada encontro.<br /><br />A lua não é vermelha<br /><br />não é violeta<br /><br />não é verdecoisa<br /><br />mas<br /><br />os loucos da madrugada<br /><br />anunciam as primeiras águas da manhã.<br /><br />Sei do sonho?<br /><br />Tua sombra pagã<br /><br />é um corpo que me foge<br /><br />das mãos cansadas de espantos<br /><br />e abismos.<br /><br />A árvore sonolenta<br /><br />anoitece os meus delírios.<br /><br />Não te vejo na claridade<br /><br />do silêncio.<br /><br />O sol é um pássaro ferido<br /><br />na solidão<br /><br />de meus gestos de meus gritos<br /><br />e a hora cruviana<br /><br />é uma graviola<br /><br />grávida<br /><br />de aromas e carnes<br /><br />pronta para ser saboreada.<br /><br />Sei.<br /><br />Não foi um sonho.<br /><br />Como encontrar,<br /><br />então,<br /><br />na<br /><br />arquitetura fluvial<br /><br />de meus quereres,<br /> as linhas <br />e curvas<br /><br />de teu corpo barrento-canela?<br /><br />Ah, não! Ah, sim!<br /><br />Existe<br /><br />um<br /><br />grande sertão<br /><br />nas veredas da minha paixão.<br /><br />E eu sei do sonho.<br /><br />Procuro tua sombra líquida<br /><br />e nada encontro. <br /><br />A lua não é verdeluã<br /><br />mas<br /><br />tua sombra pagã<br /><br />anoitece os meus delírios.<br /><br />Como encontrar,<br /><br />sol e solidão,<br /><br />a arquitetura colonial<br /><br />de teu corpo fluvial?<br /><br />Como encontrar,<br /><br />no silêncio de meus gritos,<br /><br />tua sombra teus aromas tuas carnes?<br /><br />Sim,<br /><br />não.<br /><br />Tua memória vermelha<br /><br />é uma sombra grávida<br /><br />de morenezas e reentrâncias<br /><br />azuis.<br /><br />Docemente azuis.<br /><br />Barrentas e azuis.<br /><br /> <br />POEMA FINAL<br /><br />o homem só, <br />velho e cansado, <br />olha para a frente <br />e nada vê. <br />olha para os lados <br />e nada vê. <br />olha para o fim do mundo<br /><br />e nada vê. <br />entre <br />o espanto dos suicidas <br />e <br />o silêncio dos desamados,<br /><br />o homem cansado, <br />velho e só, <br />olha para o poema <br />e nada vê.<br /><br />será <br />que os sinos <br />dobrarão por ele?PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-69135729624363725172009-04-22T11:53:00.000-07:002009-04-28T12:16:06.167-07:00Concretismo<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhQe8O7x5enYjXBocdJ2zqvXLX6YrxiprMWHyqeiYptZy6-FjkpmXvaMsOuD4QNorH8NEWeHUrMt8legnee-N1JL_RzyuMVhn3dSKFSKdVLZzhJ2nNe-0z_3qDx4eMvk1S0t2vWGbY3a3o/s1600-h/CONCRR4.jpg"><img style="float:left; margin:0 10px 10px 0;cursor:pointer; cursor:hand;width: 117px; height: 111px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhQe8O7x5enYjXBocdJ2zqvXLX6YrxiprMWHyqeiYptZy6-FjkpmXvaMsOuD4QNorH8NEWeHUrMt8legnee-N1JL_RzyuMVhn3dSKFSKdVLZzhJ2nNe-0z_3qDx4eMvk1S0t2vWGbY3a3o/s320/CONCRR4.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329823124065038226" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjTgmUjenLpQdt1qg0kVdNvUNbICji8034Kyvi4wfguzuABZvAwnJxumMfSvl8WBgNx5iugaOurX7MZLD0jviPb3huXEbjBdKti7HSoy-n0MMr4cqbkKVtsoNHG5lbJCNyionRf9-IDV34/s1600-h/imagesCA5IVN8A.jpg"><img style="float:left; margin:0 10px 10px 0;cursor:pointer; cursor:hand;width: 124px; height: 101px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjTgmUjenLpQdt1qg0kVdNvUNbICji8034Kyvi4wfguzuABZvAwnJxumMfSvl8WBgNx5iugaOurX7MZLD0jviPb3huXEbjBdKti7HSoy-n0MMr4cqbkKVtsoNHG5lbJCNyionRf9-IDV34/s320/imagesCA5IVN8A.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329823125537334642" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhytbE57S6WgpYIyq_ZhKDE1YD4EUI15h6k64UtGTDIAx4bylQGGIr1iepE9PdoU-jrRfrsar_q6HWaPrXcNY8dDEtUDFw7C7keXy3rzh4nEcEqI08judJ1LGlg3jYO_bZzkDsFMMGFaq8/s1600-h/CONCRETISMO.bmp"><img style="float:left; margin:0 10px 10px 0;cursor:pointer; cursor:hand;width: 320px; height: 240px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhytbE57S6WgpYIyq_ZhKDE1YD4EUI15h6k64UtGTDIAx4bylQGGIr1iepE9PdoU-jrRfrsar_q6HWaPrXcNY8dDEtUDFw7C7keXy3rzh4nEcEqI08judJ1LGlg3jYO_bZzkDsFMMGFaq8/s320/CONCRETISMO.bmp" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329823121035373954" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhEIxO76Hu6xvZzzvVxmi50a6Dcrg5UxxPf2WnW-OCe4wSy1nMLUIKK0PFteM6WuLiicHqTvo0IbrjECBE83tXVxy2mGJ3DVb_YLhIMcaS__48lMReUsmnV9X-gdjnXHElmVQ7RG0CqnLs/s1600-h/CONCRE5.jpg"><img style="float:left; margin:0 10px 10px 0;cursor:pointer; cursor:hand;width: 123px; height: 120px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhEIxO76Hu6xvZzzvVxmi50a6Dcrg5UxxPf2WnW-OCe4wSy1nMLUIKK0PFteM6WuLiicHqTvo0IbrjECBE83tXVxy2mGJ3DVb_YLhIMcaS__48lMReUsmnV9X-gdjnXHElmVQ7RG0CqnLs/s320/CONCRE5.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329823118653796594" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgcOHE-KKh61Vo_Vtag3SK67lPImGJ32ZJ53wHX9IGnfAB0v8d46rGb6QX6Gj35iaevbLEuaA1PX6ZgP-WDC8z-N5UWK7rIgA0gV2z675Ij6xpxDNH8xOXcc2bSXz8Fh_gwM1r6tswF6-M/s1600-h/CONCR2.jpg"><img style="float:left; margin:0 10px 10px 0;cursor:pointer; cursor:hand;width: 130px; height: 130px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgcOHE-KKh61Vo_Vtag3SK67lPImGJ32ZJ53wHX9IGnfAB0v8d46rGb6QX6Gj35iaevbLEuaA1PX6ZgP-WDC8z-N5UWK7rIgA0gV2z675Ij6xpxDNH8xOXcc2bSXz8Fh_gwM1r6tswF6-M/s320/CONCR2.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329823119092831586" /></a><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Arnaldo Antunes <br /><br />(São Paulo SP 1960) <br /><br />Cursou Linguística na Universidade de São Paulo - USP, mas não chegou a concluir a faculdade; em 1980 já fazia parte da banda Performática, com a qual lançaria um álbum em 1981. No ano seguinte passaria a integrar o grupo de rock Titãs, cujos sete álbuns ganhariam vários discos de ouro e platina. Em 1983 sairia seu álbum de poemas visuais Ou E; seguiram-se várias participações em exposições, como Poesiaevidência, na PUC/SP e Palavra Imágica, no MAC/USP. Em 1992 lançou o vídeo, livro e cd Nome, projeto multimídia com poesia, música e animação em computador. Em 1995 saiu o cd Ninguém; em 1996, foi a vez do cd O Silêncio, com participação de Carlinhos Brown e Chico Science. Dois anos depois, lançou o cd Um Som. Seu último livro, 40 Escritos (2000), é uma coletânea de artigos, prefácios e releases de CDs. A obra poética de Antunes, influenciada pelo concretismo de Haroldo e Augusto de Campos e pelos hai-kais de Paulo Leminsky, explora sons, imagens, movimento, e questiona as convenções linguísticas ao utilizar a linguagem de novas mídias na construção de seus versos.<br /><br />[Estou cego a todas as músicas,] <br />Estou cego a todas as músicas, <br />Não ouvi mais o cantar da musa. <br />A dúvida cobriu a minha vida <br />Como o peito que me cobre a blusa. <br />Já a mim nenhuma cena soa <br />Nem o céu se me desabotoa. <br />A dúvida cobriu a minha vida <br />Como a língua cobre de saliva <br />Cada dente que sai da gengiva. <br />A dúvida cobriu a minha vida <br />Como o sangue cobre a carne crua, <br />Como a pele cobre a carne viva, <br />Como a roupa cobre a pele nua. <br />Estou cego a todas as músicas. <br />E se eu canto é como um som que sua.<br /><br />As Coisas <br /><br />As coisas têm peso, <br />massa, volume, tama- <br />nho, tempo, forma, cor, <br />posição, textura, dura- <br />ção, densidade, cheiro, <br />valor, consistência, pro- <br />fundidade, contorno, <br />temperatura, função, <br />aparência, preço, desti- <br />no, idade, sentido. As <br />coisas não têm paz.<br /><br />Dorme <br /><br />PÁRA-RAIO, DORME <br />TEMPORAL, DORME <br /> <br />VAGA-LUME, DORME <br />ABAJUR, DORME <br /> <br />AMBULÂNCIA, DORME <br />CAMBURÃO, DORME <br /> <br />TRAVESSEIRO, DORME <br />MEU AMOR, DORME <br /> <br />LUIZ GONZAGA, DORME <br />LUZ DO SOL, DORME <br /> <br />SENTINELA, DORME <br />GENERAL, DORME <br /> <br />CARAVELA, DORME <br />CARNAVAL, DORME <br /> <br />CANDELÁRIA, DORME <br />CANDOMBLÉ, DORME <br /> <br />CAMBALHOTA, DORME <br />BAMBOLÊ, DORME <br /> <br />PENSAMENTO, DORME <br />SENSAÇÃO, DORME <br /> <br />AMANHÃ, DORME<br /><br />Imagem <br /> Lavar as Mãos <br />Uma <br />Lava outra, lava uma <br />Lava outra, lava uma <br />Mão <br />Lava outra, lava uma <br />Mão <br />Lava outra, lava uma <br />Depois de brincar no chão de areia <br />a tarde inteira <br />Antes de comer, beber, lamber, <br />pegar na mamadeira <br />Lava uma <br />Lava outra, lava uma <br />Lava outra, lava uma <br />A doença vai embora junto com a <br />sujeira <br />Verme, bactéria, manda embora <br />embaixo da torneira <br />Água uma <br />Água outra, água uma <br />Água outra, água uma <br />Na segunda, terça, quarta, quinta <br />e sexta-feira <br />Na beira da pia, tanque, bica, <br />bacia, banheira <br />Lava uma <br />Mão <br />Mão <br />Mão <br />Mão <br />Água uma <br />Lava outra, lava uma <br />Lava outra, lava uma<br /><br />O Macaco <br /><br />o macaco se parece com o homem <br />a macaca parece mulher <br />algumas pessoas se parecem <br />outras pessoas se parecem com outras <br />as macacas de auditório são meninas <br />as crianças parecem micos <br />os papagaios falam o que pessoas falam <br />mas não parecem pessoas <br />para os cegos os papagaios se parecem pessoas <br />o homem veio do macaco <br />mas antes o macaco veio do cavalo <br />e o cavalo veio do gato <br />então o homem veio do gato <br />o gato veio do coelho <br />que veio do sapo que veio do lagarto <br />então o homem veio do lagarto <br />o lagarto veio da borboleta <br />que veio do pássaro que veio do peixe <br />pessoas se parecem com peixes <br />quando nadam <br />pessoas se parecem com peixes <br />quando olham o vazio <br />pessoas se parecem com peixes <br />quando ainda não nasceram <br />pessoas se parecem com peixes <br />quando fazem bolas de chiclete <br />macacos desaparecem <br />peixes parecem peixes <br />micróbios não aparecem <br />todos se parecem <br />pois se diferem<br /><br />Tudo <br /><br />Todas as coisas <br />do mundo não <br />cabem numa <br />idéia. Mas tu- <br />do cabe numa <br />palavra, nesta <br />palavra tudo.<br /><br />[Pensamento]<br /><br />Pensamento vem de fora <br />e pensa que vem de dentro, <br />pensamento que expectora <br />o que no meu peito penso. <br />Pensamento a mil por hora, <br />tormento a todo momento. <br />Por que é que eu penso agora <br />sem o meu consentimento? <br />Se tudo que comemora <br />tem o seu impedimento, <br />se tudo aquilo que chora <br />cresce com o seu fermento; <br />pensamento, dê o fora, <br />saia do meu pensamento. <br />Pensamento, vá embora, <br />desapareça no vento. <br />E não jogarei sementes <br />em cima do seu cimento.<br /> <br />palavra lê <br />paisagem contempla <br />cinema assiste <br />cena vê <br />cor enxerga <br />corpo observa <br />luz vislumbra <br />vulto avista <br />alvo mira <br />céu admira <br />célula examina <br />detalhe nota <br />imagem fita <br />olho olha <br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Augusto de Campos<br /><br />(São Paulo SP, 1931) <br /><br />Formou-se em Direito na Universidade de São Paulo, em 1953 , mesmo ano em que compôs a série de poemas em cores Poetamenos, primeira manifestação da poesia concreta brasileira. Na época, ele já integrava o Grupo Noigandres, do qual fora fundador, com Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Em 1956 e 1957, participaria do lançamento oficial da Poesia Concreta na I Exposição Nacional de Arte Concreta, no MAM/SP e no saguão do MEC/RJ; em 1958, publicaria o Plano-Piloto para Poesia Concreta, em co-autoria com Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Nos anos seguintes, publicou estudos críticos e teóricos, além de traduções e poesia. Em 1984, iniciou sua produção de poemas em computador e novos meios tecnológicos. Suas obras poéticas mais recentes são Despoesia e Poema Avulso (1994). Poeta fundador do movimento concretista, Augusto de Campos utiliza recursos visuais, acústicos, de movimento e de disposição espacial dos versos em diferentes suportes de leitura para propor uma nova sintaxe estrutural para a poesia. <br /><br />Diálogo a Dois <br />"A Angústia, Augusto, esse leão de areia"<br /><br />Décio Pignatari<br /><br />A Angústia, Augusto, esse leão de areia <br />Que se abebera em tuas mãos de tuas mãos <br />E que desdenha a fronte que lhe ofertas <br />(Em tuas mãos de tuas mãos por tuas mãos) <br />E há de chegar paciente ao nervo dos teus olhos, <br />É o Morto que se fecha em tua pele? <br />O Expulso do teu corpo no teu corpo? <br />A Pedra que se rompe dos teus pulsos? <br />A Areia areia apenas mais o vento? <br /><br />A Angústia, Pignatari, Oleiro de Ouro, <br />Esse leão de areia digo este leão <br />(Ah! O longo olhar sereno em que nos empenhamos, <br />Que é como se eu me estrangulasse com os olhos) <br />De sangue: <br />Eu mesmo, além do espelho. <br /><br />O Vivo<br /><br />Não queiras ser mais vivo do que és morto. <br />As sempre-vivas morrem diariamente <br />Pisadas por teus pés enquanto nasces. <br />Não queiras ser mais morto do que és vivo. <br />As mortas-vivas rompem as mortalhas <br />Miram-se umas nas outras e retornam <br />(Seus cabelos azuis, como arrastam o vento!) <br />Para amassar o pão da própria carne. <br />Ó vivo-morto que escarnecem as paredes, <br />Queres ouvir e falas. <br />Queres morrer e dormes. <br />Há muito que as espadas <br />Te atravessando lentamente lado a lado <br />Partiram tua voz. Sorris. <br />Queres morrer e morres. <br /><br />Pós Tudo<br /><br /><br /><br /> Sim <br />sim<br /><br />poeta<br /><br />infin<br /><br />itesi<br /><br />(tmese)<br /><br />mal<br /><br />(em tese)<br /><br />existe<br /><br />e se mani-<br /><br />(ainda)<br /><br />festa<br /><br />nesta<br /><br />ani<br /><br />(triste)<br /><br />mal<br /><br />espécie<br /><br />que lhe é<br /><br />funesta<br /><br />se<br /><br />tem<br /><br />fome<br /><br />come<br /><br />fama<br /><br />como<br /><br />cama<br /><br />leão<br /><br />come<br /><br />ar<br /><br />al<br /><br />moço<br /><br />antes<br /><br />doce<br /><br />do<br /><br />intes<br /><br />tino<br /><br />fino<br /><br />ao<br /><br />gr<br /><br />osso<br /><br />mais<br /><br />baixo<br /><br />que<br /><br />o<br /><br />lixeiro<br /><br />que<br /><br />cheira<br /><br />a<br /><br />lixo<br /><br />mas<br /><br />ao<br /><br />menos<br /><br />tem <br /><br />cheiro<br /><br />o<br /><br />poeta<br /><br />lagartixa<br /><br />no<br /><br />escuro<br /><br />bicho<br /><br />inodoro<br /><br />e<br /><br />solitário<br /><br />em<br /><br />seu<br /><br />labor<br /><br />atório<br /><br />sem<br /><br />sol<br /><br />ou<br /><br />sal<br /><br />ário <br /> <br /><br />poesia concreta: um manifesto <br /><br />- a poesia concreta começa por assumir uma responsabilidade total perante a linguagem: aceitando o pressuposto do idioma histórico como núcleo indispensável de comunicação, recusa-se a absorver as palavras com meros veículos indiferentes, sem vida sem personalidade sem história - túmulos-tabu com que a convenção insiste em sepultar a idéia.<br /><br />- o poeta concreto não volta a face às palavras, não lhes lança olhares oblíquos: vai direto ao seu centro, para viver e vivificar a sua facticidade.<br /><br />- o poeta concreto vê a palavra em si mesma - campo magnético de possibilidades - como um objeto dinâmico, uma célula viva, um organismo completo, com propriedades psicofisicoquímicas tacto antenas circulação coraação: viva.<br /><br />- longe de procurar evadir-se da realidade ou iludí-la, pretende a poesia concreta, contra a introspecção autodebilitante e contra o realismo simplista e simplório, situar-se de frente para as coisas, aberta, em posição de realismo absoluto.<br /><br />- o velho alicerce formal e silogístico-discursivo, fortemente abalado no começo do século, voltou a servir de escora às ruínas de uma poética comprometida, híbrido anacrônico de coração atômico e couraça medieval.<br /><br />- contra a organização sintática perspectivista, onde as palavras vêm sentar-se como "cadáveres em banquete", a poesia concreta opõe um novo sentido de estrutura, capaz de, no momento histórico, captar, sem desgaste ou regressão, o cerne da experiência humana poetizável.<br /><br />- mallarmé (un coup de dés-1897), joyce (finnegans wake), pound (cantos-ideograma), cummings e, num segundo plano, apollinaire (calligrammes) e as tentativas experimentais futuristasdadaistas estão na raíz do novo procedimento poético, que tende a imporse à organização convencional cuja unidade formal é o verso (livre inclusive).<br /><br />- o poema concreto ou ideograma passa a ser um campo relacional de funções.<br /><br />o núcleo poético é posto em evidencia não mais pelo encadeamento sucessivo e linear de versos, mas por um sistema de relações e equilíbrios entre quaisquer parses do poema.<br /><br />- funções-relações gráfico-fonéticas ("fatores de proximidade e semelhança") e o uso substantivo do espaço como elemento de composição entretêm uma dialética simultânea de olho e fôlego, que, aliada à síntese ideogrâmica do significado, cria uma totalidade sensível "verbivocovisual", de modo a justapor palavras e experiência num estreito colamento fenomenológico, antes impossível.<br /><br />- POESIA-CONCRETA: TENSÃO DE PALAVRAS-COISAS NO ESPAÇO-TEMPO.<br /><br />(publicado originalmente na revista ad - arquitetura e decoração, são paulo, novembro/dezembro de 1956, n° 20) <br /><br /> <br />Poemóbiles, "Abre" (acima) e "Incomunicable" (abaixo)<br /><br /><br /> <br />Morituro<br /> <br /><br /> <br /><br /><br />Código<br /> <br />Greve, página inferior.<br /> <br /><br /> <br /><br />Pop Olho <br /><br /> <br /><br /> <br />Pó do Cosmos<br /> <br /><br /> <br /><br />Psiu <br />Reflete<br /> <br /><br /> <br /><br />Tensão<br /> Tudo está dito <br /><br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Décio Pignatari <br /><br />(Jundiaí SP 1927) <br /><br />Publicou, em 1949, os poemas Noviciado e Unha e Carne na Revista Brasileira de Poesia. Na época, integrava o Clube de Poesia, em São Paulo SP, liderado por poetas e críticos da Geração de 45. Em 1952 fundou o Grupo Noigandres, com Augusto de Campos e Haroldo de Campos, que publicou cinco antologias poéticas. Entre 1956 e 1957 participou do lançamento oficial da Poesia Concreta na Iº Exposição Nacional de Arte Concreta, no MAM/SP e no saguão do MEC/RJ. Publicou, em 1958, o Plano-Piloto para Poesia Concreta, em co-autoria com Augusto de Campos e Haroldo de Campos, em Noigandres n.4. Nas décadas seguintes, traduziu várias obras em francês, inglês e russo. Foi um dos criadores da editora e da revista Invenção, lançada em 1962 como veículo da Poesia Concreta. Em 1964 lançou o Manifesto do Poema-Código ou Semiótico, com Luiz Angelo Pinto. Foi membro-fundador da Associação Internacional de Semiótica, em Paris (França), em 1969. Nas décadas de 1980 e 1990 colaborou em vários periódicos, entre os quais a Folha de S. Paulo, e foi professor de Semiótica e Comunicação da FAU/USP. Publicou vários livros de ensaios, entre eles Cultura Pós-Nacionalista (1998). Sua obra poética inclui os livros Carrossel (1950), Exercício Findo (1958), Poesia pois é Poesia (1977) e Poesia pois é Poesia, 1950/1975. Poetc, 1976/1986 (1986). Décio Pignatari, criador do poema-código e semiótico, é um dos principais nomes da poesia Concreta. <br /><br />beba coca cola <br />babe cola <br />beba coca <br />babe cola caco <br />caco <br />cola <br />c l o a c a <br />ra terra ter<br /><br />rat erra ter<br /><br />rate rra ter<br /><br />rater ra ter<br /><br />raterra terr<br /><br />araterra ter<br /><br />raraterra te<br /><br />rraraterra t<br /><br />erraraterra<br /><br />terraraterra<br /><br />caviar o prazer<br /><br />prazer o porvir<br /><br />porvir o torpor<br /><br />contemporalizar<br /><br />abrir as portas<br /><br />abrir as pernas<br /><br />abrir os corpos<br /><br />um <br />movi <br />mento <br />compondo <br />além <br />da <br />nuvem <br />um <br />campo <br />de <br />combate<br /><br /> <br />mira <br />gem <br />ira <br />de <br />um <br />horizonte <br />puro <br />num <br />mo <br />mento <br />vivo <br /> O Lobisomem <br />O amor é para mim um Iroquês<br /><br />De cor amarela e feroz catadura<br /><br />Que vem sempre a galope, montado<br /><br />Numa égua chamada Tristeza.<br /><br />Ai, Tristeza tem cascos de ferro<br /><br />E as esporas de estranho metal<br /><br />Cor de vinho, de sangue, e de morte,<br /><br />Um metal parecido com ciúme.<br /><br />(O Iroquês sabe há muito o caminho e o lugar<br /><br />Onde estou à mercê:<br /><br />É uma estrada asfaltada, tão solitária quanto escura,<br /><br />Passando por entre uns arvoredos colossais<br /><br />Que abrem lá em cima suas enormes bocas de silêncio e solidão).<br /><br />Outro dia eu senti um ladrido<br /><br />De concreto batendo nos cascos:<br /><br />Era o meu Iroquês que chegava<br /><br />No seu gesto de anti-Quixote.<br /><br />Vinha grande, vestido de nada<br /><br />Me empolgou corações e cabelos<br /><br />Estreitou as artérias nas mãos<br /><br />E arrancou minha pele sem sangue<br /><br />E partiu encoberto com ela<br /><br />Atirando-me os poros na cara.<br /><br />E eu parti travestido de Dor,<br /><br />Dor roubada da placa da rua<br /><br />Ululando que o vento parasse<br /><br />De açoitar minha pele de nervos.<br /><br />Veio o frio com olhos de brasa<br /><br />Jogou olhos em todo o meu corpo;<br /><br />Encontrei uma moça na rua,<br /><br />Implorei que me desse sua pele<br /><br />E ela disse, chorando de mágua,<br /><br />Que era mãe, tinha seios repletos<br /><br />E a filhinha não gosta de nervos;<br /><br />Encontrei um mendigo na rua<br /><br />Moribundo de fome e de frio:<br /><br />"Dá-me a pele, mendigo inocente,<br /><br />Antes que Ela te venha buscar."<br /><br />Respondeu carregado por Ela:<br /><br />"Me devolves no Juízo Final?"<br /><br />Encontrei um cachorro na rua:<br /><br />"Ó cachorro, me cedes tua pele?"<br /><br />E ele, ingênuo, deixando a cadela<br /><br />Arrancou a epiderme com sangue<br /><br />Toda quente de pêlos malhados<br /><br />E se foi para os campos da lua<br /><br />Desvestido da própria nudez<br /><br />Implorando a epiderme da lua.<br /><br />Fui então fantasiado a travesti<br /><br />Arrojado na escala do mundo<br /><br />E não houve lugar para mim.<br /><br />Não sou cão, não sou gente - sou Eu.<br /><br />Iroquês, Iroquês, que fizeste?<br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Edgard Braga <br /><br />(Maceió AL 1897 - São Paulo SP 1985) <br /><br />Concluiu a Faculdade de Medicina, na Universidade do Brasil, Rio de Janeiro RJ, por volta de 1922. Nas décadas seguintes, se dedicou à profissão de médico obstetra. Foi membro-correspondente da Academia de Alagoana de Letras e publicou seu primeiro livro de poesia, A Senha, em 1935. Seguiram-se Odes (1951), Inútil Acordar (1953), Extralunário (1960), Algo (1971) e Desbragada (1984), entre outros. Em 1984 ocorreu em São Paulo SP exposição promovida pelo Centro Cultural São Paulo, com o lançamento do livro Desbragada. A poesia de Edgar Braga é concretista. Sobre sua obra, o poeta Augusto de Campos, também concretista, escreveu, no poema Algo sobre Algo: "o que espanta em edgard braga é a liberdade total da criação. que faz com que, perto de seus poemas, as mais ousadas tentativas de atualização ou rejuvenescimento de certos poetas da velha geração pareçam tímidos ensaios de recauchutagem." <br /><br />[máquina como se fosse fazer costura] <br />máquina como se fosse fazer costura <br />nada mais fazer do que signos <br />)p-preto o-preto e-preto <br />um-m <br />um-a <br />tudo diferente de um coser qualquer <br />que se fechasse em pontilhado branco <br /> <br />máquina como quem quer desfazer <br />costura de coisas no papel branco <br />entre um hífen ponte de meditação <br /> <br />dedos-dados dados em lanço de pontos pretos <br />um lenço um cachimbo <br />em preto-branco espaço <br />remate do poema <br />branco<br /><br />[na minha luva de ouro] <br /><br />na minha luva de ouro na minha luva de prata <br />escondi raças e povos escondi minha vergonha <br /> <br />na minha luva de pedra <br />escondi a minha morte <br /> <br />na minha luva de ferro <br />escondi o meu silêncio <br /> <br />cavaleiro cavaleiro cavaleiro cavaleiro <br />joga tua luva ao vento joga tua luva ao vento <br /> <br />cavaleiro cavaleiro <br />joga tua luva ao vento <br /> <br />cavaleiro cavaleiro <br />guarda tua luva <br />e <br />vento<br /> mal me quer <br />se mal me queres <br />mal <br />se mal me queres <br />bem mal queres <br />bem mal <br />se bem <br />queres <br /><br />bem bem me queres <br />se bem mal queres <br />se bem bem mal queres <br /><br />mal me queres <br />mal me quer <br />bem bem queres <br /><br /> <br />mal me quer <br />mal me queres <br /><br />bem <br />me <br /><br />se <br /><br /><br /><br /> <br /><br /> <br /><br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Haroldo de Campos<br /><br />(São Paulo SP, 1929 - idem 2003) <br /><br />Formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo em 1952, mesmo ano em que fundava, com Augusto de Campos e Décio Pignatari, o Grupo Noigandres, de poesia concretista. Em 1956 e 1957 participou do lançamento oficial da Poesia Concreta na I Exposição Nacional de Arte Concreta, no MAM/SP e no saguão do MEC/RJ. Em 1958, publicaria o Plano-Piloto Para Poesia Concreta, com Augusto de Campos e Décio Pignatari. Nos anos seguintes trabalhou como tradutor, crítico e teórico literário, além de Professor Titular do curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Literatura na PUC/SP. Em 1992 foi laureado com o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do Ano; em 1999 o Prêmio Jabuti de Poesia foi conferido para seu livro Crisantempo: No Espaço Curvo Nasce Um (1998). Considerado o "mais barroco" dos concretistas, Haroldo de Campos tem sua obra poética intimamente ligada ao movimento. A crença em uma "crise no verso" o levou ao experimentalismo, à busca de novas formas de estruturação e sintaxe, em curtos poemas-objeto ou longos poemas em prosa.<br /><br />HIERÓGLIFO PARA MÁRIO SCHENBERG <br />o olhar transfinito do mário<br /><br />nos ensina<br /><br />a ponderar melhor a indecifrada<br /><br />equação cósmica<br /><br />cinzazul<br /><br />semicerrando verdes<br /><br />esse olhar<br /><br />nos incita a tomar o sereno<br /><br />pulso das coisas<br /><br />a auscultar<br /><br />o ritmo micro -<br /><br />macrológico da matéria<br /><br />a aceitar<br /><br />o spavento della materia (ungaretti)<br /><br />onde kant viu a cintilante lei das estrelas<br /><br />projetar-se no céu interno da ética<br /><br />na estante de mário<br /><br />física e poesia coexistem<br /><br />como asas de um pássaro -<br /><br />espaço curvo -<br /><br />colhidas pela têmpera absoluta de volpi<br /><br />seu marxismo zen<br /><br />é dialético<br /><br />e dialógico<br /><br />e deixa ver que a sabedoria<br /><br />pode ser tocável como uma planta<br /><br />que cresce das raízes e deita folhas<br /><br />e viça<br /><br />e logo se resolve numa flor de lótus<br /><br />de onde<br /><br />- só visível quando damos conta -<br /><br />um bodisatva nos dirige seu olhar transfinito.<br /><br />***<br /><br />céu: pistilos<br /><br />faíscas do sagrado <br />sob um ponteiro de diamante<br /><br />escrever no vidro <br />sentenças de vidro<br /><br />in <br />visíveis<br /><br />Transideração <br /><br />Ungaretti Conversa com Leopardi <br /><br />Um leão: ruivando arde -- <br /><br />na voz do leão -- Leopardi <br /><br />(céu noturno em Recanati) <br /><br />virando constelação: <br /><br />Odi, Melisso... E o leão <br /><br />resgata a um fausto de estrelas <br /><br />caídas, a lua jamais cadente <br /><br />e a Ursa, magas centelhas. <br /><br />Depois, o leão (a Leopardi <br /><br />tendo dado o que lhe cabe) <br /><br />passa a medir o infinito <br /><br />ou desmedi-lo: ao longe <br /><br />daquela estrela (tão longe) <br /><br />ao longe daquela estrela. <br /><br />Fragmento de Galáxias:<br /><br />isto não é um livro de viagem pois a viagem não é um livro de viagem pois um livro de viagem quando muito advirto é um baedeker de epifanias quando pouco solerto é uma epifania em baedeker pois zimbórios de ouro duma ortodoxia igreja russobizantina encravada em genebra na descida da route de malagnout demandando o centro da cidade através entrevista visão de cidadevelha e canais se pode casar porquenão com os leões chineses que alguém que padrefrade viajor de volta de que viagem peregrinagem a orientes missões ensinou a esculpir na entrada esplanada do convento de são francisco paraíba do oirte na entrada empedrada refluindo de oito bocas de portasportais em contidos logo espraiados degraus estendais de pedra e joão pessoa sob a chuva de verão não era uma ilha de gauguin morenando nos longes paz paraísea num jambo de sedas e cabelos ao vento pluma plúmea no verão bochorno e sentado num café<br /> circuladô de fulô <br />circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie <br />porque eu não posso guiá e viva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá <br /><br />soando como um shamisen e feito apenas com um arame <br />tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no <br />pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais megera miséria física e doendo doendo como um prego na palma da mão um ferrugem prego cego na <br />palma espalma da mão coração exposto como um nervo <br />tenso retenso um renegro prego cego durando na palma <br />polpa da mão ao sol circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá <br />o povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do sol circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre que me ensinou já não dá ensinamento circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu <br /><br />Provença : Motz e L. Son <br /><br />contra uma luz <br /><br />sem falha <br /><br />o olho <br /><br />se esmeralda <br /><br />o olho <br /><br />(contra uma luz <br /><br />sem falha) <br /><br />se esmigalha <br /><br />o olho de esmeralda <br /><br />à luz: migalha <br /><br />(que esmigalha) <br /><br />e concrescia a luz <br /><br />som de cigarra <br /><br />Rima Petrosa - 1 <br /><br />uma bruteza <br /><br />límpida <br /><br />que em nada se detém <br /><br />uma crueza <br /><br />lâmina <br /><br />que se apaga em ninguém <br /><br />uma lindeza <br /><br />nítida <br /><br />que a si mesma sustém <br /><br />uma ingênua fereza <br /><br />feita só de desdém <br /><br />uma dura candura <br /><br />que nem loba que nem <br /><br />uma beleza absurda <br /><br />sem porquê nem porém <br /><br />um negar-se tão rente <br /><br />que soa um shamisen <br /><br />uma causa perdida <br /><br />um não vem que não tem<br /> <br /><br /> <br /><br /> <br /><br /> <br /><br />âmago do ômega <br />no <br /> <br />â mago do ô mega <br />um olho <br />um ouro <br />um osso <br />sob <br />essa pe( vide de vácuo) nsil <br />pétala p a r p a d e a n d o cilios <br />pálpebra <br />amêndoa do vazio pecíolo: a coisa <br />da coisa <br />da coisa <br /><br />um duro <br />tão oco <br />um osso <br />tão centro <br /><br />um corpo <br />cristalino a corpo <br />fechado em seu alvor <br /> <br />Z ero <br />ao <br />ênit <br />nitescendo ex-nihilo <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />José Lino Grunewald <br /><br />(Rio de Janeiro RJ 1931 - idem 2000) <br /><br />Começou a colaborar na imprensa em 1956; nas décadas seguintes, se destacou como crítico literário e, principalmente, de cinema. Até 1993, produziu textos para o Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O Globo, Tribuna da Imprensa, Última Hora, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e Folha de S. Paulo. Em 1957 tornou-se membro do grupo Noigandres, ao lado de Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Ronaldo Azevedo. Em 1969, organizou e traduziu A Idéia do Cinema, com ensaios de Walter Benjamin, Eisenstein, Godard, Merlean-Ponty, entre outros. Como crítico de cinema, foi o divulgador da obra de Jean-Luc Godard no Brasil. Nas décadas de 1980 e 1990 traduziu inúmeras obras, entre elas Os Cantos, de Ezra Pound, e Grandes Poetas da Língua Inglesa do Século XIX, pelas quais recebeu prêmios Jabuti de Tradução de Obra Literária em 1987 e 1989. Publicou, em 1987, o livro de poesia Escreviver, de estética concretista. Segundo os críticos Iumna Maria Simon e Vinicius de Avila Dantas, "o que José Lino Grünewald diz a respeito do cinema de Jean-Luc Godard vale para sua poesia: 'O ato de filmar (poetar) é a experiência, e, por isso, viver a vida é viver o cinema (a poesia)'. A busca de sentido existencial através da substantivação das palavras, num movimento circular de repetição, é o que singulariza boa parte de sua poesia."<br /><br />As Alienações, 1964/1985 <br />1 <br />nos conventos fala-se em marx <br />nas casernas fala-se em deus <br /> <br />entre a cruz e a espada paira deus <br />entre farda e batina paira marx <br /> <br />a deus o que é de deus <br />a marx o que é de marx <br /> <br />deus ex marxina <br /> <br />2 <br /> <br />pingue pongue <br />pingue pongue <br />sábado domingo <br /> <br />pingue pongue <br />pingue pongue <br />puteiro missa <br /> <br />pingue pongue <br />pingue pongue <br />vagina hóstia <br /> <br />pinguepongue <br />sabadomingo <br />pumisseteiro <br />vaginóstia <br /><br /> 3 (haikais/1964) <br /> <br />oh, "paus d'arco em flor" <br />bashô! 1o. de abril <br />pau-brasil em dor <br /> <br />faunos verde-oliva <br />desfilam na linha dura <br />os phalos falidos <br /> <br />marcha da família <br />com deus pela liberdade <br />masturbam-se hienas <br /> <br />desemprego em minas <br />porta-aviões bebe bilhões <br />oh, minas gerais! <br /> <br />filhas de maria <br />cardeal contra o monoquíni <br />filhas de biquíni <br /> <br />família unida <br />reza & rouba sempre unida <br />oh, tempos de paz! <br /> <br />reformas de base <br />a grama já amarelece <br />bashô, nada muda <br /> <br />castelo de cartas <br />castelo mal-assombrado <br />brasil branco, branco <br /><br /> <br /><br />1 <br />2 2 <br /><br />3 3 3 <br /><br />4 4 4 4 <br /><br />c i n c o<br /><br />f o r m a<br /><br />r e f o r m a<br /><br />d i s f o r m a<br /><br />t r a n s f o r m a<br /><br />c o n f o r m a<br /><br />i n f o r m a<br /><br />f o r m a<br /> r i o <br />r i o<br /><br />r i o<br /><br />r a i o<br /><br />r a i o<br /><br />r a i o<br /><br />r a i o<br /><br />r a i o<br /><br />r i o<br /><br />r i o<br /><br />r i o <br /> <br /><br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Mário Faustino<br /><br />O Poeta Mário Faustino<br /><br />Por: Gilfrancisco<br /><br /> <br />A rigor, Mário Faustino dispensa apresentação, mas nunca é demais insistir na sua permanente atualidade e no seu alto nível de realização literária. Jornalista, poeta, tradutor, crítico literário e advogado provisionado, foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Escritores do Pará,pertenceu ao Conselho Nacional de Economistas, ocupou o cargo de chefia na superintendência do Plano de Valorização Econômica da amazonas. Mário Faustino dos Santos e Silva, nasceu em Teresina-Piauí, a 22 de outubro de 1930.<br /><br />Em 1956, passa a morar no Rio de Janeiro, sobrevivendo como professor de várias matérias na Escola de Administração Pública da fundação Getúlio Vargas. Concomitantemente, passou a assinar a página Poesia-Experiência do suplemento Dominical do Jornal do Brasil, mantida de 23 de setembro de 1956 até 1º de novembro de 1958. Somente em 1977 parte destes artigos foram compilados pelo crítico Benedito Nunes e publicados em livro, prefaciado por esse mesmo crítico, pela Editora Perspectiva.<br /><br />Em 1959, Mário Faustino foi incorporado ao quadro de redatores do Jornal do Brasil. Em dezembro do mesmo ano, segue para os Estados Unidos para trabalhar na ONU, onde permanece até 1962. Tendo estagiado em vários jornais da América do Norte, Faustino falava fluentemente o inglês, francês, alemão, italiano e espanhol. Realizou importantes trabalhos de interpretação para o Museu de Arte Moderna e continuava ligado a ONU como diretor-adjunto do Centro de informações, em Nova Iorque.<br /><br />Ainda em 1962, foi editor-geral da Tribuna de Imprensa por curto período. Sua vida, bruscamente interrompida a 27 de novembro daquele mesmo ano, quando o avião em que viajava com destino ao México, em missão jornalística, chocou-se com uma montanha em Las Palmas, subúrbio de Lima-Peru, depois de uma escala.<br /><br />Suplemento Literário - Matutino fundado no Rio de Janeiro a 9 de abril de 1891, o Jornal do Brasil sofreu a primeira reforma gráfica na gestão de Rui Barbosa, que trocou o "z" de Brasil por um "s". Seis meses depois da fundação, Joaquim Nabuco assumiu a chefia da redação e escreveu uma série de artigos (As ilusões republicanas e outras ilusões) que provocaram o empastelamento do jornal.<br /><br />Em 1892, a sua propriedade passou a uma sociedade anônima. A 21 de maio de 1893, Rui Barbosa assumiu a direção de redação, que logo foi forçado a deixar, asilando-se na embaixada do Chile. O jornal passou, então, à propriedade de Fernando Mendes de Almeida, transferindo-se em 1918, para o conde Ernesto Pereira Carneiro, que o conservou até a morte em 1954, quando o controle foi assumido por sua viúva, Maurina Dunshee de Abranches Pereira. Após sua morte em 1983, assumiu a presidência M. F. do Nascimento Brito.<br /><br />Mesmo o Jornal do Brasil, tradicional periódico especializado em anúncios classificados, não escaparia ao surto da modernidade desenvolvimentista do país. Desta forma, é que, em 1958, sob a responsabilidade do poeta maranhense Odylo Costa Filho (1914-1979), o JB passa por mais uma mudança.<br /><br />De layout novo, teve em Reinaldo Jardim e no artista plástico Amílcar de Castro os operadores da modificação, que sob as ordens do signo construtivista, direcionavam-se para a criação de novo modelo gráfico-visual.<br /><br />Lançado a 3 de junho de 1956 o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil -SDJB, a primeira fase foi preparatória e anunciadora da reformulação geral de 1958. A segunda fase, que terminaria na virada de 1959 para 1960, sentiu o ápice de importância, ao padronizar sua diagramação e pauta em torno das questões da vanguarda concretista, da ensaística e da tradução de inéditos textos críticos acerca da literatura e das artes.<br /><br />A página-seção Livro de Ensaios - dividida em boxes que representam páginas de livros - surge para prover essa rápida atualização, revelam críticos como Augusto e Haroldo de Campos, José Lino Grünewald, Ferreira Gullar, Oliveira Bastos que manifestam os seus pontos de vista. Ezra Pound, Mallarmé, Sartre, Segui Eisenstein, Henry James, Beckett, Apollinaire freqüentam, semanalmente as edições dominicais.<br /><br />As mudanças aceleradas do SDJB no espaço jornalístico e da cena cultural brasileira, chegam através da arrojada página Poesia-Experiência, dirigida por Mário Faustino entre 1956 e 1958, que teve atuação importante como poeta e crítico de poesia, é um autor de feição moderna, renovador e aperfeiçoador de formas herdadas da tradição, inventor de formas novas flexíveis.<br /><br />Eclética como o próprio suplemento, propõe-se promover os novos poetas e operar uma ampla revisão da poesia antiga, mostrando o moderno que existe tanto em Lucrécio quanto em Mallarmé. O lema, estampado na página, é "Repetir para aprender, criar para renovar". Esse credo de origem poundiana "make it new", capar de re-atualizar as formas do passado em função das exigências do presente, praticado com rigor por Mário Faustino, reveste-se de um tom grave que é próprio das diversas experiências artísticas da década.<br /><br />Aprendendo e ensinando foi o principal papel da página Poesia-Experiência, uma peça importante na construção da modernidade. Pois Mário Faustino cumpriu esse papel com eficiência, estampando "exemplos" a cada semana em suas páginas, preenchendo os requisitos de racionalidade e economia para atingir a "eficácia" poética.<br /><br />Poesia - Poeta circular, que se reescreve retomando os mesmos temas fundamentais, e que também reescreve a poesia, Mário Faustino tem uma obra pontilhada de referências. Não é só um dos maiores poetas contemporâneos brasileiros, mas também um poeta por excelência, modelar, por ser o poeta da experiência do poético, da essência da poesia como participação e amplicidade, como um complexo emaranhado de textos e biografias.<br /><br />Considerado um poeta de síntese e de confluência de linguagem, cultor de versos inventivos, é detentor de um estilo pessoal e inconfundível, que confere unidade e esta variedade de tratamentos formais,fazendo com que cada poema sempre remeta ao conjunto, à totalidade de sua obra. Ou seja, como seu vasto campo de referências ampliando o próprio espaço da linguagem, Mário Faustino, nos remete a um tema que continua atual e presente.<br /><br />Não há dúvida que o concretismo provocou uma quase radical transformação na maneira como Mário Faustino abordava o poema. E é fácil verificar tal transformação ao se confrontar os trabalhos do seu primeiro livro publicado em 1955, O Homem e sua Hora. Com suas últimas produções, reunindo toda a experiência de um poeta que se sobressai por sua cultura extraordinária e um alto sentido de pesquisa da linguagem, elevando o verso àquela tensão decorrente de um conceito de que a poesia é concentração, é alta voltagem.<br /><br />Sobre essa influência, Mário Faustino esclarece: " Não, não sou concretista. Minha formação é muito parecida com a dos poetas Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos e José Lino Grünewald, mas certos aspectos e maneira dessa mesma formação, bem como, e sobretudo, certas condições pessoais, nos colocaram e nos colocam em posição bem distintas, por mais que pareçam aproximadas aos menos informados. Os poetas acima são nitidamente inventores, no sentido poundiano, por mais que este ou aquele venha a ser também um mestre".[1] Portanto, a poesia de Mário Faustino é leitura obrigatória a todo jovem que se disponha a exercer uma vocação para a qual não basta o talento, a inteligência, a experiência.<br /><br />Livro Póstumo - Foi através do poeta/ensaísta Haroldo de Campos (1929-2003) que fiquei sabendo da existência dos originais da "Evolução da Poesia Brasileira", publicado por Mário Faustino em Poesia-Experiência, Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, entre 31 de agosto a 21 de dezembro de 1958, em dez números consecutivos, que se encontrava em poder do escritor e professor da Universidade Federal do Pará, Benedito Nunes.<br /><br />Em outubro de 1989, na qualidade de pesquisador da Fundação Casa de Jorge Amado e participante do X Encontro Nacional dos Estudantes de Letras -ENEL (9 a 13 de outubro), que se realizaria em Belém do Pará, recebi incumbência do editor desta instituição, Claudius Portugal, para convencer Benedito Nunes a ceder os originais para publicação em forma de livro, a ser incluído na coleção Casa de Palavra da FCJA.<br /><br />Em 5 de janeiro de 1990, recebo a primeira correspondência de Benedido Nunes, a cerca dos originais: "... está sendo datilografado o trabalho de Mário Faustino - Evolução da Poesia Brasileira - para os cadernos. Quando estiver pronto, um amigo meu lhe enviará. Sigo amanhã para os Estados Unidos: Universidad de Vanderbilt, Nashville, Tennessee - Department of Spanish and Portuguese". Vinte meses depois, receberia a segunda correspondência, datada de 20 de setembro de 1991: "Eis o escrito de Mário Faustino. Estou à sua disposição para esclarecer qualquer dúvida e, se for o seu interesse, apesar da demora na remessa, mando-lhe cordial abraço".<br /><br />Graças a minha insistência de baiano, após várias conversas por telefone e cartas, consegui finalmente os originais do poeta/tradutor Mário Faustino, que foram publicados em noite de autógrafo de 23 de agosto de 1993, com a presença do próprio Benedito Nunes. Evolução da Poesia Brasileira, reúne treze artigos de Mário Faustino, que de cada vez ocupava uma página inteira, ou seja, o espaço todo do folhetim Poesia-Experiência.<br /><br />Como bem observou o crítico Benedito Nunes "A crítica de Mário Faustino, escrevi na apresentação de Evolução da Poesia Brasileira que a Fundação Casa de Jorge Amado acaba de editar, é uma crítica que fez de um legado poético a resguardar; anti-tradicionalista, pela sua inclinação inventiva e descobridora, ai ao encontro do presente, pondo-se a serviço da inovação que abriria essa linguagem para as suas possibilidades futuras. Talvez se possa falar nos mesmos termos, como um misto de tradicionalismo e anti-tradicionalismo - o que tentarei fazer aqui - da poesia de Mário Faustino, da obra poética desse crítico de poesia". [2]<br /><br />Obras - Embora falecido aos 32 anos de idade os apreciadores de sua obra estranham a raridade de menções para com o legado qualitativo deste poeta e crítico aguçado, tanto em relação à nossa literatura, quanto em relação as literaturas inglesa e francesa, das quais foi grande estudioso. Mário Faustino deixou-nos ricos ensinamentos, igualmente no campo jornalístico ao colaborar, desde os dezesseis anos de idade (1946), numa coluna diária no jornal Província do Pará, e na Folha do Norte, onde foi diretor de redação e publicou seus primeiros poemas e traduções da poesia norte-americana, inglesa e francesa.<br /><br />Ao viajar por longo período pelos Estados Unidos da América estudioso obsessivo como era, pode colher intensa experiência literária e vivencial que, conseqüentemente, ajudou-o a elaborar uma poesia densa e elevada, forjando-o crítico audaz e seguro.<br /><br />Mário Faustino continua sendo subestimado, pois raros foram os artigos publicados até hoje a respeito deste poeta. Após sua morte foram publicados cinco livros que ajudam a revelar sua grandeza: O Homem e sua Hora, Ed. Civilização Brasileira, 1955; Cinco ensaios sobre Mário Faustino, ( texto: Assis Brasil), Série Coletânea, nº2, Editora GRD, 1964; Poesia de Mário Faustino, antologia poética (textos: Paulo Francis e Benedito Nunes), Editora Civilização Brasileira,1966; Poesia-Experiência, (Texto: Benedito Nunes) Editora Perspectiva, coleção Debates nº136, 1977; Poesia Completa-Poesia Traduzida (texto: Benedito Nunes), Editora Max Limonad, 1985; Os Melhores Poemas de Mário Faustino (texto: Benedito Nunes), Global, 1985, 2ª ed. 1988; Ezra Pound- Poesia (tradução Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, J. L. Grünewald e Mário Faustino), Editora da Universidade de Brasília, 1983; Evolução da Poesia Brasileira (texto:Benedito Nunes), Fundação Casa de Jorge Amado, 1993.<br /><br />Dentre os trabalho publicados sobre o poeta Mário Faustino, destacamos: Mário Faustino-Poeta e Crítico, J.L. Grünewald. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 15.dez.1962; Cinco ensaios sobre poesia, J.L. Grünewald. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 19.dez.1964; O poeta e sua vida, Haroldo Maranhão. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 9.jul.1966; Introdução ao Fim, Benedido Nunes. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 9.jul.1966; A poesia de Mário Faustino, Foed Castro Chamma. Rio, Leitura, Ano XXIV, nº106/107 -mai/jun. 1966; Últimos Livros, Wilson Martins. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 14.jan.1967; A Nova Literatura-II Poesia, Assis Brasil (A tradição da Imagem). CEA/MEC, 1975; Oficina da Palavra - Ensaio intertextual, Ivo Barbieri. Rio de Janeiro, Edições Achiamé, 1979; Tradição & Modernidade em Mário Faustino, Albeniza de Carvalho e Chaves (tese de Mestrado em teoria literária). Piauí, 1986; Mário Faustino ou a importância órfica, Haroldo de Campos. Cadernos de Teresina, Ano I, nº1 abr.1987; Uma peça na construção da Modernidade, Antônio Manoel Nunes. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil (idéias Ensaios), 7. jan.1990; Mário Faustino, J.L. Grünewald. Folha de São Paulo, 2.dez.1992; Literatura Piauiense no Vestibular, Alcenor Candeira Filho. Parnaíba -Piauí, 1995; Poesia de Mão Dupla, Benedito Nunes. Salvador, Exu Documento - Fundação Casa de Jorge Amado, 1997; Mário Faustino, poeta e crítico subestimado, Carlos Frydman. São Paulo, O Escritor, fev.1998. <br /><br /><br />[1] Mário Faustino, Poesia-Experiência. São Paulo, Editora Perspectiva, col. Debates nº136, p. 279, 1977.<br /><br />[2] Benedito Nunes, Poesia de Mão Dupla. Salvador, Exu Documento, Fundação Casa de Jorge Amado, 1997.<br /><br />Aracaju. Jornal da Cidade, 25/26.dez.2003.<br /><br />Sobre o autor:<br /><br />Gilfrancisco é jornalista, pesquisador, escritor, com alguns trabalhos publicado, e professor universitário.<br /><br />E-mail: gilfrancisco.santos@ig.com.br <br /><br />Fonte: http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=251&rv=Literatura<br /><br />A Reconstrução <br /><br />(...) <br />E nos irados olhos das bacantes <br />Finalmente descubro quem procuro. <br />Não eras tu, Poesia, meras armas, <br />Pura consolação de minha luta. <br />Nem eras tu, Amor, meu camarada, <br />Às costas me levando, após a luta. <br />Procurava-me a mim, e ora me encontro <br />Em meu reflexo, nos olhares duros <br />De ébrios que me fuzilam contra o muro <br />E o perdão de meu canto. Sobre as nuvens <br />Defronte mãos escrevem numa estranha, <br />Antiquíssima língua estas palavras <br />Que afinal compreendo: toda vida <br />É perfeita. E pungente, e raro, e breve <br />É o tempo que me dão para viver-me, <br />Achado e precioso. Mas saúdo <br />Em mim a minha paz final. Metade <br />Infame de homem beija os pés da outra <br />Diva metade, enquanto esta se curva <br />E retribui, humilde, a reverência. <br />A serpente tritura a própria cauda, <br />O círculo de fogo se devora, <br />Arrasta-se o cadáver bem ferido <br />Para fora do palco: <br />este cevado <br />Bezerro justifica minha vida.<br /><br />Alba <br /><br />Enquanto o rouxinol à sua amante <br />Gorjeia a noite inteira e o dia entrante <br />Com meu amor observo arfante <br />Cada flor, <br />Cada odor, <br />Até que o vigilante lá da torre <br />Grite: <br />"Levanta patife, sus! <br />Vê, já reluz <br />A luz <br />Depressa, corre,<br /><br />Carpe Diem <br /><br />Que faço deste dia, que me adora? <br />Pegá-lo pela cauda, antes da hora <br />Vermelha de furtar-se ao meu festim? <br />Ou colocá-lo em música, em palavra, <br />Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra? <br />Força é guardá-lo em mim, que um dia assim <br />Tremenda noite deixa se ela ao leito <br />Da noite precedente o leva, feito <br />Escravo dessa fêmea a quem fugira <br />Por mim, por minha voz e minha lira. <br /> <br />(Mas já de sombras vejo que se cobre <br />Tão surdo ao sonho de ficar -- tão nobre. <br />Já nele a luz da lua -- a morte -- mora, <br />De traição foi feito: vai-se embora.)<br /><br />Romance <br /><br />Para as Festas da Agonia <br />Vi-te chegar, como havia <br />Sonhado já que chegasses: <br />Vinha teu vulto tão belo <br />Em teu cavalo amarelo, <br />Anjo meu, que, se me amasses, <br />Em teu cavalo eu partira <br />Sem saudade, pena, ou ira; <br />Teu cavalo, que amarraras <br />Ao tronco de minha glória <br />E pastava-me a memória, <br />Feno de ouro, gramas raras. <br />Era tão cálido o peito <br />Angélico, onde meu leito <br />Me deixaste então fazer, <br />Que pude esquecer a cor <br />Dos olhos da Vida e a dor <br />Que o Sonho vinha trazer. <br />Tão celeste foi a Festa, <br />Tão fino o Anjo, e a Besta <br />Onde montei tão serena. <br />Que posso, Damas, dizer-vos <br />E a vós, Senhores, tão servos <br />De outra Festa mais terrena -- <br /> <br />Não morri de mala sorte, <br />Morri de amor pela Morte.<br /><br />Sextina: Altaforte <br /><br />Loquitur: En Bertrans de Born <br />Dante Alighieri pôs este homem no inferno por <br />tratar-se de um provocador de desordens. <br /> <br />Eccovi! <br />Julgai-o vós! <br />Será que o desenterrei de novo? <br /> <br />A cena é em seu castelo, Altaforte. "Papiols" é seu jongleur. <br />"O Leopardo", a device de Ricardo Coeur de Lion. <br /> <br /> <br />I <br /> <br />Tudo prós diabos! Todo este Sul já fede a paz. <br />Anda cachorro bastardo, Papiols! À música! <br />Só sei que vivo se ouço espadas que ressoam. <br />Mas ah! Com os estandartes ouro e roxo e vair se opondo <br />Por cima de amplos campos encharcados de carmim <br />-- Uiva meu peito então doido de júbilo. <br /> <br />II <br /> <br />Se é verão quente, encho-me então de júbilo <br />Quando a tormenta mata a horrenda paz, <br />E do negro os relâmpagos reboam seu carmim, <br />E os tremendos trovões rugindo-me, que música! <br />Doidos ventos e nuvens ululando e se opondo <br />Céu rachando e teus gládios, Deus, ressoam. <br /> <br />III <br /> <br />Praza aos diabos de novo que ressoem! <br />E os corcéis na batalha relinchando de júbilo, <br />De espigão na peitarra às peitarras se opondo: <br />Melhor o tremor de uma hora do que meses de paz <br />Mesa gorda, fêmeas, vinho, débil música! <br />Não há vinho como o sangue e seu carmim! <br /> <br />IV <br /> <br />E adoro ver o sol subir sangue-e-carmim. <br />E contemplo-lhe as lanças que no escuro ressoam <br />E transborda meu peito, dilatado de júbilo, <br />E rasgo minha boca de ágil música <br />Quando o vejo zombar, desafiando a paz, <br />Seu poder solitário contra o escuro se opondo. <br /> <br />V <br /> <br />Esse que teme a guerra e se acocora opondo- <br />Se ao que digo, não tem sangue carmim, <br />Só serve pra feder em feminina paz <br />Longe donde as aspadas trazem glória e ressoam <br />-- Vossa morte, cadelas, recrudesce-me o júbilo <br />E por isso encho o ar com minha música. <br /> <br />VI <br /> <br />Papiols! papiols! Música, música! <br />Não há som como espadas às espadas se opondo, <br />Não há grito como na batalha o júbilo, <br />Cotovelos e espadas gotejando carmim, <br />Quando contra "O Leopardo" nossas cargas ressoam. <br />Deus maldiga quem quer que grite "Paz!" <br /> <br />VII <br /> <br />Que a música da espada os cubra de carmim! <br />Praza ao diabo, de novo, espadas que ressoam! <br />Praza ao diabo apagar o pensamento "Paz!"<br /><br />O SOM DESTA PAIXÃO ESGOTA A SEIVA<br /><br />O som desta paixão esgota a seiva <br />Que ferve ao pé do torso; abole o gesto <br />De amor que suscitava torre e gruta, <br />Espada e chaga à luz do olhar blasfemo; <br />O som desta paixão expulsa a cor <br />Dos lábios da alegria e corta o passo <br />Ao gamo da aventura que fugia; <br />O som desta paixão desmente o verbo <br />Mais santo e mais preciso e enxuga a lágrima <br />Ao rosto suicida, anula o riso; <br />O som desta paixão detém o sol, <br />O som desta paixão apaga a lua. <br />O som desta paixão acende o fogo <br />Eterno que roubei, que te ilumina <br />A face zombeteira e me arruína. <br /> <br />O MÊS PRESENTE<br /><br />Sinto que o mês presente se assassina, <br />As aves atuais nascem mudas <br />E o tempo na verdade tem domínio <br />Sobre homens nus ao sul de luas curvas. <br />Sinto que o mês presente me assassina, <br />Corro despido atrás de cristo preso, | <br />Cavalheiro gentil que me abomina <br />E atrai-me ao despudor da luz esquerda <br />Ao beco de agonia onde me espreita <br />A morte espacial que me ilumina. <br />Sinto que o mês presente me assassina <br />E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas <br />De apóstolos marujos que me arrastam <br />Ao longo da corrente onde blasfemas <br />Gaivotas provam peixes de milagre. <br />Sinto que o mês presente me assassina, <br />Há luto nas rosáceas desta aurora, <br />Há sinos de ironia em cada hora <br />(Na libra escorpiões pesam-me a sina) <br />Há panos de imprimir a dura face <br />A força do suor de sangue e chaga. <br />Sinto que o mês presente me assassina, <br />Os derradeiros astros nascem tortos <br />E o tempo na verdade tem domínio <br />Sobre o morto que enterra os próprios mortos. <br />O tempo na verdade tem domínio. <br />Amen, amen vos digo, tem domínio. <br />E ri do que desfere verbos, dardos <br />De falso eterno que retornam para <br />Assassinar-nos num mês assassino.<br /><br />SONETO <br /><br />Necessito de um ser, um ser humano <br />Que me envolva de ser <br />Contra o não ser universal, arcano <br />Impossível de ler <br /><br />À luz da lua que ressarce o dano <br />Cruel de adormecer <br />A sós, à noite, ao pé do desumano <br />Desejo de morrer. <br /><br />Necessito de um ser, de seu abraço <br />Escuro e palpitante <br />Necessito de um ser dormente e lasso <br /><br />Contra meu ser arfante: <br />Necessito de um ser sendo ao meu lado <br />Um ser profundo e aberto, um ser amado. <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Pedro Xisto<br /><br />(Limoeiro PE, 1901 - São Paulo SP, 1987) <br /><br />Cursou a Faculdade de Direito, em Recife PE, por volta de 1918 e 1922. Nos anos de 1950, publicou haicais, poemas concretos e criações visuais na revista concretista Invenção. Seu primeiro livro de poesia, Haikais & Concretos, foi publicado em 1960. Aliou a produção poética ao exercício das profissões de procurador do Estado e adido cultural em embaixadas brasileiras nos EUA, Canadá e Japão. Sua obra poética inclui os livros 8 Haikais de Pedro Xisto (1960), Caderno de Aplicação (1966), Logogramas (1966), a e i o u; ou Vogaláxia (1966), Caminho (1979) e Partículas (1984). Os críticos Vinicius de Avila Dantas e Iumna Maria Simon afirmaram, sobre a obra de Xisto: "não tendo participado do Grupo Noigandres, Pedro Xisto aderiu ao Concretismo no final da década de 50, através da preocupação comum com a cultura oriental e com a Física Moderna. Sua obra está cindida entre acompanhar as últimas experiências concretas e produzir um verdadeiro manancial de haikais (...).".<br /><br />Haicai <br />1<br /><br />ao lado da lua<br /><br />neste pinheiro vetusto<br /><br />uma ave noturna<br /><br />2<br /><br />abro após as sombras<br /><br />de par em par as vidraças:<br /><br />alçam vôo as pombas<br /> <br /><br /> <br /><br />astro star <br />ostra rats<br /> <br />"Labirinto" (acima) e "Longing" (abaixo)PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-91941822745566559192009-04-22T11:51:00.000-07:002009-04-28T12:43:43.999-07:00Contemporânea<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhwJcqEOeYJjsP9csvg8a2Aj3UDLe_zszqnxT51i0mUG2Cv0uF2evPEktHXY0JlbLL9rXuWG1bOArD9l6h_47zRoeHIFp4fApj1FiniQ4DE6CjdbUkDfFFm9C5giKxNquZe8RVtBgph_aU/s1600-h/Poesia_fuga_ARTEFILOSPSIPOESIA.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 250px; height: 320px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhwJcqEOeYJjsP9csvg8a2Aj3UDLe_zszqnxT51i0mUG2Cv0uF2evPEktHXY0JlbLL9rXuWG1bOArD9l6h_47zRoeHIFp4fApj1FiniQ4DE6CjdbUkDfFFm9C5giKxNquZe8RVtBgph_aU/s320/Poesia_fuga_ARTEFILOSPSIPOESIA.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329830178951734738" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhA4Pd7ZXEIBvChFLl5JyP78IlmKNlA7gf012SUxIRqsLD9cjYLSN51xBaSBdO420LvaU3R2WJt16bjTYuBLK_mcp86ulY_uUdfTVpZYyIYx8qZf_K2EujbffbNrRvIr81XGqLMevMsafI/s1600-h/imagesCA9GT0JO.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 102px; height: 123px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhA4Pd7ZXEIBvChFLl5JyP78IlmKNlA7gf012SUxIRqsLD9cjYLSN51xBaSBdO420LvaU3R2WJt16bjTYuBLK_mcp86ulY_uUdfTVpZYyIYx8qZf_K2EujbffbNrRvIr81XGqLMevMsafI/s320/imagesCA9GT0JO.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329830182401096738" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhHH9HmjTZfHLqP9jVdlNQWgQ-f1COsJhujR2UHrd9DFnAXWnHAAflg2-zDzpcfm0-1Xez6HXn0XYRlkjIQ7MxgxcjoHTzBALypJdrZf7aISZg-5_D8E4lzqqUtz3K2sl28W8lWtGwM96I/s1600-h/CONCR2.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 130px; height: 130px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhHH9HmjTZfHLqP9jVdlNQWgQ-f1COsJhujR2UHrd9DFnAXWnHAAflg2-zDzpcfm0-1Xez6HXn0XYRlkjIQ7MxgxcjoHTzBALypJdrZf7aISZg-5_D8E4lzqqUtz3K2sl28W8lWtGwM96I/s320/CONCR2.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329830175049611890" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHuvz_KjfQlgMvnuIW3aNm2ZeUtSSymtJr5KMOCKkVRk3hxogPgVqQjCgJNsDqPs15xPa5Fbte5vtwTnilQRBgf3njV-zR8JvHOyMAMW-_WuLCiYHmtP_ezNpgJQIsvsJfaz2eVyThFQs/s1600-h/imagesCAR1QMVO.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 88px; height: 100px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHuvz_KjfQlgMvnuIW3aNm2ZeUtSSymtJr5KMOCKkVRk3hxogPgVqQjCgJNsDqPs15xPa5Fbte5vtwTnilQRBgf3njV-zR8JvHOyMAMW-_WuLCiYHmtP_ezNpgJQIsvsJfaz2eVyThFQs/s320/imagesCAR1QMVO.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329830174409656562" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhubxFC6bfZixDRTLrES7A58a64SIxtCWv3qNc2PB-19xHYYUXdskVSsqD5DyUx1IgqSSu1udS1KeF_mB1GK2yTKT1tFtjc6b8P6c9QOvwpQNix6SXKnZiye4WgCVjNKMCAXCygmACjBvw/s1600-h/CONR+1.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;width: 121px; height: 119px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhubxFC6bfZixDRTLrES7A58a64SIxtCWv3qNc2PB-19xHYYUXdskVSsqD5DyUx1IgqSSu1udS1KeF_mB1GK2yTKT1tFtjc6b8P6c9QOvwpQNix6SXKnZiye4WgCVjNKMCAXCygmACjBvw/s320/CONR+1.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5329830170657223954" /></a><br />exibidas. Baixar o anexo original<br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Boca do Inferno - Ana Miranda - Resumo<br /><br />Personagens <br /><br />Gregório de Matos Guerra - poeta do Barroco. "O boca do inferno" - genial canalha - fazia críticas mordazes aos políticos da Bahia do século XVI.<br /><br />Padre Antônio Vieira - em seus sermões e cartas, atacava o clero brasileiro e políticos, revelando a seus fiéis as contradições sociais.<br /><br />Antônio de Sousa Menezes - governador da Bahia - O Braço de Prata.<br /><br />Gonçalo Ravasco - inimigo de Antonio S Menezes<br /><br />Bernardo Ravasco - irmão<br /><br />Bernardina Ravasco - filha de Bernardo<br /><br />Maria Berco - empregada dos Ravasco e amante de Gregório.<br /><br />Tele de Menezes - secretário do governador<br /><br />Donato Serotino - mestre de esgrima<br /><br />Antonio de Brito - mata Francisco Teles de Menezes<br /><br />Anica de Melo - cafetina <br /><br />Este é um romance escrito em 3ª pessoa e dividido em A Cidade, O Crime, A Vingança, A Devassa, A Queda e O Destino, passado no século XVII (1863), na Bahia colonial, durante o governo tirânico do militar Antônio de Souza de Menezes, apelidado de Braço de Prata, por usar uma peça deste metal no lugar do braço (perdido numa batalha naval contra os invasores holandeses). <br /><br />A ação se passa em Salvador. Nessa cidade de desmandos e devassidão, desenrola-se a trama de Boca do Inferno, recriação de uma época turbulenta centrada na feroz luta pelo poder entre o governador Antônio de Souza de Menezes, o temível Braço de Prata, e a facção liderada por Bernardo Vieira Ravasco, da qual faziam parte o padre Antônio Vieira e o poeta Gregório de Matos. Note-se a linguagem histórica, com expressões chulas (vulgares), uma referência à sátira mordaz do poeta Gregório de Matos Guerra. <br /><br />A Cidade - Descrição da Bahia do século XVII - imagem de um paraíso natural, mas onde os demônios aliciavam almas para proverem o inferno - há também a apresentação do poeta sátiro Gregório, o Boca do Inferno, de estilo barroco. <br /><br />O Crime - Francisco Teles de Menezes é emboscado por 8 homens encapuzados, tem sua mão arrancada do braço e é morto por Antônio de Brito. O motivo se deu por perseguição política - estarão envolvidos no crime: Ravasco, irmão do Padre Vieira e Moura Rolim, primo de Gregório. Os homens fogem para o Colégio dos Jesuítas, mas o governador da Bahia - Antônio de Sousa Menezes, O Braço de Prata, será avisado e começará uma terrível perseguição contra todos envolvidos. <br /><br />A Vingança - Antônio de Brito será torturado e delatará os envolvidos - Viera será perseguido - mas por representar a igreja e o poder papal, o governador releva, mas quer o irmão Bernardo Ravasco preso e destituído do cargo de Secretário do Estado. Ao tentar proteger a filha Bernardina Ravasco, Gregório conhece Maria Berco, que será presa ao saber que ela possuía a mão e o anel do Alcaide (o anel será penhorado). São confiscados de Bernardo documentos escritos e os poemas de Gregório. Bernardina é presa para pressionar Ravasco a se entregar. <br /><br />A Devassa - Rocha Pita é nomeado desembargador para investigar a morte do Alcaide. Palma, também desembargador, nega a vingança planejada pelo governador e por falta de provas, exige a soltura dos envolvidos mas, para soltar Maria Berco, Gregório teria que pagar uma fiança de 600 mil réis. <br /><br />A Queda - Bernardino é libertado e expatriado. O governador é destituído do cardo e o Marquês de Minas é nomeado para substituí-lo, restituir o cargo de secretário a Bernardo Ravasco e se apresentar imediatamente ao Rei de Portugal. Mesmo assim sai do Brasil com muitas riquezas. O próximo governador, Antônio Luís da Câmara Coutinho, também será satirizado pelo poeta Gregório que terá sua morte encomendada, mas só o próximo governador, João de Lancastre, é que conseguirá prendê-lo e expatriá-lo para a Angola, volta mais tarde para Pernambuco, mas será proibido de escrever suas sátiras. Volta a advogar e morre em 1695, aos 59 anos. <br /><br />O Destino - Padre Vieira lutará por justiça <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Desmundo - Ana Miranda - Resumo<br /><br />Adaptado de:Discurso poético e discurso histórico:uma relação intertextual, de: Cláudia Espíndola Gomes<br /><br />Numa noite estrelada do ano de 1555 chega ao Brasil uma caravela trazendo uma leva de órfãs mandadas pela rainha de Portugal para se casarem com os cristãos que aqui habitavam. Com a mente repleta de sonhos e fantasias, elas pisam pela primeira vez a terra distante, onde um mundo rude, belíssimo, violento, as espera. A história dessas órfãs é contada por uma delas, Oribela, com sua visão mítica, espiritual, sensual, uma jovem que costuma ter visões noturnas, ímpetos de partir e muito medo da paixão que habita sua alma. Seu relato íntimo revela, todavia, não apenas as aspirações e angústias de sua desamparada existência feminina, mas a brutalidade do desmundo que a cerca, o encontro de povos em guerra, o conflito entre seres diferentes, a intolerância religiosa, os terrores que encerra o desconhecido. <br /><br />Suas "palabras pronunciadas con el corazón caliente" formam um suntuoso relato arrancado das partes mais inconscientes, mais misteriosas, de um ser que atravessou não apenas o oceano Atlântico, mas a linha imaginária que separa a realidade e o sonho, a liberdade e a escravidão, o amor e o ódio, a virtude e o pecado, o corpo e o espírito.<br /><br />O discurso ficcional permite a desestabilização do discurso da história, e as histórias podem, então, ser narradas a partir de um ponto de vista não focalizado pelo último. Se, por exemplo, à história dos primeiros anos de colonização do país o acesso se dá através dos cronistas portugueses, o romance de Ana Miranda lê a história destes momentos a partir de um outro prisma, acompanhando, inclusive, o pensamento da personagem pontilhado de crenças, medos e questionamentos diante do mundo/desmundo que a ela se apresenta. <br /><br />A literatura passa a traduzir uma história que não se quer imóvel. Através da narrativa de Oribela, o leitor ingressa em formas de ação e de pensamento da época, deparando-se com aspectos tais como existência feminina, religiosidade, nova terra, amor e sexualidade. Por meio do relato da personagem fictícia, torna-se possível pensar no que ela possui de comum com outros indivíduos que viveram no século XVI, que, por sua vez, herdaram sua forma de ver o mundo a partir de estruturas mentais construídas culturalmente. O romance de Ana Miranda, enquanto situação especial de comunicação, se oferece a uma leitura no horizonte da história das mentalidades e aproveita para utilizar as informações que lhe pode oferecer este tipo de história. <br /><br />Mais uma vez o intertexto com a história se faz presente em Desmundo e, no discurso de Oribela, ouvem-se as vozes que surgem também quando se consultam livros sobre a história das mulheres na sociedade colonial, sociedade esta que procurava, conforme Mary del Priori, domesticar a mulher no seio da família, privando-a de qualquer poder ou saber ameaçador e regulando seus corpos e suas almas. <br />Esta normatização se dava através de dois mecanismos poderosos: o discurso normativo da Igreja e o discurso médico. Em Desmundo, os ecos do discurso religioso se fazem ouvir, por diversas vezes, na voz da própria personagem narradora, que permite as vozes de seu pai, da Velha, de Francisco de Albuquerque, de membros da Igreja, a revelarem qual deveria ser o papel feminino. <br />Um dos momentos em que se torna perceptível de maneira mais enfática esta questão pode ser apreendido no fragmento textual seguinte: <br /><br />"Ora ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem deve jurar que o disse em um acesso de cólera, nunca mais deixar os cabelos soltos, mas atados, seja em turbante, seja trançado, não morder o beiço, que é sinal de cólera, nem fungar com força, que é desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e nem encher as bochechas de vento como a si dando realeza, nem alevantar os ombros em indiferença e nem olhar para o céu que é recordação, nem punho cerrado, que é ameaça. Tampouco a mão torcer, que é despeito. Nem pá pá pá pá nem lari lará. Nem lengalengas nem conversas com vizinho, seja ele quem for, ou cigano, nem jogos nem danças de rua, nem olhar cão preto que pode ser chifrudo, deus te chame lá que ninguém te chama cá, temperar legume com sal, não apagar luz que alumia morto nem deitar as águas fora que é de judaísmo, não pedir favores nem pôr os olhos no vizinho nem o corpo na cama de outro, tem o esposo direito de acusar, para provar inocência a esposa deve lavrar a mão num ferro de arado em brasa. Açoite e língua furada àquela que arrenegar. Os esposos devem dar panos às mulheres, mas só nas festas reais, se lhes oferecer o mercador um bom preço, que eles não façam obra alguma desde o posto do sol até o sol saído e dia de domingo e a viver segundo o capricho dos homens. Aqui do rei. <br />E disse eu, Ora, hei, hei, não é melhor morrer a ferro que viver com tantas cautelas? Ai, como sou, olhasse a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira nem folha de figueira" (p. 67). <br />O fragmento textual pertencente à terceira parte do romance, intitulada "Casamento", revela aspectos interessantes que podem ser analisados. Este fragmento desdobra-se em duas vozes diferentes: a da Velha que orienta as jovens próximas do casamento e a de Oribela a questionar sobre tantas imposições. Oribela parece, em determinado momento, encurtar as orientações da Velha, quando, após tantas regras, surge a frase: "Nem pá pá pá nem lari lará". Percebo as interdições impostas pela Velha como um momento em que a autora recorre às informações extraídas de textos referentes à história das mentalidades para construir seu texto. É significativo observar, por exemplo, a reiteração da conjunção coordenativa aditiva "nem" e do advérbio de negação "não", para revelar a quantidade de interdições a que uma mulher casada seria submetida. <br /><br />Outro aspecto bastante significativo, quanto ao fragmento textual, é a referência à normatização do corpo representada, no texto, pelo fato de as interdições estarem ligadas a partes do corpo, em seqüência: cabelos, beiço, nariz, bochechas, ombros, olhos, punhos, mãos, língua e, por fim, novamente, o corpo todo. Nada pertenceria totalmente à mulher: nem sua alma, nem seu corpo. <br /><br />O emprego da maior parte dos verbos no infinitivo revela, ainda, a idéia de atemporalidade, ou seja, as interdições que se declaram a partir do discurso da Velha parecem valer por muito tempo, numa alusão às mudanças lentas estudadas pela história das mentalidades, a história da longa duração. <br />Como é possível perceber, a história vai sendo lida a partir da literatura, com a possibilidade de uma liberdade maior no trato com questões esquecidas pela história tradicional. Zilah Bernd relaciona esta liberdade de que pode desfrutar o texto ficcional à literatura das sociedades pós-coloniais, atentando para o fato de que, nestas sociedades, a literatura terá o papel de suprir os vazios da história oficial, possibilitando que versões populares dos fatos históricos possam se fazer ouvir, versões estas repletas de referências ao imaginário e de muitas outras significações, postura bastante comum na ficção da América Latina. O escritor assume a tarefa do cronista e, além de trabalhar com a informação, trabalha com a possibilidade de reconstruir o imaginário. A vantagem deste tipo de discurso é exatamente a possibilidade de desestabilizar a história oficial, seja através da utilização do ponto de vista descentralizado, seja através da apresentação de questões não abordadas por aquele tipo de história. No romance de Ana Miranda, por exemplo, são apreensíveis as relações intertextuais com o discurso histórico, já a partir do momento em que as epígrafes são cotejadas. Quando a personagem Oribela passa a narrar sua experiência no desmundo, a rede intertextual continua. <br /><br />A linguagem que permite este discurso intertextual em Desmundo advém, ao que parece, de uma linhagem rosiana. Alguns aspectos presentes na produção literária de Guimarães Rosa surgem na linguagem da personagem narradora, como a revelar a necessidade de compreender a realidade e o mundo, ambos muitas vezes incompreensíveis. A linguagem vai sendo, então, moldada conforme o uso que se quer fazer da língua. <br /><br />Davi Arrigucci Jr., quando se detém a observar, em Guimarães Rosa, as relações entre linguagem e realidade, aponta para vários aspectos presentes na linguagem rosiana, especificamente no que concerne ao poético presente em Rosa.(17) Percebo que muitos dos aspectos apontados por Arrigucci em relação à linguagem de Rosa são utilizados, também, por Ana Miranda, para construir a linguagem de Oribela. <br />Arrigucci, ao ater-se ao poético em Rosa, elege traços que caracterizam a linguagem rosiana, estabelecendo, entre o primeiro e o poeta espanhol Góngora, um paralelo. Em meu trabalho, aproprio-me da análise da linguagem rosiana feita por Arrigucci e, ao invés de relacioná-la a Góngora, procuro buscar o que há em comum entre a linguagem rosiana e a linguagem utilizada por Ana Miranda, para construir o discurso de Oribela. <br /><br />Em ambos, o instrumento lingüístico disponível é insuficiente para demonstrar a grandiosidade dos universos apresentados. Em Desmundo, especificamente, do mundo - desmundo que a Oribela se apresenta. Há, então, a fuga à linguagem bem comportada e lexicalizada. Para a criação desta linguagem, comparece uma série de recursos. A começar pelo título do romance, uma palavra não-dicionarizada, Desmundo, uma vez que parece faltar o termo exato para expressar o significado da nova terra para Oribela, que vê seu destino como "desrumo", outro termo inexistente na língua oficial. Vale lembrar, ainda, que, ao se referir à nova terra, a personagem narradora utiliza palavras, dicionarizadas ou não, que são iniciadas pelo prefixo de negação "des", como se, vê em: "despejado lugar" (p. 16), "terras desabafadas" (p. 26), "desventura" (p. 1), além dos já citados "desrumo" (p. 138) e "desmundo" (p. 138). Ou seja, através do trabalho com a linguagem, é possível revelar o caráter de purgação que caracterizava a nova terra. Além dos termos não-dicionarizados já citados, outros comparecem para construir o discurso da personagem Oribela, conferindo à linguagem um matiz arcaico e, ao mesmo tempo, popular. <br />Há, entre as palavras não-dicionarizadas, aquelas cujo matiz arcaico se faz pela ocorrência de metaplasmos, de alterações fonéticas, o que se verifica também em Guimarães Rosa. Tais palavras podem, ou não, registrar, em dicionário, uma forma correspondente, estatuída como oficial. De Guimarães Rosa, extraídos de Grande Sertão: veredas, ilustram o primeiro caso: "satanazim", "patavim", "asp'ro", "arreparare", "essezim", "tirotêi". As formas diminutivas "satanazim" e "essezim" exemplificam a apócope e, ao lado da alteração fonética do sufixo, "inho", remetem ao tom arcaizante que Guimarães Rosa deu à linguagem literária, inscrevendo-a como voz do povo. A tais ocorrências junta-se a síncope do /e/ em áspero>asp'ro, lembrando a rejeição popular às formas proparoxítonas. E, ainda, "arreparare", trazendo à memória a freqüência de próteses características do desempenho popular: alembrar, afamilhar, azangar, arreceber, adispois, arruído, arrefém, alumiar, entre outros elementos lexicais, numerosos, dicionarizados, ou não. <br /><br />Em Ana Miranda, podem ser citadas, como ocorrências de metaplasmos: a prótese em "alenternas" (p. 18), "alembrar" (p. 14); em "estromentos" (p. 18), a desnasalização ins>es lembra que, na gramática popular, um traço recorrente é a flexibilidade nasalação/desnasalação das vogais iniciais [e] e [i], por alomorfias de prefixos, como "em", em ilegal/inlegal, irreal/inreal, emagrecer/esmagrecer. Tais flutuações estendem-se, também a palavras em que "em" e "in" são iniciais sem que sejam prefixos, como se verifica em "instrumentos/estromentos", onde um outro metaplasmo é registrado ainda: a assimilação u>o, na sílaba tru>tro, resultante da desnasalação ins>e. Isso porque a troca da vogal alta [i] pela média [e] acentua um contexto de vogais médias [e], [o], já integrantes da forma instrumentos: a tônica [e] e a átona final [u], harmonizada em [u], conduzindo à assimilação da vogal alta [u] pela vogal média [o]; em "interlocutores/trolocutores" (p. 21), no prefixo "inter" ocorrem três metaplasmos: aférese da vogal [i], a metátese ter>tro e a assimilação e>o. A aférese constitui-se traço característico da fase arcaica da língua e, também, do desempenho popular "ojeriza/geriza", "alambique/lambique", "alicate/licate", "inimigo/nimigo", "datilógrafo/tilógrafo", "homenagem/menagem". O mesmo pode ser dito da metátese: perguntar/preguntar, entreter/interter, intervalo/intrevalo, procurar/percurar. A assimilação da vogal anterior [e] pela posterior [o], na sílaba ter>tro, resulta de um contexto onde a predominância se constitui de vogais posteriores, em "notivo" (p. 51) e "porquera" (p. 62), a síncope da semivogal [y] faz a redução do grupo vocálico, tão corriqueira na fala popular; "renembranças" (p. 123) atualiza a forma arcaica "nembrar", vinda da evolução do radical latino "memorare", que registra os seguintes metaplasmos: síncope do [o], de onde memorare>memrare, a que se acrescem a dissimilação [m]>[n], a epêntese do [b], desfazendo a sequência [mr] e a apócope da átona final [e], já enfraquecida pela neutralização [e]>[i]. Do arcaico "nembrar", chega-se à forma atual "lembrar" pela dissimilação [n]>[l]; Alemania e Alimania, realizações populares de Alemanha, endereçam às alternâncias [n]/[ñ]: Antônio/Antonho, bem como às harmonizações [e]>[i] e [o]>[u], muito freqüentes na voz do povo. Em "alifante" e "ourinar", as alterações fonéticas resultam de analogias. "Alifante" estabelece uma relação de semelhança com outras ocorrências já apresentadas como marcas da fala popular: alivantar, arreceber, assossegar, etc... "Ourinar" substituindo "urinar" resulta da analogia entre o amarelo do ouro e o da urina, resultando ourina/orina, ourinar/orinar, formas comparáveis a ouro/oro. <br /><br />Na linguagem rosiana, são freqüentes, ainda, criações resultantes de processos derivacionais: pacificioso, vastoso, estranhoso, docice, pobrejar, espinarol, desenormes, antesmente, horrorizância, prostitutriz, trestriste, desjustiça, desmim, regrosso, etc.... Formas compostas inusitadas também são encontradas: "zé-zombar", "outrolhos", "vagavagar", "alinhalinhar", "neblim-neblim", "contracalado", "malmontar", etc... <br />Assim como em Guimarães Rosa, também em Ana Miranda formas derivadas e compostas revestem a linguagem de acento popular e arcaico. "Omildosa" (p. 43) e "trigosas" trazem à tona a freqüência de adjetivos em "oso"/"osa", já em textos medievais. Além da marca sufixal, é preciso considerar, em "omildosa", o registro escrito sem o h inicial, um dos traços da escrita arcaica, fonética, desvinculada de étimos gregos ou latinos e que caracteriza, também, a grafia popular; "trigosas", significando apressadas, pressurosas, aparece no "Auto da Alma", de Gil Vicente, numa das falas do anjo: "Já cansais, alma preciosa/Tão asinha desmaiais?/Sede esforçada!/Oh! como viríeis trigosa/ e desejosa/ se vísseis quanto ganhais/nesta jornada". <br /><br />Há, na fala do povo, uma intuição da forma da palavra que se quer linguagem como imagem, conduzindo a criações não estatuídas, pelas quais o dizer enuncia com maior clarividência o que quer fazer-se voz. Assim "renembranças" (p. 143), "desrumo" (p. 10), "disraiar" (p. 109), "dulçura" (p. 28), "esmerdada" (p. 14), "cuidações" (p. 30), "estridosamente" (p. 57), "bonamore" (p. 30), "vem-para-casa-mesmo-bêbado-papai" (p. 127), "águafrescáguafresca" (p. 11). <br /><br />Doçura é expressão corriqueira, e o sentimento, quando se quer dizê-lo inusitado, é num percurso de reencontro com raízes que se vai buscá-lo, retornando ao étimo latino dulce>doce. Da mesma forma, "bonamore", forma composta, aglutinando os radicais latinos bonus>bom e amoris>amor, o bom amor, imune às contradições, o amor sonhado tranqüilo: Benditas as desposadas e casadas; para o meu varão me guardei perfeita, ru, ru, chegasse com o pé direito, trouxesse Deus o bonamore, que não tenho nenhuma burrinha, tirasse de mim os desejos, os temores, os fingimentos, as visões (...) (p. 30). É uma voz ambígua esta de Oribela que, no "bonamore", situa o sonho na realidade da obrigação de guardar-se para o esposo, e, nas visões, a experiência do inferno da relação homem/mulher, o real, a fazer-se negativa do sonho. <br /><br />A justaposição "ia-voava", em "sentimento meu ia-voava para ele", extraída de Guimarães Rosa, já referida anteriormente, faz-se tradutora de um sentimento trigoso, pressuroso, impulso amoroso em apressamento que com essa, não com outra voz, deve ser dito. Em Ana Miranda, o "aviso da terra" (p. 11) traz o júbilo desenfreado da sede a ser saciada e que se expressa, aqui também, numa forma justaposta "águafrescáguafresca" transfigurando-se em canto, euforia: <br /><br />"acabada a água do armário do camarote e só chuva para tomar, atinava eu que ia beber água fresca, água fresca, água fresca, água fresca águafrescáguafresca lari lará, molhar as mãos, as ventas, derramar o que fosse, sem contar gota por gota, não ouvir mais gente bradar por água, molhar meus cabelos em um chafariz, bica ... (p. 11)". <br /><br />"Diguice", "conspeito", "percurar, "imigo" são arcaísmos, dentre outros presentes em Guimarães Rosa. A eles acrescenta-se "peia", bagagem, cuja ocorrência em Gil Vicente pode ser comprovada com um excerto da "Farsa de Inês Pereira": "Pero: deitai as peias no chão./Inês: "As perlas para enfiar,/três chocalhos e um novelo/e as peras do capelo: e as peras onde estão?" <br /><br />Também, em Ana Miranda, além de "trigosas", registra-se o arcaísmo "pardeus" interjeição correspondente a "por Deus", cujo emprego pode ser ilustrado pelo verso: "Pardeus! bom ia eu à aldeia", da "Farsa de Inês Pereira", de Gil Vicente. "Rodiquelhe" (p. 24), "alvaiade" (p. 24), "adens" (p. 15), manseza (p. 28) tornam-se ilustrativos de uma freqüência considerável de palavras que dão, à linguagem de Ana Miranda, o acento medieval/popular. <br /><br />Surge, na voz de Oribela, uma língua viva, vida perceptível pela negação de sua unicidade. Não é uma língua social única, mas representante da contínua evolução histórica de uma língua viva. A voz de Oribela busca compreender, a partir desta língua, o desmundo em que se encontra. <br />Há momentos em que, para compreendê-lo, parecem faltar palavras. É necessário entender a vida, "uma rede de tristuras tenebrosas" (p. 125). Neste momento, a metáfora, mais um recurso utilizado pela linguagem rosiana, segundo Arrigucci, comparece na construção de uma linguagem cheia de mistérios a serem descobertos, num "estilo cujo objeto é o próprio estilo".(18) Em Ana Miranda, as metáforas atuam na construção do discurso de Oribela e representam a linguagem poética de forma significativa. Há que se observar uma delas: "nem dobrou minha alma em joelhos" (p. 59). Esta metáfora faz referência à expressão "em joelhos", muitas vezes presente durante o romance, reveladora da concepção medieval de mundo (tantos joelhos viviam a dobrar-se), ainda no século XVI. Quanto à metáfora, não são os joelhos no sentido denotativo que se recusam a dobrar-se, mas os joelhos da alma, a alma que se quer livre, que não se dobra diante de tantas imposições e negações oferecidas pelo mundo novo à alma de quem fosse mulher. Que se quer mistério e não permite que o coração seja desvendado. <br />Nesta metáfora há, ainda, referência a dois aspectos relativos à mulher, que deveriam ser domesticados: a alma e o corpo (representado pela palavra joelho). Quanto a Oribela, os joelhos podem até dobrar-se, mas, quanto à alma ... É ter "numa parte o corpo e noutra o coração" (p. 24). <br /><br />Surgem metáforas que atestam a forma como Oribela compreende o real, mas, até mais que isto, a maneira como procura entender-se enquanto ser humano neste mundo que entra pela porta de seus olhos, a fazer que seus desejos sejam "torcidos com amarguras" (p. 105). <br /><br />Um outro recurso utilizado por Guimarães Rosa, as antíteses, também surge em Desmundo, como a revelar o caráter contraditório mundo versus desmundo, ou seja, a esperança e a desesperança e as próprias dúvidas que atormentam a personagem: "boas mulheres versus putas e regateiras" (p. 35), "poder alembrar e poder esquecer", "luz e sombra" (p. 57), "grande segredo é o morrer, maior segredo é o viver" (p. 66), "sacramentada ao Ximeno versus a suspeitar que ele era o demo" (p. 187) e muitas outras antíteses que, muito mais que as matas, as grandes florestas fazem seu estro perder-se em labirintos sem fim. Quando me atenho com mais vagar a uma destas antíteses "boas mulheres x putas e regateiras" (p. 35), torna-se inevitável um retorno ao intertexto com a história das mentalidades e aos protótipos de mulher forjados pela sociedade colonial: o da santa mãezinha e o da mulher sem qualidades. <br />Ao papel da santa mãezinha estava associado o perfil inspirado na devoção européia à Virgem Maria, e o modelo de feminilidade correspondia à castidade, ao sacrifício e à sociedade. Era necessária a purificação da mulher, desde as origens um agente de Satã, e esta purificação, de forma mais urgente, era mister numa terra como a nossa, onde reinava o Diabo.<br /><br />À mulher sem qualidade, aquela da rua, corresponde o avesso da santa mãezinha, e, por não enquadrar-se no papel a ela destinado, era demonizada e excluída. O uso que fazia da sexualidade era considerado ameaçador, por colocar em perigo o projeto da Igreja e do Estado, segundo o qual o corpo feminino deveria estar a serviço da sociedade patriarcal e do projeto de colonização. <br /><br />Oribela, outras vezes, durante o romance, demarcará esta diferença e parece se perguntar: até que ponto sou uma "santa mãezinha" e até que ponto sou uma "mulher sem qualidade"? Que papel agradaria a ela, de verdade, assumir? <br /><br />Todas as antíteses observadas durante a leitura do romance, parecem culminar em questionamentos acerca de assuntos muito variados, como, por exemplo: Viver, que significa? Morrer? Quem realmente é o mouro? Vida, qual seu significado? <br /><br />Uma outra característica da linguagem rosiana é a utilização da hipérbole (21) propriamente dita, também aproveitada para a elaboração do romance "Desmundo". Há um grande medo do castigo divino, e a hipérbole seguinte representa a enormidade do medo: <br /><br />"ia o pai mandar muitas setas de fogo, gemidos, chamas de enxofre que nunca acabam de queimar, tal que o ímpeto de um rio de lágrimas não poderia apagar (p. 50) um dia Deus alagaria o velho mundo com as águas do céu em que se afogaria todo o gênero humano como se matasse uma vaca brava e a terra ficaria deserta, restando os que tinham vindo ao novo país e quem aqui fosse o mais forte seria o rei do mundo" (p.85). <br /><br />O que se refere a Deus, principalmente no que concerne ao castigo divino, é sempre visto de maneira hiperbólica pela personagem narradora. O hiperbólico se presentifica, também, no que concerne às imagens visionárias que povoam os delírios da personagem central: <br /><br />"era eu devedora de pagar com meu coração no que de mim abriram o peito, um corte fino de dor e as mãos dedudas e grosseiras do algoz se meteram no meu peito a arrancar o coração. (p. 67). <br />Conforme Arrigucci, em Rosa, ocorre uma subversão do esquema lingüístico tradicional, numa quebra da harmonia e da regularidade do clássico na linguagem literária. (22) Em Desmundo, esta subversão também se dá e despontam, então, construções frasais não muito usuais, tais como a expressão "todos chegando o chegar" (p. 13). O contexto em que esta expressão é empregada permite uma melhor compreensão da riqueza de seu significado. Oribela utiliza esta expressão para relatar a alegria da chegada da nau portuguesa às terras brasileiras "tocar com os pés ali naquela terra onde nunca entrava o inverno, arribar, arribar, a salvamento, sem se poder a gente nem a cargo, todos chegando o chegar, deleitando, gozo". Na construção da expressão analisada, comparecem dois termos semelhantes: chegando (verbo conjugado no gerúndio) e chegar (substantivo formado por derivação imprópria). A frase poderia ser simplesmente "Todos chegando", mas, ao acrescentar "o chegar", a autora quer intensificar, mostrar a importância desta chegada, aliás, "Chegada" é o nome da primeira parte do romance, parte em que se localiza o fragmento que está sendo analisado. Ao apropriar-se de um verbo para dar a ele o estatuto de nome e, ainda, utilizá-lo para provocar uma redundância, a autora dá maior sentido à chegada dos portugueses à nova terra e, ao mesmo tempo, subverte a linguagem tradicional. Não é uma chegada qualquer, é uma chegada prenhe de esperança e de desejos de felicidade. <br />Outra construção bastante intrigante pertence ao fragmento localizado na parte dois do romance, intitulada "Terra". As jovens órfãs aguardam seu destino no convento dos padres "esquecidas ali, guardadas, esperando esperandesperando..." A expressão me chama atenção. Exatamente por divergir das construções usuais "esperando esperandesesperando" intensifica a idéia da espera, que é também desespero. A começar pelo uso do gerúndio, tempo verbal que dá idéia de uma ação contínua, a intensificação se faz, também, pela repetição da própria palavra "esperando" três vezes. A elipse do "o" final do segundo emprego da forma "esperando", que se une ao outro "esperando", conota a angústia da espera, monta-se em desespero. É preciso apressar o término da espera, para saber o que as aguarda neste mundo tão novo. <br /><br />Somando-se às várias construções inusitadas, aparecem palavras pertencentes à língua indígena, na fala de Temericô; à língua espanhola, nas falas da Parva e em construções como "No he temor, piedoso es el Señor" (p. 112) e, ainda, à língua latina mesclada à fala/oração de Francisco de Albuquerque. Esta mescla de línguas diferentes colabora para a criação de uma linguagem que remete às diversidades de línguas presentes no século XVI em terras brasileiras. Remeto-me, neste caso, às idéias de Mikhail Bakhtin, no que diz respeito a uma das características do gênero romanesco: a diversidade social de línguas presentes no romance.(23) Mesmo que o romance de Ana Miranda se enuncie como expressão da língua portuguesa, a língua do colonizador, outras línguas aparecem para representar o plurilingüismo. Surgem expressões em espanhol e latim, linguagens muito próximas da língua portuguesa, mas também expressões em língua indígena, a dizerem como o conflito lingüístico pode ser internalizado no próprio discurso. E, ainda mais, o quanto este confronto pode significar também um conflito social e cultural. Na passagem do romance em que Temericô conta a Oribela sua história antes da chegada dos portugueses, este conflito começa a se anunciar: <br /><br />"Cantava cantigas, tocava um pífano de graveto, contava de sua povoação onde amava os pais e irmãos, de quem mais nada sabia, que lhe falavam deles as estrelas, fora ela caça o mato e palavras mansas. Era de um gentio muito antigo que fora lançado fora da sua terra das vizinhanças do mar por outro gentio seu contrário que descera do sertão pela fama da fartura da riba do mar e seus pais e avós perderam as terras que tinham senhoreado muito anos e lhe destruíram as aldeias, roças, matando os que lhes faziam rosto, sem perdoar a ninguém, em frontaria com os contrários numa crua guerra, onde se comiam uns aos outros, os que cativavam ficavam escravos dos vencedores, numas batalhas navais, ciladas por entre as ilhas grandes mortandade e se comiam e se faziam escravos, até chegar o tempo dos portugueses. O - z o - a k y p û e r i, um trás outro, trás de um o outro, mokõî, mokô', mokõî. Tinga" (p. 119). <br />É através do discurso de Oribela que se manifesta o discurso de Temericô e, mesmo o tempo anterior à chegada dos portugueses, é narrado em língua portuguesa, a língua do colonizador. Onde a língua indígena? Está restrita aos termos utilizados nas duas últimas linhas e a linguagem do dominado parece manifestar-se, então, muito mais pela ausência, denúncia da subjugação de uma língua e de um povo. <br />Um outro fragmento textual em que a língua indígena aparece trata do momento em que Temericô pretende ensinar sua língua a Oribela. As palavras indígenas buscam sempre seu equivalente na língua portuguesa, numa tentativa de aproximação de línguas provenientes de culturas extremamente diversas, como a cultura portuguesa européia e a cultura indígena. Nesta tentativa de aproximação, entretanto, o tempo já mostrou, os resultados são desiguais e conduzem ao quase total desaparecimento da língua indígena como se pode hoje constatar.<br /><br />Filme:<br /><br />Ficha Técnica <br />Título Original: Desmundo <br />Gênero: Drama <br />Tempo de Duração: 100 minutos <br />Ano de Lançamento (Brasil): 2003 <br />Estúdio: Columbia Pictures do Brasil <br />Distribuição: Columbia Pictures do Brasil <br />Direção: Alain Fresnot <br />Roteiro: Sabina Anzuategui e Alain Fresnot, baseado em livro de Ana Miranda <br />Produção: Van Fresnot <br />Música: John Neschling <br />Fotografia: Pedro Farkas <br />Desenho de Produção: Ivan Teixeira <br />Direção de Arte: Adrian Cooper e Chico Andrade <br />Figurino: Marjorie Gueller <br />Edição: Júnior Carone, Mayalu Oliveira e Alain Fresnot <br /> <br /> <br />Elenco <br />Simone Spoladore (Oribela) <br />Osmar Prado (Francisco de Albuquerque) <br />Caco Ciocler (Ximeno Dias) <br />Berta Zemei (Dona Branca) <br />Beatriz Segall (Dona Brites) <br />José Eduardo (Governador) <br />Débora Olivieri (Maria) <br />José Rubens Chachá (João Couto) <br />Cacá Rosset (Afonso Soares D'Aragão) <br />Giovanna Borghi (Bernardinha) <br />Laís Marques (Giralda) <br />Arrigo Barnabé (Músico)<br /><br /> <br />Sinopse <br />Brasil, por volta de 1570. Chegam ao país algumas órfãs, enviadas pela rainha de Portugal, com o objetivo de desposarem os primeiros colonizadores. Uma delas, Oribela (Simone Spoladore), é uma jovem sensível e religiosa que, após ofender de forma bem grosseira Afonso Soares D'Aragão (Cacá Rosset) se vê obrigada em casar com Francisco de Albuquerque (Osmar Prado), que a leva para seu engenho de açúcar. Oribela pede a Francisco que lhe dê algum tempo, para ela se acostumar com ele e cumprir com suas "obrigações", mas paciência é algo que seu marido não tem e ele praticamente a violenta. Sentindo-se infeliz, ela tenta fugir, pois quer pegar um navio e voltar a Portugal, mas acaba sendo recapturada por Francisco. Como castigo, Oribela fica acorrentada em um pequeno galpão. Deprimida por estar sozinha e ferida, pois seus pés ficaram muito machucados, ela passa os dias chorando e só tem contato com uma índia, que lhe leva comida e a ajuda na recuperação, envolvendo seus pés com plantas medicinais. Quando ela sai do seu cativeiro continua determinada em fugir, até que numa noite ela se disfarça de homem e segue para a vila, pedindo ajuda a Ximeno Dias (Caco Ciocler), um português que também morava na região.<br /><br /><br /><br />(Apostila 2 de <br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />A Madona de Cedro - Antonio Callado - resumo<br /><br />Publicado em 1957, o romance A Madona de Cedro conta a história de Delfino Manoel, pequeno comerciante de objetos feitos em pedra-sabão, dono de uma lojinha em Congonhas do Campo, Minas Gerais. O livro se abre com Delfino recordando acontecimentos de sua vida, dez anos atrás, que ocorreram na Quaresma. <br /><br />Sendo agora também época da Quaresma, as lembranças voltam com mais força, ocupando boa parte do romance e, conseqüentemente, das atenções do leitor. Ficamos sabendo que Delfino se apaixonara por Marta, moça do Rio de Janeiro, com que efetivamente viria a se casar. Mas o casamento teve um preço, alto para ele e esse é o nó de toda a questão. Para casar-se Delfino precisava de dinheiro, pois o pai da moça só consentiria se o rapaz comprasse uma casa. <br /><br />A ação se passa em Congonhas do Campo, no Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, paróquia do padre infeliz, durante as comemorações da semana santa.<br /><br />As personagens do romance são: um grupo de ladrões de imagens sacras do barroco, muito procuradas pelos antiquários; um milionário americano inescrupuloso disposto a ter uma madona de cedro; um padre em crise existencial.<br /><br />Um amigo de infância, Adriano, oferece a Delfino os meios de resolver o problema do dinheiro, propondo-lhe que roube para seu patrão (o sinistro Juca Vilanova) uma imagem da Virgem, esculpida pelo Aleijadinho e pertencente à Igreja da cidade. Roubando essa imagem e fotografando outra (de Judas) ele poderia ganhar a quantia que necessitava para compra da casa. <br /><br />Para roubar a madona de cedro, pretendida pelo americano rico, o ladrão espera a igreja ficar vazia, com a saída da procissão, entra e se esconde tomando o lugar da imagem do Senhor Morto que fica embaixo do altar.<br /><br />Contando com a liturgia da Igreja que manda que o recinto permaneça fechado e às escuras (Ofício das Trevas) na sexta feira, o ladrão se prepara para dormir e sair quando a igreja reabrir.<br /><br />Com a igreja já fechada, o padre passa pelo altar e vê a imagem do Senhor Morto se mover e acreditando ser um milagre percebe que sua fé não desaparecera.<br /><br />Dez anos, depois, recordando Delfino o fato, seu drama recomeça. Marta, agora sua mulher e mãe de dois filhos, quer que Delfino volte a se confessar, pois não o faz desde a época do roubo, que naturalmente, ela ignora. Quando Delfim está prestes a se confessar, movido por insistência de Marta e do padre Estevão, ressurge o velho amigo Adriano, com outra proposta de Juca Vilanova: devolver a imagem da Virgem, roubada no passado, e roubar outra, antes apenas fotografada - de Judas.<br /><br />Depois de muita indecisão, Delfino propõe-se a restituir a imagem da Virgem a seu antigo lugar, mas recusa-se a roubar a outra. Tudo parece correr bem, no momento em que Delfino recoloca a imagem no altar, mas de repente a igreja se fecha e ele se vê encerrado lá dentro, sozinho e com medo de ser surpreendido e descoberto por todos quando abrissem a igreja, na hora da procissão. Para que isso não aconteçam quando abrem a porta, Delfino se oculta no caixão que ali estava, com a estátua de Cristo, pronto para ser carregado pela multidão através das ruas da cidade. Dessa forma, Delfino sai no lugar de Cristo, em procissão.<br /><br />Quando por fim o reconduzem de volta à igreja e a multidão se retira, sem nada suspeitar, Delfino, julgando-se sozinho, levanta no caixão, matando de susto uma velha beata. O padre Estevão, que também está na igreja, finge não vê-lo. Quando Delfino o procura mais tarde, para confessar finalmente suas culpas e a confusão armada, o padre está em êxtase dizendo que viu um milagre. Pensando que ele se refere à sua aparição na igreja, como um Cristo ressuscitado, Delfino perde a coragem e não confessa. Mas Marta, já informada de tudo, o repreende duramente.<br /><br />Delfino volta desesperado à procura do padre, que então lhe explica que sempre soubera não ter visto o Cristo ressuscitado. Seu êxtase e sua alegria provinham de outro motivo: uma certeza que finalmente, após anos de hesitação, lhe viera de que deveria partir para a Amazônia, cumprir um velho sonho de ser missionário.<br /><br />Delfino então confessa-lhe tudo e o padre o perdoa, mas lhe impõe uma penitência: atravessar a cidade com uma enorme cruz às costas. A princípio ele reage, temeroso de cair no ridículo, mas depois resolve submeter-se, expondo-se ao sarcasmo, risadas, ataques e outras reações das pessoas que o vêem chocadas passar com a cruz, considerando aquilo um sacrilégio. No final da longa caminhada, ganhando novas forças pela visão inesperada de Juca Vilanova, que lhe aparece como a própria figura do demônio, Delfino consegue chegar à porta da Igreja, onde o aguardam o padre e Marta, com um sorriso de perdão nos lábios.<br /><br />Adapt. De Lígia Chiapini Moraes Leite, Lit. Comentada, ed. Abril, 1988. <br /><br />(Apostila 3 de Contemporânea <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />Quarup - Antônio Callado - resumo<br /><br />Publicado em 1967 e traduzido para várias línguas, Quarup é o livro mais famoso de Antônio Callado. É a história de Nando, um padre que vive em Pernambuco e acalenta a utopia de criar no seio da Amazônia, uma nova terra prometida, um novo paraíso, como teriam sido, em seu tempo, as missões jesuíticas no sul do Brasil.<br /><br />No tempo em que Nando ainda vive num mosteiro, sem animar-se a sair em busca da sua utopia, conhece Francisca e o noivo desta, Levindo, jovem estudante que trabalha junto às nascentes Ligas Camponesas. Nando passa então a amar platonicamente Francisca e teme não resistir, quando for conviver com os índios, à visão das índias nuas, pecando assim contra o voto de castidade que fez como sacerdote. Winifred, uma amiga inglesa de Nando, resolve tirá-lo do impasse em que se encontra oferecendo-se a ele. Uma vez mantidas relações sexuais com uma mulher, Nando está pronto para enfrentar as outras que aparecerão no seu caminho e pronto para partir.<br /><br />Antes de chegar ao Xingu passa pelo Rio de Janeiro, onde conhece pessoas ligadas ao Serviço de Proteção aos Índios: Ramiro, o chefe, Vanda, sua sobrinha e secretária, Falua, jornalista e amante de Sônia (por quem Ramiro alimenta grande paixão), Olavo e Lídia, do Partido Comunista, e Fontoura, chefe do Posto Capitão Vasconcelos, no Xingu, e grande amigo dos índios, cuja cultura tenta preservar da destruição causada pela civilização e pelo progresso. Conhecendo-os, Nando conhece também desde jovens mulheres como Vanda até as sensações e "viagens" provocadas pelo cheiro de éter, nas sessões de lança-perfume de que participa com Ramiro e os outros. Fontoura, entretanto, revela-lhe uma dura realidade: a triste situação dos índios, sua pobreza, doenças, sua condição de condenados pelo Brasil "civilizado" que investe sem tréguas, alterando suas vidas, roubando-lhes as terras e a tranqüilidade.<br /><br />Do Rio, Nando parte para o Xingu. A época é 1954, em plena fase do atentado contra Lacerda e dos últimos momentos do governo de Getúlio Vargas. Em Fontoura e em todos no posto do SPI, uma grande expectativa: a presença de Getúlio, que virá para inaugurar o Parque Nacional do Xingu, assegurando a preservação das terras indígenas. Enquanto esperam, ajudam os índios a preparar sua grande festa aos mortos: o Quarup, que, entre outras cerimônias ritualísticas, é constituído de uma grande comilança. Entre lances de caça, pecas, banhos de índios nus e perseguições de Ramiro a Sõnia, chega ao Xingu pelo rádio a notícia do suicídio de Getúlio, e morre em Fontoura a esperança de ver o posto transformado em parque. Cansada das encrencas dos homens brancos, Sônia foge com Anta, um índio bonito, forte e preguiçoso, para desespero de Ramiro e Falua.<br /><br />Na parte seguinte do romance, a história tem continuidade ainda no Xingu, mas muitos anos depois, quando todos se reencontram, menos Sõnia, numa expedição ao centro geográfico do Brasil. Participa também Francisca, que voltara da Europa e perdera o noivo Levindo, morto pela polícia. Reacende-se então o amor de Nando, que se descobre correspondido por Francisca. Dessa vez as coisas não ficam no amor platônico, mas chegam ao contato sexual, no centro da floresta virgem, em meio a orquídeas coloridas.<br /><br />Cada uma com suas obsessões, prosseguem todos na expedição. Ramiro, por exemplo, tem sempre a esperança de encontrar Sônia, vivendo em alguma tribo. Depois de vários riscos, fome e extravios no meio da floresta, enfrentando tribos ferozes ou doentes e famintas, o grupo chega ao centro geográfico, onde é fincado um marco. Autodestruído pela bebida, pois perdera as esperanças de salvar os índios, Fontoura morre em pleno centro geográfico, com o rosto sobre o grande formigueiro que corrói o Brasil, desde o seu coração.<br /><br />Francisca leva terra do centro geográfico para Pernambuco, cumprindo uma promessa feita a Levindo, antes da morte deste. Nando renunciara ao sacerdócio e volta a Pernambuco com Franscisca, que passa a trabalhar na alfabetização de camponeses. Antes disso, os dois desfrutam uma espécie de lua-de-mel no Rio de Janeiro. De volta a Recife, porém, Francisca resolver afastar-se, sacrificando-se pela memória de Levindo. Nessa época, a luta dos camponeses ganha força, sob o governo de Miguel Arraes, ao qual entretanto se opõe Januário, o líder do movimento. Nando resolve ajudar no trabalho das ligas. Com o golpe militar de 31 de março de 1964, Goulart é deposto e, em Pernambuco, Arraes é afastado. Várias prisões são feitas, os líderes são perseguidos. Nando vai parar na cadeia, onde sofre interrogatórios e torturas mais morais do que físicas, especialmente se confrontadas com o sofrimento dos camponeses, antigos companheiros de luta. Quando o soltam, Francisca havia partido novamente para a Europa. Nando recolhe-se então à sua casa da praia (herança de seus pais) e se entrega a uma espécie de "apostolado do amor". Tendo finalmente aprendido com Francisca a arte de amar, de maneira a dar prazer à mulher amada, ele agora distribui amor, fazendo sentirem-se belas as mulheres mais feias e ensinando as técnicas amorosas a vários "discípulos" seus. São pescadores que resolvem segui-lo nessa "nova cruzada", para grande espanto e escândalo de seus antigo companheiros de luta política, em vias de organizarem novamente o movimento revolucionário, desta vez no sertão.<br /><br />No décimo aniversário da morte de Levindo, Nando resolve comemorar a data com uma espécie de réplica do Quarup, um banquete com todos os amigos, pescadores, prostitutas e antigos companheiros de ligas. A cena do grande jantar (espécie de ritual em que se devora antropofagicamente a figura de Levindo) é simultânea à grande Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Os participantes da marcha, juntamente com a policia, invadem a festa: muitos são presos, alguns fogem e Nando é espancado quase até a morte.<br /><br />Socorrido por uma prostituta amiga e por Manuel Tropeiro, antigo companheiro de luta, Nando é levado para a casa do padre Hosana, onde se recupera e decide partir com Manuel Tropeiro para o sertão, voltar às lutas. Antes, porém, passa por sua casa, onde encontras cartas de Francisca, e a polícia que o espreita. Conseguindo matar os guardas, despede-se de Recife e da própria Francisca, que agora não é mais a mulher de carne e osso. Ela é o "centro de Francisca", explica Nando a Manuel e ao leitor. Como precisa mudar de nome, adota o de Levindo e tudo indico que a história se repetirá. Entretanto, o romance termina numa nota alta de otimismo no futuro que aguarda os dois heróis, com Nando vendo "o fio fagulhar ligeiro entre as patas do cavalo como uma serpente de ouro em relva escura".<br /><br />Adapt. De Lígia Chiapini Moraes Leite, Lit. Comentada, Abril Cultural, 1988. <br /> <br /> <br /> <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />O Santo e a Porca - Ariano Suassuna - resumo<br /><br />Resumo do livro<br /><br />Eudoro Vicente manda uma carta a Eurico dizendo que lhe pedirá o seu bem mais precioso. <br />Na casa do comerciante, moram a filha Margarida, a irmã de Eurico, Benona, a empregada Caroba e, já há algum tempo, Dodó, filho do rico fazendeiro Eudoro. Dodó vive disfarçado, finge-se de torto, deformado e sovina. Assim conquistou Eurico, que lhe atribuiu a função de de guardião da filha, quem Dodó namora às escondidas.<br /><br />O desenrolar dos fatos se desencadeira com a carta enviada por Pinhão, empregado de Eudoro e noive de Caroba, empregada de Euricão. Eudoro informa que fará uma visita para pedir esse bem tão precioso a Eurico, que fica apreensivo, pois pensa que lhe pedirá dinheiro emprestado. Eurico insiste em de dizer pobre, repetindo as frases: "Ai a crise, ai a carestia".<br /><br />Na sala da casa de Eurico, onde as cenas se desenrolam, há uma estátua de Santo Antônio, de quem Eurico é devoto, e uma antiga porca de madeira, a quem ele dedica especial atenção e que logo o público saberá que esconde maços de dinheiro.<br /><br />Caroba, muito esperta, percebe que Eudoro pedirá margarida em casamento, é assim que ela entende o bem mais precioso de Eurico que o fazendeiro, pai de Dodó, quer saber. Então ela arma um circo para alcançar alguns objetivos: ganhar algum dinheiro, pois quer casar com Pinhão, casar Dodó e Margarida além de Eudoro e Benona, que já tinham sido noivos há muitos anos. Eudoro, viúvo, querias Margarida, mocinha; Benona, solteirona, queria Eudoro, fazendeiro; Margarida queria Dodó, pois o amava; Caroba e Pinhão se queriam; Euricão queria a porca, ou será que queria a proteção de Santo Antônio para a porca? <br />Caroba negocia uma comissão com Eurico para ajudá-lo a tirar vinte contos de Eudoro Vicente, antes que este peça dinheiro a Eurico. Acertam-se. Aí Caroba convence Benona que Eudoro virá pedi-la em casamento e se dispõe a ajudá-la. São então tramas de Caroba: fazer Eurico pedir vinte contos a Eudoro para o casamento (na realidade, para um jantar); convencer Benona de que Eudoro viria pedi-la em casamento; fazer Eudoro acreditar que pede Margarida; fazer Eurico crer que Eudoro pede Benona; armar um encontro entre Eudoro e Margarida na penumbra; ficar no lugar de Margarida, com o vestido dela. <br />Conseqüências das armações de Caroba: Dodó sente ciúme de Margarida, pois pensa que ela irá encontrar-se com Eudoro; Pinhão sente ciúme de Caroba quando sabe que ela irá em lugar de Margarida; Euricão desconfia que querem roubar sua porca recheada, pois ouve falarem em devorar porca e pensa ser a sua, quando é a do jantar que se encomendou para receber Eudoro; Pinhão desconfia de Eurico e o observa, porque este age estranhamente.<br /><br />Na hora do encontro entre Margarida e Eudoro, Caroba tranca Margarida no quarto, manda Benona permanecer também no seu e vai, vestida de Margarida, receber Eudoro. Dodó vê Caroba e pensa ver Margarida, pois está com o vestido dela. Para não ter que se explicar, Caroba o empurra e tranca no quarto com Margarida. Caroba então veste roupa de Benona e esta a de Margarida. Caroba então recebe Eudoro vestida de Benona. Ele é enganado: pensa estar conversando com a antiga noiva, que se insinua a ele, na penumbra não percebe que é Caroba. Ela o leva ao quarto de Benona e o tranca com a ex-noiva, por quem agora já está novamente interessado.<br /><br />Pinhão ao sair do esconderijo onde estivera observando a cena, vê Caroba e pensa ser Benona e tenta seduzí-la. Ela reage e bate em Pinhão e o manda esperar por Caroba, que tira as roupas de Benona e diz que acompanhou toda a cena, bate outra vez em Pinhão, mas na confusão começam a se beijar. Aí destrancam as portas dos quartos de Margarida e Dodó, Benona e Eudoro, e entram em outro. <br />Dodó e Margarida saem do quarto e pensam ter sido surpreendidos por Eurico, que entra em casa dizendo estar perdido.Na verdade Eurico havia saído para enterrar sua porca recheada dentro do cemitério. A conversa entre Eurico e Dodó é engraçada, pois ambos se enganam: Dodó fala de Margarida, enquanto Eurico fala da porca que desapareceu. Eurico pensa que o rapaz lhe roubou a porca, já que este o traiu. No desespero, Eurico finalmente revela que a porca estava cheia de dinheiro guardado há tantos anos.<br /><br />Com os gritos da discussão, Pinhão e Caroba saem do quarto. Depois Eudoro e Benona do seu. A cena é divertida: são três casais que de repente estão juntos e felizes ante Euricão lamentando a perda da porca. Graças a Caroba os casais se entendem sem Euricão nem Eudoro perceberem o engano de que foram vitimas. Margarida desconfiou de Pinhão e afirmou que ele pegara a porca. Eurico lhe salta no pescoço e Pinhão acaba contando, mas exige vinte contos para dizer onde escondeu a porca, os vinte contos que Eurico conseguiu emprestados de Eudoro com a ajuda de Caroba. Com o vale do dinheiro na mão, mostra a porca que estava na casa mesmo.<br /><br />Então, Eudoro faz Eurico perceber que aquele dinheiro era velho e havia perdido o valor. Eurico se desespera. Tentam dissuadi-lo da importância do dinheiro, mas ele manda todos embora e fica só, com a porca e o Santo, tentando entender o que aconteceu, qual o sentido de tudo que houvera.<br /><br />Resumo adapt. Do Site http://osantoeaporca.vilabol.uol.com.br/<br /><br />Características da Obra de Sussuna:<br /><br />Quando começamos a estudar a produção dos autos de Ariano Suassuna, não podemos dissociar esta análise das produções do escritor Gil Vicente. Ambos possuem semelhanças concretas, principalmente, com relação à:<br /><br />1.construção das personagens - cada personagem representa uma classe social - que é criticada - e, por vezes, possui um nome que o identifica a função que exerce na comunidade onde vive, ou apelidos cômicos, como acontece com João Grilo, Chico, a mulher do padeiro, todos do Auto da Compadecida; Gil Vicente identifica seus personagens como mercadores, padres, pobres, etc., sempre numa alusão às classes da hierarquização social da Era Humanista ( marca o fim da Idade Média );<br /><br />2.religiosidade - ambos os autores reforçam a manipulação que o clero exerce sobre o povo mais simples, compactuando com os interesses econômicos representados por coronéis, bispos (Ariano Suassuna) e por nobres, ricos (Gil Vicente); as figuras de diabos, anjos, Jesus e Nossa Senhora estarão presentes nas obras dos escritores, com a devida evolução de linguagem no caso dos textos de Suassuna - dentre essas a figura que rouba a cena é a do diabo pela sua força expressiva e sua posição de juiz das almas já que enumera as falcatruas dos outros personagens (efetuando, inclusive, uma rememoração da história que está sendo contada).<br /><br />3.crítica social - os períodos históricos em que os autos são escritos apresentam características semelhantes: grande desnivelamento social, fome, desmandos de poderosos e, em se tratando das obras de Suassuna, há o agravante dos fatores naturais que tornam a vida do sertanejo muito difícil.<br /><br />4.ironia - é a grande marca que identifica os autores e é o grande recurso utilizado para elaborar a crítica. Em Gil Vicente, há obras cuja ironia crítica serviu de modelo para as gerações seguintes, como em Auto da Lusitânia (e os personagens "Todo o mundo" e "Ninguém"). E em Ariano Suassuna, o mesmo será comprovado no reconhecido Auto da compadecida, mas também em O santo e a porca e em Farsa da boa preguiça.<br /><br />Comparação com Plauto<br /><br />Na apresentação de sua peça O Santo e a Porca (1957), Ariano Suassuna a sub-intitula de uma "Imitação Nordestina de Plauto", referindo-se à Aululária, do autor latino.<br /><br />A palavra imitação, usada por Suassuna, nos remete ao conceito aristotélico de mímesis, cujo significado não representa apenas uma repetição à semelhança de algo, uma cópia, mas a representação de uma realidade, mais precisamente de uma revelação da essência dessa realidade.<br /><br />Essa essência está representada, nessas duas obras, pela avareza humana.<br /><br />Neste trabalho, pretendemos uma abordagem desse tema, sob o aspecto de como o objeto depositário da avareza foi tratado pelos dois autores: a panela, em Aululária; a porca, na comédia de Suassuna.<br /><br />Optamos pelo enfoque simbólico dessa proposta, visto que a obra de Suassuna, que se declara uma imitação da de Plauto, mantém uma distância de mais de dois milênios da original e está contextualizada, tanto geográfica como culturalmente, numa distância não menor do que a temporal.<br /><br />Nesse paralelo, destacamos a trajetória dos dois objetos que constituem o eixo norteador de toda a ação das duas peças.<br /><br />Na comédia do autor latino (Plauto Titus Maccus - 250?-184? a.C.), de influência grega e estilo tipicamente romano, o velho avarento Euclião descobre na lareira de sua casa uma panela cheia de moedas de ouro deixada por seu avô. O casamento de sua filha com um velho rico é o motivo que origina toda a ação da peça. Os recursos utilizados por Plauto dão à comédia um ritmo ágil e hilariante, cheio de ambigüidades e desencontros. "O diálogo, como em todas as suas peças, lembra a fala rápida da comédia musical americana (e na verdade era representada com acompanhamento musical)" (GASSNER, 1974, p.112).<br /><br />Ariano Suassuna retoma o tema e situa-o no Nordeste. Seu protagonista chama-se Euricão Árabe.<br /><br />Na contracapa do livro de Suassuna (1984), Manuel Bandeira comenta as duas obras:<br /><br />Plauto é o mais linearmente clássico, na sua pintura de um caráter de avarento; Suassuna é o mais complicado, não só pela maior abundância de incidentes na efabulação, como pela evidente intenção de moralidade filosófica; (...) e os elementos nordestinos da porca e seu protetor, o Santo (Santo Antônio) são os grandes achados de Suassuna, e o que confere o timbre de originalidade na volta ao velho tema.<br /><br />Na seqüência das duas narrativas, tanto a panela quanto a porca acompanham todo o ciclo de transformação interior dos respectivos protagonistas, o que nos induz a uma interpretação simbólica desse trajeto.<br /><br />Tomamos como símbolos, na Aululária ou O Vaso de Ouro, o Deus Lar, a lareira, o templo da Fidelidade, o bosque de Silvano e o objeto representativo da avareza, a panela (vaso). Em O Santo e a Porca, temos como correspondentes o Santo Antônio, a sala, o porão, o cemitério e o objeto da avareza, a porca de madeira.<br /><br />Considerando os costumes e as crenças inerentes às duas épocas retratadas pelos autores, cabe primeiramente um destaque à parte mística e mítica das duas peças.<br /><br />Para os romanos, os Lares eram deuses domésticos, protetores de cada família e de cada casa, cultuados no lararium, uma espécie de oratório. Tinham um templo, no Campo de Marte, onde eram feitos os sacrifícios e as oferendas. Interessante destacar que, quando se tratava de sacrifício público, a vítima ofertada era o porco (SPALDING,1982).<br /><br />Euclião, até o momento da perda de sua panela com o tesouro, invoca o deus Hércules, identificado com o deus grego Héracles, símbolo da força combativa. Os romanos também o tinham como divindade protetora dos bens materiais e dos bons lucros nos negócios.<br /><br />Após a perda de seu tesouro, Euclião invoca Júpiter, que simboliza tanto a expansão material como o enriquecimento vital.<br /><br />Santo Antônio, por sua vez, é um santo de grande devoção popular nos países de origem latina. No Nordeste, esse santo é grandemente festejado durante as chamadas festas juninas. É tido, também, como "santo casamenteiro".<br /><br />Euricão Árabe, o velho avarento de O Santo e a Porca, invoca o santo, questiona-o, do início ao fim de sua aventura. Embora, em alguns momentos, oscile entre o santo e a porca, mantém-se fiel ao santo de sua devoção. Esta oscilação poderia representar o movimento entre espiritualidade e materialidade inerentes ao ser humano.<br /><br />Euclião, no entanto, é a imagem da personificação da avareza. Apela para o deus ou divindade que melhor atender à necessidade de determinado momento.<br /><br />Nesse contexto de crenças e costumes, a avareza das duas personagens está representada em dois objetos: a panela (vaso) com o ouro de Euclião, escondida na lareira, e a "porca de madeira, velha e feia (...) com pacotes de dinheiro" (SUASSUNA, 1984, p.13), depositada na sala de Euricão sob a imagem de Santo Antônio.<br /><br />A lareira expressa o simbolismo da vida em comum, do centro da casa. Seu calor e sua luz aproximam as pessoas, é o centro da vida. Assim como a sala, tem o significado de "um santuário, no qual se pede a proteção de Deus, celebra-se o seu culto e guardam-se as imagens sagradas" (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1994, p.536).<br /><br />A panela e a porca de madeira eram guardadas, respectivamente, nesses dois ambientes domésticos - lareira e sala -; portanto, equivalentes.<br /><br />O vaso com as moedas de ouro (a panela de Euclião) representa "um reservatório de vida (...), o segredo da vida espiritual, o símbolo de uma força secreta". Se o vaso for "aberto em cima, indica uma receptividade às influências celestes" (CHEVALIER, GHEERBRANT, 1994, p.932).<br /><br />Por sua vez, a moeda traz uma imagem ambivalente: a de valor e a de alteração da verdade.<br /><br />A porca, juntamente com o porco, são considerados símbolos universais. Este representa a impureza, a voracidade, as tendências obscuras, enquanto que a porca, divinizada desde os egípcios, simboliza a abundância e o princípio feminino de reprodução, de criação da vida.<br /><br />Todo o sentido da vida de Euclião e da de Euricão, simbolizado na panela guardada na lareira e na porca de madeira guardada na sala ao pé do santo, foi ameaçado por um acontecimento inesperado: o casamento das filhas. É o início do processo de vivência da perda:<br /><br />Euricão: Ai minha porquinha adorada! (...) querem levar meu sangue, minha carne meu pão de cada dia, a segurança de minha velhice, a tranqüilidade de minhas noites, a depositária de meu amor! (SUASSUNA, 1984, p.33-34)<br /><br />Diante da ameaça, Euclião esconde seu tesouro no templo da Fidelidade, e Euricão, numa grande cova ("socavão"), no porão de sua casa.<br /><br />No plano simbólico, o templo e a cova sintetizam o lugar dos segredos, a busca ao desconhecido. Para os romanos, em particular, o templo era de grande importância. Lá, eles veneravam seus deuses, acorriam para pedir graças e proteção, em troca de sacrifícios e oferendas Era, pois, o reflexo do mundo divino e de seus mistérios.<br /><br />Impulsionados pela ameaça da perda de seus bens, cultivados durante toda a vida, Euclião e Euricão buscam novo esconderijo para seus tesouros. O primeiro esconde-o no bosque de Silvano; o segundo, no cemitério da igreja.<br /><br />Silvano, para os romanos, era um deus campestre de significação ambígua: protegia a agricultura e presidia às florestas (silva, "floresta") e, ao mesmo tempo, era uma "espécie de bicho-papão" que causava medo às crianças.<br /><br />Além de simbolizar o inconsciente, a floresta carrega o significado do vínculo que as árvores mantêm entre a terra (raízes) e o céu (copa).<br /><br />Euricão esconde sua porca no cemitério da igreja, num socavão entre o túmulo de sua mulher e o muro. O socavão evoca o simbolismo da abertura para o desconhecido, no sentido do imanente ao transcendente; o túmulo, associado à morte, é o lugar da metamorfose, do renascimento, ou das trevas; o muro, também de significado ambíguo, simboliza a separação e a defesa.<br /><br />Podemos sintetizar essa etapa da trajetória dos avarentos como de conflito existencial diante da perda, em direção a uma nova visão de mundo e renovação de valores.<br /><br />Euclião agradece aos deuses, despede-se alegremente de sua panela e a dá de presente aos noivos.<br /><br />Euricão, diante da constatação da realidade (seu dinheiro não tinha mais nenhum valor), sente-se traído pela vida. Melancolicamente, reconhece: "Um golpe do acaso abriu meus olhos (...). Que quer dizer isso, Santo Antônio? Será que só você tem a resposta?" (SUASSUNA, 1984, p.82).<br /><br />Na comparação simbólica das duas comédias, vimos que os elementos representativos da avareza (a panela e a porca) podem ser associados às etapas marcantes da narrativa.<br /><br />O primeiro momento (a panela e a porca; o Deus Lar e Santo Antônio) podemos caracterizar como o do potencial latente e inerente à natureza humana: o material e o espiritual. O poder de acumulação e a visão desses valores são representados, em Euclião e Euricão, pela avareza.<br /><br />O segundo momento, podemos caracterizar como o do conflito e do início da transformação desses valores (o templo da Fidelidade e o porão): a busca ao desconhecido, ou seja, um momento de interiorização e reflexão das personagens, sobre os valores até então tidos como sólidos e permanentes.<br /><br />O terceiro momento, finalmente, seria o da constatação da perda. E, aqui, haveria duas possibilidades de escolha: a da evolução ou a da involução, simbolizada pela ambigüidade do "bosque de Silvano" e a do "cemitério da igreja".<br /><br />A escolha de Euclião e de Euricão foi a da transformação no sentido evolutivo e de discernimento de que os bens materiais são um meio e não um fim. Diríamos que foi uma escolha do caminho ascendente entre a terra e o céu, entre o transitório e o permanente.<br /><br />A avareza dos protagonistas nos remete, em contrapartida, a duas outras personagens, também idosas (Megadoro, na Aululária, e Eudoro, em O Santo e a Porca), que não apresentam tal característica, sendo, portanto, opostas a Euclião e Euricão.<br /><br />Concluindo, lembramos as palavras de Cícero sobre os defeitos comumente atribuídos à velhice. Diz o orador latino que: são defeitos dos costumes, não da velhice. (...) Não compreendo o que a avareza do ancião quer para si mesmo. Há algo de mais absurdo que aumentar as provisões de viagem à medida que menos caminho resta? (CÍCERO, 1980, p.81).<br /><br />Adaptado de Artigo não assinado encontrado no site Feranet (http://www.feranet21.com.br/livros/resumos_ordem/o_santo_e_a_porca.htm)<br /><br />(Apostila 6 de Contemporânea da Lit. Brasileira) <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br /><br />[Volta à Página Principal]<br /><br />ARIANO SUASSUNA - O AUTO DA COMPADECIDA - resumo e análise<br /><br />O AUTO DA COMPADECIDA E O ESTILO DE ÉPOCA<br /><br />O teatro, isto é, o texto teatral é uma forma cultural, diferente de outras formas culturais que têm no texto seu veículo de comunicação. Uma peça teatral, portanto, não é a mesma coisa que um romance, um conto ou um poema, esse últimos indicativos de outra forma cultural, a Literatura. <br />Em linhas gerais, o teatro recebe um impacto muito maior dos condicionamentos de um dado momento histórico, do que, por outro lado, recebe a literatura. Esses impactos se refletem na temática, no tratamento do assunto, nas técnicas propriamente teatrais (cenarização, cenografia, ritmo, iluminação, etc.). Por outro lado, uma peça teatral pode descobrir motivos de criação em outras modalidades essas que podem ou não interessar à Literatura.<br /><br />Uma tragédia de Ésquilo, concebida nos elementos estruturais da cultura grega clássica, pode adquirir uma roupagem interpretativa moderna, e, como representação de um texto, ser perfeitamente assimilável pelo público contemporâneo, tornando-se com isso uma peça moderna.<br /><br />O grande dramaturgo brasileiro, Guilherme de Figueiredo, compôs uma série de textos do teatro moderno brasileiro, que consistem na imposição de uma nova "roupagem" a determinados temas da cultura grega clássica.<br /><br />Em resumo, quando tentamos verificar a que estilo de época se liga um texto teatral, deveremos fazê-lo, não em função de critérios válidos para a Literatura, mas em função de critérios possíveis para a história do teatro.<br /><br />Nesse sentido, verificamos que Auto da Compadecida apresenta os seguintes elementos que permitem a identificação de sua participação num determinado estilo de época da evolução cultural brasileira: <br />1- O texto propõe-se como um auto. Dentro da tradição da cultura de língua portuguesa, o auto é uma modalidade do teatro medieval, cujo assunto é basicamente religioso. Assim o entendeu Paula Vicente, filha de Gil Vicente, quando publicou os textos de seu pai, no século XVI, ordenando-os principalmente em termos de autos e farsas.<br /><br />Essa proposta conduz a que a primeira intenção do texto está em moldá-lo dentro de um enquadramento do teatro medieval português, ou mais precisamente dentro das perspectivas do teatro de Gil de Vicente, que realizou o ideal do teatro medieval um século mais tarde, isso no século XVI, portanto, em plano Quinhentismo (estilo de época).<br /><br />2- O texto propõe-se como resultado de uma pesquisa sobre a tradição oral dor a romanceiros e narrativas nordestinas, fixados ou não em termos de literatura de cordel. Propõe, portanto, um enfoque regionalista ou, pelo menos, organiza um acervo regional com vistas a uma comunicação estética mais trabalhada. <br />3- A síntese de um modelo medieval com um modelo regional resulta, na peça, como concebida pelo Autor. Se verificarmos que as tendências mais importantes do Modernismo definem-se no esforço por uma síntese nacional dos processos estáticos, poderemos concluir que o texto do Auto da Compadecida se insere nas preocupações gerais desse es tilo de época, deflagrado a partir de 1922, com a Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Um modelo característico dessa síntese se encontra em Macunaíma, de Mário de Andrade, de 1927, e em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (1956), entre outros. <br />A ESTRUTURA DO AUTO DA COMPADECIDA<br /><br />A - Personagens. A peça apresenta quinze personagens de cena e uma personagem de ligação e comando do espetáculo.<br /><br />PRINCIPAL: João Grilo<br /><br />OUTRAS: Chicó, Padre João, Sacristão, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Cangaceiro, o Encourado, Manuel, A Compadecida, Antônio Morais, Frade, Severino do Aracaju, Demônio.<br /><br />LIGAÇÃO: Palhaço<br /><br />As personagens são colocadas em primeiro lugar na análise da estrutura da peça porque ela assumem uma posição simbólica, e é desse simbolismo que deriva a importância do texto.<br /><br />· João Grilo é a personagem principal porque atua como criador de tosa as situações da peça. <br />· As demais personagens compõem o quadro de cada situação.<br /><br />· O Palhaço, representando o Autor, liga o circo à representação do Auto da Compadecida.<br /><br />Organizado o quadro desses personagens, vejamos agora as características de cada uma delas. <br /> <br />a) JOÃO GRILO. A dimensão de sua importância surge logo no início da peça quando as personagens são apresentadas ao público pelo Palhaço. Apenas duas personagens se dirigem ao público. Uma, a chamado do Palhaço, a atriz que vai representar a Compadecida, e João Grilo.<br /><br />"PALHAÇO: Auto da Compadecia! Umas história altamente moral e um apelo à misericórdia. <br />JOÃO GRILO: Ele diz "à misericórdia", porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada" (p.24).<br /><br />Mas a importância inequívoca de João Grilo na estrutura da peça define-se a partir do fato de que as situações do Auto da Compadecida são todas desenvolvidas por essa personagem:<br /><br />1ª) a benção do cachorro, e o expediente utilizado: o Major Antônio Morais. JOÃO GRILO: "Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se péla. Não viu a diferença? Antes era " Que maluquice, que besteira!", agora "Não veja mal nenhum em se abençoar as criatura de Deus!" (p.33).<br /><br />2ª) a loucura do Padre João, como justifica para o Major Antônio Morais. JOÃO GRILO: /.../ "É que eu queria avisar para Vossa Senhoria não ficar espantado: o padre está meio doido".(p.40). "Não sei, é a mania dele agora. Benzer tudo e chama a gente de cachorro"(p.41).<br /><br />3ª) o testamento do cachorro. JOÃO GRILO: "Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, coma a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoada e morrer como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse que vinha encomendar a benção e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão" (p.63-64).<br /><br />4ª) o gato que "descome dinheiro". JOÃO GRILO: "Pois vou vender a ela, para tomar lugar do cachorro, um gato maravilhoso, eu descome dinheiro" (p.38). "Então tiro. (Passa a mão no traseiro do gato e tira uma prata de cinco tostões). Esta aí, cinco tostões que o gato lhe dá de presente"(p.96). <br />5ª) a gaita que fecha o corpo e ressuscita. JOÃO GRILO: "Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer" (p.122).<br /><br />6ª) a "visita" ao Padre Cícero. JOÃO GRILO: "Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você volta" (p.127).<br /><br />Essa situação decorre da anterior, mas pode ser considerada com o independente. <br />7ª) o julgamento pelo Diabo (o Encourado). JOÃO GRILO: "Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida!"(p.144).<br /><br />8ª) o apelo à misericórdia (À Virgem Maria). JOÃO GRILO: "Ah, isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver?" (p.169).<br /><br />Observemos agora a distribuição das personagens nas situações acima definidas, situações essas todas elas deflagradas por João Grilo, como já foi observado:<br /><br />SITUAÇÃO/ PERSONAGENS/ CONTEÚDO DA SITUAÇÃO<br /><br />1ª João Grilo Chicó Padre João: a bênção do cachorro da mulher do padeiro.Expediente de João Grilo: o cachorro pertence ao Major Antônio Morais.<br /><br />2ª João Grilo Chicó Antônio Morais Padre: chega o Major Antônio Morais.Expediente de João Grilo: o Padre João está maluco, benze a todos e chama todo mundo de cachorro.<br /><br />3ª João Grilo Padre MulherPadeiro Chicó Sacristão Bispo: o testamento do cachorro morto.Expediente de João Grilo: o cachorro morto, encomendado em latim e tudo mais, deixa no seu testamento dinheiro para o Sacristão, para o Padre e para o Bispo.Fonte do dinheiro: o Padeiro e sua mulher.<br /><br />4ª João Grilo Chicó Mulher: a mulher do Padeiro lamenta a perda de seu cachorro.Expediente de João Grilo: arranja-lhe um gato que descome dinheiro. Vende-o e afaz seu lucro.<br /><br />5ª João Grilo Chicó Bispo Padre Padeiro Frade Sacristão Mulher Severino (do Aracaju) Cangaceiro: o assalto do cangaceiro Severino do Aracaju.Expediente de João Grilo: a gaita que fecha o corpo e ressuscita. A bexiga cheia de sangue.Evento especial: todas as personagens morrem, inclusive João Grilo.<br /><br />Salva-se Chico<br /><br /> <br />6ª Palhaço João Grilo Chicó Todas as demais personagens Demônio O Encourado Manuel: ressurreição no picadeiro do circo. O Julgamento pelo Demônio, pelo Encourado e por Manuel (Cristo).Expediente de João Grilo: forçar o julgamento, ouvindo os pecadores.<br /><br />7ª Todas as personagens A Compadecida: condenação dos pecadores, Expediente de João Grilo: apelo à misericórdia da Virgem Maria.<br /><br />Pela composição do quadro acima, nota-se que em todas as seqüências a presença de João Grilo é fundamental. Daí a afirmação de que a peça gira em torno dessa personagem, do ponto de vista estrutural. <br />Que é João Grilo?<br /><br />· João Grilo é uma figura típica do nordestino sabido, analfabeto e amarelo. <br />· Habituado a sobreviver e a viver a partir e expedientes, trabalha na padaria, vive em desconforto e a miséria é sua companheira.<br /><br />· Sua fé nas artimanhas que cria, reflete, no fundo, uma forma de crença arraigada na proteção que recebe, embora sem saber, da Compadecida. É essa convicção que o salva. E ele recebe nova oportunidade de Manuel (Cristo), retornando- à vida e à companhia de Chicó. É uma oportunidade inusitada de ressurreição e retorno à existência. Caberá a ele provar que essa oportunidade foi ou não bem aproveitada.<br /><br />b) CHICÓ. Companheiro constante de João Grilo e, especialmente, seu diálogo. Chicó envolve-se nos expedientes de João Grilo e é seu parceiro, mais por solidariedade do que por convicção íntima. Mas é um amigo leal.<br /><br />c) PADRE JOÃO, O BISPO e o SACRISTÃO. Essas personagens, embora de atuação diversa, estão concentradas em torno de simonia e da cobiça, relacionada com a situação contida no testamento do cachorro. <br />d) ANTÔNIO MORAIS. É a autoridade decorrente do poder econômico, resquício do coronelismo nordestino, a quem se curvam a política, os sacerdotes e a gente miúda.<br /><br />e) PADEIRO e sua MULHER. Encarnam, um lado, a exploração do homem pelo homem e, de outro, o adultério. <br />f) SEVERINO DO ARACAJU e o CANGACEIRO. Representam a crueldade sádica, e desempenham um papel importante na seqüência de número cinco, porque nessa seqüência matam e são mortos. Com isso propicia-se a ressurreição e o julgamento.<br /><br />g) O ENCOURADO e o DEMÔNIO. Julgam, aguardando seu benefício, isto é, o aumento da clientela do inferno. É importante verificar que representam, de alguma forma, um instrumento da Justiça, encarnado em Manuel (O Cristo).<br /><br />h) MANUEL. É o Cristo negro, justo e onisciente, encarnação do verbo e da lei. Atua como julgador final dos da prudência mundana, do preconceito, do falso testemunho, da velhacaria, da arrogância, da simonia, da preguiça. Personagem a personagem têm seu pecado definido e analisado, com sabedoria e com prudência.<br /><br />i) A COMPADECIDA. É Nossa Senhora, invocada por João Grilo, o ser que lhe dará a Segunda oportunidade da vida. Funciona efetivamente como medianeira, plena de misericórdia, intervindo a favor de quem nela crê, João Grilo.<br /><br />B- Estrato metafísico. Pela atuação das personagens, pelo sentido global que encima a peça, percebemos claramente que nela existe uma proposição metafísica, vinculada à Igreja Católica e à idéia da salvação. <br />Ao lado da significação global do texto, como estrutura, o Palhaço define essa proposição claramente. <br />O Palhaço realiza, nessa peça, o papel do Corifeu, no teatro clássico, e sua intervenção corresponde à parábase da comédia clássica - trecho fora do enredo dramático em que as idéias e as intenções ficam claramente expressas:<br /><br />PALHAÇO: "Ao escreve esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua lama é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo e tem direito a certas intimidades" (p.23-24).<br /><br />"/.../ Espero que todos os presente aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenho certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes" (p.137). <br />A intenção moral, ou moralidade da peça, fica muito clara, desde que se torne claro, também, que essa intenção vincula-se a uma linha de pensamento religioso, e da Igreja Católica.<br /><br />NOTA: Adaptado da análise do livro Vestibular-76 (1976), da Editora O Lutador-MG, edição dirigida aos exames vestibulares da UFMG. <br /><br />O Filme:<br /><br />Título Original: O Auto da Compadecida<br /><br />Gênero: Comédia<br /><br />Origem/Ano: BRA/1999<br /><br />Duração: 104 min<br /><br />Direção: Guel Arraes / Mauro Mendonça Filho<br /><br />Elenco: <br /><br />Fernanda Montenegro...PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-55750104921950016.post-14742470745278442612009-04-22T11:47:00.000-07:002009-04-29T02:49:44.655-07:00Modernismo geração 45 modernismo brasileiro (pós modernismo)<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjk_SffwJ1IE-YE2xUehk9D_cscFgMI9NPsQRFkLJLI2BDC-szy2oSJgnReWKubFtmVZj2hrHo8u5VXUlIoTPPRmSTT44shPIzP5Xq_5yby8lkeozunzrcRMgI-ACoLQNnt_xsNd2kaJCI/s1600-h/3076950863_b96acbbf45_o.gif"><img style="float:left; margin:0 10px 10px 0;cursor:pointer; cursor:hand;width: 320px; height: 240px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjk_SffwJ1IE-YE2xUehk9D_cscFgMI9NPsQRFkLJLI2BDC-szy2oSJgnReWKubFtmVZj2hrHo8u5VXUlIoTPPRmSTT44shPIzP5Xq_5yby8lkeozunzrcRMgI-ACoLQNnt_xsNd2kaJCI/s320/3076950863_b96acbbf45_o.gif" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5330048218452065922" /></a><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQO-anVA92iGDRLzv_0MvTNHg4mRREasrUiaROAX6GDL68HxZ0OFgyjR-Z0OABLSlYOAyfFpJaNH6ACeKEjmPUXAnA2r06YI5QllTiBmbW4l5UhQkxte_RJ7l-V_fhxOXIaH0EvbXwi1c/s1600-h/POESIA+DE+45.jpg"><img style="float:left; margin:0 10px 10px 0;cursor:pointer; cursor:hand;width: 320px; height: 320px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQO-anVA92iGDRLzv_0MvTNHg4mRREasrUiaROAX6GDL68HxZ0OFgyjR-Z0OABLSlYOAyfFpJaNH6ACeKEjmPUXAnA2r06YI5QllTiBmbW4l5UhQkxte_RJ7l-V_fhxOXIaH0EvbXwi1c/s320/POESIA+DE+45.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5330048218333090034" /></a><br />Affonso Ávila<br />(Belo Horizonte MG, 1928)<br />Publicou seu primeiro livro de poesia, O Açude. Sonetos da Descoberta, em 1953. Na época, trabalhava como auxiliar de gabinete do então governador Juscelino Kubitschek e como colaborador dos periódicos Diário de Minas, Tendência e Estado de Minas. Nos anos seguintes, participaria da campanha de JK para presidente e se aproximaria dos poetas concretistas de São Paulo. Em 1961, saiu seu livro Carta do Solo; em 1963, era a vez de Frases-feitas. Em 1967, tornou-se colaborador da revista Invenção, do grupo concretista. Sua identificação com a poesia de vanguarda o levaria a retirar sua participação na I Bienal Nestlé de Literatura, em protesto aos ataques às vanguardas dos anos 60. Em 1991 recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia, pelo livro O Visto e o Imaginado (1990). Sua poesia, bastante influenciada pelo concretismo, caracteriza-se pela experimentação lingüística e pela forte presença temática do erotismo e do engajamento ideológico.<br />Anti-Sonetos Ouropretanos <br />I<br />da vila rica de ouro preto o ouro<br />do preito o ouro do pilar o ouro<br />do pórtico o ouro do púlpito o ouro<br />do paramento o ouro do pálio o ouro<br /><br />do panteão o ouro do pacto o ouro<br />do percalço o ouro do perjúrio o ouro<br />do patíbulo o ouro do proscrito o ouro<br />do prêmio o ouro do palimpsesto o ouro<br /><br />do pedágio o ouro do pecado o ouro<br /><br />do pulha o ouro do podre o ouro<br />do polvo o ouro do puro o ouro<br /><br />do pobre o ouro do povo o ouro<br />do poeta o ouro do peito o ouro<br />da rima rica de outro preto o ouro<br /><br />II<br />a cidade da hera e de idade<br />a antiguidade de édito e de idade<br />a posteridade de efígie e de idade<br />a eternidade de essência e de idade<br /><br />a majestade de espírito e de idade<br />a gravidade de espectro e de idade<br />a dignidade de ênfase e de idade<br />a imobilidade de enlevo e de idade<br /><br />a obliquidade de eflúvio e de idade<br />a soledade de exílio e de idade<br />a fatalidade de exaustão e de idade<br /><br />a castidade de espera e de idade<br />a carnalidade de efêmero e de idade<br />a cidade de eros e de idade<br />Frases-Feitas <br />façamos a revolução<br />antes que o povo a faça<br />antes que o povo à praça<br />antes que o povo a massa<br />antes que o povo na raça<br />antes que o povo: A FARSA<br /><br />o senso grave da ordem<br />o censo grávido da ordem<br />o incenso e o gáudio da ordem<br />a infensa greve da ordem<br />a imensa grade DA ORDEM<br /><br />terra do lume e do pão<br />terra do lucro e do não<br />terra do luxo e do não<br />terra do urso e do não<br />terra da usura e DO NÃO<br /><br />mais da lei que dos homens<br />mais da grei que os come<br />mais do dê que do tome<br />mais do rei que do nome<br />mais da rês que DA FOME<br /><br />num peito de ferro<br />é um coração de ouro<br />é o quorum a ação do ouro<br />é o coro a ação do ouro<br />é a cor a ópio-ação do ouro<br />é a gorda nação DO OURO<br /><br />(...)<br /><br />libertas quae sera tamen<br />liberto é o ser que come<br />livre terra ao sertanejo<br />livro aberto será a trama<br />LIBERTO QUE SERÁ O HOMEM<br />Soneto de Amor<br />O coração não pulsa a clave dura<br />Cantando a rosa de si mesma urdida,<br />Seu tempo esculpe a aurora sem medida<br />Sobre as orlas da carne que amadura. <br /><br />Nenhuma fonte aqui nos inaugura<br />Com a floração de água surpreendida,<br />Revolvemos os campos onde a vida<br />Pendoa-se e aos seus dias transfigura.<br />Confluência de vento e flauta rústica,<br />Em nosso lábio colhem outra acústica<br />Os pássaros moldados pela tarde.<br />Entanto, despojando-se de tudo<br />O amor ainda se apura e, embora mudo,<br />Faz do silêncio a fórmula de alarde. Os Insurgentes <br />O LÚRIDO JOIO DO REVERSO<br />(...)<br />onde o vôo insurgente de Antônio<br />como poderá ser independente um povo<br />que não produz toda a roupa de que se veste<br /><br />onde o vôo insurgente de Artur<br />é a questão do nosso minério de ferro<br />é o futuro do Brasil, que se atira criminosamente<br />pela janela,<br />como se faz a um traste incômodo e imprestável<br /><br />onde o vôo insurgente de Aníbal<br />queria ver como surgiam as novas gerações<br />todos livres da exploração e do medo<br /><br />onde o vôo insurgente de Murilo<br />grandes da terra, tremei nas cadeiras blindadas<br />que já vem a cólera santa<br />abrindo narinas de fogo<br /><br />onde o vôo insurgente de Carlos<br />o poeta<br />declina de toda responsabilidade<br />na marcha do mundo capitalista<br />e com suas palavras, intuições, símbolos e<br />outras armas<br />promete ajudar<br />a destruí-lo<br /><br />O LÚCIDO JOGO DO REVÉS<br />Os Negros de Itaverava <br />Três negros de Itaverava,<br />irmãos em sangue e aflição,<br />não dormiam, como os outros,<br />a noite que é sujeição,<br />dormiam, sim, as auroras<br />— as luzes em combustão<br />dos sonhos que, mesmo estéreis,<br />sucedem no coração.<br /><br />Enquanto as almas penadas<br />nos caminhos pranteavam<br />o corpo que se perdera<br />e os cães com elas choravam,<br />na senzala não se ouviam<br />os passos que se cuidavam,<br />as vozes que, a medo e susto,<br />no paiol confabulavam.<br /><br />Para quem é jaula o dia,<br />que seja conspiração<br />de perfídia e sortilégio,<br />de roubo e contravenção<br />a noite cujas estradas<br />não se sabe aonde dão,<br />a noite que enlaça o negro<br />com seus silêncios de irmão.<br />(...)<br />Por Carmen Miranda <br />balangandãs<br />brinco de ouro e uma<br />bolota assim gozo os três<br /><br />bês de carmen e<br />bambo na cama decodifico afinal o que é que a<br />baiana tem<br />Por Leila Diniz <br />dizer a leila<br />diniz<br />dispa-se e<br />disparar<br />disposto<br />Por Tarsila do Amaral <br />comer o t<br />comer o ar<br />comer a sila<br /><br />comer o que se o bicho antropófago já<br />comeu<br />V Internacional <br />O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de<br />jovens dentre eles um negro e um barbado<br /><br />O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de<br />jovens negros e barbados<br /><br />O poeta é visto todos os sábados no bar com um grupo de<br />jovens barbados<br /><br />O poeta é visto no bar com um grupo de jovens barbados<br /><br />O poeta é visto no bar com um grupo de barbados<br /><br />O poeta é visto com um grupo de barbados<br /><br />O poeta é visto com uns barbados estranhos<br /><br />O poeta é visto com uns barbados suspeitos<br /><br />O poeta é visto com uns suspeitos<br /><br />O poeta é um suspeito<br /><br />O poeta é suspeito<br /><br />O POETA É UM TERRORISTA<br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />CARLOS PENA FILHO<br />Carlos Souza Pena Filho (1929 – 1960),fez no Recife sua vida de poeta. Em 1952 publicou seu primeiro livro de poesias, “O tempo da busca”. Em 1955, “Memórias do boi Serapião”, ilustrado por Aloísio Magalhães. “A vertigem lúcida” foi publicado em 1958, e, no ano seguinte, sua obra foi reunida no “Livro Geral”. Organizada por seu biografo Edilberto Coutinho, em 1983 foi publicada a antologia “Os melhores poemas de Carlos Pena Filho”.<br />Em parceria com Capiba, renomado músico pernambucano, foi autor de letras de músicas de sucesso, entre as quais destacamos “A mesma rosa amarela”, incorporada ao movimento da Bossa Nova na voz de Maysa. Compôs com Capiba as seguintes canções: "A Mesma Rosa Amarela", "Claro Amor", "Pobre Canção" e "Manhã de Tecelã", todas gravadas em 1960 (selo Mocambo) sob o título "Sambas de Capiba"<br />Carlos Pena Filho morreu precoce e tragicamente no dia 1º de julho de 1960, vítima de um acidente automobilístico. Foi da redação do “Jornal do Commercio” — onde trabalhava — que pegou carona no carro de um amigo que se chocaria com um ônibus. No jornal assinou duas colunas: “Literatura” e “Rosa dos Ventos”. Cinco dias antes da sua morte, 26/6/60, foi publicado no “JC” seu último poema, que acima reproduzimos.<br />A PALAVRA<br />Navegador de bruma e de incerteza,<br />Humilde me convoco e visto audácia<br />E te procuro em mares de silêncio<br />Onde, precisa e límpida, resides.<br />Frágil, sempre me perco, pois retenho<br />Em minhas mãos desconcertados rumos<br />E vagos instrumentos de procura<br />Que, de longínquos, pouco me auxiliam.<br />Por ver que és claridade e superfície,<br />Desprendo-me do ouro do meu sangue<br />E da ferrugem simples dos meus ossos,<br />E te aguardo com loucos estandartes<br />Coloridos por festas e batalhas.<br />Aí, reúno a argúcia dos meus dedos<br />E a precisão astuta dos meus olhos<br />E fabrico estas rosas de alumínio<br />Que, por serem metal, negam-se flores<br />Mas, por não serem rosas, são mais belas<br />Por conta do artifício que as inventa.<br />Às vezes permaneces insolúvel<br />Além da chuva que reveste o tempo<br />E que alimenta o musgo das paredes<br />Onde, serena e lúcida, te inscreves.<br />Inútil procurar-te neste instante,<br />Pois muito mais que um peixe és arredia<br />Em cardumes escapas pelos dedos<br />Deixando apenas uma promessa leve<br />De que a manhã não tarda e que na vida<br />Vale mais o sabor de reconquista.<br />Então, te vejo como sempre foste,<br />Além de peixe e mais que saltimbanco, <br />Forma imprecisa que ninguém distingue<br />Mas que a tudo resiste e se apresenta<br />Tanto mais pura quanto mais esquiva.<br />De longe, olho teu sonho inusitado<br />E dividido em faces, mais te cerco<br />E se não te domino então contemplo<br />Teus pés de visgo, tua vogal de espuma,<br />E sei que és mais que astúcia e movimento,<br />Aérea estátua de silêncio e bruma<br />A DÁDIVA DOS AMANTES<br />Deu-lhe a mais limpa manhã<br />Que o tempo ousara inventar.<br />Deu-lhe até a palavra lã,<br />E mais não podia dar.<br />Deu-lhe o azul que o céu possuía<br />Deu-lhe o verde da ramagem,<br />Deu-lhe o sol do meio dia<br />E uma colina selvagem.<br />Deu-lhe a lembrança passada<br />E a que ainda estava por vir,<br />Deu-lhe a bruma dissipada<br />Que conseguira reunir.<br />Deu-lhe o exato momento<br />Em que uma rosa floriu<br />Nascida do próprio vento;<br />Ela ainda mais exigiu.<br />Deu-lhe uns restos de luar<br />E um amanhecer violento<br />Que ardia dentro do mar.<br />Deu-lhe o frio esquecimento<br />E mais não podia dar.<br />A SOLIDÃO E O SEU DESGASTE<br />Freqüentador da solidão, às vezes<br />Jogava ao ar um desespero ou outro,<br />Mas guardava os menores objetos<br />Onde a vida morava e o amor nascia.<br />Era uma carga enorme e sem sentido,<br />Um silêncio magoado e impermeável...<br />A solidão povoada de instrumentos,<br />Roubando espaço à andeja liberdade.<br />Mas, hoje, é outro que nem lembra aquele<br />Passeia pelos campos e os despreza<br />E porque sabe com certeza clara,<br />O princípio e o fim da coisa amada,<br />Guarda pouco da vida e o que retém<br />É só pelo impossível de eximir-se.<br />A SOLIDÃO E SUA PORTA<br />Quando mais nada resistir que valha<br />A pena de viver e a dor de amar<br />E quando nada mais interessar<br />(Nem o torpor do sono que se espalha)<br />Quando pelo desuso da navalha<br />A barba livremente caminhar<br />E até Deus em silêncio se afastar<br />Deixando-te sozinho na batalha<br />A arquitetar na sombra a despedida<br />Deste mundo que te foi contraditório<br />Lembra-te que afinal te resta a vida <br />Com tudo que é insolvente e provisório<br />E de que ainda tens uma saída<br />Entrar no acaso e amar o transitório.<br />DESMANTELO AZUL<br />Então pintei de azul os meus sapatos<br />Por não poder de azul pintar as ruas<br />Depois vesti meus gestos insensatos<br />E colori as minhas mãos e as tuas<br />Para extinguir de nós o azul ausente<br />E aprisionar o azul nas coisas gratas<br />Enfim, nós derramamos simplesmente<br />Azul sobre os vestidos e as gravatas<br />E afogados em nós nem nos lembramos<br />Que no excesso que havia em nosso espaço<br />Pudesse haver de azul também cansaço<br />E perdidos no azul nos contemplamos<br />E vimos que entre nascia um sul<br />Vertiginosamente azul: azul.<br />PARA FAZER UM SONETO<br />Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,<br />E espere um instante ocasional<br />Neste curto intervalo Deus prepara<br />E lhe oferta a palavra inicial<br />Ai, adote uma atitude avara<br />Se você preferir a cor local<br />Não use mais que o sol da sua cara<br />E um pedaço de fundo de quintal<br />Se não procure o cinza e esta vagueza<br />Das lembranças da infância, e não se apresse<br />Antes, deixe levá-lo a correnteza<br />Mas ao chegar ao ponto em que se tece<br />Dentro da escuridão a vã certeza<br />Ponha tudo de lado e então comece.<br />RETRATO DO PINTOR REINALDO FONSECA<br />Mas tanta cor não cabe neste espaço<br />e arrebenta os limites que a circundam<br />as meninas de luto que aqui dormem<br />dentro do próprio sono se equilibram<br />Em tuas mão manchadas de ternura,<br />pousam brancos pássaros. por isso<br />falas atrás da sombra, e à luz mais forte<br />ruminas teu silêncio inquebrantável<br />Se o que possui o céu de puro e simples<br />algum dia cair sobre o teus ombros<br />imperturbável, pintarás um anjo<br />E nunca mais palavras além da sombra<br />que o que restar de ti será somente<br />o profundo silêncio inquebrantável<br />SONETO SUPERFICIAL COM MADAME<br />Madame, em vosso claro olhar, e leve,<br />navegam coloridas geografias,<br />azul de litoral, paredes frias,<br />vontade de fazer o que não deve<br />ser feito, por ser coisa de outros dias<br />vivida num instante muito breve,<br />quando extraímos sal, areia e neve<br />de vossas mãos, singularmente esguias.<br />Que eternos somos, dúvida não tenho,<br />nem posso abandonar minha planície<br />sem saber se em vós há o que em vós venho<br />buscar. E embora em nós tudo nos chame,<br />jamais navegarei a superfície<br />de vosso claro e leve olhar, Madame.<br />SONETO DA BUSCA<br />Eu quase te busquei entre os bambus<br />para o encontro campestre de janeiro<br />porém, arisca que és, logo supus<br />que há muito já compunhas fevereiro.<br />Dispersei-me na curva como a luz<br />do sol que agora estanca-se no outeiro<br />e assim também, meu sonho se reduz<br />de encontro ao obstáculo primeiro.<br />Avançada no tempo, te perdeste<br />sobre o verde capim, atrás do arbusto <br />que nasceu para esconder de mim teu busto.<br />Avançada no tempo, te esqueceste<br />como esqueço o caminho onde não vou<br />e a face que na rua não passou.<br />SONETO AO RECANTO<br />Num recanto sem data e sem ternura,<br />E mais, sem pretensão a ser recanto,<br />Descobri em teu corpo o amargo canto<br />De que despenca para a desventura.<br />Há nos recantos sempre uma segura<br />Desvantagem de unir o desencanto<br />E é por isso talvez que não me espanto<br />De ali perder teu corpo e a ventura.<br />De viver entre atento e descuidado,<br />Mirando o pardo tédio que descansa<br />Nos subúrbios do amor desmantelado.<br />E só para ganhar mais espessura<br />Eu resolvi fazer esta lembrança<br />De um recanto sem data e sem ternura.<br />SONETO DAS DEFINIÇÕES<br />Não falarei de coisas, mas de inventos<br />e de pacientes buscas no esquisito.<br />Em breve, chegarei à cor do grito,<br />à música das cores e do vento.<br />Multiplicar-me-ei em mil cinzentos<br />(desta maneira, lúcido, me evito)<br />e a estes pés cansados de granito<br />saberei transformar em cataventos.<br />Daí, o meu desprezo a jogos claros<br />e nunca comparados ou medidos<br />como estes meus, ilógicos, mas raros.<br />Daí também, a enorme divergência<br />entre os dias e os jogos, divertidos<br />e feitos de beleza e improcedência.<br />SONETO DAS METAMORFOSES<br />Carolina, a cansada, fez-se espera<br />e nunca se entregou ao mar antigo.<br />Não por temor ao mar, mas ao perigo<br />de com ela incendiar-se a primavera.<br />Carolina, a cansada que então era,<br />despiu, humildemente, as vestes pretas<br />e incendiou navios e corvetas<br />já cansada, por fim, de tanta espera.<br />E cinza fez-se. E teve o corpo implume<br />escandalosamente penetrado<br />de imprevistos azuis e claro lume.<br />Foi quando se lembrou de ser esquife:<br />abandonou seu corpo incendiado<br />e adormeceu nas brumas do Recife. SONETO PARA GRETA GARBO<br />Entre silêncio e sombra se devora<br />e em longínquas lembranças se consome<br />tão longe que esqueceu o próprio nome<br />e talvez já não sabe por que chora<br />Perdido o encanto de esperar agora<br />o antigo deslumbrar que já não cabe<br />transforma-se em silêncio por que sabe<br />que o silêncio se oculta e se evapora<br />Esquiva e só como convém a um dia<br />despregado do tempo, esconde a tua face<br />que já foi sol e agora é cinza fria<br />Mas vê nascer da sombra outra alegria<br />como se o olhar magoado contemplasse<br />o mundo em que viveu, mas que não via.<br />SONETO OCO<br /><br />Neste papel levanta-se um soneto,<br />de lembranças antigas sustentado,<br />pássaro de museu, bicho empalhado,<br />madeira apodrecida de coreto.<br /><br />De tempo e tempo e tempo alimentado,<br />sendo em fraco metal, agora é preto.<br />E talvez seja apenas um soneto<br />de si mesmo nascido e organizado.<br /><br />Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,<br />pois não sei como foi arquitetado<br />e nem me lembro quando apareceu.<br /><br />Lembranças são lembranças, mesmo pobres,<br />olha pois este jogo de exilado<br />e vê se entre as lembranças te descobres.<br />SONETO À FOTOGRAFIA<br />Libertar-se ligeiro da moldura <br />é o desejo da face, onde, o desgosto <br />emigrado do poço de água impura, <br />vai se aninhar na hora do sol posto. <br />Do lugar da prisão vem a tortura, <br />pois vê, do seu retângulo, teu rosto <br />e acorrentado na parede escura, <br />não pode engravidar-te para agosto. <br />Guarda ainda no olhar instante e viagem: <br />o instante em que foi presa pela imagem <br />e o roteiro que fez em mundo alheio. <br />E eterna inveja do seu sósia ausente <br />que, embora prisioneiro da corrente, <br />habita num subúrbio do teu seio.<br />MARINHA <br />Tu nasceste no mundo do sargaço <br />da gestação de búzios, nas areias. <br />Correm águas do mar em tuas veias, <br />dormem peixes de prata em teu regaço. <br />Descobri tua origem, teu espaço, <br />pelas canções marinhas que semeias. <br />Por isso as tuas mãos são tão alheias, <br />Por isso teu olhar é triste e baço. <br />Mas teu segredo é meu, ó, não me digas <br />onde é tua pousada, onde é teu porto, <br />e onde moram sereias tão amigas. <br />Quem te ouvir, ficará sem teu conforto <br />pois não entenderá essas cantigas <br />que trouxeste do fundo do mar morto.<br />RETRATO CAMPESTRE<br />Havia na planície um passarinho, <br />Um pé de milho e uma mulher sentada. <br />E era só. Nenhum deles tinha nada <br />com o homem deitado no caminho. <br /><br />O vento veio e pôs em desalinho <br />a cabeleira da mulher sentada <br />e despertou o homem lá na estrada <br />e fez canto nascer no passarinho. <br /><br />O homem levantou-se e veio, olhando <br />a cabeleira da mulher voando <br />na calma da planície desolada. <br /><br />Mas logo regressou ao seu caminho <br />deixando atrás um quieto passarinho, <br />um pé de milho e uma mulher sentada.<br />GUIA PRÁTICO DA CIDADE DO RECIFE<br />(trechos)<br />No ponto onde o mar se extingue<br />E as areias se levantam<br />Cavaram seus alicerces<br />Na surda sombra da terra<br />E levantaram seus muros<br />Do frio sono das pedras.<br />Depois armaram seus flancos:<br />Trinta bandeiras azuis plantadas no litoral.<br />Hoje, serena flutua, metade roubada ao mar,<br />Metade à imaginação,<br />Pois é do sonho dos homens<br />Que uma cidade se inventa.<br />(...)<br />Recife, cruel cidade,<br />águia sangrenta, leão.<br />Ingrata para os da terra,<br />boa para os que não são.<br />Amiga dos que a maltratam<br />inimiga dos que não,<br />este é o teu retrato feito<br />com tintas do teu verão<br />e desmaiadas lembranças<br />do tempo em que também eras<br />noiva da revolução.<br />MEMÓRIAS DO BOI SERAPIÃO<br />Este campo,<br />vasto e cinzento,<br />não tem começo nem fim,<br />nem de leve desconfia<br />das coisas que vão em mim<br /><br />Deve conhecer, apenas<br />(porque são pecados nossos)<br />o pó que cega meus olhos<br />e a sede que róí meus ossos.<br /><br />No verão, quando não há<br />capim na terra<br />e milho no paiol,<br />solenemente mastigo<br />areia, pedras e sol<br /><br />Às vezes, nas longas tardes<br />do quieto mês de dezembro,<br />vou a uma serra que eu sei<br />e as coisas da infância lembro:<br /><br />instante azul em meus olhos<br />vazios de luz e de fé<br />contemplando a festa rude<br />que a infância dos bichos é...<br /><br />No lugar onde eu nasci<br />havia um rio ligeiro<br />e um campo verde e mais verde<br />de um janeiro a outro janeiro;<br /><br />havia um homem deitado<br />na rede azul do terraço<br />e as filhas dentro do rio<br />diminuindo o mormaço.<br /><br />não tinha as coisas daqui:<br />homens secos e compridos<br />e estas mulheres que guardam<br />o sol na cor dos vestidos,<br /><br />nem estas crianças feitas<br />de farinha e jerimum<br />e a grande sede que mora<br />no abismo de cada um.<br /><br />Havia este céu de sempre<br />e, além disto, pouco mais<br />que as ondas na superfície<br />dos verdes canaviais.<br /><br />Mas, os homens que moravam<br />na língua do litoral<br />falavam se desmanchando<br />das terras gordas e grossas<br />daquele canavial;<br /><br />e raras vezes guardavam<br />suas lembranças mofinas:<br />as fumaças que sujavam<br />os claros céus que cobriam<br />as chaminés das usinas.<br /><br />Às vezes, entre iguarias,<br />um comentário isolado:<br />a crônica triste e curta<br />de um engenho assassinado<br /><br />Mas logo à mesa voltavam<br />que a fome bem pouco espera<br />e os seus olhos descansavam<br />em porcelanas da China<br />e cristais da Baviera<br /><br />Naquelas terras da mata<br />bem poucos amigos fiz,<br />ou porque não me quiseram<br />ou então porque eu não quis<br /><br />Lembro apenas um boi triste,<br />num lençol de margaridas<br />que era um encanto do menino<br />que alegre o tangia para<br />as colinas coloridas<br /><br />Um dia, naquelas terras<br />foi encontrado um boi morto<br />e os outros logo disseram<br />que o seu dono era o homem torto<br /><br />que em vez de contar as coisas<br />daqueles canaviais<br />vivia de mexericos<br />"entre estas Índias de leste<br />e as Índias Ocidentais"<br /><br />A verde flora da mata<br />(que é azul por ser da infância)<br />habita os meus olhos com<br />serenidade e constância.<br /><br />Este campo,<br />vasto e cinzento,<br />é onde às vezes me escondo<br />e envolto nestas lembranças<br />durmo o meu sono redondo,<br /><br />que o que há de bom por aqui<br />na terra do não chover<br />é que não se espera a morte<br />pois se está sempre a morrer<br /><br />em cada poço que seca<br />em cada árvore morta<br />em cada sol que penetra<br />na frincha de cada porta,<br /><br />em cada passo avançado<br />no leito de cada rio,<br />por todo o tempo em que fica<br />despido, seco, vazio<br /><br />Quando o sol doer nas coisas<br />da terra e no céu azul<br />e os homens forem em busca<br />dos verdes mares do sul,<br /><br />só eu ficarei aqui<br />para morrer por completo,<br />para dar a carne à terra<br />e ao sol meu branco esqueleto,<br /><br />nem ao menos tentarei<br />voltar ao canavial,<br />pra depois me dividir<br />entre a fábrica de couro<br />e o terrível matadouro<br />municipal.<br /><br />E pensar que já houve tempo<br />em que estes homens compridos<br />falavam de nós assim:<br />o meu boi morreu<br />que será de mim?<br /><br />Este campo,<br />vasto e cinzento,<br />não tem entrar nem sair<br />e nem de longe imagina<br />as coisas que estão por vir,<br /><br />e enquanto o tempo não vem<br />nem chega o milho ao paiol,<br />solenemente mastigo<br />areia, pedras e sol.<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />A hora da estrela - Clarice Lispector<br />No último livro publicado em vida, Clarice constrói a personagem de Macabéa como vista pelo fictício, irônico e auto-depreciativo escritor/narrador Rodrigo S.M. Macabéa era uma miserável alagoana virada por uma cruel e ignorante tia beata (os pais, cujo nome Macabéa ignora, morreram quando ela tinha dois anos). Macabéa cresce vazia e sem ciência da própria existência ou de sua finitude.<br />Após ser despedida e a tia morrer, ela emigra para o RJ, onde passa a morar num cubículo com quatro colegas de seu novo trabalho (é datilógrafa) e começa a namorar um paraibano chamado Olímpico de Jesus. O ganancioso Olímpico, que não media esforços para ascender socialmente, a troca por Glória, sua colega de trabalho, que lhe possibilitaria esta ascensão. Depois de um pouco tempo ela visita Carlota, uma cartomante, que lhe prevê um belo futuro.<br />Ao sair da cartomante "grávida do futuro", como diz a autora, ou seja, ciente de algo além do presente, é atropelada por um carro de luxo e morre. Mas a história em si tem menor importância no todo: para Clarice Lispector , a reflexão é mais importante do que a ação. Macabéa é uma personagem sem conteúdo, pobre de alma, um acaso que ensaia agir e pensar, mas com pouco sucesso. Ela pouco faz, simplesmente reage e por vezes se indaga perguntas cuja resposta ela não consegue. Isto vai até o momento de sua morte, quando está mais ciente de si; ao ser atropelada torna-se a estrela do que acontece: é sua hora de estrela.<br />Olímpico, que se orgulha de ter matado um cabra no sertão, que sonha ser deputado e ter a boca cheia de dentes de ouro, que admira touradas e açougueiros, em suma, um arrivista que quer subir na vida a todo custo, é importante, pois encorpa o caráter da protagonista. É quando ele diz seu nome – que indica seu caráter talhado para subir às alturas – que ficamos sabendo o nome de Macabéa. Pode-se até pensar na relação tosca entre os dois, ela ausente de carisma amoroso – o namoro consiste em passeios e momentos em que ficam sentados em bancos de praça –, ele grosseiro e autoritário, Macabéa é quem leva vantagem, pois sua personalidade vai parcamente enriquecendo. Isso se torna mais simbólico no dia em que vai ao zoológico. A protagonista fica tão estarrecida quando vê a massa compacta que é o corpo de um rinoceronte que acaba se urinando. Sua sexualização foi despertada.<br />No entanto, foi trocada pela companheira de escritório, Glória, datilógrafa muito mais eficiente do que Macabéa (semi-analfabeta que emporcalha o serviço), além de mais encorpada. Para Olímpico, casar-se com uma loira (oxigenada) e “carioca da gema” seria uma maneira de subir na vida. Nossa heroína, ainda assim, não sofre, mas sua libido fica mais despertada. Sintomático é, nesse contexto, o momento em que vai passar batom de forma desajeitada, usando um espelho quebrado. Enfeitar-se já indica que está com desejo, que ainda se demonstra de forma primitiva, grotesca e assustadora – mais espanta que atrai; não é à toa que a imagem que surge no espelho é retorcida.<br />O fato é que Macabéa está tendo atitudes inéditas – dando atenção a si mesma. Uma vez faltara ao serviço para ficar só, enquanto suas companheiras de quarto iam trabalhar nas Lojas Americanas. Em outra ocasião, tinha ido ao médico, que lhe diagnostica tuberculose. Ela nem sequer percebeu o que significava a doença.<br />Assim, aproveitando essa onda, Glória – talvez com remorso por ter tomado o namorada da amiga – aconselha a protagonista (até dinheiro empresta!) a ir a uma cartomante para tirar sua sorte. É a grande virada de sua vida, primeiro porque vai ganhar um destino, um futuro, algo que a impulsionasse para frente, que eliminasse de sua vida o simplesmente existir. O crítico, porém, é que isso virá da boca de outro.<br />Realmente, muita mudança ocorre. Enquanto Macabéa espera ser atendida, numa sala decorada por meio de um gosto duvidoso, seu “eu” já se está alterando. Novidade também é a forma como a cartomante, antiga prostituta e cafetina, trata Macabéa: é carinhosa, gostando até do nome dela. Adivinha perfeitamente a vida da protagonista, qualificando-a como horrível. Mas promete muita coisa boa. É nesse instante que a heroína percebe como a existência era de fato rala.<br />Então, a grande previsão. A cartomante vê um estrangeiro, alemão, Hans, que encherá Macabéa de amor, riqueza, jóias, casacos. Passará a ser amada, a ser bonita. O encontro com esse homem proporcionaria a Macabéa uma mudança radical em sua vida.<br />Dotada de um destino, Macabéa até sorri. Sai tão inebriada do lugar miserável em que ficava a profetisa que atravessa distraída a rua. É ironicamente atropelada por um Mercedes Benz (atropelada por uma estrela...) dirigido por um alemão, que nem pára para socorrê-la.<br />Nos seus últimos instantes, cabeça batida na guia, fala “Quanto ao futuro”. Está aparentemente realizada. Há pessoas prestando atenção nela. É o centro das atenções. É uma estrela. Tanto é que, em meio à sensualidade que vai sentindo, encolhendo-se como um feto, começa a delirar, imaginando que seu sangue era estrela. É o seu grande momento, proporcionado pela morte. Havia encontrado um motivo para o seu existir.<br />Tempo e enredo: <br />O enredo de A hora da Estrela não segue uma ordem linear: há flashbacks iluminando o passado, há idas e vindas do passado para o presente e vice-versa.<br />Além da alinearidade, há pelo menos três histórias encaixadas que se revezam diante dos nossos olhos de leitor: <br />a) Rodrigo S.M. conta a história de Macabéa: <br />Esta é a narrativa central da obra: o escritor Rodrigo S.M. conta a história de Macabéa, uma nordestina que ele viu, de relance, na rua. Imaginações? Veja o trecho: <br />"Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua o Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos. <br />Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história - determino com falso livre arbítrio - vai Ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu , Rodrigo S.M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e "gran finale"seguido de silêncio e de chuva caindo. (...)<br />Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba, nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe?"<br />b) Rodrigo S.M. conta a história dele mesmo: <br />Esta narrativa dá-se sob a forma do encaixe, paralela à história de Macabéa. Está presente por toda a narrativa sob a forma de comentários e desvendamentos do narrador que se mostra, se oculta e se exibe diante dos nossos olhos: <br />"Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que penosamente me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria. <br />Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu material básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que a palavra é ação. <br />(Evolar-se: elevar-se voando, ou como que voando, desaparecer no espaço; desaparecer; desvanecer-se, dissipar-se; desfazer-se; exalar-se; emanar)<br />C) O narrador conta como tece a narrativa: <br />Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história - determino com falso livre arbítrio - vai Ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu , Rodrigo S.M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e "gran finale"seguido de silêncio e de chuva caindo. (...)<br />Aliás - descubro eu agora - também não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria. Um outro escritor , sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.<br />Foco narrativo <br />O foco narrativo escolhido é a primeira pessoa, quem narra a história é Rodrigo S.M., um escritor que se dá como tarefa narrar a história de uma certa nordestina que viu na rua, por um instante, numa esquina do Rio de Janeiro.<br />O narrador lança mão, como recurso, das digressões, o que, aspectualmente parece dar à narrativa uma característica alinear. Não se engane: ele foge para o passado a fim de buscar informações.<br />Acrescente, ainda: Macabéa é indispensável ao foco narrativo, mas o narrador se ocupa, ainda, em estabelecer paralelos ( diferenças e igualdades) entre o fazer da prosa, sua existência,a existência de sua personagem Macabéa e a da escritora Clarice Lispector ( volte outra vez para a introdução do livro).<br />Há nele uma onisciência e onipotência ferozes, como se tudo pudesse ( e pode) conduzir e mudar. Há uma profunda identificação entre o narrador e a sua personagem. Ele parece amá-la ( e nos diz isso) e odiá-la ( e nos diz isso também): <br />"Por enquanto Macabéa não passava de um vago sentimento nos paralelepípedos sujos. Eu poderia deixá-la na rua e simplesmente não acabar a história. Mas não: irei até onde o ar termina, irei até onde a grande ventania se solta uivando, irei até onde o vácuo faz uma curva, irei aonde me fôlego me levar. Meu fôlego me leva a Deus? Estou tão puro que nada sei. Só uma coisa eu sei : não preciso ter piedade de Deus. Ou preciso?"<br />Ambiência: <br />O Rio de Janeiro é a ambiência, o espaço. Ocorre que o espaço físico, externo, não importa muito nesta história. O "lado de dentro"das criaturas é o que interessa aos intimistas: <br />Depois - ignora-se por quê - tinham vindo para o Rio, o inacreditável Rio de Janeiro, a tia lhe arranjara emprego, finalmente morrera e ela, agora sozinha, morava numa vaga de quarto compartilhado com mais quatro moças balconistas das Lojas Americanas.<br />O tempo narrativo:<br />Pelos indícios que o narrador nos oferece, o tempo é época em que Marylin Monroe já morreu - possivelmente a década de 60 em seu fim ou a de 70 em seus começos- mas faz ainda um grande sucesso como mito que povoa a cabeça e os sonhos de Macabéa.<br />As personagens:<br />Normalmente os textos claricianos nos mostram as personagens e seus destinos, suas dores do existir, suas descobertas do mundo. Colocadas numa situação de epifania ( revelação de verdades transcendentes e fundamentais, que mudam o rumo das vidas como, por exemplo, a dos santos) elas assumem suas existências verdadeiras ou, na maioria dos casos, voltam-se para dentro delas mesmas, continuam a existir por existir.<br />No caso de A hora da Estrela, elas são rudes, incompletas, por vezes brutais, à exceção do narrador Rodrigo S.M.<br />Macabéa: <br />Alagoana, tem 19 anos e foi criada por uma tia beata que batia nela ( sobre a cabeça, com força); completamente inconsciente, raramente percebe o que há à sua volta. Feia, mora numa pensão em companhia de 3 moças que são balconistas nas Lojas Americanas( Maria da Penha, Maria da Graça e Maria José). Macabéa recebe o apelido de Maca e é a protagonista de nossa história: <br />" e a jovem ( ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome.(...) Limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela. Ela que deveria Ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra - a tia é que lhe dera um curso<br />Possivelmente o nome Macabéa seja uma alusão aos macabeus bíblicos, sete ao todo, teimosos, criaturas destemidas demais no enfrentamento do mundo; a alusão, no entanto, faz-se pelo lado do avesso, pois Macabéa é o inverso deles. <br />"Macabéa não pensava em Deus. Deus não pensava nela. Nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um-não-sei-o-quê com ar de desculpa por ocupar espaço. <br />Tinha manchas ( no Nordeste chamam-se "panos") no rosto, que disfarçava com uma grossa camada de pó branco, o que a fazia ficar meio caiada. Era toda meio encardida, porque raramente se lavava. Tinha um cheiro murrinhento que incomodava as colegas de quarto. A pele do rosto entre as manchas tinha um leve brilho de opala, o que não importava, já que ninguém olhava para ela na rua..."ela era café frio."<br />O narrador nos avisa que ela tinha pensamentos esquisitos, certos enjôos decorrentes de traumas infantis: <br />"Esqueci de dizer que às vezes a datilógrafa tinha enjôo para comer. Isso vinha desde pequena quando soubera que havia comido gato frito. Assustou-se para sempre. Perdeu o apetite, só tinha a grande fome. Parecia-lhe que havia cometido um crime e que comera um anjo frito, as asas estalando entre os dentes. Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam. <br />Nunca havia jantado ou almoçado num restaurante. Era em pé mesmo no botequim da esquina. Tinha uma vaga idéia que mulher que entra em restaurante é francesa e desfrutável."<br />Olímpico: <br />Olímpico se apresentava como Olímpico de Jesus Moreira Chaves: "mentiu ele porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome dos que não têm pai. Fora criado por um padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar as pessoas para se aproveitar delas e lhe ensinara como pegar mulher." <br />Trabalhava numa metalúrgica e não se classificava como "operário": era um "metalúrgico". Era ambicioso, orgulhoso e matara um homem antes de migrar da Paraíba. Queria ser muito rico, um dia; e um dia queria também ser deputado. Um secreto desejo era ser toureiro, gostava de ver sangue. <br />"No Nordeste tinha juntado salários e salários para arrancar um canino perfeito e trocá-lo por um dente de ouro faiscante. Este dente lhe dava posição na vida. Aliás, matar tinha feito dele homem com letra maiúscula. Olímpico não tinha vergonha, era o que se chamava no Nordeste de "cabra safado". Mas não sabia que era um artista: nas horas de folga esculpia figuras de santo e eram tão bonitas que ele não as vendia."<br />"Mas ainda não expliquei bem Olímpico. Vinha do sertão da Paraíba e tinha uma resistência que provinha da paixão por sua terra braba e rachada pela seca. Trouxera consigo, comprada no mercado da Paraíba, uma lata de vaselina perfumada e um pente, como posse sua e exclusiva. Besuntava o cabelo preto até encharcá-lo. Não desconfiava que as cariocas tinham nojo daquela meladeira gordurosa. Nascera crestado..."<br />Rodrigo S.M. <br />É o narrador-personagem de A Hora da Estrela: <br />A história - determino com falso livre arbítrio - vai Ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importante deles, é claro. Eu, Rodrigo S.M. Relato antigo, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade(...).<br />Ele tem domínio absoluto sobre o que escreve. Inclusive sobre a morte de Macabéa, no final: <br />"Macabéa por acaso vai morrer? Como posso saber? E nem as pessoas ali presentes sabiam. Embora por via das dúvidas algum vizinho tivesse pousado junto do corpo uma vela casa. O luxo da rica flama parecia cantar glória.(...) <br />Macabéa, Ave Maria, cheia de graça, terra serena da promissão, terra do perdão, tem que chegar o tempo, ora pro nobis, e eu me uso como forma de conhecimento. Eu te conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de mim para ti. Espraiar-me selvagemente e, no entanto, atrás de tudo pulsa uma geometria inflexível. Macabéa lembrou-se do cais do porto. O cais chegava ao coração de sua vida. <br />Macabéa pedir perdão? Porque sempre se pede. Por quê? resposta: é assim porque assim é. Sempre foi? Sempre será. E se não foi? Mas eu estou dizendo que é. Pois."<br />Glória: <br />Filha de um açougueiro, nascida e criada no Rio de Janeiro, Glória rouba Olímpico de Macabéa. Tem um quê de selvagem, cheia de corpo, é esperta, atenta ao mundo: <br />"Glória possuía no sangue um bom vinho português e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da mulatice. Oxigenava em amarelo-ovo os cabelos crespos cujas raízes estavam sempre pretas. Mas mesmo oxigenada ela era loura, o que significava um degrau a mais para Olímpico. Além de ter uma grande vantagem que nordestino não podia desprezar. É que Glória lhe dissera, quando lhe fora apresentada por Macabéa: "sou carioca da gema!"<br />Madame Carlota:<br />É a mulher de Olaria que porá as cartas do baralho para "ler a sorte"de Macabéa. Contará que foi prostituta quando jovem, que depois montou uma casa de mulheres e ganhou muito dinheiro com isso. Come bombons , diz que é fã de Jesus Cristo e impressiona Macabéa: <br />"- Macabéa! Tenho grandes notícias para lhe dar! Preste atenção, minha flor, porque é da maior importância o que vou lhe dizer. É coisa muito séria e muito alegre: sua vida vai mudar completamente! E digo mais: vai mudar a partir do momento em que você sair da minha casa! Você vai se sentir outra. Fique sabendo, minha florzinha, que até o seu namorado vai voltar e propor casamento, ele está arrependido! E seu chefe vai lhe avisar que pensou melhor e não vai mais lhe despedir!" <br />Na verdade, Madame Carlota é uma enganadora vulgar, observe: <br />"- Pois vai conhecer. Ele é alourado e tem olhos azuis ou verdes ou castanhos ou pretos..." <br />"(...) Olha, minha queridinha, esse feitiço também sou obrigada por Jesus a lhe cobrar porque todo o dinheiro que eu recebo das cartas eu dou para um asilo de crianças. Mas se não puder, não pague, só venha me pagar quando tudo acontecer."<br />Existem, ainda, outras personagens: As três Marias que moram com Macabéa no mesmo quarto, o médico que a atende e diagnostica a gravidade da tuberculose e o chefe, seu Raimundo, que reluta em mandá-la embora .<br />Filme<br /> <br />Macabéa, uma imigrante nordestina semi-analfabeta, trabalha como datilógrafa numa pequena firma e vive numa pensão miserável. Conhece casualmente o também nordestino Olímpico, operário metalúrgico, e os dois começam um casto e desajeitado namoro. Mas Glória, esperta colega de trabalho de Macabéa, rouba-lhe o namorado, seguindo o conselho de uma cartomante. Macabéa faz uma consulta à mesma cartomante, Madame Carlota, e esta prevê seu encontro com um homem rico, bonito e carinhoso<br />Ficha Técnica<br /><br />Título Original: A Hora da Estrela <br />Gênero: Drama<br />Tempo de Duração: 96 min.<br />Ano de Lançamento (Brasil): 1985<br />Distribuição: Embrafilmes<br />Direção: Suzana Amaral <br />Roteiro: Suzana Amaral e Alfredo Oroz<br />Produção: Raiz Produções Cinematográficas<br />Música: Marcus Vinicius<br />Fotografia: Edgar Moura<br />Desenho de Produção: Clóvis Bueno<br />Figurino: Clóvis Bueno<br />Edição: Idê Lacreta <br />Elenco<br />Marcélia Cartaxo<br />José Dumont<br />Tamara Taxman<br />Fernanda Montenegro<br />Denoy de Oliveira<br />Sônia Guedes<br />Lisette Negreiros<br />Cláudia<br />Humberto Magnani<br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Água Viva - Clarice Lispector - resumo<br />Clarice Lispector percebeu com alguma antecipação a crise na temporalidade que hoje vivenciamos quando articulou poeticamente uma categoria para dar conta da volatilidade do presente, o ‘instante-já”:<br />O presente é o instante em que a roda do automóvel em alta velocidade toca minimamente o chão. E a parte da roda que ainda não tocou, tocará num imediato que absorve o instante presente e torna-o passado.”( Água Viva 1973/ 1979,19) <br />A velocidade desenfreada do tempo atual é inimiga mortal da memória. Talvez fosse o caso de se editar o manual de sobrevivência da memória. Reeditar o mito de Sherazade, ícone salvacionista das reminiscências e, de modo idêntico, de sua função narratária. A memória é o lócus privilegiado do imaginário, berço de toda ficção. <br />Se pela dimensão desejante somos afetados pela leitura, então não lemos apenas com o auxílio da razão e do entendimento. Em Água viva, de Clarice Lispector, a personagem-narradora diz: “Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras.”Lemos com o corpo todo, nosso corpo linguageiro,corpo erógeno, pulsional. A relação do corpo com a linguagem se dá pela mediação exercida pela sensorialidade das palavras. Recorde-se o que dissera, no início, sobre o texto literário ser, por excelência, um texto de evocação. Essa dimensão evocativa supõe corporeidade e desejo. Em sua materialidade significante,o texto se faz carne e corpo erótico. A escritura é a prova de que o texto deseja o leitor. Numa perspectiva barthesiana, diria que a escritura é o Kamasutra da linguagem. <br />Em 1971, Clarice Lispector conclui as quase duzentas páginas de um manuscrito a que intitulado "Objeto gritante". Composto na maioria de crônicas publicadas anteriormente em jornal, "Objeto gritante" é a radicalização de uma tendência em Clarice já flagrada no seu romance anterior, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969): a de enxertar fragmentos por assim dizer jornalísticos no tecido de suas narrativas literárias, instaurando "um novo estatuto do texto literário" (Vilma Arêas). <br />Como sabemos "Objeto gritante" nunca foi publicado. Revisado e reduzido à metade, este manuscrito (se é que dele ainda podemos falar) seria publicado três anos mais tarde com novo título: Água viva (1973). Ao longo da revisão, elementos fundamentais ao projeto original foram suprimidos: o hibridismo de gêneros narrativos de diferentes stati literários, a heterogeneidade no nível da linguagem de estilos e de temas, e, acima de tudo, o caráter autobiográfico de "Objeto gritante". Este breve ensaio apresenta "Objeto gritante" como obra transgressora de certos valores ou decoros literários estabelecidos pela modernidade (cujo "gênero", sabe-se, é masculino): a unidade de composição, a transcendência do autor/mundo empírico, as fronteiras entre literatura e não literatura. Minha intenção é examinar as complexas decisões que levaram Clarice Lispector a realizar e logo abandonar este projeto literário. <br />A Obra de Arte Literária de vanguarda apresenta uma maior incidência de rupturas entre os segmentos do texto. Água Viva, de Clarice Lispector, apresenta um discurso onde os vazios são produzidos pela interrupção da coerência textual; esses espaços funcionam como instrumentos impulsionadores da consciência imaginativa do leitor; no entanto, a autora utiliza um recurso técnico de produção de texto que direciona a articulação entre o discurso linear e um outro discurso que, mesmo embutido no texto principal, se manifesta em dissonância com as unidades temáticas. Designamos de “Fissura Literária” a esse recurso técnico de produção de texto. Desenvolvemos a articulação teórico-metodológica entre a fenomenologia e a estética da recepção para a análise do texto Água Viva, atendendo a dois fatores: primeiro, dispor dos recursos operacionais necessários à demonstração deste estudo; segundo, promover a empatia texto/leitor, instrumento fundamental para a exposição do assunto. A análise do texto com base nos postulados da fenomenologia busca resgatar na obra literária um objeto estético constituído de elementos distintos, mas entre si articulados de modo a promover um discurso polifônico. O leitor preenche as lacunas com as suas projeções imaginativas; desenvolve associações entre os elementos, formula hipóteses, faz deduções, etc; é ele quem dá consistência representativa a um objeto estético, cuja “existência” está na dependência da sua atuação como o finalizador da obra literária. A estética da recepção delega ao leitor esse papel de co-produtor do texto.<br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Laços de Família - Clarice Lispector - resumo <br />Laços de Família, de 1960, é uma coletânea de treze contos, dentre os quais seis publicados em 1952 com o título de Alguns Contos. Nesses contos Clarice Lispector procura focalizar o processo de aprisionamento dos seres humanos em suas prisões domésticas', daí o titulo, Laços de Família. <br />Em seus contos, a autora busca o questionamento das formas convencionais e estereotipadas das relações familiares, ritualmente repetidas de geração em geração, dentre as quais, a relação marido/mulher, mãe/filhos, avó/familiares, filha/mãe, dentre outros. <br />"Devaneio e embriaguez duma rapariga'<br />Uma típica senhora portuguesa casada, certo dia ao encontrar-se defronte ao espelho a mirar-se, estando só em casa ( os filhos e o marido estavam fora ) começou a devanear. Tanto que ficou o tempo inteiro no quarto sob a cama, o que fez o marido pensar que esta estava doente. <br />Tão logo os filhos voltam ao lar, a vida retoma o seu norte e nossa personagem volta ao seu ritmo cotidiano, apenas desmanchado por um encontro de negócios entre seu marido e respectivo chefe. <br />Embriaga-se e desenvolve muita prosa com o chefe do marido_ em verdade enciumava a beleza da vestimenta de outra mulher no recinto e isto feriu-lhe a vaidade. <br />Ao chegar em casa repensa sua própria sensualidade e o desejo que podia despertar nos homens. <br />"Amor"<br />Ana, urna mulher casada, pacata e mãe de dois filhos, tinha uma vida doméstica muito calma, donde cuidava dos seus com o esmero e amor típicos de uma pessoa fraterna e sensível. Aliás Ana, em hebraico significa "pessoa benéfica, piedosa". <br />Certo dia ao ir às compras encontrou-se com um cego que muito a impressionou; com a freada brusca do bonde onde se encontrava, os ovos que carregava acabaram quebrando-se! A sua paz tão duramente conquistada desapareceu. <br />Transtornada acabou por descer no Jardim Botânico que por sua beleza fê-la temer o próprio inferno. Aqui podemos fazer um paralelo entre a beleza que salta aos olhos e o cego que está privado disto, este último vive o próprio inferno em terra. Esta então é a explicação de tanto que impressionara a personagem.<br />Ao voltar para casa sentia que alguma coisa havia mudado dentro de si, abraçou o filho tão fortemente que o assustou e foi ajudar o marido quando este derrubou o café. Carinhosamente este pegou-lhe a mão e levou-a para o quarto para dormirem. <br />"Uma galinha"<br />Uma galinha de domingo, pronta para o abate. Contudo quando apanhada pelo pai da menina que é a narradora da estória, a galinha acaba pondo um ovo, imediatamente a menina avisa os demais familiares do fato e alerta-os para a nova condição de "mãe" da galinha. <br />O pai de família, sentindo-se culpado por tê-la feito correr para o abate, acaba por nomear a ave como de estimação sob pena de que se o animal fosse sacrificado nunca mais voltaria a alimentar-se da galinha. <br />Contudo, houve um dia em que "mataram-na, comeram-na e passaram-se anos." <br />"A imitação da rosa"<br />Laura, casada e sem filhos, preparava-se para um jantar na casa de amigos. Era a primeira vez que ela faria isto desde que voltara do hospital, onde fora internada. Provavelmente por causa de um surto. Ela pretendia estar pronta, de banho tomado, em seu vestido marrom, a casa limpa e a empregada despachada, quando seu marido, Armando, chegasse. Assim teria tempo livre para ficar à disposição dele e ajudá-lo a arrumar-se. <br />Laura parecia perseguir a perfeição a todo custo, vigiava-se para ser uma esposa modelo, submissa e obediente, mediana até na cor dos cabelos, nem loura, nem morena: de modestos cabelos marrons Ela procura parecer normal, premedita todos os seus gostos. Não quer que os outros se preocupem com ela. Pensa o quanto seria bom ver o marido enfim relaxado, conversando como amigo, no jantar, sem lembrar-se de que ela existe. <br />Exausta e feliz, pois acabara de passar em ferro todas as camisas de Armando. Laura sentou-se na poltrona da sala e cochilou um breve instante. <br />Quando acordou, teve a sensação de que a sala estava renovada. <br />Admirou intensamente as rosas que comprara pela manhã, na feira. Eram perfeitas. Resolveu então dá-las à amiga que iria à noite visitar. Estava decidido, mandaria as flores pela empregada. Mas, logo depois, Laura hesitava. Por que as rosas, tão bonitas, não podiam ser dela mesma? Por que a beleza e exuberância das rosas a ameaçava? Acabou cedendo-as, a empregada levou as flores, e ela não conseguiu voltar atrás. <br />É provável que a perfeição que Laura vira nas rosas tivesse lhe provocado o impulso de romper novamente com seu lado submisso e servil para se tornar incansável. super-.humana, independente. tranqüila, perfeita e serena. <br />Quando o marido chegou do trabalho, Laura ainda estava sentada na poltrona, e nada tinha feito do que planejara Dirigiu-se a ele: "Voltou. Armando. Voltou. (..) Não pude impedir. disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava ria sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita. Não pude impedir. repetiu, (...) Foi por causa das rosas, disse cor,, modéstia(...) Ele a olhou envelhecido e curioso. <br />Ela estava sentada com seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável. <br />"Feliz aniversário"<br />Tudo preparado para o encontro anual da família. Na casa de Zilda, a única filha, as bolas coloridas espalhavam-se pela sala e o bolo confeitado enfeitava o centro da mesa. Na cabeceira, arrumada e perfumada com água de colônia para disfarçar o cheiro de guardado, estava Cornélia, a matriarca e aniversariante que completava 89 anos. <br />Primeiro chegaram as noras com os netos, depois os filhos. A velha. Sentada, impassível, se perguntava como ela, tão forte, pudera gerar uma família tão medíocre. <br />Cantaram, parabéns atrapalhados todos fingiam entusiasmo, incapazes de uma alegria verdadeira A velha foi ríspida o quanto pode. Escandalizou os presentes e envergonhou Zilda, cuspindo no chão. <br />Temos o retrato de uma velha amargurada pela morte do filho que admirava, e o desprezo por todos os demais é oriundo neste fato. É preciso observar que Cornélia é a matriarca de todo o clã e seu nome é de acepção latina e significa duro, forte. <br />"A menor mulher do mundo"<br />Encontrada no coração da África, por Marcel Pretre, um caçador e explorador, a menor mulher do mundo tinha 45cm e era escura como um macaco. Vivia numa árvore com o seu concubino e estava grávida. <br />A sua foto, tirada pelo francês, na qual ela aparecia em tamanho natural, foi publicada em jornais de todo o planeta despertando nas famílias o desejo de possuir e proteger aquele pigmeu do sexo feminino, ser humano em miniatura. <br />Os selvagens Bantos, conterrâneos da menor mulher do mundo, adoravam capturar e comer aquelas miniaturas. As crianças queriam a mulher para brincarem de boneca. <br />"Mamãe, se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está dormindo? Quando ele acordasse, que susto, hein", disse um menino. Sua mãe olhava-se no espelho e enrolava o cabelo quando ouviu isso, Lembrou-se de uma história contada pela empregada, que passara a vida num orfanato. <br />As meninas da instituição não tinham brinquedos. Um dia, uma delas morreu, e as outras esconderam-na das freiras no armário. Quando não estavam sendo vigiadas, pegavam a defunta como se fosse uma boneca, davam-lhe banho, penteavam-lhe os cabelos botavam-na de castigo, punham-na para dormir... Pensando nisso a mulher considerou cruel a necessidade humana de amar e possuir, a malignidade de nosso desejo de ser feliz, a ferocidade com que queremos brincar. <br />A alma das famílias queria devotar-se àquela frágil criatura africana. Enquanto isso, a própria coisa rara, a menor mulher do mundo, grávida, sentia o seu peito morno de amor. <br />Amava e ria. Amava o explorador amarelo, a sua bota, o seu anel brilhante. Amava e ria, e deixava o homem grande perplexo. Pequena Flor, era assim que o francês a chamava, sabia que o amor era não ser comida pelos Bantos, era achar uma bota bonita, gostar da cor do homem que não é negro, e rir. <br />O explorador não entendia o amor que lhe saía por aquele riso. Ele, que já conhecia um pouco da sua língua, fazia-lhe algumas perguntas, às quais Pequena Flor respondia "sim", "Que era muito bom ter uma árvore para morar, sua, sua mesmo, pois é bom possuir, é bom possuir, é bom possuir." <br />"O Jantar"<br />Num restaurante, um homem observa atentamente um velho a comer. Ambos não se conheciam. A brusquidão e a dureza do velho chamaram a atenção do homem, que lhe vigiava cada gesto. Até que o homem, extasiado, e sentindo certa náusea, percebeu no velho uma lágrima. Então, não tocou mais no prato, enquanto o velho terminou a sua refeição, comeu a sobremesa, pagou a conta, deixou uma gorjeta para o garçom e atravessou o salão, luminoso, desaparecendo. O observador medita: "eu sou um homem ainda." <br />"Quando me traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer eu não como. Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruiria. Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue". <br />“Preciosidade"<br />Ela era uma estudante de 15 anos, não era bonita, mas tinha sua preciosidade. A mocinha, protagonista deste conto, atravessará este estado transformando-se em mulher, rito em que se dará a perda do que lhe é precioso possivelmente sua virgindade. <br />Acordava muito cedo para ir à escola, precisava tomar um ônibus e um bonde, além de caminhar até o ponto. O caminho era difícil, não gostava que a olhassem. Andava rígida, severa, não admitindo sequer que os homens no ônibus ou os rapazes na escola pensassem nela. Mas o barulho de seus sapatos com saltos de madeira chamavam a atenção de todos, o que a perturbava terrivelmente. Ela era inteligente e aplicada nos estudos (uma maneira de ser respeitada e manter os homens afastados), À tarde tinha em casa apenas a companhia dos livros e da empregada <br />“Certa manhã, ao sair para a escola, só na rua percebeu que ainda estava muito escuro, quase noite. Prosseguiu, enfrentando a madrugada. A caminho do ponto, viu na rua dois rapazes que andavam em sentido oposto ao seu. Procurou manter o ritmo e a calma, eles passariam por ela e continuariam naquela direção, distanciando-se. Avançou, procurando não olhar para eles, nem demonstrar medo. Mas o que se seguiu não teve explicação. (..) foram quatro mãos que não sabiam o que queriam, quatro mãos erradas de quem não tinha a vocação, quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia ter feito no mundo dos movimentos: ficou paralisada," <br />Na fuga os sapatos dos dois rapazes fizeram um barulho louco que soou por algum tempo na sua cabeça. Ela premiu-se contra o muro, ficou ali impossibilitada de qualquer ação, até que, lentamente, começou a mover-se, catar os seus livros e cadernos, e neles via a sua antiga caligrafia. Ela era outra. Dirigiu-se à escola, onde chegou com duas horas de atraso. Não falou a ninguém sobre o que ocorrera. No banheiro, gritou: "estou sozinha no mundo! “<br />Em casa, durante o jantar, reivindicou:" Preciso de sapatos novos! Os meus fazem muito barulho, uma mulher não pode andar com salto de madeira, chama muita atenção ao que lhe responderam: "Você não é uma mulher e todo salto é de madeira." <br />"Ate que, assim como uma pessoa engorda, ela deixou, sem saber por que processo, do ser preciosa. <br />"Os laços de família"<br />Depois de duas semanas de visita, Catarina levava a sua mãe para a estação, onde a senhora tomaria o trem e se despediria da filha. Elas estão no táxi. Catarina recorda-se do desconforto causado pela breve convivência entre a sua mãe e o seu marido. O genro e a sogra mal se suportavam. Mas, na hora da partida, ambos encheram-se de generosidade e delicadeza. Catarina tinha vontade de rir. Ria então pelos olhos, como permitia seu estrabismo. <br />A mãe desta jovem mulher chamava-se Severina, A severa mãe, em tom de desafio e acusação, lembrava o quanto o menino, seu neto, estava magro. Magro e nervoso." Catarina concordava, paciente. Antônio, esposo de Catarina e pai do menino nervoso, certa noite irritou-se profundamente com tais observações da sogra. <br />De repente, uma freada do carro lançou as duas mulheres uma contra a outra, provocando entre elas uma brusca intimidade de corpos já esquecida. Era como se lhes acontecesse um desastre, uma catástrofe irremediável. Não esqueci nada?", perguntava Severina pela terceira vez. Elas evitaram olhar-se até a estação. Catarina nunca fora de muitos carinhos e intimidades com a mãe. Fora, sim. uma filha muito próxima, muito achegada ao pai, cheia de beijos, abraços, cumplicidade. <br />Dentro do trem, como elas não tivessem o que dizer, a mãe retirou um espelho da bolsa, examinando a sua aparência. <br />Quando a campainha da estação tocou, mãe e filha se olharam assustadas, chamando uma pela outra. Parecia que, todos aqueles anos, elas se tinham esquecido de dizer algo, como: 'sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha. Mas não o disseram, fizeram-se recomendações. mandaram lembranças para os parentes, e o trem se foi. Agora, sem a mãe, Catarina recuperava o seu modo firme de andar. Caminhar sozinha era mais fácil, nada a impediria de subir mais um degrau misterioso nos seus dias. <br />Catarina voltou para casa "disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito." Encontrou o marido na sala, lendo os jornais de sábado, o seu dia tomado de volta com a partida da sogra. O menino magro e nervoso estava no quarto, distraído... Procurando chamar a atenção do filho, a mãe sacudia uma toalha na sua frente. Foi quando. pela primeira vez, o menino lhe disse: 'Mamãe', sem nada pedir, e num tom diferente do que usava antes. <br />Alguma coisa se quebrara entre eles e Catarina estava extasiada, O seu corpo inteiro riu, não só os olhos. Tomou o seu filho pela mão e saíram para um passeio, deixando Antônio atônito na sala, sem saber aonde iam O homem dirigiu-se a janela e viu, já na calçada, a mulher e o filho. <br />Ele olhava pela janela, a mulher andando depressa com o filho. Sentia-se frustrado, ela tomava sozinha o seu momento de alegria. Decidiu que depois do jantar iriam ao cinema. Depois do cinema, seria noite. E "este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador", <br />“Começos de uma fortuna"<br />Artur é um garoto obcecado por dinheiro. O conto gira em torno das suas preocupações em como ganhá-lo: dai, a presença de palavras como mesada e frases como: "logo que alguém tem dinheiro aparecem os outros querendo aplicá-lo, explicando como se perde dinheiro" ou "basta você ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima.” <br />Indo ao cinema com o seu colega Carlinhos, com Glorinha e uma amiga desta, Artur se mostra menos preocupado em divertir-se do que em imaginar se está sendo explorado ou não. De certo modo, Carlinhos é o oposto de Artur: acredita que dinheiro existe para ser gasto, preocupando-se menos em ganhá-lo do que em ganhar uma garota. Já Artur não pretende tomar quantias emprestadas (para não ter de devolvê-las), não planeja empregá-las em coisas. No entanto, ele se vê obrigado a fazer um empréstimo com Carlinhos, uma vez que não tem como pagar a entrada de cinema para Glorinha. <br />"O crime do professor de matemática"<br />Era domingo, os católicos dirigiam-se à igreja. Um homem os observava da colina mais alta da chapada. Carregava um saco pesado na mão e, nas costas, a culpa de um dia ter abandonado um cão com o qual tinha uma relação de afeto. De dentro do saco o senhor retirou um cachorro morto. Era-lhe desconhecido, sentou-se ao seu lado e observou, solitário, a paisagem ao redor, a chapada deserta com a sua única árvore. Do saco tirou uma pá e começou a pensar onde enterraria o defunto. Talvez rio centro da chapada, lugar em que ele mesmo gostaria de ser enterrado. Diante da dificuldade de determinar a exata posição do centro da chapada, resolveu enterrá-lo ali mesmo, precisamente embaixo dos seus pés. Pegou a pá e pôs-se a cavar. <br />O crime do professor de matemática não consistia em ter matado o cão desconhecido. Encontrara-o já morto, numa esquina, e surpreendera-se com a idéia de enterrá-lo. O corpo do cão representava para ele o cão verdadeiro, o que abandonou ao mudar-se com a família de uma cidade para aquela em que agora vivia. Enfim, o professor enterrou o cão, bem à superfície, para que não perdesse a sensibilidade. Para o homem, esse ato era a maneira que achara de redimir-se do seu pecado, de punir-se do seu crime com o outro cão, o abandonado. <br />Sentindo-se finalmente livre, o homem pôs-se a pensar no verdadeiro cão, como quem pensasse na verdadeira vida, Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias á tua", pensou com saudades. "Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma, (...) Quanto me amaste mais do que te amei.” <br />Refletindo a relação que estabelecera com o cão, o homem revelará aos poucos os motivos que tornaram impossível a convivência entre ambos: <br />"E, abanando tranquilo o rabo, parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera. (...) Porque, embora meu, nunca me cedeste nem um pouco de teu passado e de tua natureza. E, inquieto, eu começava a compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te amar, e isso começava a me importunar. Era o ponto de realidade resistente das duas naturezas que esperavas que entendêssemos. Minha ferocidade e a tua não deveriam se trocar por doçura: era isso que pouco a pouco me ensinavas, e era isso também que estava se tornando pesado. Não me pedindo nada , me pedias demais. De ti mesmo exigias que fosses um cão. De mim exigias que eu fosse um homem." <br />A cabeça matemática e fria do homem pouco a pouco entendeu que o que fizera ao cão era impune e definitivo, pois "não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições'. <br />O professor, então, passou a olhar a cova onde havia enterrado sua "fraqueza e sua condição, e era como se "José, o cão abandonado, exigisse dele (...) num último arranco, que fosse um homem e como homem assumisse o seu crime. <br />O professor não queria mais se sentir livre de seu crime, não seria nunca um homem se abandonasse tão facilmente também sua culpa. <br />"Agora. mais matemático ainda, procurava um meio de não se ter punido." O homem. lentamente, desenterrou o cachorro desconhecido e renovou o seu crime para sempre. transformando em um verdadeiro homem, o professor desceu a chapada. <br />"O búfalo"<br />"Eu te odeio" disse a mulher, muito depressa, a um homem que não a amava. Mas a mulher só sabia amar e perdoar, e 'se aquela mulher perdoasse mais uma vez, uma só vez que fosse, sua vida estaria perdida'. Então, numa tarde de primavera, ela visitou o jardim zoológico em busca de um animal que lhe ensinasse a odiar. <br />Encontrara amor nos leões, na girafa, nos macacos. O camelo fizera-lhe topar com a paciência e a poeira. Só a última, e a sua aridez, a interessava. A aridez e não mais as lágrimas. Onde estaria o bicho que lhe daria o sentimento que procurava? Com a sua violência, sozinha, foi para a 'fila dos namorados", esperando a sua vez de entrar no carrinho da montanha russa. Depois de ser sacudida no ar como uma boneca, saiu pálida, como se fora "jogada fora de uma igreja". <br />Voltou a andar, procurando o animal e o ódio. Encontrou o búfalo, que a espiava ao longe. Ele era negro e seus cornos muito alvos. A mulher ficou desconfiada, parecia que o búfalo a olhava. Ela desviou os olhos, o seu coração batia descompassado. <br />"O búfalo deu uma volta lenta. A poeira. A mulher apertou os dentes, o rosto todo doeu um pouco. <br />(...) Uma coisa branca espalhara-se dentro dela (...). A morte zumbia nos seus ouvidos. Novos passos do búfalo trouxeram-na a si mesma e, em novo e longo suspiro ela voltou à tona. Não sabia onde estivera. Estava de pé, muito débil, emergida daquela coisa branca e remota onde estivera”' <br />O animal agora lhe parecia mais negro e maior. Começou a provocá-lo, gritando e jogando-lhe pedras. O ódio, como um fio de "sangue negro”, como gotas de "óleo amargo" começou a pingar dentro dela, "fêmea desprezada". O búfalo voltou-se para ela e encarou-a de longe. "Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo”. <br />O búfalo, provocado, aproximou-se lentamente. "Ele se aproximava, a poeira erguia-se”. Como a mulher não recuava um só passo, os seus olhos e os do animal fitaram-se diretamente. "Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranquilo de ódio, a olhava”. O olhar a mantinha presa "ao mútuo assassinato (.) como se sua mão se tivesse grudado para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo”. <br />Observações:<br />Pertencente ao circuito literário nacional dos idos de 1945, Clarice recebeu influência direta do romance psicológico e do chamado fluxo de consciência (stream of consciouness) presente na literatura irlandesa desde a publicação de Ulisses de James Joyce. <br />O forte apelo intimista e a miríade de imagens desencadeadas em seus angustiantes textos revelam a própria condição de solidão do homem no mundo. <br />Há um aspecto a ser levantado nas personagens criadas por ela_ usualmente são moças, velhas, casadas, solteiras, enfim, mulheres e sua realidade social e pessoal deflagradas sob o olhar hipnotizante e martirizador de Clarice.<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />A Paixão segundo G. H. - Clarice Lispector - resumo<br />Romance com um enredo banal, mas considerado por muitos como o grande livro da autora. A personagem principal, ao fazer uma faxina, se depara com uma barata e a esmaga. Depois, numa espécie bárbara de ascese, decide provar da barata morta. Ao esmagar e comer a barata operou-se na mulher uma revelação. Ela estava numa rotina doméstica civilizada, entre filhos, afazeres domésticos e contas a pagar, e o inseto a lançou para fora do humano, deixando-a na borda do coração selvagem da vida. Esse desejo de encontrar o que resta do homem quando a linguagem se esgota, move, desde o início, a literatura da escritora. Mesmo sem ser um livro de inspiração religiosa, tem aspecto epifânico. No ato praticado, a protagonista comunga com o real e, ali, o divino, a força impessoal que nos move, se manifesta. E só depois desse ato, que desarruma toda a visão civilizada, G.H., a mulher, pode, enfim, se reconstruir. <br />É um mergulho do interior da personagem-narradora, e não há propriamente história. G.H. busca , em si mesma, pela introspecção radical, sua identidade e as razões de viver, sentir e amar. A obra nem começa nem termina; ela continua. A narradora e personagem do romance está em seu apartamento tomando café, como faz todos os dias. Dirige-se ao quarto da empregada, que acabara de deixar o emprego. Lá;vê subitamente uma barata, saindo de um armário. Este evento provoca-lhe uma náusea impressionante, mas ao mesmo tempo, é o motivador de uma longa difícil avaliação de sua própria existência, sempre resguardada, sempre muito acomodada. A visão da barata é o seu momento de iluminação após o qual já não é a mesma, já não é a criatura alienada que tomava café distraidamente em seu apartamento. Nesse momento, deflagra-se na narradora a consciência da solidão (tanto dela, quanto da barata). O nojo pelo inseto desafia-se assustadoramente: é preciso que ela se aproxime da barata,, toque na barata, e até (seria possível?) prove o sabor dá barata. Para regressar ao seu estado de um ser primitivo, selvagem - e por isso mais feliz- G.H. deve passar pela experiência de experimentar o gosto do inseto. Através da "provação" (que é a sua náusea física e existencial), G.H. estaria fazendo uma reviravolta em seu mundo condicionado e asséptico. <br />A náusea, aqui tomada como "forma emocional violenta da angústia", é o momento que antecede a revelação, a epifania, e resulta da dolorosa sensação da fragilidade da condição humana. A paixão de G.H. pode ser biblicamente interpretada como sofrimento aludindo à Paixão de Cristo, narrada por Mateus, Marcos, Lucas e João. É comum a aproximação da obra de Clarice da corrente filosófica existencialista, especialmente do existencialismo literário-filosófico de Jean Paul Satre (1905-1981) Segundo a R, Sant'Ana, os romances e contos de Clarice percorrem essas quatro etapas: a personagem é disposta numa determinada situação cotidiana; prepara-se um evento que é pressentido discretamente; a epifania - ocorre o evento, que "ilumina" a vida; ocorre o desfecho, onde se considera a situação da vida da personagem, após o evento.<br />Trecho:<br />Cada olho reproduzia a barata inteira.<br />– Perdoa eu te dar isto, mão que seguro, mas é que não quero isto para mim! Toma essa barata, não quero o que vi.<br />Ali estava eu boquiaberta e ofendida e recuada – diante do ser empoeirado que me olhava. Toma o que eu vi: pois o que eu via com um constrangimento tão penoso e tão espantado e tão inocente, o que eu via era a vida me olhando.<br />Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama – era lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade.<br />Toma, toma tudo isso para ti, eu não quero ser uma pessoa viva! Tenho nojo e maravilhamento por mim, lama grossa lentamente brotando.<br />Era isso – era isso então. É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda. Em derrocada difícil, abriam-se dentro de mim passagens duras e estreitas.<br />Olhei-a, à barata: eu a odiava tanto que passava para o seu lado, solidária com ela, pois não suportaria ficar sozinha com minha agressão.<br />E de repente gemi alto, dessa vez ouvi meu gemido. É que como um pus subia à minha tona a minha mais verdadeira consistência – e eu sentia com susto e nojo que "eu ser" vinha de uma fonte muito anterior à humana e, com horror, muito maior que a humana.<br />Abria-se em mim, com uma lentidão de portas de pedra, abria-se em mim a larga vida do silêncio, a mesma que estava no sol parado, a mesma que estava na barata imobilizada. E que seria a mesma em mim! Se eu tivesse coragem de abandonar... de abandonar meus sentimentos? Se eu tivesse coragem de abandonar a esperança.<br />A esperança de quê? Pela primeira vez eu me espantava de sentir que havia fundado toda uma esperança em vir a ser aquilo que eu não era. A esperança – que outro nome dar? – que pela primeira vez eu agora iria abandonar, por coragem e por curiosidade mortal. A esperança, na minha vida anterior, teria se fundado numa verdade? Com espanto infantil, eu agora duvidava.<br />Para saber o que realmente eu tinha a esperar, teria eu antes que passar pela minha verdade? Até que ponto até agora eu havia inventado um destino, vivendo no entanto subterraneamente de outro?<br />Fechei os olhos, aguardando que a estranheza passasse, aguardando que meu arfar não fosse mais o daquele gemido que eu ouvira como vindo do fundo de uma cisterna seca e funda, assim como a barata era bicho de cisterna seca. Eu ainda continuava a sentir, incalculavelmente longínquo em mim, o gemido que já não me chegava mais à garganta.<br />Isto é a loucura, pensei de olhos fechados. Mas era tão inegável sentir aquele nascimento de dentro da poeira – que eu não podia senão seguir aquilo que eu bem sabia que não era loucura, era, meu Deus, uma verdade pior, a horrível. Mas horrível por quê? É que ela contrariava sem palavras tudo o que antes eu costumava pensar também sem palavras.<br />Aguardei que a estranheza passasse, que a saúde voltasse. Mas reconhecia, num esforço imemorial de memória, que já havia sentido essa estranheza: era a mesma que eu experimentava quando via fora de mim o meu próprio sangue, e eu o estranhava. Pois o sangue que eu via fora de mim, aquele sangue eu estranhava com atração: ele era meu.<br />Eu não queria reabrir os olhos, não queria continuar a ver. Os regulamentos e as leis, era preciso não esquecê-los, é preciso não esquecer que sem os regulamentos e as leis também não haverá a ordem, era preciso não esquecê-los e defendê-los para me defender.<br />Mas é que eu já não podia mais me amarrar.<br />A primeira ligação já se tinha involuntariamente partido, e eu me despregava da lei, mesmo intuindo que iria entrar no inferno da matéria viva – que espécie de inferno me aguardava? Mas eu tinha que ir. Eu tinha que cair na danação de minha alma, a curiosidade me consumia.<br />Então abri de uma só vez os olhos, e vi em cheio a vastidão indelimitada do quarto, aquele quarto que vibrava em silêncio, laboratório de inferno.<br />O quarto, o quarto desconhecido. Minha entrada nele se fizera enfim.<br />A entrada para este quarto só tinha uma passagem, e estreita: pela barata. A barata que enchia o quarto de vibração enfim aberta, as vibrações de seus guizos de cascavel no deserto. Através de dificultoso caminho, eu chegara à profunda incisão na parede que era aquele quarto – e a fenda formava como numa cave um amplo salão natural.<br />Nu, como preparado para a entrada de uma só pessoa. E quem entrasse se transformaria num "ela" ou num "ele". Eu era aquela a quem o quarto chamava de "ela". Ali entrara um eu a que o quarto dera uma dimensão de ela. Como se eu fosse também o outro lado do cubo, o lado que não se vê porque se está vendo de frente.<br />E na minha grande dilatação, eu estava no deserto. Como te explicar? Eu estava no deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E ia para essa loucura promissora. Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade – meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contatos com as verdades sempre me difamaram.<br />– Segura a minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para a mais primária vida divina, estou indo para um inferno de vida crua. Não me deixes ver porque estou perto de ver o núcleo da vida – e, através da barata que mesmo agora revejo, através dessa amostra de calmo horror vivo, tenho medo de que nesse núcleo eu não saiba mais o que é esperança.<br />A barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam.<br />Também eu, que aos poucos estava me reduzindo ao que em mim era irredutível, também eu tinha milhares de cílios pestanejando, e com meus cílios eu avanço, eu protozoária, proteína pura. Segura minha mão, cheguei ao irredutível com a fatalidade de um dobre – sinto que tudo isso é antigo e amplo, sinto no hieróglifo da barata lenta a grafia do Extremo Oriente. E neste deserto de grandes seduções, as criaturas: eu e a barata viva. A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz. Aquele quarto que estava deserto e por isso primariamente vivo. Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido.<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres - Clarice Lispector - resumo<br />A obra apresenta um narrador em terceira pessoa e tem como personagem principal uma mulher, cujo nome é Loreley, mas é chamada de Lóri. Lóri é de família de posses, de origem agrária. Vive no Rio de Janeiro, separada da família, sozinha, trabalhando como professora primária. Para manter um padrão de vida acima das possibilidades de uma professora, Lóri recebe mesada do pai.<br />Vejamos o começo da obra:<br />“,estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava o serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos(...)”<br />Este início, com uma vírgula antes de qualquer palavra, e, na seqüência, um período longo, aparentemente incompleto, sem "começo", faz parte da estrutura formal da obra e demonstra um dos traços dominantes na obra de Clarice Lispector: a preocupação com a escrita, com as possibilidades de as palavras representarem (ou não) as sensações, as percepções, enfim, a condição humana. No livro em estudo, este início fragmentado pode ser interpretado da seguinte maneira: a narrativa apanha um determinado momento da personagem Lóri. Ou seja, o livro fala sobre Lóri a partir daquele momento em que ela estava ocupada, pensou na empregada, etc. O que veio antes daquele momento, disto a narrativa não se ocupa. O ponto de partida é aqui: , estando ocupada... Assim, este livro capta um momento de Lóri, nem antes, nem depois. A representação parcial da vida de Lóri, dá-se, no plano da escrita, por uma parcialidade formal: o romance começa com uma vírgula e termina com dois pontos. Aqui está o final do livro:<br />-Eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafada porque ele estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte:<br />Posta nestes termos, a narrativa dá a idéia de continuidade: Lóri, sua vida, seu mundo, existiam antes e existirão depois do livro.<br />Narrado em terceira pessoa, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres nos fornece pistas de como vivenciar a idéia de amor. Na obra, Clarice Lispector parte do discurso mítico amoroso mais banal para operar uma reestruturação. O caminho escolhido é o da paródia. Os dois títulos do livro, aproximados pela conjunção, anunciam a tensão entre duas possibilidades: repetir ou inventar. <br />A evolução da personagem feminina desse romance é plasmada pela transformação do discurso que, iniciado na intencional duplicação do lugar-comum, logra no decorrer da história alçar-se a outros sentidos. Sugere possibilidade alternativa de ser vivida uma relação amorosa. Ao longo da escrita, ocorre algo como uma purgação de tudo aquilo em que a literatura de massa está viciada ao tratar do tema.<br />Não é uma história de amor comum. Logo na primeira página do livro, sabemos que Lóri mantém um relacionamento com Ulisses (tendo um encontro com ele, busca entre as suas roupas um vestido para ficar "atraente"). As características deste relacionamento vão sendo desvendadas ao longo da narrativa. Ulisses é professor<br />universitário de filosofia. Aos poucos vamos sabendo que Lóri está "aprendendo a amar", ou a "ter prazer", com Ulisses. São vários os momentos narrativos em que isto fica explícito: ela está sendo "preparada para a liberdade por Ulisses", "Ulisses determinará quando ela estará pronta para dormir com ele".<br />Lispector não reproduz padrões tradicionais de oposição masculino/feminino. Ao processar investigação existencial a partir da condição de seu gênero, acaba por estabelecer articulações ainda mais abrangentes que a da diferenciação sexual.<br />A aprendizagem de que nos fala o título é o caminho que percorre Lóri enquanto dura a narrativa. Este processo terá sua conclusão quando Lóri estiver "pronta" para dormir com Ulisses. Não se pense que este "pronta" significa uma virgem preparando-se para seu primeiro amor. Lóri já teve outros amantes, que ela desqualifica, não como amantes, mas como relacionamentos inconsistentes ou superficiais. Trata-se de, com Ulisses, aprender ou descobrir o prazer para além do meramente sexual: algo como um amor total, com a personagem sentindo-se "plena". Esta é a travessia do livro, a trajetória a ser percorrida pela personagem. Em meio a este percurso, Lóri tem que se haver com inseguranças, medos, hesitações, encontros e desencontros com Ulisses: é a angústia d busca. Trata-se de uma busca que, a esta altura, não se resume apenas no ato de "dormir" com Ulisses. Lóri pretende dar um "passo à frente" na sua vida. O relacionamento com Ulisses, cujo ápice se dará quando estiver "pronta", recobre-se de um significado especial, uma "plenitude". Depois de vários encontros nos quais conversavam sobre a "aprendizagem" de Lóri, Ulisses diz a ela, num dado momento que, a partir daquele momento, não mais a procurará. Ela está "pronta". Ela sabe os seus horários de aulas, sabe os momentos em que ele estará em casa. Ulisses diz que vai esperá-la, querendo que ela não telefone avisando: "Queria que você, sem uma palavra, apenas viesse". A decisão de Ulisses causou um primeiro impacto em Lóri, que hesitou, demorou, mas numa madrugada chuvosa, estando "mansamente feliz", teve o desejo: imediatamente, sem sequer trocar a roupa, apanhou um táxi, vestida com uma camisola, e foi até a casa de Ulisses. Amaram-se. Falam em filhos e casamento. Segue-se um diálogo no qual Lóri e Ulisses conversam sobre o amor, sexo, solidão, Deus e a obra termina com a frase em letras itálicas acima.<br />Trecho:<br />"...<br />Vestiu o maiô e o roupão, e em jejum mesmo caminhou até a praia. Estava tão fresco e bom na rua! Onde não passava ninguém ainda, senão ao longe a carroça do leiteiro. Continuou a andar e a olhar, olhar, olhar, vendo. Era um corpo a corpo consigo mesma dessa vez. Escura, machucada, cega - como achar nesse corpo-a-corpo um diamante diminuto mas que fosse feérico, tão feérico como imaginava que deveriam ser os prazeres. Mesmo que não os achasse agora, ela sabia, sua exigência se havia tornado infatigável. Ia perder ou ganhar? mas continuaria seu corpo-a-corpo com a vida. Alguma coisa se desencadeara nela, enfim.<br />E aí estava ele, o mar.<br />Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue. Ela e o mar.<br />Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões...."<br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />A Hora e a Vez de Augusto Matraga - João Guimarães Rosa - resumo<br />Personagens:<br />Augusto Matraga<br />Filho do fazendeiro e coronel Afonso Esteves, órfão de mãe, era conhecido por todos da região como Nhô-Augusto. Homem brigão, temido por todos, passava a vida bebendo e vadiando com outras mulheres. Deixava sua mulher e sua filha em casa, enquanto aproveitava a vida. Um dia, ficou muito endividado e perdeu os amigos e a mulher para outro. Além disso, levou uma surra e quase morreu. Depois disso, se converteu e morreu preocupado com a salvação de sua alma. D. Dionóra<br />Mulher de Matraga, desprezada por ele. Acaba fugindo com outro homem, mesmo sabendo que ele poderia matá-la. Nunca mais viu o marido e nem foi vista por ele. Mimita<br />Filha de Matraga. Foge com a mãe e acaba caindo na vida com um sujeito desconhecido. Ovídio Moura<br />Homem com quem D. Dionóra fugiu. Quim Recadeiro<br />Amigo fiel de Matraga, tentou evitar que Dionóra fugisse. Quando Matraga leva uma surra e é tido como morto, ele tenta vingá-lo e acaba sendo assassinado. Major Consilva<br />Dono de terra e rival de Matraga. Mandou mata-lo após uma emboscada.<br />Casal de Negros<br />mãe Quitéria e pai Serapião. Cuidam de Matraga após ter sido pego em uma emboscada e é tido como morto. Esse casal lhe ensina a moral cristã.<br />Bando de Joãozinho Bem-Bem<br />Flosino Capeta, Cabeça-Chata, Tim Tatu-tá-te-vendo, Zeferino (gago), Epifâmio e Juruminho (foi assassinado no final e Joãozinho volta ao lugar para vingar sua morte e acaba reencontrando Matraga). Joãozinho tem muita afinidade com Matraga, mas ambos morrem no final depois de lutarem um contra o outro.<br />Tião da Thereza<br />conhecido de Matraga, o encontra e descobre que ele não estava morto. Passa, então a lhe contar o que acontecera a Dionóra e Mimita.<br />Prostitutas<br />Angélica e Siriema: são leiloadas no início de uma festa popular e Matraga ganha Siriema porque era temido. Quando ela tira a roupa, desiste de ficar com ela por considera-la feia.<br />Padre<br />É chamado pelo casal de velhos para abençoar Matraga e disse para ele: “sua hora chegará”. Matraga repete essa frase até o final do livro, todas as vezes que se lembrava das injurias que sofreu.<br />Enredo<br />Era noite de novena no arraial e havia uma procissão. Quando a reza acabou, aconteceu um rápido leilão. Depois disso toda a gente foi embora, mas o leiloeiro ficou na barraca, comendo amendoim, no meio do povo bêbado do fim da festa. Além deles, havia duas prostitutas, Angélica (negra) e Siriema (branca). Os homens começaram a disputá-las, como se elas também estivessem em leilão. Nesse momento, Nhô Augusto (Augusto Matraga) berrou para o leiloeiro, oferecendo 50 mil réis por Siriema. O povo, então, incentivou-o a levar a prostituta branca. Ele pegou-a pelo braço e os dois saíram. Ela quis ficar com outro homem e até ameaçou um choro, mas acabou se rendendo a ele. Quando a levou para casa e acendeu a luz, percebeu que ela era muito magra e disse: “Que é? – Você tem perna de Manuel-Fonseca, uma fina e a outra seca!” , mandando a rapariga embora. Depois disso, desceu a ladeira sozinho e esbarrou com Quim que trazia um recado de Dona Dionóra, sua esposa, pedindo que ele voltasse para casa. Ele disse a Quim Recadeiro que não iria lá. Quando Dona Dionóra soube a resposta, teve vontade de chorar pelo desprezo do marido e por sua desdita. Ela conhecia e temia os repentes de Nhô-Augusto que não se importava nem com a filha Mimita de dez anos. Ela sabia que ele tinha outros prazeres e outras mulheres, mas aceitava, pois havia contrariado toda a família para se casar com ele. Outro homem já tinha aparecido em sua vida, mas ela sabia que se fugisse Matraga a mataria. Depois de pensar, ela dormiu e, de madrugada ainda, partiu com a filha e com o camarada Quim, parando na fazenda de um tio. De manhã, continuaram a andar. No meio do caminho, encontraram Seu Ovídio Moura, o homem com quem ela decidiu fugir, mesmo com medo de ser assassinada pelo marido. Quim voltou para contar a Nhô-Augusto o que acontecera.<br />Quando recebeu a notícia, Matraga decidiu ir atrás, mas seus homens não quiseram ir com ele, pois ele devia dinheiro para todos. Além do mais, sua fama no lugar não era muito boa. Apesar de tudo isso, ele decidiu matar Ovídio, mas antes quis vingar-se do Major Consilva e de seus capangas que não quiseram acompanhá-lo na busca da esposa. Chegou, então, à chácara do major, porém, os capangas o espancaram até que ele caísse. No meio desses homens, estava o camarada de quem ele havia ganhado a prostituta Siriema. Quando ele já estava caído, o major mandou que o matassem. Eles o arrastaram até o rancho do Barranco. Antes de matá-lo, esquentaram o ferro dos gado e marcaram sua pele com as iniciais do Major Consilva. Nessa hora, ele levantou gritando e se jogou do barranco. Os capangas o consideraram morto e colocaram uma cruz no local.<br />Um homem negro que morava perto dali foi até ele e o levou para seu casebre. Nhô-Augusto pediu que o matassem, mas, dias depois, retomou a consciência. Lembrou-se da mulher e da filha, chorou e chamou o nome de sua mãe. O homem que o acudiu pediu que ele rezasse para Deus e para Nossa Senhora do Rosário. A tristeza tomou conta de Matraga. <br />Os negros trouxeram um padre para que ele pedisse perdão por seus pecados e, após ouvir do padre que sua hora e sua vez iam chegar, considerou que sua vida já acabara e esperava apenas a salvação da sua alma. Tomara tão grande horror às suas maldades que nem podia mais se lembrar delas. Parecia se converter a Deus aos poucos.<br />Quando ficou bom, pensou em ir para o sertão com o casal samaritano que o socorreu e viajaram para o povoado do Tombador. Lá, ele pedia trabalho e conversava pouco. Às vezes, ficava sozinho e se lembrava das últimas palavras do padre: “Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua.” Desse modo, passaram-se quase seis anos. Ele não fumava nem bebia; não olhava para as mulheres nem discutia.<br />Um dia, passou pela região Tião de Thereza, um velho conhecido de Nhô-Augusto, dando notícias de sua família: Dona Dionóra, continuava amigada com Seu Ovídio e sua filha caíra na vida com um homem desconhecido. O Quim Recadero havia morrido de “morte matada” porque tentou vingar-se dos capangas que pensava terem matado Nhô. Ao ouvir tudo isso, Matraga repetia para si mesmo que sua hora havia de chegar. Por causa disso, no dia seguinte, fez muita caridade para não perder seu lugar no céu.<br />Com o tempo, ele voltou a ter muito sono e muita fome. Pensou que Deus o havia perdoado e mãe Quitéria louvou a Deus por isso. Acordou mais cedo e diante de tanta felicidade que sentia, teve vontade de fumar e não se sentiu pecando por isso.<br />Um dia, chegou ao lugarejo um bando de homens valentões. Nhô foi até o chefe, Joãozinho Bem-Bem, e ofereceu sua casa para que ele ficasse bem hospedado. Todos conversaram muito durante a noite e o chefe do bando, na hora de ir embora, convidou Nhô para ir com eles, mas ele recusou. Apesar disso, os invejou depois, porque não tinham que pensar na salvação da alma e podiam andar no mundo sem vergonha. Pensou bem e considerou que essa história de andar em penitência era andar pra trás e, por isso, decidiu retornar aos seus antigos caminhos. Voltou a beber e a sentir saudades das mulheres. Alguns dias depois, despediu-se e foi embora em um jegue emprestado pelo amigo Rodolphio Merêncio. Onde o jegue o levou ele foi e entraram em um arraial onde, por coincidência, estava a jagunçada de Joãozinho Bem-Bem. Nhô foi recebido pelo grupo com muita satisfação.<br />João ia matar um homem para vingar a morte do Jumentinho, seu colega de bando. O homem implorou pela vida, clamando por Deus e, quando viu essa cena, Nhô interveio, alegando que pedido em nome de Nosso Senhor e da Virgem tinha que ser respeitado. Joãozinho sentia-se preso a Nhô por respeito e não soube o que fazer. Seu bando, entretanto, liderado por Teófilo Sussuarana, caminhou para cima de Matraga. João também foi para a briga se agrediram. Por fim, Nhô-Augusto cortou a barriga do chefe do bando da púbis à boca do estômago, condenando-o à morte. Preocupado com a salvação de Joãozinho, Matraga pediu que ele se arrependesse de seus pecados, mas não ouviu resposta, pois este morreu em seguida. Nhô estava muito machucado, mas pediu que chamassem um padre. O povo, por sua vez, agradecia, dizendo que Deus o mandou ali para salvar as famílias. Diziam: “Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mor de salvar as famílias da gente!...”. Por isso, era chamado de herói e santo por todos, pois ninguém antes tivera coragem para enfrentar Joãozinho Bem-Bem.<br />Um primo de Matraga estava no lugar e o reconheceu. Ele pediu a esse parente que colocasse a bênção em sua filha e que dissesse a Dionóra que estava tudo em ordem. Depois disso, morreu. <br />“A Hora e a Vez de Augusto Matraga” é o nono e último conto de Sagarana, livro que em 1946 marcou a estréia de Guimarães Rosa em nossa literatura e expressa a força e o espírito do sertão de Minas Gerais e conta a história da queda de um homem poderoso em busca de sua redenção: "P'ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!..." <br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Campo Geral - João Guimarães Rosa - resumo<br />A narrativa de Campo geral começa quando Miguilim é levado por Tio Terez para ser crismado. O menino tem 8 anos e nunca saiu do Mutum, afora pequenas mudanças que fez quando ainda muito pequeno. Desta viagem, a lembrança mais nítida será de um comentário ouvido sobre a beleza de Mutum. Profundamente impressionado com esta referência, Miguilim não vê a hora de contá-la à mãe, Nhanina, sempre triste de ali viver. <br />Ao chegar em casa, vai tão aflito procurar a mãe, que acaba desgostando a seu pai e recebe castigo: não o acompanha juntamente com os irmãos na pescaria de domingo. Em contrapartida, aprende a fazer arapuca para pegar passarinho com o Tio Terez. <br />A rotina da casa inclui os brinquedos de Miguilim com seus irmãos por ordem de idade, Drelina, Dito, Chica, Tomezinho. Há também outro irmão, Liovaldo, mais velho que Miguilim, o único que não mora com a família. Na cozinha, a mãe e as empregadas, Rosa, Maria Pretinha e Mãitina, preparam as comidas. Nas cercanias, vivem os diversos cachorros da família. Havia uma cadela, a Pingo-de-Ouro, a que Miguilim era especialmente apegado, mas que foi dada pelo pai a tropeiros de pernoite no Mutum. <br />A descoberta de que Nhanina e Tio Terez tinham um caso causa grande confusão. O pai bate na mãe, Miguilim tenta interrompê-lo e termina sendo castigado _ . Vovó Izidra, sua tia-avó, é quem toma a iniciativa de expulsar Tio Terez de casa, xingando-o de Caim. Nesta noite, uma grande tempestade faz Dito e Miguilim conversarem sobre o medo da morte. Para acalmar a todos, Vovó Izidra puxa uma reza.<br />No dia seguinte, Seo Deográcias, entendido de remédios, foi com o filho, Patori, visitá-los. Queria, na verdade, pegar emprestado alguns mantimentos e cobrar um dinheiro, mas aproveita para aconselhar sobre a saúde de Miguilim, que a todos parecia frágil. <br />Aos poucos, Miguilim começa a cismar que vai morrer. Faz uma promessa a Deus: se ele não morresse nos próximos dias, não morreria mais. Enquanto isso, se compromete a rezar uma novena. Contudo, os dias passam, ele não principia a novena e vai ficando cada vez mais ansioso. Começa então a rever vários momentos e se recorda da habilidade de Dito em se comportar de modo que não desagrade o Pai, da curiosidade que Patori lhe despertou sobre sexo, do aconchego que sentia em criança de ficar nos braços de Mãitina. No derradeiro dia, nem da cama ele quer sair. E até Seo Aristeu, outro curandeiro da região, vir vê-lo, Miguilim não pode acreditar em outra coisa que não fosse a morte chegando. Temia estar tísico, mas Seo Aristeu logo foi explicando no seu jeito alegre de falar que essa doença não dava por aquela parte dos Gerais.<br />O pai então toma uma decisão: a partir do próximo dia, Miguilim irá levar-lhe comida na roça onde trabalhava. O menino fica muito feliz de se sentir útil. Quando foi cumprir a tarefa pela primeira vez, Tio Terez aparece no caminho e pede ao sobrinho um favor: entregar um bilhete a Nhanina. O pedaço de papel no bolso põe Miguilim num grande embate interior: o que seria mais certo fazer? Sem contar o motivo, consulta todos sobre o que é certo ou errado. Como sempre, é com Dito que Miguilim vai se orientar, tentando pedir explicações que o irmão, apesar de menor, parece sempre conhecer. <br />Depois de uma tarde e de uma noite de dúvidas, Miguilim só resolve em frente ao Tio Terez o que fazer: diz a verdade e devolve o bilhete. O Tio então se dá conta em que horrível posição colocara o sobrinho e se desculpa. Ainda atordoado, Miguilim deixa que os macacos roubem a comida do tabuleiro. O pai se diverte com a história, dando a sensação em Miguilim de ser amado. <br />Com a chegada de Luisaltino, novo parceiro de trabalho de Nhô Bero, vem à notícia de que Patori assassinou um rapaz e está foragido. Patori acaba morrendo de fome, e Nhô Bero larga tudo para prestar solidariedade a Seo Deográcias, que se desesperava com a perda do filho. Mas o que mais agradou a Miguilim foi que Luisaltino traz consigo um papagaio, o Papaco-o-Paco. <br />Uma manhã, depois de ter ido espiar uma coruja, Dito pisa num caco de pote e corta o pé. O tétano toma conta do menino e, em poucos dias, ele morre. Miguilim se desespera e esse intenso sofrimento parece não passar nunca. Mãitina tem uma idéia que o ajuda a enfrentar a dor: juntou roupas e brinquedos de Dito e alguns guardados seus e enterrou tudo no quintal, marcando depois o lugar com pedrinhas lavadas do rio. <br />Para tirá-lo dessa tristeza, Nhô Bero resolve pô-lo para trabalhar: começa a debulhar milho, capinar a horta, buscar cavalo no pasto. Miguilim não acha ruim trabalhar, mas não vê alegria em nada. Para complicar, dias depois chegam Tio Osmundo e o irmão Liovaldo. <br />O Tio não simpatiza com Miguilim e Liovaldo começa a provocá-lo. Até que Liovaldo faz pequenas maldades com o menino Grivo e Miguilim, indignado, acaba partindo para a briga. Nhô Bero fica tão furioso que dá uma sova de correia no menino. Miguilim sente tanto ódio do pai que nem chora: só pensa em crescer e matá-lo. Nhanina, para abrandar a situação, manda Miguilim se hospedar na casa do vaqueiro Saluz por três dias. Na volta, Miguilim não pede a bênção ao pai, que então se vinga, soltando os passarinhos de Miguilim e despedaçando as gaiolas. Miguilim por sua vez extravasa sua raiva, quebrando os próprios brinquedos.<br />Quando o Tio e o irmão vão embora, Miguilim pela primeira vez se alegra com a possibilidade de um dia ser ele a partir. Com esta idéia na cabeça começa a se reanimar, a repassar tudo que aprendera com Dito, mas termina por adoecer, o que desespera Nhô Bero. Durante a sua convalescença, uma tragédia se precipita: Nhô Bero descobre que Luisaltino o traía com sua mulher; mata o ajudante e, em seguida, se suicida. <br />Seo Aristeu tenta animar Miguilim. Nhanina conta sua intenção de casar com Tio Terez, que a esta altura já está de volta. Miguilim, ainda abatido com a doença e com todos os acontecimentos, vê chegar dois homens a cavalo. Um deles logo repara no jeito de Miguilim olhar, com os olhos apertados. O grupo vai para a casa e Miguilim é examinado até que o homem, doutor José Lourenço, do Curvelo, chega a um diagnóstico: vista curta. Tira os próprios óculos e empresta ao menino, que nem pode acreditar em tudo que se revelou a sua frente. <br />O doutor se oferece para levar Miguilim para a cidade: providenciaria os óculos e poria Miguilim para estudar. Miguilim aceita o convite e se prepara para ir embora na manhã seguinte. Mas, antes de partir, pede de novo os óculos. Quer levar consigo uma imagem nítida da família e do Mutum, que, agora ele via, era realmente bonito.<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa - Resumo<br />Grande Sertão: Veredas, único romance escrito por Guimarães Rosa, é considerado sua obra-prima e um dos mais importantes textos da literatura brasileira. Publicado em 1956, mesmo ano da publicação de Corpo de Baile, Grande Sertão: Veredas já foi traduzido para muitas línguas e, por ser uma narrativa onde a experiência de vida e experiência de texto se fundem numa obra fascinante, sai interpretação continua em aberto, constituindo um constante desafio para os leitores.<br />O romance se constrói como uma longa narrativa oral, cujo ponto de partida é um situação bastante verossímil: um velho fazendeiro, ex-homem de armas e de letras, presta um depoimento sobre sua própria experiência a um interlocutor, também letrado, cuja fala é apenas sugerida. Portanto, das 460 páginas do romance flui um monólogo initerrupto, através do qual o personagem-narrador, Riobaldo, conta sua vida a um interlocutor que jamais tem a palavra.<br />Como contador de histórias, Riobaldo vai emendando um caso no outro, tendo sempre a preocupação de discutir a existência ou não do diabo.<br />Grande Sertão: Veredas - travessia que Riobaldo, narrador-personagem, faz em suas memórias a fim de narrar suas vivências a um "senhor" durante três dias. Travessia que Guimarães Rosa faz através do caráter insólito e ambíguo do homem, tornando uma experiência individual (Riobaldo ) em caráter universal - "o sertão é o mundo".<br />A primeira parte do romance (até aproximadamente à página 80), Riobaldo faz um relato "caótico" e desconexo de vários fatos (aparentemente sem relações entre si), sempre expondo suas inquietações filosóficas (reflexões sobre a vida, a origem de tudo, Deus, Diabo,...) - Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se fôr jagunço, mas a matéria vertente. "O discurso ambivalente de Riobaldo (...) se abre a partir de uma necessidade, verbalizada de maneira interrogativa". No entanto, há uma grande dificuldade em narrar e organizar seus pensamentos: Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que tem certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. É o compadre Quelemém de Góis que lhe socorre em suas dúvidas, mas não de forma satisfatória, daí a sua necessidade de narrar.<br />A partir da página 80, Riobaldo começa a organizar suas memórias. Fala da mãe Brigi, que o obrigava à esmolação para a paga de uma promessa. É nessa ocasião, à beira do "Velho Chico", que Riobaldo se encontra pela primeira vez com o garoto Reinaldo, fazendo juntos uma travessia pelo rio São Francisco. Riobaldo fica fascinado com a coragem de Reinaldo, pois como este afirma: "sou diferente (...) meu pai disse que eu careço de ser diferente (...). <br />A mãe de Riobaldo vem a falecer, sendo ele levado à fazenda São Gregório, de seu padrinho Selorico Mendes. É lá que Riobaldo toma contato com o grande chefe Joca Ramiro, juntamente com os chefes Hermógenes e Ricardão. Selorico Mendes envia o seu afilhado ao Curralinho, a fim de que tivesse contato com os estudos. Posteriormente, assume a função de professor de Zé Bebelo (fazendeiro residente no Palhão com pretensões políticas. Zé Bebelo, querendo pôr fim aos jagunços que atuavam no sertão mineiro, convida Riobaldo a participar de seu bando. Riobaldo troca as letras pelas armas. É desse ponto que começa suas aventuras pelo norte de Minas, sul da Bahia e Goiás como jagunço e depois como chefe.<br />O bando de Zé Bebelo faz combate com Hermógenes e seus jagunços, onde este acaba por fugir. Riobaldo deserta do bando de Zé Bebelo e acaba por encontrar Reinaldo (jagunço do bando de Joca Ramiro), ingressando no bando do "grande chefe". A amizade entre Riobaldo e Reinaldo acaba por se tornar sólida, onde Reinaldo revela o seu nome - Diadorim - pedindo-lhe segredo. Juntamente com Hermógenes, Ricardão e outros jagunços, combate contra as tropas do governo e de Zé Bebelo.<br />Depois de um conflito com o bando de Zé Bebelo, o bando liderado por Hermógenes fica acuado, acabando-se por se separar, reunindo-se posteriormente. O chefe Só Candelário acaba por integrar-se ao bando de Hermógenes, tornando-se líder do bando até o encontro com Joca Ramiro. Nessa ocasião, Joca Ramiro presenteia Riobaldo com um rifle, em reconhecimento à sua boa pontaria (a qual lhe faz valer apelidos como "Tatarana" e "Cerzidor"). O grupo de Joca Ramiro acaba por se dividir para enfrentar Zé Bebelo, conseguindo capturá-lo. Zé Bebelo é submetido a julgamento por Joca Ramiro e seus chefes - Hermógenes, Ricardão, Só Candeário, Titão Passos e João Goanhá - acabando a ser condenado ao exílio em Goiás.<br />Depois do julgamento, o bando do grande chefe se dispersa, Riobaldo e Diadorim acabam por seguir o chefe Titão Passos. Posteriormente, o jagunço Gavião-Cujo vai ao encontro do grupo de Titão Passos para informar a morte de Joca Ramiro, que foi assassinado à traição por Hermógenes e Ricardão ("os judas"). Riobaldo fica impressionado com a reação de Diadorim diante da notícia. Os jagunços se reúnem para combaterem os judas. <br />Por essa época, Riobaldo tem um caso com Nhorinhá (prostitutriz), filha de Ana Danúzia. Conhece Otacília na fazenda Santa Catarina, onde tem intenções verdadeiras de amor. Diadorim, em determinada ocasião, por ter raiva de Otacília, chega a ameaçar Riobaldo com um punhal.<br />Medeiro Vaz junta-se ao bando para a vingança, assumindo a chefia. Inicia-se a travessia do Liso do Sussuarão. O bando não agüenta a travessia e acaba por retornar. Medeiro Vaz morre. Zé Bebelo retorna do exílio para ajudar na vingança contra os judas, tomando a chefia do bando.<br />Por suas andanças, o bando de Zé Bebelo chega à fazenda dos Tucanos, onde são encurralados por Hermógenes. Momentos de grande tensão. Zé Bebelo envia dois homens para informarem a presença de jagunços naquele local. Riobaldo desconfia de uma possível traição com esse ato. O bando de Hermógenes fica acuado pelas tropas do governo e os dois lados se unem provisoriamente para escaparem dos soldados. Zé Bebelo e seus homens fogem à surdina da fazenda, deixando os hermógenes travando combate com os soldados. Riobaldo oferece a pedra de topázio a Diadorim, mas este recusa, até que a vingança tenha sido consumada.<br />Os bebelos chegam às Veredas-Mortas. É um dos pontos altos do romance, onde Riobaldo faz o pacto com o Diabo para vencerem os judas. Riobaldo acaba assumindo a chefia do bando com o nome de "Urutu-Branco"; Zé Bebelo sai do bando. Riobaldo dá a incumbência a "seô Habão" para entregar a pedra de topázio a Otacília, firmando o compromisso de casamento. O chefe Urutu-Branco acaba por reunir mais homens (inclusive o cego Borromeu e o menino pretinho Gurigó).<br />À procura dos hermógenes, fazem a penosa travessia do Liso do Sussuarão, onde Riobaldo sofre atentado por Treciano, que é morto pelo próprio chefe. Atravessado o Liso, Riobaldo chega em terras baianas, atacando a fazenda de Hermógenes e aprisionando sua mulher. Retornam aos sertões de Minas, à procura dos judas. Encurralam o bando de Ricardão nos Campos do Tamanduá-tão, onde o Urutu-Branco mata o traidor. Encontro dos hermógenes no Paredão. Luta sangrenta. Diadorim enfrenta diretamente Hermógenes, ocasionando a morte de ambos. Riobaldo descobre então que Diadorim se chama Maria Deodorina da Fé Bittancourt Marins, filha de Joca Ramiro.<br />Riobaldo acaba por adoecer (febre-tifo). Depois de se restabelecer, fica sabendo da morte de seu padrinho e herda duas fazendas suas. Vai ao encontro de Zé Bebelo , o qual o envia com um bilhete de apresentação a Quelemém de Góis: <br />Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou meu contar minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência - calma de que minha dor passasse ; e que podia esperar muito longo tempo. O que vendo, tive vergonha, assaz.<br />Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo perguntei:<br />-"O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário ? "<br />Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale me respondeu:<br />-"Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais..."<br />(...)<br />Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. (...) Amável senhor me ouviu, minha idéia confirmou : que o Diabo não existe. Pois não ? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há ! É o que eu digo, se fôr... Existe é homem humano. Travessia.<br />LINGUAGEM<br />Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa faz uma recriação da linguagem, "recondicionando-a inventivamente, saindo do lugar-comum a fim de dar maior grandeza ao discurso. Nu da cintura para os queixos (ao invés de nu da cintura para cima) e ainda Não sabiam de nada coisíssima (no lugar de não sabiam de coisa nenhuma) constituem exemplos do apuramento da linguagem roseana.<br />Toda a narrativa é marcada pela oralidade (Riobaldo conta seus casos a um interlocutor), portanto, sem possibilidades de ser reformulado, já que é emitido instantaneamente. Ainda tem-se as dúvidas do narrador e suas divagações, onde é percebido a intenção de Riobaldo em reafirmar o que diz utilizando a própria linguagem.<br />O falar mineiro associado a arcaísmos, brasileirismos e neologismos faz com que o autor de Sagarana extrapole os limites geográficos de Minas. A linguagem ultrapassa os limites "prosaicos"para ganhar dimensão poético-filosófica (principalmente ao relatar os sentimentos para com Diadorim ou a tirar conclusões sobre o ocorrido através de seus aforismos).<br />AFORISMOS<br />Significado: Sentença moral breve e conceituosa; apotegma, máxima; princípio básico ou indiscutível da ciência ou da arte.<br />Exemplos em Grande Sertão: Veredas:<br />“Viver é muito perigoso”; “Deus é paciência”; “Sertão. O senhor sabe: sertão onde manda quem é forte, com as astúcias.”; “...sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar.”; “...toda saudade é uma espécie de velhice”; “Jagunço é isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota - quase tudo para ele é o igual.”; “Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver.”; “Viver é um descuido prosseguido.”; “sertão é do tamanho do mundo”; “Vingar, digo ao senhor : é lamber, frio, o que o outro cozinhou quente demais.”; “Quem desconfia, fica sábio.”; “Sertão é o sozinho.”; “Sertão : é dentro da gente.”; “...sertão é sem lugar.”; “Para as coisas que há de pior, a gente não alcança;a fechar as portas.”; “Vivendo, se aprende ; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”; “...amor só mente ara dizer maior verdade.”; “Paciência de velho tem muito valor.”; “Sossego traz desejos.”; “... quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade.”<br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Manuelzão e Miguilim - João Guimarães Rosa - Resumo<br />As duas novelas que compõem esta obra foram publicadas em 1956 como parte de Corpo de baile; a partir de 1960, quando Corpo de baile se desdobrou em três livros, Manuelzão e Miguilim passou a formar um único volume. <br />Apesar da ordem dos nomes no título, a primeira novela, Campo geral, conta a história de Miguilim, um menino de oito anos, abordando o universo do mundo infantil sob a sua ótica; a segunda, chamada Uma estória de amor, trata de Manuelzão e dos preparativos para a festa de consagração de uma capela que ele construíra.<br />Novela: Como espécie literária, a novela não se distingue do romance, evidentemente, pelo critério quantitativo, mas pelo essencial e estrutural. Tradicionalmente, a novela é uma modalidade literária que se caracteriza pela linearidade dos caracteres e acontecimentos, pela sucessividade episódica e pelo gosto das peripécias. Contrariamente ao romance, a novela não tem a complexidade dessa espécie literária, pois não se detém na análise minuciosa e detalhada dos fatos e personagens. A novela condensa os elementos do romance: os diálogos são rápidos e a narrativa é direta, sem muitas divagações. Nesse sentido, muita coisa que chamamos de romance não passa de novela. Naturalmente a novela moderna, como tudo que é moderno, evoluiu e não se sujeita a regras preestabelecidas. Tal como o conto, parodiando Mário de Andrade, "sempre será novela aquilo que seu autor batizou com o nome de novela". Como autor (pós)-modernista, Guimarães Rosa procurou ser original, imprimindo, em suas criações literárias, a sua marca pessoal, o seu estilo inconfundível. Suas novelas, contudo, apesar das inovações, sempre apresentam aquela essência básica dessa modalidade literária, que é o apego a uma fabulação contínua como um rio, de caso-puxa-caso<br />Surgido pela primeira vez em 1956 dentro da obra Corpo de Baile (que incluía também Noites do Sertão e No Urubuquaquá, no Pinhém), Manuelzão e Miguilim é um dos momentos mais tocantes de Guimarães Rosa, superado por alguns contos de Primeiras Estórias e pelo inigualável romance Grande Sertão: Veredas. <br />Antes do mergulho em sua temática, necessário se faz reconhecer as características da literatura do grande escritor mineiro. Em primeiro lugar, sabe-se que o mais lembrado nele é o seu teor regionalista universal, um rótulo que pode parecer incoerente, mas que carrega certo sentido. <br />Seu caráter regionalista reside na forma. Em primeiro lugar, o ambiente de todas as suas narrativas é o sertão de Minas Gerais (uma minúscula parte delas passa-se no sertão da Bahia. No entanto, a vizinhança faz-nos garantir que se trata praticamente da mesma região), tendo como personagens seus habitantes. Além disso, no campo da linguagem é que está sua mais famosa recriação do universo mineiro.<br />Na realidade, ao contrário do que costumeiramente se afirma, Guimarães não copia a linguagem do sertanejo, tanto é que há constantemente a invenção de palavras (neologismos) misturada a arcaísmos, além do aproveitamento de termos cultos e de elementos de poeticidade, como aliterações e assonâncias. Seria absurdo imaginar que o homem simples do campo tivesse uma linguagem com tanta inventividade. O que de fato ele aproveita é a melopéia, ou seja, a musicalidade, o andamento de sua fala, como se percebe no trecho abaixo:<br />“A roça era um lugarzinho descansado bonito, cercado com uma cerquinha de varas, mò de os bichos que estragam. Mas muitas borboletas voavam. Afincada na cerca tinha uma caveira inteira de boi, os chifres grandes, branquela, por toda boa-sorte”.<br />Note como os diminutivos carregam o texto de oralidade, além do emprego do termo “mò”, que ganha uma ortografia que transgride as normas gramaticais, o que é muito comum no autor. Todos esses elementos vão se juntar a uma construção que não é comum na linguagem falada: a separação entre a preposição e o artigo ligado ao sujeito (“mò de os bichos”). Outro trecho bastante revelador do estilo roseano vem a seguir:<br />“De já, tinha um boi vermelho, boi laranjo, esbarrado debaixo do alto tamboril. Tantas cores! Atroado, grosso, o môo de algum outro boi. O Dito então aboiava.”<br />Observe a repetição das consoantes /d/, /t/ e /b/ (aliteração) criando uma sonoridade que imita a movimentação de bois. Toda essa engenhosidade no trato da linguagem é que autoriza alguns estudiosos a qualificarem o trabalho de Guimarães Rosa como neobarroco.<br />Somada a essas preocupações formais existe a temática de Guimarães Rosa. Seus textos ambientam os grandes temas da humanidade, principalmente os existenciais e metafísicos, no sertão mineiro, tudo de forma simbólica, mítica e mística. São verdadeiras fábulas.<br />Esse é o aspecto que se enxerga, por exemplo, em “Campo Geral”. É um conto/novela/poema da formação, da iniciação, do amadurecimento de Miguilim. Tanto que o foco narrativo, de terceira pessoa, onisciente, é filtrado por ele. Tudo gira ao seu redor, tudo é enxergado obedecendo ao seu ponto de vista, desde o emprego da linguagem até a absorção e compreensão da realidade. Prova desse aspecto é o retrato que ele dá a seu irmão, dizendo que é de uma santa. A reação dos adultos, que chegam a rasgá-lo, dizendo que era pecado, faz o leitor entender, e não a personagem, que se tratava de uma imagem de mulher pelada. Tal viés acaba tornando o texto muito mais poético, pois nos faz acompanhar o crescimento do protagonista como se fosse bastante íntima nossa.<br />Começamos a ver Miguilim aos oito anos, com uma menção aos seus sete anos, quando esteve mergulhado numa preocupação em respeito ao local de sua residência, o Mutum - essa palavra constitui um palíndromo, ou seja, pode tanto ser lida da direita para a esquerda com da esquerda para a direita, sem alterar-se. E o mais interessante é que sua grafia, MUTUM, acaba concretizando o próprio local, já que este ficava junto a um covoão (U), entre morro e morro (M e M). Durante uma viagem para ser crismado, ouvira alguém falar que aquele era um lugar muito bonito. Tão feliz fica com a novidade que se torna ansioso em contá-la para a mãe, Nhã-Nina, crendo que assim faria com que ela deixasse de ser triste por morar ali.<br />Seu jeito estabanado, no entanto, faz com que corra desesperado em direção da mãe, passando direto pelo pai, Béro, irritando-o. É a primeira informação que o leitor recebe de que existe na narrativa uma transfiguração do complexo de Édipo, já que Miguilim tem uma forte identificação afetiva com a mãe e problemas graves de relacionamento com o pai, a ponto de, mais para frente, os dois se estranharem como se fossem inimigos.<br />Há também outras pessoas com quem o protagonista mantém relação. Podem ser citados os irmãos Chica, Drelina e Tomezinho, os dois últimos de gênio difícil, até maligno. A Rosa, que trabalha em sua casa e com quem tem uma tranqüila relação, muitas vezes acompanhando-o em seus sentimentos e fantasias. Vó Izidra, na realidade tia-avó por parte de mãe dele. Era uma mulher dotada de uma moral extremamente rígida, baseada num catolicismo um tanto tradicional, apegado a santos e rezas. É a religiosidade oficial, bem diferente de Mãitina, velhíssima remanescente da escravidão, já sem juízo e com fama de feiticeira. Seu misticismo é muito mais primitivo, pois que baseado em magia (compare essas duas idosas. Ambas estão vinculadas ao misticismo, à religiosidade. A ligação com o aspecto oculto de nossa existência está até simbolizada no cômodo em que cada uma fica: ambos são escuros e isolados. Além disso, gostam de Miguilim. A diferença é que Vó Izidra é mais enrustida. Há também diferenças na qualidade da religiosidade de cada uma. Mãitina é mais primitiva enquanto a outra segue um padrão mais oficial).<br />Mas duas personagens são as mais importantes no círculo de relacionamento de Miguilim. A primeira é o seu irmão Dito, que, apesar de mais novo, é mais sábio, na medida em que está mais preparado para o lado prático da vida. Torna-se a âncora do protagonista, já que este é extremamente aluado. Por isso é constantemente consultado pelo personagem principal.<br />A outra figura importante é o Tio Terêz (dentro da elaboração poética de sua prosa, Guimarães estabelece uma ortografia própria, muitas vezes afastando-se do padrão gramatical. É o caso do “Terêz”, já que oxítonas terminadas em “z” não devem ser acentuadas). Irmão de Béro, é o amigo grande de Miguilim (há quem extrapole na interpretação e enxergue na relação entre Miguilim e Terêz, tendo também em vista o caso entre este e Nina, além dos conflitos entre o protagonista e seu pai, a possibilidade de que o menino seria filho não de Béro, mas de Terêz. Mas é um aspecto que de forma alguma deve ser colocado em uma prova, pois que baseado em suspeitas muito leves). E sabemos, pelo olhar lacunoso de uma criança, que mantém uma relação no mínimo perigosa com Nina. Intuímos isso pela briga que há entre pai e mãe em que esta quase apanha; só não sofreu porque Miguilim se interpôs no meio do casal, acabando por sofrer a fúria de Béro no lugar da mãe. Comenta-se a todo instante que o tio não ia poder mais aparecer no Mutum. Além disso, surge uma tempestade terrível, que é atribuída por Vó Izidra como castigo infligido às ações pecaminosas que andavam grassando. <br />O temporal se vai, Tio Terêz some e o Mutum mergulha numa tranqüilidade momentânea. É quando Miguilim põe na mente a idéia obsessiva de que iria morrer em dez dias. Passa a desenvolver um apego pela vida durante o decorrer desse período e principalmente após ele, ao descobrir que sobrevivera a ele.<br />Béro, pouco depois, faz com que Miguilim lhe leve o almoço. É uma maneira que entende de arranjar utilidade para o garoto, que realiza sua tarefa com orgulho. No entanto, em uma das viagens, é surpreendido por Tio Terêz, que lhe entrega uma carta para ser entregue à Nina e diz que estaria esperando resposta no dia seguinte. Começa então um dilema na mente do menino. Adora o tio e, portanto, deve fazer o que este lhe pediu. No entanto, mesmo não tendo consciência do que acontecia, intui que o que era pedido era errado. Depois de muito tempo de conflito interior, decide não entregar a missiva, confessando, entre choros, ao tio, que facilmente entende. É um grande passo no crescimento da personagem.<br />Introduzido por outra tempestade, chega mais um período de crise. É, como diz o narrador, o momento em que virou o tempo do ruim. Começa com o assassinato de Patori, garoto imbuído de malignidade e que maltratava muito Miguilim. Seguem-se outros fatos. O cachorro Julim foi mortalmente ferido por um tamanduá. Tomezinho sofre com a picada de um marimbondo. O touro Rio Negro machuca Miguilim, que acaba descontando a raiva em Dito. Luisaltino surge e começa a se engraçar com Nina (a mãe de Miguilim parece revelar um caráter no mínimo leviano, volúvel. Pode-se desconfiar de um certo determinismo, na medida em que sua personalidade seria um reflexo das atividades exercidas pela mãe dela, que fora prostituta). O ponto crítico ocorre quando Dito vai espiar o ninho de uma coruja. A ave acaba dizendo o nome dele, o que é visto por Miguilim como mau agouro (note que, para angústia de Miguilim, o papagaio não conseguia falar o nome de Dito, ao contrário da coruja. Drama temporário. No final, muito tempo depois, consegue-o).<br />Tudo é preparação de clima para o grande desastre. Durante a perseguição que as crianças fazem a um mico que havia escapado, Dito acaba tendo o pé cortado por um caco que estava no terreiro. O machucado piora, colocando o menino de cama. Coincidência ou não, é época dos festejos de Natal, Vó Izidra até se dedicando a montar seu famoso presépio. <br />Dito não resiste ao mal que lhe acometeu, vindo por falecer. É uma experiência extremamente dolorosa para Miguilim, mas que pode ser vista como um passo importante no seu amadurecimento. Se antes o protagonista era guiado pelo irmão, nos momentos de convalescença deste o jogo começa a se inverter. É Miguilim que conta ao acamado o que está ocorrendo no mundo ao redor deles. Passa a ser, pois, os olhos fraternos. Com a morte, a personagem principal passa um longo período curtindo a dor, o sofrimento, até que assume um movimento com que de introjeção do falecido, já que antes de tomar uma decisão sempre se pergunta o que seu irmão faria. Ao assumir a mesma atitude que presume ser de Dito, praticamente absorve-o em seu ser.<br />Tanto essa evolução é verdade que Miguilim agüenta firme o sufoco a que seu pai o submete, fazendo-o trabalhar no roçado, debaixo de um sol desumano. Mas o mais importante é lembrar da sua participação no conflito que houve entre Liovaldo e Grivo.<br />Grivo era um rapaz muito pobre, a ponto de os animais de criação, como galinhas, morarem na mesma casa dele. Certa vez aparecera no Mutum com dois patos para serem vendidos, parca fonte de sustento para si e para mãe. No entanto, Liovaldo, irmão de Miguilim que morava na cidade e que estava de visita, dominado por um espírito maléfico, começa a maltratar e até a machucar o pobre. Miguilim acha injusto e toma partido, batendo no agressor. Seu pai fica indignado pelo fato de o menino não respeitar o sangue familiar e, incoerentemente, dá uma surra nele que chega a espancamento. O protagonista, no entanto, não se sente mal, pelo contrário, tem raiva, pois sabe que está certo e que o pai está imensamente errado. Por isso pensa em vingança, imaginando até a morte do pai. É quando ri, em meio a surra, o que faz todos, até o agressor, pensarem que o menino endoidara, talvez até com os golpes.<br />O conflito instaura a conquista, por Miguilim, de espaço e até respeito no ambiente familiar. Após três dias que passa na casa de um vaqueiro, para protegê-lo da fúria do pai, retorna, mas não se mostra submisso. Como provocação, Béro quebra os brinquedos e gaiolas do filho. Este solta os passarinhos que tinha presos e quebra os brinquedos que sobraram. É um sinal de que havia crescido e que, portanto, não precisava mais daquelas diversões.<br />Delimitadas as fronteiras, Miguilim pouco depois cai doente e de forma tão grave que alterna momentos de inconsciência a de consciência (a doença e os mergulhos de desligamento que provoca podem ser entendidos como um momento de incubação, como se Miguilim, dentro de um casulo, estivesse em uma fase no final da qual se transformaria em outra pessoa). Nos instantes em que vem à tona percebe picotes de realidade, mas que nos faz entender vários acontecimentos. O primeiro é o desespero do pai, que se sente injustiçado pela providência divina, que parecia querer tomar mais um filho dele (Béro é, portanto, uma personagem complexa, pois, ao mesmo tempo em que maltrata seu filho, demonstra amor por ele. Sua agressividade pode ser fruto de uma vida de dificuldades financeiras, pois não é dono de suas próprias terras, cuidando do que era alheio. Nas entrelinhas fica o traçado de um caráter rico psicologicamente). Tenta ao máximo fazer suas vontades. Em vários outros despertares Miguilim toma conhecimento que Béro havia matado Luisaltino, provavelmente por causa de Nhã-Nina. Por ter caminhado pelas trilhas da criminalidade, acaba por se suicidar.<br />Quando começa a melhorar, o protagonista toma conhecimento de que Tio Terêz tinha voltado e ia passar a morar no Mutum. Era a união, finalmente, dele com Nina. Por causa disso, Vó Izidra parte de lá, indignada.<br />No final, a chegada de um certo Dr. José Lourenço traz uma revelação surpreendente. É essa figura nova que descobre que Miguilim era míope. Ao emprestar ao menino seus óculos, permite à criança uma descoberta. Seu velho mundinho acaba ganhando uma visão completamente nova, mais nítida. É a simbologia do crescimento, o que constitui um ritual de passagem. Enxergar mais nitidamente o mundo significa entrar para a fase adulta, sair da infância.<br />Na companhia de tão importante mudança, Miguilim parte para a cidade. Sua viagem, somada à simbologia dos óculos, pode significar a entrada em um novo universo. Miguilim pode tanto ter abandonado a visão primitiva, pré-lógica, que o caracterizara, como continuar, em meio ao universo adulto, preservando seu lado infantil. É, pois, um final aberto, a permitir mais de interpretação.<br />Quanto a “Uma Estória de Amor”, parece que vamos para o outro lado da existência, já que seu protagonista, Manuelzão, tem 60 anos. No estágio que atingiu, torna-se o responsável pela fazenda Samarra, pertencente a Federico Freyre, alguém que nunca aparece, sendo apenas mencionado (cuidar das terras de alguém que não aparece fisicamente, só na forma de uma carta, faz lembrar o próprio papel de Adão ou até mesmo do ser humano em relação a Deus).<br />Estabelecido, depois de uma ampla vida de atribulações, resolve instalar sua mãe e pouco depois, sentindo falta, provavelmente, de um sentimento de família, busca um seu descendente, fruto de um relacionamento perdido no tempo. É o seu filho, Adelço de Tal, sujeito desamistoso, seco, casado com Leonísia, mulher linda a ponto de inspirar desejos perigosos em Manuelzão, o que provoca nele um conflito interior. Promitivo, irmão de Leonísia, dezoito anos, rapaz sem rumo certo na vida – um vagabundo.<br />Com a morte de sua mãe, Manuelzão resolve erguer uma capela para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, atendendo, quase que inconscientemente, a um pedido da progenitora, quando ainda viva. Coincidência ou não, essa determinação ocorre logo após o riacho que cortava a fazenda ter misteriosamente secado no meio de uma noite (haveria aqui uma relação entre a vida de Manuelzão e o curso do rio?). Terminada a construção da igrejinha, prepara-se para inaugurá-la, esperando a chegada de um padre.<br />Surpreendentemente, vem chegando uma enorme quantidade de gente, de todas as partes, para participar desse evento religioso. É um festejo que já ocorre nas vésperas do que acaba se tornando o grande dia e do qual Manuelzão não tem mais controle, a não ser no que se refere à preocupação de garantir alimentação para uma população tão grande de convivas.<br />Entre as pessoas de todo tipo que aparecem, destaque deve ser dado a algumas figuras. A primeira é João Urúgem, homem extremamente primitivo, às vezes tão colado à terra que é visto de quatro, e que chega a cheirar mal, animalescamente. O outro é o Senhor do Vilamão, outrora homem muito rico e poderoso, mas no presente caduco. Diminuída sua potência político-econômica, ainda tem posses e pose. Há também Joana Xaviel, grande contadora de história e que tivera um enlace amoroso (pelo menos no mínimo suficiente para espantar a solidão da velhice) com Camilo, homem de passado misterioso, não se sabe se até fora déspota e bandido, mas que tinha como que preservado um ar de prestígio. Havia até quem suspeitasse de um interesse emotivo entre ele e a mãe de Manuelzão.<br />Inaugurada a capelinha, todos se entregam ao prazer de um caloroso almoço, participando depois da cantoria e do folguedo. Interessante é notar como se manifesta no texto a colagem de vários poemas, advindos de cantigas populares, folclóricos, tornando-o uma colcha de retalhos, a lembrar o esquema que Gil Vicente já havia usado em suas peças, como A Farsa de Inês Pereira. Esse tecido fica mais rico quando se tem em mente que as histórias contadas também entram como peças dessa composição.<br />Enquanto isso, Manuelzão está mergulhado em três problemas. O primeiro é a dor constante que sente em seu pé. O segundo é a necessidade de conduzir uma boiada. No estado em que se encontrava, poderia muito bem transferir tal tarefa para seu filho. Mas esse era o terceiro problema: seria alguém confiável? Nota-se, pois, um relacionamento familiar muito fraco.<br />No final da noite é que todos esses problemas começam a ser sanados. Sem perceber, a dor havia sumido. E o quadro muda radicalmente de figura quando de maneira inesperada Camilo se propõe a contar uma história, a do Boi Bonito.<br />Trata-se da narrativa que em alguns pontos se assemelha a um conto de fadas. Um fazendeiro muito rico possui um cavalo que ninguém consegue domar. Além disso, propõe-se a dar a mão de sua filha a quem conseguir caçar o famoso Boi Bonito, tão belo quanto perigoso. Vários vaqueiros tentaram, mas só encontraram a morte.<br />A entrega da mão da filha a quem conseguir resolver uma tarefa é um motivo muito comum nas fábulas e está ligado à idéia de renovação do “eu”, já que uma estrutura antiga precisa da ajuda de uma nova para a completude de suas ações. Isso tudo parece simbolizar a relação entre Manuelzão e Adelço de Tal.<br />A adequação é tão perfeita aos contos de fada que de fato surge um vaqueiro, Menino, que não só consegue domar o cavalo, como é o único de quem o Boi Bonito foge. Quando finalmente o animal é pego, declara ao moço que por muito tempo esperava por ele. Atinge-se o momento de epifania amorosa que se transfere para os ouvintes. Suspendem-se todas as animosidades entre pai e filho. A festa recebe mais ímpeto. Ganha-se disposição para a viagem com a boiada.<br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Primeiras Histórias - João Guimarães Rosa - resumo<br />Primeiras Estórias<br />Guimarães Rosa<br />Publicada em 1962, essa obra reúne 21 contos. <br />Trata-se do primeiro conjunto de histórias compactas a seguir a linha do conto tradicional, daí o "Primeiras" do título. O termo “estórias”, , designa algo mais próximo da invenção, ficção. <br />No volume, aborda as diferentes faces do gênero: a psicológica, a fantástica, a autobiográfica, a anedótica, a satírica, vazadas em diferentes tons: o cômico, o trágico, o patético, o lírico, o sarcástico, o erudito, o popular. As estórias captam episódios aparentemente banais. As ocorrências farejadas através dos protagonistas transformam-se de uma espécie de milagre que surge do nada, do que não se vê, como diz o próprio Guimarães Rosa; "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo". Este milagre pode ser então, responsável pela poesia extraída dos fatos mais corriqueiros, pela beleza de pensar no cotidiano e não apenas vivê-lo, pelo amor que se pode ter pelas coisas da terra, pelo homem simples, pelo mistério da vida. Dos "causos " narrados brotam encanto e magia frutos da sensibilidade de um poeta deslumbrado com a paisagem natural e/ou recriada de Minas Gerais. <br />I - "As margens da alegria" : Um menino descobre a vida, em ciclos alternados de alegria (viagem de avião, deslumbramento pela flora, e fauna) e tristeza (morte do peru e derrubada de uma árvore). <br />II - "Famigerado" : O jagunço Damázio Siqueira atormenta-se com um problema vocabular: ouviu a palavra "famigerado" de um moço do governo e vai procurar o farmacêutico, pessoa letrada do lugar, para saber se tal termo era um insulto contra ele, jagunço. <br />III - "Sorôco, sua mãe, sua filha": Um trem aguarda a chegada da mãe e da filha de Sorôco, para conduzi - las ao manicômio de Barbacena. Durante o trajeto até a estação, levadas por Sorôco , elas começam surpreendentemente a cantar. Quando o trem parte, Sorôco volta para casa cantando a mesma canção, e os amigos da cidadezinha , solidariamente, cantam junto. <br />IV - "A menina e lá". Nhinhinha possuía dotes paranormais : seus desejos, por mais estranhos que fossem, sempre se realizavam. Isolados na roça, seus parentes guardam em segredo o fenômeno, para dele tirar proveito. As reticentes falas da menina tinham caráter de premonição: por exemplo, o pai reclamara da impiedosa seca. Nhinhinha "quis" um arco-íris, que se fez no céu, depois de alentadora chuva. Quando ela pede um caixãozinho cor-de-rosa com enfeites brilhantes ninguém percebe que o que ela queria era morrer... <br />V - "Os irmão Dagobé". O valentão Damastor Dagobé, depois de muito ridicularizar Liojorge, é morto por ele. No arraial, todos dão como certa a vingança dos outros Dagobé : Doricão , Dismundo e Derval. A expectativa da revanche cresce quando Liojorge comunica a intenção de participar do enterro de Damastor. Para surpresa de todos, os irmãos não só concordam, como justificam a atitude de Liojorge, dizendo que Damastor teve o fim que mereceu. <br />VI - "A terceira margem do rio". Um homem abandona família e sociedade, para viver à deriva numa canoa, no meio de um grande rio. Com o tempo, todos, menos o filho primogênito, desistem de apelar para o seu retorno e se mudam do lugar. O filho, por vínculo de amor, esforça-se para compreender o gesto paterno: por isso, ali permanece por muitos anos. Já de cabelos brancos e tomado por intensa culpa, ele decide substituir o pai na canoa e comunica-lhe sua decisão. Quando o pai faz menção de se aproximar, o filho se apavora e foge, para viver o resto de seus dias ruminando seu "falimento" e sua covardia. <br />VII - "Pirlimpsiquice". Um grupo de colegiais ensaia um drama para apresentá-lo na festa do colégio. No dia da apresentação, há um imprevisto, e um dos atores se vê obrigado a faltar. Como não havia mais possibilidade de se adiar a apresentação, os adolescentes improvisam uma comédia, que é entusiasticamente bem recebida pela platéia. <br />VIII - "Nenhum, nenhuma". Uma criança, não se sabe se em sonho ou realidade, passa férias numa fazenda, em companhia de um casal de noivos, de um homem triste e de uma velha velhíssima, de quem a noiva cuidava. O casal interrompe o noivado, e o menino, que conhecera o Amor observando-os, volta para a casa paterna. Lá chegando, explode sua fúria diante dos pais ao notar que eles se suportavam, pois tinham transformado seu casamento num desastre confortável. <br />IX - "Fatalidade". Zé Centeralfe procura o delegado de uma cidadezinha, queixando-se de que Herculinão Socó vivia cantando sua esposa. A situação tornara-se tão insuportável que o casal mudara de arraial. Não adiantou: o Herculinão foi atrás. O delegado, misto de filósofo, justiceiro e poeta, depois de ouvir pacientemente a queixa, procura o conquistador e, sem a mínima hesitação, mata-o, justificando o fato como necessário, em nome da paz e do bem-estar do universo. <br />X - "Seqüência". Uma vaca fugitiva retorna a sua fazenda de origem. Decidido a resgatá-la, um vaqueiro persegue-a com incomum denodo. Ao chegar à fazenda para onde a vaca retornara, o vaqueiro descobre que havia outro motivo para sua determinação: a filha do fazendeiro, com quem o rapaz se casa. <br />XI - "O espelho". Um sujeito se coloca diante de um espelho, procurando reeducar seu olhar. apagando as imagens do seu rosto externo. A progressão desses exercícios lhe permite, daí a algum tempo, conhecer sua fisionomia mais pura, a que revela a imagem de sua essência. <br />XII - "Nada e a nossa condição". O fazendeiro Tio Man 'Antônio, com a morte da esposa e o casamento das filhas, sente-se envelhecido e solitário. Decide vender o gado, distribuindo o dinheiro entre as filhas e genros. A seguir, divide sua fazenda em lotes e os distribui entre os empregados, estipulando em testamento uma condição que só deveria ser revelada quando morresse. Quando o fato ocorre, os empregados colocam seu corpo na mesa da sala da casa-grande e incendeiam a casa: a insólita cerimônia de cremação era seu último desejo. <br />XIII - "O cavalo que bebia cerveja". Giovânio era um velho italiano de hábitos excêntricos: comia caramujo e dava cerveja para cavalo. Isso o tornara alvo da atenção do delegado e de funcionários do Consulado, que convocam o empregado da chácara de "seo Giovânio", Reivalino, para um interrogatório. Notando que o empregado ficava cada vez mais ressabiado e curioso, o italiano resolve então abrir a sua casa para Reivalino e para o delegado: dentro havia um cavalo branco empalhado. Passado um tempo, outra surpresa: Giovânio leva Reivalino até a sala, onde o corpo de seu irmão Josepe , desfigurado pela guerra, jazia no chão. Reivalino é incumbido de enterrá-lo, conforme a tradição cristã. Com isso, afeiçoa-se cada vez mais ao patrão, a ponto de ser nomeado seu herdeiro quando o italiano morre. <br />XIV - "Um moço muito branco". Os habitantes de Serro Frio, numa noite de novembro de 1872, têm a impressão de que um disco voador atravessou o espaço, depois de um terremoto. Após esses eventos, aparece na fazenda de Hilário Cordeiro um moço muito branco, portando roupas maltrapilhas. Com seu ar angelical, impõe-se como um ser superior, capaz de prodígios: os negócios de Hilário Cordeiro, o fazendeiro que o acolheu, têm uma guinada espantosamente positiva. Depois de fatos igualmente miraculosos, o moço desaparece do memo modo que chegara. <br />XV - "Luas-de-mel". Joaquim Norberto e Sa- Maria Andreza recebem em sua fazenda um casal fugitivo, versão sertaneja de Romeu e Julieta. Certos de que os capangas do pai da moça virão resgatá-la, todos se preparam para um enfrentamento: a casa da fazenda transforma-se num castelo fortificado. É nesse clima de tensão que se celebra o casamento dos jovens, a que se segue a lua-de-mel, que acontece em dose dupla: dos noivos e do velho casal de anfitriões, cujo amor fora reavivado com o fato. Na manhã seguinte, a expectativa se esvazia com a chegada do irmão da donzela, que propõe solução satisfatória para o caso. <br />XVI - "Partida do audaz navegante". Quatro crianças, três irmãs e um primo, brincam dentro de casa, aguardando o término da chuva. A caçula, Brejeirinha , brinca com o que lhe dava mais prazer: as palavras. Inventa uma estória do tipo Simbad , o marujo, que ganha novos elementos quando todos vão brincar no quintal, à beira de um riacho. Liberando sua fantasia, Brejeirinha transforma um excremento de gado no "audaz navegante", colocando-o para navegar riacho abaixo. <br />XVII - "A benfazeja". Mula- Marmela era mulher de Mumbungo , sujeito perverso que se excitava com o sangue de suas vítimas. Esse vampiro tinha um filho, Retrupé , cujo prazer só diferia do do pai quanto à faixa etária das vítimas: preferia as mais frescas. Apesar de amar seu homem e ser correspondida, Mula-Marmela não hesitara em matá-lo e depois cegar Retrupé, de quem se torna guia. Passado algum tempo, resolve assassiná-lo: percebe que esta seria a única maneira de refrear o instinto de lobisomem do rapaz. <br />XVIII - "Darandina". Um sujeito bem- vestido rouba uma caneta, é surpreendido e, para escapar dos que o perseguem, escala uma palmeira. Uma multidão acompanha atentamente os esforços das autoridades, que procuram convencer o rapaz a descer. Resistindo, ele diz frases desconexas e tira toda a roupa, revelando notável equilíbrio físico. A sessão de nudismo leva um médico a nova tentativa de diálogo. Ao se aproximar, o médico percebe que o sujeito voltara à normalidade e que, envergonhado, pedia socorro. A multidão, sentindo-se ludibriada, não aceita essa sanidade repentina e se dispõe a linchá-lo. Sentindo o risco, o sujeito berra um grito de louvor à liberdade, motivo bastante para a multidão ovacioná-lo e carregá-lo nos ombros. <br />XIX - "Substância". O fazendeiro Sionésio apaixona-se por sua empregada Maria Exita , que fora abandonada pela família e criada pela peneireira Nhatiaga . Na fazenda, o ofício de Maria Exita era o de quebrar polvilho, trabalho duro mas que a moça realizava com prazer e competência. Embora preocupado com a ascendência da moça, Sionésio sente que a paixão é maior que o preconceito e pede-a em casamento. <br />XX - "Tarantão, meu patrão". O fazendeiro João - de - Barros - Dinis - Robertes tem uma surpreendente explosão de vitalidade em sua velhice caduca. Como se fora um Quixote, determina-se a matar seu médico: o Magrinho, seu sobrinho - neto. Ao longo da viagem rumo à cidade, recruta um bando de desocupados, ciganos e jagunços, que acatam sua liderança, pelo carisma natural do velho. Chegando à "frente de batalha", Tarantão percebe que era dia de festa: uma das filhas de Magrinho fazia aniversário. O susto inicial, provocado pela invasão do "exército", transforma-se em alívio quando o velho discursa, dizendo de seu apreço pela família e pelos novos amigos, colecionados ao longo da última cavalgada. <br />XXI - "Os cimos". O menino da primeira estória revela agora a face do sofrimento, causado pela doença da Mãe, fato que apressa sua viagem de volta à casa paterna. Os últimos dias de férias são de preocupação. O Menino só relaxava quando via, todas as manhãs e sempre à mesma hora, um tucano se aproximar da casa dos rios, onde se hospedava. Num processo de sublimação, desencadeado pela beleza da ave, o Menino ganha energia para resistir e para transferir à Mãe uma carga de fluidos mentais positivos, que lhe permitam superar a doença. Quando o Tio o procura para comunicar a melhora da Mãe, o Menino experimenta momentos de êxtase, pois só ele sabia do motivo da cura.<br />Dez contos têm o foco narrativo centrado na terceira pessoa: <br />I-" As margens da alegria"; II-" Famigerado" ;III- "Sorôco, sua mãe, sua filha"; IV-"A menina de lá"; V-" Os irmãos Dagobé"; VIII-" Nenhum , nenhuma"; X-"Seqüência "; XIV-"Um moço muito branco"; XIX-" Substância" e XXI-"Os cismos". <br />As onze estórias restantes são relatadas em primeira pessoa: VI-"A terceira margem do rio"; VII- " Pirlimpsiquice"; IX-" Fatalidade "; XI-"O espelho"; XII- "Nada e a nossa condição"; XIII-"O cavalo que bebia cerveja"; XV-" Luas de mel"; XVI-" Partida do audaz navegante"; XVII-"A benfazeja"; XVIII-" Darandina " e XX-"Tarantão, meu patrão". <br />Dessas onze estórias, apenas duas apresentam o narrador como protagonista: "O espelho" e "Pirlimpsiquice"; nas outras, o relato é feito por um espectador privilegiado, que presencia a ação e registra suas impressões a respeito do que assiste. O narrador pode ser também um personagem secundário da estória, com laços de parentesco ou e amizade com o protagonista. Quanto ao emprego dos tempos verbais, nota-se que, na maior parte das estórias, o relato se faz através de uma mistura do pretérito perfeito com o pretérito imperfeito do indicativo. <br />A maioria das estórias se passa em ambiente rural não especificado, em sítios e fazendas; algumas têm como cenário pequenos lugarejos, arraiais ou vilas. Os ambientes são apresentados com poucos mas precisos toques: moldura de altos morros, vastos horizontes, grandes rios, pastos extensos, escassas lavouras. Duas estórias, no entanto - "O espelho" e "Darandina" -, transcorrem em cidades, pressupostas até como grandes centros urbanos, pelo fato de mencionarem a existência de secretarias de governo, hospício, corpo de bombeiros, jornalistas, parques de diversões, prédios de repartições públicas e outros serviços tipicamente urbanos. PERSONAGENS Embora variem muito quanto à faixa etária e experiência de vida, as personagens se ligam por um aspecto comum: suas reações psicossociais extrapolam o limite da normalidade. São crianças e adolescentes superdotados, santos, bandidos, gurus sertanejos, vampiros e, principalmente, loucos: sete estórias apresentam personagens com este traço. <br />FOCO NARRATIVO <br />As indicações feitas a seguir são pontuadas com os algarismos que indicam a ordem de pubicação de cada estória no livro. Assim, dez delas têm o foco relato centrado na terceira pessoa: <br />I-"As margens da alegria"; II-"Famigerado";III-"Sorôco, sua mãe, sua filha"; IV-"A menina de lá"; V-"Os irmãos Dagobé"; VIII-"Nenhum, nenhuma"; X-"Seqüência"; XIV-"Um moço muito branco"; XIX-"Substância" e XXI-"Os cismos". <br />As onze estórias restantes são relatadas em primeira pessoa: <br />VI-"A terceira margem do rio"; VII-"Pirlimpsiquice"; IX-"Fatalidade"; XI-"O espelho"; XII-"Nada e a nossa condição"; XIII-"O cavalo que bebia cerveja"; XV-"Luas de mel"; XVI-"Partida do audaz navegante"; XVII-"A benfazeja"; XVIII-"Darandina" e XX-"Tarantão, meu patrão". Dessas onze estórias, apenas duas apresentam o narrador como protagonista: "O espelho" e "Pirlimpsiquice"; nas outras, o relato é feito por um espectador privilegiado, que presencia a ação e registra suas impressões a respeito do que assiste. O narrador pode ser também um personagem secundário da estória, com laços de parentesco ou e amizade com o protagonista. <br />Quanto ao emprego dos tempos verbais, nota-se que, na maior parte das estórias, o relato se faz através de uma mistura do pretérito perfeito com o pretérito imperfeito do indicativo. <br />ESPAÇO <br />A maioria das estórias se passa em ambiente rural não especificado, em sítios e fazendas; algumas têm como cenário pequenos lugarejos, arraiais ou vilas. Os ambientes são apresentados com poucos mas precisos toques: moldura de altos morros, vastos horizontes, grandes rios, pastos extensos, escassas lavouras. Duas estórias, no entanto - "O espelho" e "Darandina" -, transcorrem em cidades, pressupostas até como grandes centros urbanos, pelo fato de mencionarem a existência de secretarias de governo, hospício, corpo de bombeiros, jornalistas, parques de diversões, prédios de repartições públicas e outros serviços tipicamente urbanos. <br />PERSONAGENS <br />Embora variem muito quanto à faixa etária e experiência de vida, as personagens se ligam por um aspecto comum: suas reações psicossociais extrapolam o limite da normalidade. São crianças e adolescentes superdotados, santos, bandidos, gurus sertanejos, vampiros e, principalmente, loucos: sete estórias apresentam personagens com este traço. <br />1º conto:<br />menino: em estado de graça por descobrir a vida. <br />2º conto:<br />Damásio das Siqueiras: matador cruel. <br />3º conto:<br />Sorôco: viúvo que coloca a mãe e a filha, loucas, no hospício. <br />4º conto:<br />Nhinhinha: menina dotada de poderes sobrenaturais. <br />5º conto:<br />Liojorge: homem bom Damastor Dagobé: homem cruel e malfeitor<br />Doricão: irmão de Dagobé<br />Dismundo: irmão de Dagobé<br />Derval: irmão de Dagobé <br /><br />6º conto:<br />protagonista: navegante da canoa narrador: filho de protagonista <br />7º conto:<br />Dr. Perdigão: professor de um grupo de adolescentes narrador: rapaz sem talento para o teatro. Ponto na peça<br />Zé Boné: rapaz espontâneo; revela-se ator. <br />8º conto:<br />um menino: arquétipo<br />um moço: enamorado da moça<br />uma moça: enamorada do moço<br />uma velha: simbolizando a vida<br />pai da moça: homem doente<br />pais do moço. <br />9º conto:<br />Zé Centaralfe: homem humilde<br />Esposa de Centaralfe<br />Herculinão: valentão que assedia a esposa de Centaralfe<br />Meu amigo: delegado instruído <br />10º conto:<br />rapaz: persegue a vaca fugitiva das terras de seu pai<br />moça: filha do Major Quitério. <br />11º conto:<br />narrador: protagonista; se vê refletido em espelhos <br />12º conto:<br />Tio M'Antônio: protagonista; estranho, calado filhas do Tio M'Antônio.<br />Tia Liduína: falecida esposa de Tio M' Antônio. <br />13º conto:<br />Reivalino Belarmino: empregado de Giovânio; narrador <br />Giovânio: italiano não afeito a hábitos de higiene, ex-combatente de guerra e fazendeiro. Seo Priscilo: subdelegado. <br />14º conto:<br />um moço muito branco: rapaz desmemoriado, com poderes<br />Duarte Dias: homem grosseiro<br />Hilário Cordeiro: homem bom e piedoso<br />José Kalende: escravo <br />15º conto:<br />Joaquim Norberto e esposa: velho casal; anfitriões<br />jovem casal: hóspede de Joaquim Norberto.<br />Seo Seotaziano: compadre de Joaquim Norberto <br />17º conto:<br />narrador: homem indignado com o comportamento da população<br />Mula Marmelo: mulher feia, suja e esfarrapada, benfeitora do povoado - "A benfazeja"<br />Retrupé: cego guiado por Mula Marmelo<br />Mumbambo: marido de Mula Marmelo. Homem cruel, assassinado pela esposa <br />18º conto:<br />narrador: médico-residente do hospício<br />louco: homem distinto que entra em crise<br />Adalgiso: homem excessivamente correto. <br />19º conto:<br />Maria Exita: moça bonita, trabalhadora e pura<br />Sionésio: homem bom e trabalhador, apaixonado por Maria Exita<br />Nathiaga: mulher boa, empregada na fazenda de Sionésio <br />16º conto:<br />Pela, Ciganinha, Brejeirinha: irmãs<br />Zito: primo <br />20º conto:<br />vagalume: narrador<br />João-de-Barros: patrão de Vagalume<br />Magrinho: médico; sobrinho de João-de-Barros <br />21º conto:<br />menino: o mesmo do primeiro conto<br />tio do menino: o mesmo do primeiro conto.<br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Resumo de todos os contos de SAGARANA<br />Adaptado de: Sagarana Estudo literário de João Batista Gomes <br />1 - O Burrinho pedrês<br />DADOS TÉCNICOS <br />NARRATIVA – Conto narrado na terceira pessoa. O narrador é, pois, onisciente, não participa da história. <br />PERSONAGENS <br />1. Sete-de-Ouros: animal miúdo e resignado, idoso, muito idoso, beiço inferior caído. Outros nomes que tivera ao longo de anos e amos: Brinquinho, Rolete, Chico-Chato e Capricho. <br />2. Major Saulo: corpulento, quase obeso, olhos verdes. Só com o olhar mandava um boi bravo se ir de castigo. Estava sempre rindo: riso grosso, quando irado; riso fino, quando alegre; riso mudo, de normal. Não sabia ler nem escrever, mas cada ano ia ganhando mais dinheiro, comprando mais gado e terras. <br />3. João Manico: vaqueiro pequeno que montou o burrinho Sete-de-Ouros na ida. Na volta, trocou de montaria. Na hora de entrar na água, refugou, alegando resfriado, e escapou da morte. <br />4. Francolim: espécie de secretário do Major Saulo, encarregado de pôr ordem nos vaqueiros. Obedece cegamente às ordens do Major. Foi salvo, na noite da enchente, pelo burrinho Sete-de-Ouros. <br />5. Raymundão: vaqueiro de confiança do Major Saulo. Enquanto tocam a boiada, vai contando a história do zebu Calundu. <br />6. Zé Grande: vai à frente da boiada, tocando o berrante. <br />7. Silvino: vaqueiro; perdeu a namorada para Badu e planejava matar o rival na volta, depois de deixarem a boiada no arraial. <br />CENÁRIO – Fazenda da Tampa, do Major Saulo, no interior de Minas Gerais. <br />RESUMO <br />PREPARATIVOS – Na Fazenda da Tampa, do Major Saulo, os homens estão ultimando os últimos preparativos para sair pelo sertão, tocando uma boiada de bois de corte. O dia é de chuva, mas ela ainda não veio. Major Saulo ordena que os homens preparem os animais. Por zebra, o burrinho Sete-de-Ouros, presente ali na varanda da casa grande, também é escolhido para a viagem. Para montá-lo, o Major escolheu o vaqueiro João Manico. <br />ZEBU CALUNDU – Raymundão conta a história do touro Calundu. Não batia em gente a pé, mas gostava de correr atrás de cavaleiro. Certa vez, na proteção de um grupo de vacas com seus bezerros novinhos, Calundu enfrentou uma onça preta, amedrontando a fera e pondo-a para correr. Certa feita, o touro Calundu matou Vadico, filho do fazendeiro Neco Borges. O pai, vendo filho ensangüentado no chão, puxou o revólver para matar o touro. Vadico, antes de morrer, pediu que o pai não matasse Calundu. Neco Borges mandou o touro para outra fazenda para ser vendido ou dado a alguém. Raymundão foi quem levou o bicho. O zebu ficou uma noite apenas no curral. No outro dia, estava morto. <br />CÓRREGO CHEIO – Depois da chuva grossa, a boiada chegou ao córrego da Fome. Estava cheio. A travessia era perigosa, e o Major Saulo pediu cautela. Ali já morrera muita gente. Mas a travessia é feita sem perda. Até o Sete-de-Ouros atravessou sem reclamar. <br />TROCA – Em determinado ponto do caminho, Major Saulo ordenou que Francolim trocasse de montaria com João Manico. A ordem foi obedecida. Francolim fez um pedido ao Major: que, na entrada do povoado, a troca fosse desfeita. Não ficava bem para ele, encarregado do Major, ser visto montado no burrinho Sete-de-Ouros. <br />BADU E SILVINO – Badu está na fazenda há apenas dois meses e já tomou a namorada do Silvino. Por isso, os dois viraram inimigos, um querendo prejudicar o outro. Francolim já avisou o major sobre o perigo de um matar o outro. Raymundão acha que o caso não é para morte. A moça é meio caolha. O casamento com Badu já está marcado. Raymundão, em prosa com o Major, informou que Silvino vendeu umas quatro cabeças de gado por preço abaixo do normal. Outra informação que veio do Francolim: Silvino está com bagagem além do normal. O Major Saulo, antes da chegada ao povoado, determinou que Francolim, na volta, vigie Silvino o tempo todo. O Major está convencido de que Silvino já planejou a morte de Badu. <br />CHEGADA – A chegada ao povoado foi uma festa. O povo, mesmo com a meia-chuva, foi para o curral da estrada de ferro ver o embarque. Depois, os animais ficaram descansando enquanto os vaqueiros andavam um pouco pelo povoado. <br />PARTIDA – Na hora de ir embora, cada um pegou a sua montaria. Badu ficou por último: estava bêbado e tinha ido comprar um presente para sua morena. Por maldade, deixaram-lhe o burrinho Sete-de-Ouros. Na saída do povoado, alguém vaiou: Badu era por demais grande para o burrinho pedrês, os pés iam quase arrastando no chão. Já no fim do lugar, Francolim estava parado no meio da estrada, esperando Badu. <br />NA ESTRADA – Francolim deixou Badu para trás e foi juntar-se ao grupo. Queria mesmo era ficar de olho em Silvino. Os dois, Silvino e o irmão Tote, iam bem na frente dos dois. Tote tentava dissuadir o mano para não matar Badu. Mas Silvino estava determinado. Esperava apenas o momento certo para fazer o serviço e cair no mundo. <br />HISTÓRIA DE JOÃO MANICO – João Manico, por insistência de todos, contou mais uma vez a história da boiada que estourou à noite, quando o Major Saulo, ainda novo, era tratado por Saulinho. No estouro, de madrugada, o gado passou por cima dos dois vaqueiros que estavam de vigia. Deles, só restou uma lama cor de sangue. <br />CÓRREGO CHEIO – Viajavam à noite. De repente, os cavalos empacaram, pressentindo o mar de água. O córrego da Fome transbordara, inundando tudo bem alem das margens. Todos aprovaram a idéia de esperar Badu e o burrinho Sete-de-Ouros. Se o burro entrasse na água, todos o seguiriam. É que burro não entra em lugar de onde não pode sair. <br />A TRAGÉDIA – Sete-de-Ouros entrou levando Badu ás costas. Os cavalos seguiram-no. E foi uma tragédia: oito vaqueiros mortos naquela noite. Benevides, Silvino, Leofredo, Raymundão, Sinoca, Zé Grande, Tote e Sebastião. O burrinho Sete-de-Ouros, com Badu agarrado às crinas e Francolim agarrado à cauda, conseguiu atravessar o mar de águas em que se transformara o pequeno córrego. Já em terra firme, livrou-se de Francolim e seguiu ligeiro para a fazenda. Ali, livraram-no do vaqueiro, que dormia, e dos arreios. <br />2 - A volta do marido pródigo<br />DADOS TÉCNICOS <br />NARRATIVA – Conto narrado na terceira pessoa. O narrador é, pois, onisciente, não participa da história. <br />PERSONAGENS <br />Lalino Salãthiel: todos o chamam de Laio. Mulato vivo, malandro, contador de histórias. Garante que conhece a capital, Rio de Janeiro, mas nunca foi lá. Certa vez, foi realmente conhecê-la. <br />Maria Rita: mulher de Lalino; trata-o com especial carinho. <br />Marra: encarregado dos serviços; depois que a obra acabou, mudou-se do arraial. <br />Ramiro: espanhol que ficou com Ritinha, a mulher de Lalino. <br />Waldemar: Chefe da Companhia. <br />Major Anacleto: chefe político do distrito, homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar. <br />Tio Laudônio: irmão do Major Anacleto. Esteve no seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha ao povoado. Chorou na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva e escuta o capim crescer. Era conselheiro do Major. <br />Benigno: inimigo político do Major Anacleto. <br />Estêvão: capanga respeitado do Major Anacleto. Jamais ria. Tinha pontaria invejável: atirava no umbigo para que a bala varasse cinco vezes o intestino e seccionasse a medula, lá atrás. <br />CENÁRIO – Fazenda da Tampa, do Major Saulo, no interior de Minas Gerais. <br />RESUMO <br />I<br />INTRODUÇÃO – O cenário é apresentado: homens trabalham duro escavando o solo para dele retirar minério. Seu Marra é o encarregado, de olho em todos para que o trabalhe ande a contento. Lalino Salãthiel é um mulato vivo, malandro, que chega tarde ao trabalho e inventa desculpas. Em vez de trabalhar duro, como os outros, inventa histórias, conta causos. A maioria admira-o. Mas há quem enxergue nele apenas um aproveitador. Generoso acha que Ramiro, um espanhol, anda rondando a mulher de Lalino. <br />II<br />PARTIDA PARA A CAPITAL – Laio, naquela noite, não comparece à casa de Waldemar para a aula de violão. No outro dia, fica em casa vendo umas revistas com fotografias de mulheres. À tarde, vai à empresa e acerta as contas com Marra. Está disposto a ir embora. Na volta para casa, encontra Ramiro, o espanhol que lhe anda cercando Maria Rita. Nasce, imediatamente, um plano: tomar um dinheiro emprestado do espanhol. O argumento é convincente: quer ir embora sem a mulher, mas falta-lhe dinheiro para viajar. Ramiro empresta-lhe um conto de réis. Com o dinheiro no bolso, Laio pegou o trem na estação rumo à capital do País. Seu Miranda, que foi levá-lo, ainda tentou dissuadi-lo. Não conseguiu. <br />III<br />JULGAMENTO – "Um mês depois, Maria Rita ainda vivia chorando, em casa. Três meses passados, Maria Rita estava morando com o espanhol". Todos diziam que Laio era um canalha, que vendera a mulher para Ramiro. E assim, passou-se mais de meio ano. <br />IV<br />NO RIO DE JANEIRO – As aventuras de Lalino Salãthiel no Rio de Janeiro excederam à expectativa. Seis meses depois, Laio estava quase sem dinheiro e começou a sentir saudades. Tomou a decisão: ia voltar. Separou o dinheiro da passagem e programou uma semana de despedida: "uma semaninha inteira de esbórnia e fuzuê". Acabada a semana, Laio pegou o trem: queria só ver a cara daquela gente quando o visse chegar! <br />V<br />RECEPÇÃO – Enquanto atravessava o arraial, Laio teve que ir respondendo às chufas dos moradores. Finalmente, chegou à casa de Ramiro, o espanhol que se apossou de Ritinha. Laio informou-lhe que estava de volta para devolver o dinheiro do empréstimo. Ramiro, querendo evitar que Laio visse Ritinha, perdoou o empréstimo: a dívida já estava quitada. Mas Laio insistiu: "eu quero-porque-quero conversar com a Ritinha"! E disse isso com a mão perto do revólver. O espanhol concordou, desde que não fosse em particular. De repente, Laio esmoreceu: não queria mais ver a Ritinha. Queria só pegar o violão. Depois, quis saber se o espanhol estava tratando bem a Ritinha. E despediu-se. Primeiro pensou em ir à casa de seu Marra. Depois, dirigiu-se para a beira do igarapé: era tempo de melancia. Depois de apreciar a paisagem, Laio deu de cara com seu Oscar. Trocaram idéias, e Oscar prometeu que ia falar com o velho (Major Anacleto) e tentar arranjar um trabalho para Laio na política. <br />VI<br />MAJOR ANACLETO – "Além de chefe político do distrito, Major Anacleto era homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar". Quando Oscar lhe falou de Laio, ele foi categórico: "aquilo é um grandessíssimo cachorro, desbriado, sem moral e sem temor a Deus... Vendeu a família, o desgraçado". <br />TIO LAUDÔNIO – Tio Laudônio era irmão do Major Anacleto. Esteve no seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha ao povoado. Chorou na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva e escuta o capim crescer. Pois foi Tio Laudônio que intercedeu a favor de Laio. O Major concordou. Era mandar chamar o mulato no dia seguinte. <br />VII<br />CABO ELEITORAL – Mas Laio não apareceu no dia seguinte. Só apareceu na fazenda na quarta-feira de tarde. E topou logo com o Major Anacleto. Quando o Major tentou expulsá-lo da fazenda, Laio deu-lhe notícias de todas as manobras políticas da região, quem estava com o Major e quem o estava traindo. Já descobrira a estratégia do Benigno para derrotar o Major na próxima eleição. Em troca de tanta informação, pediu a proteção do Estêvão, o capanga mais temido do Major. Assim, o povo do arraial ficou sabendo que Laio era o cabo eleitoral do Major Anacleto e, como tal, merecia respeito. <br />VIII<br />VISITA AO PADRE – Major Anacleto, depois do relatório de Laio, mandou selar a mula e bateu para a casa do vigário. O padre teve de aceitar leitoa, visita, dinheiro, confissão e o cargo de inspetor escolar. Antes de o Major sair, o padre contou-lhe que Laio estivera na igreja. Também se confessara e comungara e ainda trocara duas velas para o altar de Nossa Senhora da Glória. <br />DENÚNCIA DE RAMIRO – Quando o Major e Tio Laudônio passaram em frente à casa de Ramiro, o espanhol aproveitou para denunciar Lalino: o mulato estava de amizade com Nico, o filho do Benigno. Foram juntos à Boa Vista, com violões, aguardente, e levando também o Estêvão. O Major ficou danado de zangado. Não via a hora de encontrar o Laio. <br />EXPLICAÇÕES – Depois de peregrinar por todas as bandas, o Major voltou para a fazenda, onde Laio já o esperava. Primeiro o Major xingou o mulato de muitos nomes feios, depois Laio teve tempo de explicar: era tudo estratégia política para saber das coisas. Passara, sim, em frente à casa de Ramiro, mas não o insultara. Dera vivas ao Brasil porque não gostava de espanhóis. E tinha mais (coisa que o Major não sabia): espanhol não vota porque é estrangeiro. <br />IX<br />A TRAIÇÃO DE OSCAR – Houve um período de calmaria política em que Laio ficou tocando viola e fazendo versos no meio da jagunçada do Major. Um dia, pediu um favor a seu Oscar, filho do Major: que ele fosse ter com Ritinha e conversasse com ela, mas sem dizer que era da parte do Laio. Oscar foi e fez o contrário: falou mal do mulato, disse a Ritinha que o marido andava fazendo serenata para outras mulheres. Aproveitou a proximidade e pediu-lhe um beijo. Ritinha expulsou-o, não sem antes confessar que gostava mesmo era do Laio, que ia morrer gostando dele. De volta, seu Oscar contou o contrário: que Ritinha não gostava mais do marido, gostava de verdade era do espanhol. <br />RITINHA NA FAZENDA DO MAJOR – Certa tarde, depois de dormir um pouco na cadeira de lona, o Major foi acordado com uma barulheira dos diabos. O mulherio no meio da casa, os capangas lá fora, empunhando os cacetes, farejando barulho grosso. Ritinha jogou-se aos pés do Major e suplicou-lhe proteção. Que não deixasse os espanhóis levá-la à força dali. O Ramiro, com ciúmes, queria matá-la, matar o Laio e, depois, suicidar-se. Disse tudo isso chorando e falando na Virgem Santíssima. <br />RAIVA E ALEGRIA – O Major mandou chamar o Eulálio e foi informado de que o mulato estava bebendo juntamente com uns homens que chegaram de automóvel. Foi a conta: o Major pensou que eram da oposição e começou a xingar o Laio. Cabra safado, traidor. Ia levar uma surra, pelo menos isso. Tio Laudônio procurava acalmá-lo. De repente, lá vem o Laio dentro de um automóvel. E a surpresa foi geral. Era gente do governo, Sua Excelência o Senhor Secretário do Interior. Aí o Major desmanchou-se em sorrisos e gentilezas. E a autoridade satisfeita, elogiando muito o Laio, pedindo ao Major que, indo à capital, levasse o mulato junto. <br />DESFECHO – O Major, contentíssimo, mandou trazer Maria Rita para as pazes com Laio. Convocou a jagunçada e ordenou: "mandem os espanhóis tomarem rumo"! Se miar, mete a lenha! Se resistir, berrem fogo! <br /><br />3- Sarapalha<br />DADOS TÉCNICOS <br />NARRATIVA – Conto narrado na terceira pessoa. O narrador é, pois, onisciente, não participa da história. <br />PERSONAGENS <br />Primo Ribeiro: Na região, vem conseguindo sobreviver à malária. Tem febre e frio todos os dias, o baço sempre inchado, mas vai vivendo. No início da doença, foi abandonado pela esposa, Luísa; ela fugiu com outro homem, um boiadeiro. <br />Primo Argemiro: Como Tio Ribeiro, vai sobrevivendo à malária. Os dois moram isolados, numa região em que a febre já expulsou toda a gente. Apesar de ter terras em outra região, prefere ficar ao lado de Primo Ribeiro, tal a amizade que os une. <br />Prima Luísa: Mulher de Ribeiro. Morena, olhos pretos, cabelos pretos... muito bonita. De riso alegrinho, mas de olhar duro. Fugiu com um boiadeiro. <br />CENÁRIO – Fazenda do Primo Ribeiro, meio abandonada porque a febre o impossibilitava de trabalhar. <br />RESUMO <br />ARRAIAL ABANDONADO – Na beira do rio Pará, a malária expulsou a gente de um povoado inteiro. Deixaram para trás "casas, sobradinho, capela, três vendinhas, o chalé e o cemitério". Morador, agora, só andando três quilômetros para cima. Moram ali, na fazenda abandonada, três pessoas: Primo Ribeiro, Primo Argemiro e uma preta velha que cozinha o feijão de todos os dias. Os homens não podem mais trabalhar, a malária não deixa. <br />PASSADO TRISTE – Na Certo dia, ainda pela manhã, Primo Ribeiro começou a falar de morte. Achava que o seu dia havia chegado. Por isso, puxou a conversa que se referia a uma mulher. Se ela aparecesse, até a febre sumia. Ribeiro confessa que tem Argemiro na conta de irmão. Por isso, tem coragem de remexer o passado. Estava casado com ele há apenas três anos, e a ingrata fugiu com outro. Argemiro quis ir atrás dos dois. Queria matar o homem e trazer a mulher de Ribeiro de Volta. <br />LEMBRANÇAS AMARGAS – Agora, Ribeiro não tem vergonha de confessar: não foi atrás dos dois porque, se fosse, a obrigação era matá-los. Mas faltava-lhe, já naquela época, a coragem. Talvez por causa da malária. Argemiro também soltou a imaginação. Chegou a sentir ciúmes dela com o marido. E veio o boiadeiro, ficou três dias na fazenda, com desculpa de esperar outra ponta de gado... "Não era a primeira vez que ele se arranchava ali. Mas nunca ninguém tinha visto os dois conversando sozinhos... Ele, Primo Argemiro, não tinha feito nenhuma má idéia..." <br />O SEGREDO – Ela fugiu com o boiadeiro, e Primo Argemiro nunca lhe havia confessado o seu amor. Arrependia-se disso. Se tivesse tido coragem. Talvez ela aceitasse, quem sabe até teria fugido com ele, pois o boiadeiro ainda não havia aparecido. No mínimo, ela agora estava pensando que ele era um pamonha. <br />A CONFISSÃO – Primo Ribeiro não se cansa de dizer que considera Argemiro um irmão; nem um filho seria tão bom assim. O outro se sente mal. Resolve confessar o seu grande segredo. Quando Ribeiro ouviu, apesar da febre e da fraqueza, ficou muito zangado e insistiu que o Primo fosse embora. Argemiro explicou que nunca disse nada a Luísa, nunca a desrespeitou, que ela foi embora sem saber de nada. Ribeiro negava-se a entender. Só conseguia repetir que o Primo fosse embora. Sentia-se picado de cobra. <br />A SEPARAÇÃO – Primo Argemiro, não obtendo o perdão de Ribeiro, reúne as forças para ir embora. Caminha com dificuldade, passa pela rocinha de milho, assustando os pássaros pretos que o confundem com um espantalho. O cão Jiló não sabe mais a quem obedecer. Quer seguir com Argemiro, mas também quer ficar com Ribeiro. Na dúvida, ficou. Argemiro segue adiante, com os primeiros sintomas da tremedeira. E a lembrança vai buscar Luisinha, antes de se casar com Ribeiro. Ela estava toda de azul. A paisagem ali também se enfeitava de flores azuis. Bom lugar para se deitar e morrer. <br /><br />4-Duelo<br />DADOS TÉCNICOS <br />NARRATIVA – Conto narrado na terceira pessoa. O narrador é, pois, onisciente, não participa da história. <br />PERSONAGENS <br />Turíbio Todo: Seleiro de profissão, tinha pêlos compridos nas narinas, chorava sem fazer caretas. Papudo, vagabundo, vingativo e mau. <br />Dona Silivana: Esposa de Turíbio Todo; tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta. <br />Cassiano Gomes: Ex-militar, fama de exímio atirador, andava sempre com um rifle ao alcance da mão. Solteiro, tinha um caso Dona Silivana, esposa de Turíbio Todo. <br />Vinte-e-Um: Caipira pequenino, morador do povoado Mosquito. Cassiano, antes de morrer, salvou-lhe o filho e deu-lhe dinheiro. Vinte-e-Um matou Turíbio Todo. <br />CENÁRIO – Arraial de Vista-Alegre, interior de Minas Gerais. <br />RESUMO <br />ADULTÉRIO – Turíbio Todo foi pescar e avisou à mulher que só voltaria no outro dia. À beira do córrego, faltou-lhe o fumo de rolo para espantar os mosquitos; bateu com os dedos nos tocos e ficou com o pé direito ferido. Por isso, voltou para casa à noite. Ouvindo vozes no quarto, olhou por uma fisga da porta e viu que a mulher estava na cama com outro. Sem arma e conhecendo bem o outro (Cassiano Gomes que pertencera à polícia e era exímio atirador), Turíbio não fez nada. Afastou-se tão macio como se havia aproximado. <br />A VOLTA – No outro dia, ao voltar para casa, "foi gentilíssimo com a mulher, mandou pôr ferraduras novas no cavalo, limpou as armas, proveu de coisas a capanga, falou vagamente numa caçada de pacas, riu muito, se mexeu muito, e foi dormir bem mais cedo do que de costume." Isso tudo foi na quarta-feira. <br />A TOCAIA – No outro dia, quinta, Turíbio terminou os preparativos e foi tocaiar a casa de Cassiano Gomes. "Viu-o à janela, dando as costas para a rua. Turíbio não era mau atirador: baleou o outro bem na nuca. E correu para casa, onde o cavalo o esperava na estaca, arreado, almoçado e descansadão". <br />O ENGANO – Turíbio Todo, iludido pela semelhança e alvejando o adversário por trás, matara não o Cassiano, mas o Levindo Gomes, irmão daquele. O morto não era ex-militar e detestava mexer com a mulher dos outros. <br />PREPARATIVOS – Cassiano Gomes fez o enterro do irmão, recebeu as condolências, trancou bem as portas e as janelas da casa (era solteiro), conferiu as armas, comprou a besta douradilha com arreios e tudo, mandou lavá-la e ferrá-la. Só então, partiu para vingar a morte do irmão. <br />PERSEGUIÇÃO – Cassiano não encontrou Turíbio na primeira tentativa. O papudo conseguiu enganá-lo, voltando por caminho diverso do imaginado. Cassiano queria pegar Turíbio desprevenido. Por isso, passou a andar à noite e dormir de dia. Os planos de Cassiano iam fracassando. Turíbio conhecia a região como a palma da mão. Assim, ia conseguindo escapar com boa margem de estrada e tempo. <br />DESENCONTROS – Foram tantos os desencontros que Cassiano trocou pela segunda vez de montada, comprando um cavalo alazão. Também Turíbio Todo já trocara de animal umas quatro vezes. <br />AUDÁCIA DE TURÍBIO – Turíbio Todo teve a audácia de voltar ao arraial e passar uma noite de amor com a esposa, Dona Silivana. Até contou a ela, na hora da despedida, sob segredo, o seu estratagema último. Estava apostando que o coração de Cassiano não ia agüentar a perseguição. Dona Silivana contou isso a Cassiano na primeira oportunidade. Depois, muita gente sabia da intenção de Turíbio. <br />CINCO MESES – A correria monótona, sem desfecho, já durava mais de cinco meses, e os dois rivais não se encontravam. Certa vez, Cassiano chegou primeiro à margem do rio Paraopeba, onde só se atravessava de balsa. O dono da balsa não estava, mas um moleque, seu filho, garantiu que o papudo ainda não chegara por ali. Cassiano ficou de tocaia à espera do inimigo. À noite, houve troca de tiros. No outro dia, Chico Barqueiro quase agrediu Cassiano, pensando que ele fosse um inimigo. Explicados os mal-entendidos, ao meio-dia, Cassiano despediu-se: estava disposto a dar uma trégua, descansar, esperar que Turíbio relaxasse. Depois que partiu, Turíbio chegou, pronto para atravessar o rio. Em cima da balsa, Chico Barqueiro ainda o ofendeu. <br />SÃO PAULO – Depois de atravessar o Paraopeba, Turíbio andou muito, sempre para o sul, até topar o rio Pará. Ali, encontrou uns baianos que iam para São Paulo, atraídos pela cultura do café. Falaram em dinheiro fácil. Apesar da saudade da mulher, Turíbio foi também. Depois mandava buscá-la. <br />MORTE PRÓXIMA – Turíbio cansava-se à toa. Na parte da tarde, inchava as pernas e os pés. Foi ao boticário que lhe deu vida até o próximo São João. Se piorasse, morreria pelo Natal. Diante de tal realidade, tomou uma decisão: vender tudo que possuía e ir atrás de Turíbio; precisava matá-lo antes de morrer. <br />MORTE NO MOSQUITO – No caminho, Turíbio piorou e teve que fazer alta no Mosquito – povoado perdido num cafundó de entremorro, longe de toda a parte – com três dúzias de casebres. Esteve mal, com respiração difícil. Quando melhorou um pouquinho, "indagou se por ali não havia um homem valente, capaz de encarregar-se de um caso assim, assim..." Pagava até um conto de réis. Não havia. Nem no povoado, nem na redondeza. Cassiano via o tempo passar, dia após dia, sentado à porta de um casebre. A paisagem era triste. <br />VINTE-E-UM – Um dia, Cassiano assistiu a um irmão grandalhão batendo noutro menor. Chamou o menor, de apelido Timpim, e indagou-lhe o nome e por que ele não reagia às pancadas do irmão. O nome verdadeiro era Antônio, e o apelido oficial era Vinte-e-Um. É que a mãe dele tivera vinte e um filhos, e ele foi o último. Não reagia às pancadas do irmão porque a mãe lhe dissera que ele não levantasse a mão para irmão mais velho. E todos eram mais velhos. Vinte e um era casado, e a mulher dele acabara de ter criança. Cassiano deu-lhe dinheiro para comprar galinhas e alimentara a esposa. No outro dia, Vinte-e-Um fez uma surpresa ao doente: trouxe-lhe o filho para lhe tomar bênção. Cassiano ficou emocionado e piorou. Um dia, quando Cassiano estava pior ainda, Vinte-e-Um apareceu chorando: o filhinho estava muito doente, ele sem recursos para socorrê-lo. Cassiano deu-lhe o dinheiro para trazer o médico até a criança e comprar os remédios necessários. "Veio o médico; veio o padre: Cassiano confessou-se, comungou, recebeu os santos óleos, rezou, rezou". Sentindo que a morte já estava na porta, deu todo o dinheiro que possuía para o compadre Vinte-e-Um (agora tratavam-se como compadres). Logo depois, morreu e foi para o céu. <br />A VOLTA DE TURÍBIO – Por meio de uma carta da mulher, que o invocava para o lar, Turíbio Todo ficou sabendo da morte de Cassiano. "Ele já tinha ganhado uns bons cobres". Comprou mala e presentes, pôs um lenço verde no pescoço para disfarçar o papo, calçou botas vermelhas de lustre e veio de trem. Para perfazer o resto do caminho, alugou arranjou um cavalo emprestado. No caminho, foi alcançado por um cavaleiro miúdo, montando um cavalo magro. Via-se que os dois estavam em petição de miséria. Depois de continuarem pela estrada, a miniatura de homem perguntou se ele era mesmo o Turíbio Todo, seleiro de Vista-Alegre, que estava vindo das estranjas. Turíbio confirmou. A viagem prosseguiu. Turíbio falava da felicidade próxima: ver a mulher, levá-la para casa, talvez levá-la para São Paulo. O caipirinha mostrava-se pessimista: não valia a pena a gente alegrar-se. <br />A MORTE – De repente, no meio da estrada fechada, Turíbio levou um susto: o capiauzinho falou com voz firme e diferente, segurando uma garrucha velha de dois canos: "Seu Turíbio! Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!" Turíbio fez voz grossa, mas o caipira explicou: não ia adiantar nada porque ele prometeu ao Compadre Cassiano, na horinha mesmo de ele morrer. Turíbio tentou ganhar tempo, fez que ia rezar e puxou o revólver. Mas a garrucha não falhou: foram dois tiros, um do lado esquerdo da cara, outro no meio da testa. Turíbio caiu morto, e Vinte-e-Um esporeou a montaria, tomando o caminho de volta. <br /><br />5-Minha gente<br />DADOS TÉCNICOS <br />NARRATIVA – Conto narrado na primeira pessoa. O narrador participa da história; tem, pois, visão limitada dos fatos que narra. <br />PERSONAGENS <br />Narrador: Homem da cidade em passeio pelas fazendas dos tios, no interior de Minas Gerais. Gostava da prima Maria irma, mas casou-se com Armanda, filha de uma fazendeira. <br />Santana: Companheiro nas andanças do narrador, tem mania de jogar xadrez, mesmo quando estão andando a cavalo. <br />Tio Emílio:Tio do narrador; sofreu mudança radical depois que se meteu na política. <br />Maria Irma: Uma das filhas de Tio Emílio; no passado, o narrador e ela foram namorados de brincadeira. Tem cintura fina, olhos grandes, pretíssimos. Passou alguns anos no internato. <br />Armanda: Filha de fazendeiros; estudou no Rio de Janeiro. Terminou casada com o narrador <br />Bento Porfírio: Vaqueiro; gostava de pescar. Envolveu-se com uma prima casada (de-Loudes) e terminou assassinado a foice pelo marido enciumado (Alexandre). <br />CENÁRIO – Fazenda Saco-do-Sumidouro (interior de Minas Gerais), do Tio Emílio, pai de Maria Irma. <br />RESUMO <br />CAMINHADA PELO SERTÃO – Caminham juntos, pelo sertão de Minas, a cavalo, o narrador, Santana e José Malvino. O narrador é um observador apaixonado das coisas do sertão: a paisagem, o céu, os pássaros, as árvores... Tudo para ele merece elogios e observações. A viagem chega ao fim: estão agora numa fazenda. <br />TIO EMÍLIO – Dois dias na fazenda, e o narrador achava tudo mudado. Mas mudança de verdade notara no Tio Emílio: rejuvenescido, transfigurado. Logo, o narrador descobriu o porquê da mudança: Tio Emílio estava metido na política. Sempre atendendo aos pedidos do povo, a qualquer hora, mesmo à noite. <br />CONVERSA COM A PRIMA – A prima Maria Irma, em conversa com o narrador, fez questão de informar que estava quase noiva. O narrador quis saber de quem, mas ela fez mistério. <br />HISTÓRIA DE BENTO PORFÍRIO – Bento Porfírio, enquanto pesca com o narrador, vai-lhe contando uma história. Agripino, bom parente, convidou Bento para ir ao arraial. Queria apresentá-lo à sua filha de-Lourdes: quem sabe os dois podiam casar. Mas Bento não foi. Preferiu uma pescaria misturada com farra, com mulher-da-vida e sanfona pelo meio. Tempos depois, "quando Bento Porfírio veio a conhecer a prima de-Lourdes, ela já estava casada com o Alexandre". Os primos foram-se vendo e gostando um do outro. Por pirraça e por falta do que fazer, Bento casou-se com Bilica. <br />NOITE DE ROÇA – O narrador ficou na varanda até anoitecer. A prima Irma mudou de modos e, na hora do jantar, sorriu diferente para o narrador. Ele ficou desconfiado. "Mulher bonita, mesmo sendo prima, é uma ameaça\". E o narrador lembra bem o conselho de Tertuliano Tropeiro: "Seu doutor, a gente não deve de ficar adiante de boi, nem atrás de burro, nem perto de mulher! Nunca que dá certo..." Noite sem estrelas, noite de roça. O narrador foi dormir. <br />CRIME NO POÇO – O narrador foi novamente pescar no poço com Bento Porfírio. Depois de algum tempo, a história do adultério continuou. O marido da prima, o Alexandre, não sabe que está sendo enganado. De repente, o marido traído surgiu de trás de uma moita, foice na mão, e matou Bento com um só golpe. O corpo caiu no poço, e o narrador, apavorado, não sabia o que fazer. O assassino foi embora, o narrador correu para casa e contou ao Tio Emílio o ocorrido. As ordens foram dadas: tirar o morto do poço, avisar o subdelegado e ir atrás do assassino. Não para matá-lo, mas para protegê-lo das autoridades. <br />CIÚMES – Os dias vão passando, e o narrador começa a gostar da prima Maria Irma. Por que não namorá-la? Um rapaz da cidade veio visitá-la e trazer-lhe livros. Ela se enfeitou toda para o receber. Por que não estava toda enfeitada na chegada do primo? À noite, o narrador fica sabendo que o rapaz se chama Ramiro e que é namorado da Armanda, uma amiga de Maria Irma, filha da fazendeira do Cedro. <br />DECLARAÇÃO DE AMOR – O narrador não se conteve e fez uma declaração de amor à prima. Ela ouviu e, depois, disse que não acreditava. Ele tentou convencê-la usando argumentos infantis. Em vão. <br />DESISTÊNCIA – Depois de uma conversa séria com a prima e de obter dele somente negativas, o narrador ameaçou ir embora. Ela insistiu que ele ficasse: queria apresentar-lhe Armanda, a namorada de Ramiro. Ele, teimoso, partiu no outro dia. Iria para Três Barras, onde mora o seu tio Luduvico. <br />SOFRIMENTO – Em Três Barras, o narrador não conseguia esquecer Maria Irma. Depois das eleições, com vitória do partido de Tio Emílio, o narrador recebeu carta: ele, o tio, queria-o de volta. O narrador ficou muito alegre e nem esperou o outro dia para voltar. <br />ARMANDA – De volta, o narrador foi apresentado a Armanda. Foram passear a pé pelos pastos. Dali, do primeiro passeio, já nasceu o namoro. Em pouco tempo, o noivado e, no mês de maio, o casamento, ainda antes do matrimônio da prima Maria Irma com Ramiro Gouveia. <br /><br />6-São Marcos<br />DADOS TÉCNICOS <br />NARRATIVA – Conto narrado na primeira pessoa. O narrador participa da história e tem visão limitada dos fatos que narra. <br />PERSONAGENS <br />Narrador: José, um admirador da natureza. Gostava de observar árvores, pássaros, rios, lagos e gente. <br />João Mangolô: Mangolô era um preto velho. Morava no Calango-Frito e tinha fama de feiticeiro. <br />Aurísio Manquitola: Sujeito experiente, contador de histórias; conhecia bem todas as pessoas de Calango-Frito. <br />Tião Tranjão: Sujeito meio leso, vendedor de peixe-de-rio no arraial. Ficou indomável depois de aprender a oração de São Marcos. <br />CENÁRIO – Calango-Frito, arraial do interior de Minas Gerais. <br />RESUMO <br />BRINCANDO COM MANGOLÔ – Mangolô era um preto velho. Morava no Calango-Frito e tinha fama de feiticeiro. O narrador, saindo do povoado (ia caçar), passou pela casa de Mangolô e tirou brincadeira. Gritou para o preto velho: "primeiro: todo negro é cachaceiro; segundo: todo negro é vagabundo; terceiro: todo negro é feiticeiro". Eram os mandamentos do negro. Mangolô não gostou da brincadeira. Fechou-se na casa e bateu a porta. <br />AURÍSIO MANQUITOLA – Mais à frente, na mesma caminhada, o narrador alcança Aurísio Manquitola. O narrador, por brincadeira, começou a recitar a oração proibida de São Marcos. Aurísio enche-se de medo. É um perigo dizer as palavras dessa oração, mesmo que por brincadeira. <br />TIÃO TRANJÃO – Aurísio conta ao narrador a história de Tião Tranjão, sujeito meio leso, vendedor de peixe-de-rio no arraial. Tião amigou-se com uma mulherzinha feia e sem graça. Pois o Cypriano, carapina já velho, começou a fazer o Tião de corno. Mais ainda: os dois, Cypriano e a mulher feia, inventaram que foi Tião quem tinha ofendido o Filipe Turco, que tinha levado umas porretadas no escuro sem saber da mão de quem... O Gestal da Gaita, querendo ajudar o Tião, quis ensinar a ele a reza de São Marcos. Tião trocava as palavras, tinha dificuldade para memorizar. Gestal teve que lhe encostar o chicote para fixar a reza. Aí sim, debaixo de peia, Tião Tranjão aprendeu direitinho a reza proibida, tintim por tintim. <br />Depois da reza decorada, vieram uns soldados prender Tião. Ele desafiou: com ordem de quem? Os soldados explicaram: com ordem do subdelegado. Então, que fossem na frente. Ele iria depois. Com muito jeito, conseguiram levar Tião para a cadeia e lá, bateram nele. Depois da meia-noite, Tião rezou a oração de São Marcos e, misteriosamente, conseguiu fugir da cadeia, voltar para casa – quatro léguas. Não encontrando a mulher, foi direto para a casa do carapina. Aí, com ar de guerreiro, bateu na mulher, no carapina, quebrou tudo que havia por lá, acabou desmanchando a casa quase toda. Foram necessárias mais de dez pessoas para segurá-lo. <br />CEGO NA LAGOA – O narrador vai descendo por trilhas conhecidas, reconhecendo árvores, identificando pássaros, até chegar finalmente à lagoa. Senta-se e põe-se a observar o movimento dos bichos em perfeita harmonia com a natureza. De repente, sem dor e sem explicação, ficou cego. O desespero não veio de imediato. Aos poucos, foi concluindo que estava distante, afastado de qualquer ser humano, impossibilitado de voltar para casa. Resolveu gritar. Gritou repetidas vezes e só teve o eco por resposta. Tentou, então, voltar tateando as árvores. Logo percebeu que estava perdido, numa escuridão desesperadora. Já ferido por espinhos invisíveis, machucado de quedas, chegou a chorar alto. <br />REZA BRAVA – Sem pensar, o narrador começou a bramir a reza-brava de São Marcos. E sem entender o porquê, dizendo blasfêmias que a reza continha, começou a correr dentro da mata, tangido por visões terríveis. De repente, estava na casa de João Mangolô, tangido por uma fúria incontrolável. E a voz do feiticeiro pedindo pelo amor de Deus que não o matasse. Os dois rolaram juntos para os fundos da casa. E de repente, luz, muita luz. A visão voltava esplêndida. E o negro velho tentando esconder alguma coisa atrás do jirau. Depois de levar alguns sopapos, Mangolô mostrou um boneco. Mais alguns socos e o feiticeiro explicou: não queria matar. Amarrara apenas uma tirinha de pano preto nas vistas do boneco para o narrador passar uns tempos sem enxergar. Tudo terminou em paz. Para garantir tranqüilidade, o narrador deu um dinheiro a João Mangolô. Era a garantia de que, agora, eram amigos. <br /><br />7-Corpo fechado<br />DADOS TÉCNICOS <br />NARRATIVA – Conto narrado na primeira pessoa. O narrador participa da história e tem visão limitada dos fatos que narra. <br />PERSONAGENS <br />Narrador: Médico morando num arraial do interior de Minas. Fez amizade com Manuel Fulô. Gostava de ouvir-lhe as conversas. <br />Manuel Fulô: Sujeito pingadinho, quase menino, cara de bobo de fazenda, cabelo preto, corrido. Não trabalhava. Gostava de moça, cachaça e conversa fiada. <br />Beija-Flor: Besta ruana, de cruz preta no dorso, lisa, lustrosa, sábia e mansa – mas só para o dono, Manuel Fulô. <br />Das Dor: Noiva de Manuel Fulô; moça pobre, mas muito bonita. <br />Targino: O valentão mais temido do lugar. Era magro, feio, de cara esverdeada. Dificilmente ria. <br />Antônio das Pedras-Águas: Era pedreiro, curandeiro e feiticeiro. <br />CENÁRIO – Laginha, arraial monótono do interior de Minas Gerais. <br />RESUMO <br />AMIZADE – A amizade do narrador com Manuel Fulô nasceu do nada. Solidificou-se quando o narrador descobriu que Manuel comia cogumelo com carne. Manuel Fulô gostava de moças, de cachaça e de conversa fiada. <br />BEIJA-FLOR – Beija-Flor era o orgulho de Manuel Fulô. Mais que isso: era uma espécie de complemento. Besta ruana, de cruz preta no dorso, lisa, lustrosa, sábia e mansa – mas só para o dono. Quando Manuel Fulô ficava bêbado – e isso acontecia todos os domingos – atracava-se ao pescoço de Beija-Flor, e a mula levava-o com todo o cuidado. Sabia abrir porteiras. <br />VIVENDO COM CIGANOS – Manuel Fulô conta ao narrador que viveu uns tempos com uns ciganos só para aprender alguns truques. Os ciganos gostavam dele porque pensavam que ele era bobo de verdade. Com os ciganos, Manuel Fulô aprendeu tudo sobre cavalos. Sabia transformar animal ruim em bicho de valor em pouco tempo. Quando deixou os ciganos, passou a ganhar dinheiro negociando com animais. <br />FREGUESIA PERDIDA – Manuel Fulô contou ao narrador como conseguiu, certa vez, enganar os ciganos. Arranjou dois cavalos imprestáveis, preparou-os, fez-lhe maquiagens para disfarçar defeitos e trocou-os por dois cavalos bem melhores. Com isso, perdeu a freguesia. Ninguém quis mais negociar com Manuel Fulô porque ele era capaz de enganar até ciganos. <br />AMEAÇA DE TARGINO – Uma noite, o narrador e Manuel Fulô estavam bebendo cerveja na venda. De repente, entrou Targino e caminhou na direção dos dois amigos. Pediu licença ao doutor: queria falar um particular a Manuel Fulô. Pura formalidade, pois Targino falou bem alto, na porta da venda, a três passos do narrador: <br />"– Escuta, Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor, e venho visitar sua noiva, amanhã... Já mandei recado, avisando a ela... É um dia só, depois vocês podem se casar... Se você ficar quieto, não te faço nada... Se não... – E Targino, com o indicador da mão direita, deu um tiro mímico no meu pobre amigo, rindo, rindo, com a gelidez de um carrasco". <br />BUSCANDO AJUDA – Depois da ameaça, o doutor-narrador levou Manuel para a casa dele (do doutor). Que fazer? O próprio Manuel não via saída. Targino era valentão, ninguém podia com ele. No outro dia, enquanto Manuel ainda se recupera do porre, o doutor saiu à procura de ajuda. Primeiro, foi à casa do Coronel Melguério. O homem deu de ombros: se alguém tivesse coragem de enfrentar o Targino... Depois, foi a vez do vigário: prometeu rezar. De volta, o doutor encontrou a casa cheia: eram os parentes de Manuel Fulô. Pediam ao doutor que não fizesse nada. O correto era entregar para Deus. Maria das Dores estava sozinha com a mãe, chamando pelo noivo. <br />ANTÔNIO FEITICEIRO – Chamava-se Antonico das Pedras ou Antonico das Águas. Era pedreiro, curandeiro e feiticeiro. No meio da aflição, foi ter à casa do doutor. Ali, com ar de pressa, trancou-se no quarto com Manuel Fulô. Um tempo depois, a porta abriu-se, e Manuel anunciou com cara de defunto: entreguem a mula Beija-Flor para seu Antônio. O feiticeiro pediu um prato fundo, brasas, linha e cachaça. Os apetrechos apareceram, e os dois se trancaram no quarto. <br />Enquanto isso, Targino saiu à rua deserta e caminhava em direção à casa onde estava a Maria das Dores, a noiva ameaçada. <br />CORPO FECHADO – Manuel Fulô, depois de algum tempo trancado no quarto com Antônio feiticeiro, saiu teso, cara de mau, olhar fixo. E assim, caminhou para a rua: ia ao encontro de Targino. Todos ficaram assustados. Antônio Feiticeiro explicou: Manuel Fulô estava com o corpo fechado. Arma de fogo não tinha poder sobre ele. A mãe de Manuel pediu que segurassem o filho dela, pois seu Toniquinho pusera-o doido. \"Mas ninguém transpôs a porta\". E lá estavam os dois, Targino e Manuel Fulô, frente a frente. Manuel falou primeiro, xingando a mãe do valentão. Mexeu na cintura e tirou dela uma faquinha quase canivete. Cresceu para cima de Targino. Foram cinco tiros, as balas zuniram. Manuel Fulô pulou sobre Targino e aplicou-lhe várias facadas pela altura do peito. O valentão capotou e morreu num átimo. Manuel Fulô ainda lhe deu mais facadas, sujando-se todo de sangue. <br />FESTA – Manuel Fulô fez um mês inteiro de festa e até adiou o casamento, pois o padre teimou que não matrimoniava gente bêbeda. O narrador foi o padrinho. <br /><br />8 - Conversa de bois<br />DADOS TÉCNICOS <br />NARRATIVA – Conto narrado na primeira pessoa. O narrador participa da história e tem visão limitada dos fatos que narra. <br />PERSONAGENS <br />Tiãozinho: Menino-guia. Odiava o Agenor carreiro, pois o malvado vivia fazendo carinho na mãe de Tiãozinho, mesmo quando o pai do menino ainda estava vivo, entrevado em cima de um jirau. <br />Agenor Soronho: Carreiro. Mandava em Tiãozinho como se fosse pai dele. <br />Januário: Pai de Tiãozinho. <br />CENÁRIO – Estrada no interior de Minas Gerais. <br />RESUMO <br />CARRO, BOIS, CARREIRO E GUIA – O autor produz uma história valorizando quatro elementos importantes da paisagem do interior de Minas. O carro, puxado por bois, vai cortando o sertão, levando rapadura e um defunto – o pai de Tiãozinho (cego e entrevado, já de anos, no jirau) para o arraial. Os bois, enquanto arrastam o carro, vão conversando, emitindo opinião sobre muitas coisas, principalmente sobre os homens. <br />NOMES DOS BOIS – Buscapé e Namorado: são os bois da guia, os dois que vão bem à frente do carro. Capitão e Brabagato: bois que vão mais atrás, <br />TIÃOZINHO – O pai de Tiãozinho, Januário, vivia, há muitos anos, entrevado e cego em cima de um jirau. A mãe de Tião não tinha mais paciência de cuidar do enfermo. Guardava seus carinhos para Soronho carreiro. De noite, enquanto todos dormiam, Tiãozinho ouvia os soluços do pai, um choro doído, sem consolo. <br />REVOLTA – Tiãozinho odeia Agenor Soronho. Mesmo quando o pai estava vivo, o carreiro tinha autorização para xingar, bater de cabresto, de vara de marmelo, de pau... Que seria dele agora, com o pai morto? Tiãozinho tentava fazer tudo direito: capinava, tirava leite, buscava os bois no pasto, guiava-os no carro de boi. "Quando crescer, quando ficar homem, vai ensinar ao seu Agenor Soronho... Ah, isso vai!... Há de tirar desforra boa, que Deus é grande!..." <br />MORTE – O caminhar cadenciado e monótono levou Agenor Soronho ao sono. O perigo era iminente. Se caísse, as rodas do carro de boi passariam por cima dele. Na frente dos bois, Tiãozinho andava meio acordado, meio dormindo. Nesse quase estupor, o pensamento coincidia com a fala dos bois. Era como se o menino fosse boi também. Os bois entendiam o pensamento dele: falava em vingança, em morte do carreiro. De repente, meio inconsciente, Tiãozinho deu um grito, os bois saltaram, todos a um tempo, para frente, e Agenor Soronho caiu. Uma das rodas do carro passou por cima do pescoço dele, quase o degolando. Estava morto. Agora, com dois defuntos, a caminhada ficou mais alegre. <br />9 - A hora e a vez de Augusto Matraga - veja link na página modernismo 45.<br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Tutaméia - João Guimarães Rosa - resumo<br />Aqui está, o último livro do escritor, Tutaméia, publicado poucos meses antes da sua morte, a exigir leitura e reflexão. Por mais que o procure encarar como mero texto literário, desligado de contingências pessoais, apresenta-se com agressiva vitalidade, evocando inflexões de voz, jeitos e maneiras de ser do homem e amigo. A leitura de qualquer página sua é um conjuro. <br />No Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa encontramos tuta-e-meia definida por "ninharia, quase nada, preço vil, pouco dinheiro". Numa glosa da coletânea o próprio contista confirma a identidade dos dois termos, juntando-lhes outros equivalentes pitorescos, tais como "nonada, baga, ninha, inânias, ossos de borboleta, quiquiriqui, mexinflório, chorumela, nica". Ele atribuiria realmente tão pouco valor ao volume fórmula como antífrase carinhosa e, talvez, até supersticiosa? A autor dava a maior importância a este livro, surgido em seu espírito como um todo perfeito não obstante o que os contos necessariamente tivessem de fragmentário. Entre estes havia inter-relações as mais substanciais, as palavras todas eram medidas e pesadas, postas no seu exato lugar, não se podendo suprimir ou alterar mais de duas ou três em todo o livro sem desequilibrar o conjunto. <br />Mas também em nenhum outro livro seu cerceia o humor a esse ponto as efusões, ficando a ironia em permanente alerta para policiar a emoção.<br />Prefácio por definição é o que antecede uma obra literária. Mas no caso do leitor que não se contenta com uma leitura só, mesmo um prefácio colocado no fim poderá ter serventia. Estórias, à primeira vista, num segundo relance os prefácios hão de revelar uma mensagem. Juntos compõem ao mesmo tempo uma profissão de fé e uma arte poética em que o escritor, através de rodeios, voltas e perífrases, por meio de alegorias e parábolas, analisa o seu gênero, o seu instrumento de expressão, a natureza da sua inspiração, a finalidade da sua arte, de toda arte. <br />Assim Aletria e hermenêutica é pequena antologia de anedotas que versam o absurdo; mas é, outrossim, uma definição de "estória" no sentido especificamente guimaraes-rosiano, constante de mostruário e teoria que se completam. Começando por propor uma classificação dos subgêneros do conto, limita-se o autor a apontar germes de conto nas "anedotas de abstração", isto é, nas quais a expressão verbal acena a realidades inconcebíveis pelo intelecto. Suas estórias, portanto, são "anedóticas" na medida em que certas anedotas refletem, sem querer, "a coerência do mistério geral que nos envolve e cria" e faz entrever "o supra-senso das coisas". <br />Hipotrélico [ver o conto transcrito integralmente abaixo] aparece como outra antologia, desta vez de divertidas e expressivas inovações vocabulares, não lhe faltando sequer a infalível anedota do português. E é a discussão, às avessas, do direito que tem o escritor de criar palavras, pois o autor finge combater "o vezo de palavrizar", retomando por sua conta os argumentos de que já se viu acossado como deturpador do vernáculo e levando-os ao absurdo: põe maliciosamente a vista as inconseqüências dos que professam a partenogênese da língua e se pasmam ante os neologismos do analfabeto, mas se opõem a que "uma palavra nasça do amor da gente", assim "como uma borboleta sai do bolso da paisagem". A "glosação em apostilas" que segue esta página reforça-lhe a aparência pilhérica, mas em Guimarães Rosa zombaria e pathos são como o reverso e o anverso da mesma medalha. O primeiro "prefácio" bastou para nos fazer compreender que em suas mãos até o trocadilho vira em óculo para espiar o invisível. <br />Nós os temulentos deve ser mais que simples anedota de bêbado, como se nos depara. Conta a odisséia que para um borracho representa a simples volta a casa. Porém os embates nos objetos que lhe estorvam o caminho envolvem-no em uma sucessão de prosopopéias, fazendo dele, em rivalidade com esse outro temulento que é o poeta, um agente de transfigurações do real. <br />Finalmente confissões das mais íntimas apontam nos sete capítulos de Sobre a escova e a dúvida, envolvidas não em disfarces de ficção, como se dá em tantos narradores, mas, poeticamente, em metamorfoses léxicas e sintáticas. É o próprio ficcionista que entrevemos de início num restaurante chic de Paris a discutir com um alter ego, também escritor, também levemente chumbado, que lhe censura o alheamento a realidade: "Você evita o espirrar e o mexer da realidade, então foge-não-foge." Surpreendidos de se encontrarem face a face, os dois eus encaram-se reciprocamente como personagens saídas da própria imaginativa, perturbados e ao mesmo tempo encantados com a sua "sociedade" (sic!), tecendo uma palestra rapsódica de ébrios em que o tema do engagement ressurge volta e meia como preocupação central. <br />O Rosa comprometido sugere ao Rosa alheado escreverem um livro juntos; este não lhe responde a não ser através da ironia discreta com que sublinha o contraste do ambiente luxuoso com o ideal "da rude redenção do povo". Mas a resposta é acusação de alheamento deve ser buscada também e sobretudo nos capítulos seguintes. Em primeiro lugar, põe-se em dúvida a natureza da realidade através da parábola da mangueira, cada fruta da qual reproduz em seu caroço o mecanismo de outra mangueira; e o inacessível nos elementos mais óbvios do cotidiano real e aduzido, afirmado, exemplificado. Depois de tentar encerrar em palavras o cerne de uma experiência mística, sua, o autor procura captar e definir os eflúvios de um de seus dias "aborígenes" a oscilar incessantemente entre azarado e feliz, até enredá-lo numa decisão irreparável. Possivelmente há em tudo isto uma alusão à reduzida influência de nossa vontade nos acontecimentos, as decorrências totalmente imprevisíveis de nossos atos. A seguir, evoca o escritor o seu primeiro inconformismo de menino em discordância com o ambiente sobre um assunto de somenos, o uso racional da escova de dentes; o que explicaria a sua não-participação numa época em que a participação do escritor é palavra de ordem. Nisto, passa a precisar (ou antes a circunscrever) a natureza subliminar e supraconsciente da inspiração, trazendo como exemplo a gênese de várias de suas obras, precisamente as de mais valor, antes impostas do que projetadas de dentro para fora. <br />Para arrematar a série de confidências, faz-se o contista intermediário da lição de arte que recebeu de um confrade não sofisticado, o vaqueiro poeta em companhia de quem seguira as passadas de uma boiada. Ao contar ao trovador sertanejo o esboço de um romance projetado, este lhe exprobrou decididamente o plano (talvez, excogitado de parceria com o sósia de Montmartre), numa condenação implícita da intencionalidade e do realismo: "Um livro a ser certo devia de se confeiçoar da parte de Deus, depor paz para todos." <br />Arrependido de tanto haver revelado de suas intuições, o escritor, noutro esforço de despistamento, completou o quarto e último prefácio com um glossário de termos que nele nem figuram, mas que representam outras tantas idiossincrasias suas, ortográficas e fonéticas, a exigir emendas nos repositórios da língua. <br />Descontados os quatro prefácios, Tutaméia, de Guimarães Rosa, contém quarenta "estórias" curtas, de três a cinco páginas, extensão imposta pela revista em que a maioria (ou todas) foram publicadas. Longe de constituir um convite à ligeireza, o tamanho reduzido obrigou o escritor a excessiva concentração. Por menores que sejam, esses contos não se aproximam da crônica; são antes episódios cheios de carga explosiva, retratos que fazem adivinhar os dramas que moldaram as feições dos modelos, romances em potencial comprimidos ao máximo. Nem desta vez a tarefa do leitor é facilitada. Pelo contrario, quarenta vezes ha de embrenhar-se em novas veredas, entrever perspectivas cambiantes por trás do emaranhado de outros tantos silvados. <br />Adotando a forma épica mais larga ou gênero mais epigramático, Guimarães Rosa ficava sempre (e cada vez mais) fiel à sua fórmula, só entregando o seu legado e recado em troca de atenção e adesão totais. A unidade dessas quarenta narrativas está na homogeneidade do cenário, das personagens e do estilo. Todas elas se desenrolam diante dos bastidores das grandes obras anteriores; as estradas, os descampados, as matas, os lugarejos perdidos de Minas, cuja imagem se gravara na memória do escritor com relevo extraordinário. Cenários ermos e rústicos, intocados pelo progresso, onde a vida prossegue nos trilhos escavados por uma rotina secular, onde os sentimentos, as reações e as crenças são os de outros tempos. Só por exceção aparece neles alguma pessoa ligada ao século XX, à civilização urbana e mecanizada; em seus caminhos sem fim, topamos com vaqueiros, criadores de cavalos, caçadores, pescadores, barqueiros, pedreiros, cegos e seus guias, capangas, bandidos, mendigos, ciganos, prostitutas, um mundo arcaico onde a hierarquia culmina nas figuras do fazendeiro, do delegado e do padre. <br />A esse mundo de sua infância o narrador mantém-se fiel ainda desta vez; suas andanças pelas capitais da civilização, seus mergulhos nas fontes da cultura aqui tampouco lhe forneceram temas ou motivos, o muito que vira e aprendera pela vida afora serviu-lhe apenas para aguçar a sua compreensão daquele universo primitivo, para captar e transmitir-lhe a mensagem com mais perfeição. <br />Através dos anos e não obstante a ausência, o ambiente que se abrira para seus olhos deslumbrados de menino conservou sempre para ele suas cores frescas e mágicas. Nunca se rompeu a comunhão entre ele e a paisagem, os bichos e as plantas e toda aquela humanidade tosca em cujos espécimes ele amiúde se encarnava, partilhando com eles a sua angustia existencial. A cada volta do caminho suas personagens humildes, em luta com a expressão recalcitrante, procuram definir-se, tentam encontrar o sentido da aventura humana: "Viver é obrigação sempre imediata"; "Viver seja talvez somente guardar o lugar de outrem, ainda diferente, ausente." "A gente quer mas não consegue furtar no peso da vida." "Da vida sabe-se: o que a ostra percebe do mar e do rochedo." "Quem quer viver, faz mágica." <br />A transliteração desse universo opera-se num estilo dos mais sugestivos, altamente pessoal e no entanto determinado em sua essência pelas tendências dominantes, às vezes contraditórias, da fala popular. O pendor do sertanejo para o lacônico e sibilino, o pedante e o sentencioso, o tautológico e o eloqüente, a facilidade com que adapta o seu cabedal de expressões as situações cambiantes, sua inconsciente preferência pelos subentendidos e elipses, seu instinto de enfatizar, singularizar e impressionar são aqui transformados em processos estilisticos. Na realidade o neologismo desempenha nesse estilo papel menor do que se pensa. Inúmeras vezes julga-se surpreender o escritor em flagrante de criação léxica, recorre-se, porém, ao dicionário, lá estará o vocábulo insólito (acamonco, alarife, avejão, brujajara, cara fuz, chuchorro, esmar, ganja, grinfo, gueta, jaganata, marupiara, nomina, panema, pataratesco, quera, safio, seresma, sessil, uca, vogoroca etc) rotulado de regionalismo, plebeísmo, arcaísmo ou brasileirismo, outras vezes, não menos freqüentes, a palavra nova representa apenas uma utilização das disponibilidades da língua, registrada por uma memória privilegiada ou esguichada pela inspiração do momento (associoso, borralheirar, convidatividade, de extraordem, inaudimento, infinição, inteligentudo, inventação, mal-entender-se, mirificacia, orabolas deles!, reflor!, reminisção etc) <br />Com freqüência bem menor há, afinal, as criações de inegável cunho individual, do tipo dos amálgamas, abusufruto, fraternura, lunático de mel, metalurgir, orfandade, psiquepiscar, utopiedade com que o espírito lúdico se compraz a matizar infinitamente a língua. Porém, as maiores ousadias desse estilo, as que o tornam por vezes contundente e hermético são sintáticas: as frases de Guimarães Rosa carregam-se de um sentido excedente pelo que não dizem, num jogo de anacolutos, reticências e omissões de inspiração popular, cujo estudo está por fazer. <br />Estonteado pela multiplicidade dos temas, a polifonia dos tons, o formigar de caracteres, o fervilhar de motivos, o leitor naturalmente há de, no fim do volume, tentar uma classificação das narrativas. é provável que a ordem alfabética de sua colocação dentro do livro seja apenas um despistamento e que a sucessão delas obedeça a intenções ocultas. Uma destas será provavelmente a alternância, pois nunca duas peças semelhantes se seguem. A instantâneos mal esboçados de estados de alma sucedem densas microbiografias; a patéticos atos de drama rápidas cenas divertidas; incidentes banais do dia-a-dia alternam com episódios lírico-fantásticos. <br />Entre os muitos critérios possíveis de arrumação vislumbra-se um sugerido pelo que, por falta de melhor termo, denominaria de atonímia metafísica. Essa figura estilística, de mais a mais freqüente nas obras do nosso autor, surge em palavras que não indicam manifestação do real e sim abstrações opostas a fenômenos percebíveis pelos sentidos, tais como: antipesquisas, acronologia, desalegria, improrrogo, irriticencia, desverde, incogitante, descombinar (com alguém), desprestar (atenção), inconsiderar, indestruir, inimaginar, irrefotar-se etc, ou em frases como "Tinha o para não ser célebre." Dentro do contexto, tais expressões claramente indicam algo mais do que a simples negação do antônimo: aludem a uma nova modalidade de ser ou de agir, a manifestações positivas do que não é. <br />Da mesma forma, na própria contextura de certos contos o inexistente entremostra a vontade de se materializar. Em conversa ociosa, três vaqueiros inventam um boi cuja idéia há de lhes sobreviver consolidada em mito incipiente (Os três homens e o boi). Alguém, agarrado a um fragmento de frase que lhe sobrenada na memória, tenta ressuscitar a mocidade esquecida ("Lá nas campinas"). Ameaça demoníaca de longe, um touro furioso se revela, visto de perto, um marrua manso ("Hiato"). Noutras peças, o que não é passa a influir efetivamente no que é, a moldá-lo, a mudar-lhe a feição. O amante obstinado de uma megera, ao morrer, transmite por um instante aos demais a enganosa imagem que dela formara "Reminisção"). A idéia da existência, longe, de um desconhecido benfazejo ajuda um desamparado a safar-se de suas crises ("Rebimba o bom"). Um rapaz ribeirinho consome-se de saudades pela outra margem do rio, até descobrir o mesmo mistério na moça que o ama ("Ripuaria"). Alguém ("João Porém, o criador de perus") cria amor e mantém-se fiel a uma donzela inventada por trocistas. <br />Num terceiro grupo de estórias por trás do enredo se delineia outra que poderia ter havido, a alternativa mais trágica a disponibilidade do destino. O povo de um lugarejo livra-se astutamente de um forasteiro doente em quem se descobre perigoso cangaceiro ("Barra de Vaca"). Um caçador vindo da cidade com intuito de pesquisas escapa com solércia há armadilhas que lhe prepara a má vontade do hospedeiro bronco ("Como ataca a sucuri"). Enganado duas vezes, um apaixonado prefere perdoar à amada e, para depois viverem felizes, reabilita a fugitiva com paciente labor junto aos vizinhos ("Desenredo"). <br />Noutros contos o desenlace não e um "desenredo", mas uma solução totalmente inesperada. Atos e gestos produzem resultados incalculáveis num mundo que escapa às leis da causalidade: daí a multidão de milagres esperando a sua vez em cada conto. Por entender de través uma frase de sermão, um lavrador ("Grande Gedeão") pára de trabalhar; e melhora de sorte. Um noivo amoroso que sonhava com um lar bonito e abandonado pela noiva; mas o sonho transmitiu-se ao pedreiro ("Curtamão") e nasce uma escola. Para que a vocação de barqueiro desperte num camponês é preciso que uma enchente lhe desbarate a vida ("Azo de almirante"). <br />Nessa ordem de eventos, uma personagem folclórica ("Melim-Meloso"), cuja força consiste em desviar adversidades extraindo efeitos bons de causas ruins, apoderou-se da imaginação do escritor a tal ponto que ele promete contar mais tarde as aventuras desse novo Malasarte. Infelizmente não mais veremos essa continuação que, a julgar pelo começo, ia desabrochar numa esplêndida fábula; nem a grande epopéia cigana de que neste livro afloram três leves amostras ("Faraó e a Água do rio", "O outro ou o outro", "Zingaresca"), provas da atracão especial que exercia sobre o erudito e o poeta esse povo de irracionais, ébrios de aventura e de cor, refratários é integração social, artistas da palavra e do gesto. Muito tempo depois de lidas, essas histórias, e outras que não pude citar, germinam dentro da memória, amadurecem e frutificam, confirmando a vitória do romancista dentro de um gênero menor. Cada qual descobrira dentro das quarenta estórias a sua, a que mais lhe desencadeia a imaginação. <br />Conto: hipotrélico, de joão guimarães rosa<br />Hei que ele é.<br />Do IRREPLEGÍVEL.<br />Há o hipotrélico. O termo é novo, de impesquisada origem e ainda sem definição que lhe apanhe em todas as pétalas o significado. Sabe-se, só, que vem do bom português. Para a prática, tome-se hipotrélico querendo dizer: antipodático, sengraçante imprizido; ou, talvez, vice-dito: indivíduo pedante, importuno agudo, falto de respeito para com a opinião alheia. Sob mais que, tratando-se de palavra inventada, e, como adiante se verá, embirrando o hiptrélico em não tolerar neologismos, começa ele por se negar nominalmente a própria exitência.<br />Somos todos, neste ponto, um tento ou cento hipotrélicos? Salvo o excepto, um neologismo contunde, confunde, quase ofende. Perspica-nos a inércia que soneja em cada canto do espírito, e que se refestela com os bons hábitos estadados. Se é que um não se assuste: saia todo-o-mundo a empinar vocábulos seus, e aonde é que se vai dar com a língua tido e herdada? Assenta-nos bem à modéstia achar que o novo não valerá o velho; ajusta-se à melhor prudência relegar o progresso no passado.<br />Sobre o que, aliás, previu-se um bem decretado conceito: o de que só o povo tem o direito de se manifestar, neste público particular. Isto nos aquieta. A gente pensa em democráticas assembléias, comitês, comícios, para a vivíssima ação de desenvolver o idioma; senão que o inconsciente coletivo ou o Espírito Santo se exerçam a ditar a vários populares, a um tempo, as sábias, válidas inspirações. Haja para. Diz-se-nos também, é certo, que tudo não passa de um engano de arte, leigo e tredo: que quem inventa palavras é sempre um indivíduo, elas, como as criaturas, costumando ter um pai só; e que a comunidade contribui apenas dando-lhes ou fechando-lhes a circulação. Não importa. Na fecundidade do araque apura-se vantajosa singeleza, e a sensatez da inocência supera as excelências do estudo. Pelo que, terá de ser agreste ou inculto o neologista, e ainda melhor se analfabeto for.<br />Seja que, no sem-tempo quotidiano, não nos lembremos das e muitíssimas que foram fabricadas com intenção - ao modo como Cícero fez qualidade ("qualitas"), Comte altruísmo, Stendhal egotismo, Guyau amoral, Bentham internacional, Turguêniev niilista, Fracástor sífilis, Paracelso gnomo, Voltaire embaixatriz ("ambassadrice"), Van Helmont gás, Coelho Neto paredro, Ruy Barbosa egolatria, Alfredo Taunay necrotério; e mais e mais e mais, sem desdobrar memória. Palavras em serviço efetivo, já hoje viradas naturais, com o fácil e jeito e unto de espontâneas, conforme o longo uso as sovou.<br />De acordo, concedemos. Mas, sob cláusula: a de que o termo engenhado venha tapar um vazio. Nem foi menos assim que o dr. Castro Lopes, a fim de banir galicismos, e embora se saindo com processo direto e didático, deixadas fora de conta quaisquer sutilezas psicológicas ou estéticas, conseguiu por em praça pelo menos estes, como ele mesmo dizia, "produtos da indústria nacional filológica": cardápio, convescote, preconício, necrópole, ancenúbio, nosóculos, lucivéu e lucivelo, fádico protofonia, vesperal, posturar, postrídio, postar (no correio) e mamila. E, donde: palavra nova, só se satisfizer uma precisão, constatada, incontestada.<br />Verdade é que outros também nos objetam que esta maneira de ver reafirma apenas o estado larval em que ainda nos rojamos, neste pragmático mundo da necessidade, em que o objetivo prevale o subjetivo, tudo obedece ao terra-a-terra das relações positivas, e, pois, as coisas pesam mais do que as pessoas. Por especiosa, porém, rejeitamos a argumentação. Viver é encargo de pouco proveito e muito desempenho, não nos dando por ora lazer para nos ocuparmos em aumentar a riqueza, a beleza, a expressividade da língua. Nem nos faz falta capturar verbalmente a cinematografia divididíssima dos fatos ou traduzir aos milésimos os movimentos da alma e do espírito. A coisa pode ir indo assim mesmo à grossa.<br />E fique à conta dos tunantes da gíria e dos rústicos da roça - que palavrizam autônomos, seja por rigor de mostrar a vivo a vida, inobstante o escasso pecúlio lexical de que dispõem, seja por gosto ou capricho de transmitirem com obscuridade coerente suas próprias e obscuras intuições. São seres sem congruência, pedestres ainda na lógica e nus de normas. Veja-se o que diz Gustavo Barroso, no "Terra de Sol": "Subdorada" era o adjetivo que lhes exprimia a admiração. Não sei de onde o foram encontrar. No sertão há dessas expressões; nascem ninguém sabe como; vivem eternamente ou desaparecem um dia sem também se saber como." Confere. Pode-se lá, porém, permitir que a palavra nasça do amor da gente, assim, de broto e jorro: aí a fonte, o miriqüilho, o olho-d'água; ou como uma borboleta sai do bolso da paisagem?<br />Do que tal se infere serem os neologismos de um sertanejo desses, do Ceará ou de Minas Gerais, coisas de desadoro, imanejáveis, senão perigosas para as santas convenções. Se nem ao menos tão longe, mas por aqui, no Estado do Rio, nosso amigo Edmundo se surpreendeu com a resposta, desbarbadamente hermética, de um de seus meeiros, a quem perguntara como ia o milho: - "Vai de minerol infante." - "Como é?" - "Está cobrindo os tocos..." O que já pode parecer excessiva força de idéias.<br />Dito seja, a demais, que o vezo de criar novas palavras invade muitas vezes o criador, como imperial mania. Um contraventor do vernáculo, foi o fazendeiro Chico de Matos, de Dourados; coitado, morreu de epitelioma. Duas das suas se fizeram, na região: intujuspéctico, que quase por si se define - com o sentido de pretensioso impostor e enjoado soturno; e incorubirúbil, que onomatopeicamente pode parecer o gruziar de um peru ou o propagar-se de golpes com que se sacoleja a face límpida de uma água, mas que designa apenas quem é "cheio de dedos", "cheio de maçada", "cheio de voltas", "cheio de nós pelas costas", muito susceptível e pontilhoso. Não são de não se catalogar?<br />Já outro, contudo, respeitável, é o caso - enfim - de "hipotrélico", motivo e base desta fábula diversa, e que vem do bom português. O bom português, homem-de-bem e muitíssimo inteligente, mas que, quando ou quando, neologizava, segundo suas necessidades íntimas.<br />Ora, pois, numa roda, dizia ele, de algum sicrano, terceiro, ausente:<br />- E ele é muito hiputrélico...<br />Ao que, o indesejável maçante, não se contendo, emitiu o veto:<br />- Olhe, meu amigo, essa palavra não existe.<br />Parou o bom português, a olhá-lo, seu tanto perplexo:<br />- Como?!... Ora... Pois se eu a estou a dizer?<br />- É. Mas não existe.<br />Aí, o bom português, ainda meio enfigadado, mas no tom já feliz de descoberta, e apontando para o outro, peremptório:<br />- O senhor também é hiputrélico...<br />E ficou havendo.<br />PÓS-ESCRITO:<br />Confira-se o de Quintiliano, sobre as palavras:<br />"O mais seguro é usar as usadas, não sem um certo perigo cunham-se novas. Porque, aceitas, pouco louvor ao estilo acrescentam, e, rejeitadas, dão em farsa. Ousemos, contudo; pois, como Cícero diz: mesmo aquelas que a princípio parecem duras, vão com o uso amolecendo."<br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal<br />JOÃO CABRAL DE MELO NETO<br />(Recife PE 1920 - Rio de Janeiro RJ 1999) <br />Publicou, em 1942, Pedra do Sono, seu primeiro livro de poesia. Em 1945 saiu O Engenheiro, livro em que apresenta os princípios do rigor, da clareza e da objetividade, características pelas quais sua obra se tornou conhecida. Nesse mesmo ano entrou para a diplomacia, carreira a que se dedicaria nas décadas seguintes; serviu na Espanha, na Inglaterra, na França e no Senegal. Em 1950 publicou O Cão sem Plumas, em cujos versos manifesta preocupações sociais. Nos anos seguintes produziu várias obras poéticas, entre as quais Duas Águas (1956), Quaderna (1960), Morte e Vida Severina (1966) e A Educação pela Pedra (1967), com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia de 1967. A peça Morte e Vida Severina foi musicada por Chico Buarque de Holanda, em 1966, e recebeu vários prêmios. É a obra mais conhecida de João Cabral, que escreveu ainda Museu de Tudo (1975), A Escola das Facas (1980), Poesia Crítica (1982) e Crime na Calle Relator (1987), entre outros livros de poesia. Sua Obra Completa foi publicada em 1994. Conhecido como “poeta-engenheiro”, João Cabral de Melo Neto costuma ser identificado, por critério cronológico, com a terceira geração do Modernismo; mas sua poesia, que incorpora as raízes populares da literatura de cordel, instaura um novo critério estético e figura como das mais singulares na Literatura Brasileira.<br />Num monumento à aspirina<br />Claramente: o mais prático dos sóis,<br />o sol de um comprimido de aspirina:<br />de emprego fácil, portátil e barato,<br />compacto de sol na lápide sucinta.<br />Principalmente porque, sol artificial,<br />que nada limita a funcionar de dia,<br />que a noite não expulsa, cada noite,<br />sol imune às leis da meteorologia,<br />a toda hora em que se necessita dele<br />levanta e vem (sempre num claro dia):<br />acende, para secar a aniagem da alma,<br />quará-la, em linhos de um meio-dia.<br /><br />Convergem: a aparência e os efeitos<br />da lente do comprimido de aspirina:<br />o acabamento esmerado desse cristal,<br />polido a esmeril e repolido a lima,<br />prefigura o clima onde ele faz viver<br />e o cartesiano de tudo nesse clima.<br />De outro lado, porque lente interna,<br />de uso interno, por detrás da retina,<br />não serve exclusivamente para o olho<br />a lente, ou o comprimido de aspirina:<br />ela reenfoca, para o corpo inteiro,<br />o borroso de ao redor, e o reafina.<br />Psicologia da Composição<br />É mineral o papel <br />onde escrever<br />o verso; o verso<br />que é possível não fazer.<br />São minerais<br />as flores e as plantas,<br />as frutas, os bichos<br />quando em estado de palavra. <br />É mineral <br />a linha do horizonte,<br />nossos nomes, essas coisas<br />feitas de palavras.<br />É mineral, por fim,<br />qualquer livro:<br />que é mineral a palavra<br />escrita, a fria natureza<br /><br />da palavra escrita.<br />Tecendo a Manhã<br />1. <br />Um galo sozinho não tece uma manhã: <br />ele precisará sempre de outros galos. <br />De um que apanhe esse grito que ele <br />e o lance a outro; de um outro galo <br />que apanhe o grito de um galo antes <br />e o lance a outro; e de outros galos <br />que com muitos outros galos se cruzem <br />os fios de sol de seus gritos de galo, <br />para que a manhã, desde uma teia tênue, <br />se vá tecendo, entre todos os galos. <br />2. <br />E se encorpando em tela, entre todos, <br />se erguendo tenda, onde entrem todos, <br />se entretendendo para todos, no toldo <br />(a manhã) que plana livre de armação. <br />A manhã, toldo de um tecido tão aéreo <br />que, tecido, se eleva por si: luz balão. <br />A Educação pela Pedra <br />Uma educação pela pedra: por lições;<br />para aprender da pedra, frequentá-la;<br />captar sua voz inenfática, impessoal<br />(pela de dicção ela começa as aulas).<br />A lição de moral, sua resistência fria<br />ao que flui e a fluir, a ser maleada;<br />a de poética, sua carnadura concreta;<br />a de economia, seu adensar-se compacta:<br />lições da pedra (de fora para dentro,<br />cartilha muda), para quem soletrá-la.<br /><br />*<br /><br />Outra educação pela pedra: no Sertão<br />(de dentro para fora, e pré-didática).<br />No Sertão a pedra não sabe lecionar,<br />e se lecionasse, não ensinaria nada;<br />lá não se aprende a pedra: lá a pedra,<br />uma pedra de nascença, entranha a alma.<br />Catar Feijão<br /><br />Catar feijão se limita com escrever: <br />jogam-se os grãos na água do alguidar <br />e as palavras na da folha de papel; <br />e depois, joga-se fora o que boiar. <br />Certo, toda palavra boiará no papel, <br />água congelada, por chumbo seu verbo: <br />pois para catar esse feijão, soprar nele, <br />e jogar fora o leve e oco, palha e eco. <br /><br />Ora, nesse catar feijão entra um risco: <br />o de que entre os grãos pesados entre <br />um grão qualquer, pedra ou indigesto, <br />um grão imastigável, de quebra dente. <br />Certo não, quando ao catar palavras: <br />a pedra dá à frase seu grão mais vivo: <br />obstrui a leitura fluviante, flutual, <br />açula a atenção, isca-a com risco.<br />ALTO DO TRAPUÁ<br />Já fostes algum dia espiar <br />do alto do Engenho Trapuá? <br />Fica na estrada de Nazaré, <br />antes de Tracunhaém.<br />Por um caminho à direita <br />se vai ter a uma igreja <br />que tem um mirante que está<br />bem acima dos ombros das chãs. <br />Com as lentes que verão <br />instala no ar da região <br />muito se pode divisar <br />do alto do Engenho Trapuá. <br />Se se olha para o oeste, <br />onde começa o Agreste, <br />se vê o algodão que exorbita <br />sua cabeleira encardida, <br />... <br /><br />Se se olha para o nascente,<br />se vê flora diferente.<br />Só canaviais e suas crinas,<br />e as canas longilíneas<br />de cores claras e ácidas, <br />femininas, aristocráticas,<br />...<br />Porém se a flora varia <br />segundo o lado que se espia, <br />uma espécie há, sempre a mesma,<br />de qualquer lado que esteja. <br />É uma espécie bem estranha:<br />tem algo de aparência humana, <br />mas seu torpor de vegetal <br />é mais da história natural.<br />...<br />Apesar do pouco que vinga, <br />não é uma espécie extinta<br />e multiplica-se até regularmente. <br />Mas é uma espécie indigente,<br />é a planta mais franzina <br />no ambiente de rapina, <br />O CANAVIAL E O MAR<br />(trecho)<br />O que o mar sim ensina ao canavial:<br />o avançar em linha rasteira da onda;<br />o espraiar-se minucioso, de líquido,<br />alagando cova a cova onde se alonga.<br />O que o canavial sim ensina ao mar:<br />a elocução horizontal de seu verso;<br />a geórgica de cordel, ininterrupta,<br />narrada em voz e silêncio paralelos.<br />"O Sim Contra o Sim" (Serial) <br />(...)<br />Miró sentia a mão direita<br />demasiado sábia<br />e que de saber tanto<br />já não podia inventar nada.<br />Quis então que desaprendesse<br />o muito que aprendera,<br />a fim de reencontrar<br />a linha ainda fresca da esquerda.<br />Pois que ela não pôde, ele pôs-se<br />a desenhar com esta<br />até que, se operando,<br />no braço direito ele a enxerta.<br />A esquerda (se não se é canhoto)<br />é mão sem habilidade:<br />reaprende a cada linha,<br />cada instante, a recomeçar-se.<br />(...)<br />A Felix de Athayde<br />Cesário Verde usava a tinta<br />de forma singular:<br />não para colorir,<br />apesar da cor que nele há.<br />Talvez que nem usasse tinta,<br />somente água clara,<br />aquela água de vidro<br />que se vê percorrer a Arcádia.<br />Certo, não escrevia com ela,<br />ou escrevia lavando:<br />relavava, enxaguava<br />seu mundo em sábado de banho.<br />Assim chegou aos tons opostos<br />das maçãs que contou:<br />rubras dentro da cesta<br />de quem no rosto as tem sem cor.<br />Augusto dos Anjos não tinha<br />dessa tinta água clara.<br />Se água, do Paraíba<br />nordestino, que ignora a Fábula.<br />Tais águas não são lavadeiras,<br />deixam tudo encardido:<br />o vermelho das chitas<br />ou o reluzente dos estilos.<br />E quando usadas como tinta<br />escrevem negro tudo:<br />dão um mundo velado<br />por véus de lama, véus de luto.<br />Donde decerto o timbre fúnebre,<br />dureza da pisada,<br />geometria de enterro<br />de sua poesia enfileirada.<br />(...)<br />À Brasília de Oscar Niemeyer <br />Eis casas-grandes de engenho,<br />horizontais, escancaradas,<br />onde se existe em extensão<br />e a alma todoaberta se espraia.<br /><br />Não se sabe é se o arquiteto<br />as quis símbolos ou ginástica:<br />símbolos do que chamou Vinicius<br />"imensos limites da pátria"<br /><br />ou ginástica, para ensinar<br />quem for viver naquelas salas<br />um deixar-se, um deixar viver<br />de alma arejada, não fanática. A Lição de Poesia <br />1. Toda a manhã consumida<br />como um sol imóvel<br />diante da folha em branco:<br />princípio do mundo, lua nova.<br /><br />Já não podias desenhar<br />sequer uma linha;<br />um nome, sequer uma flor<br />desabrochava no verão da mesa:<br /><br />nem no meio-dia iluminado,<br />cada dia comprado,<br />do papel, que pode aceitar,<br />contudo, qualquer mundo.<br /><br />2. A noite inteira o poeta<br />em sua mesa, tentando<br />salvar da morte os monstros<br />germinados em seu tinteiro.<br /><br />Monstros, bichos, fantasmas<br />de palavras, circulando,<br />urinando sobre o papel,<br />sujando-o com seu carvão.<br /><br />Carvão de lápis, carvão<br />da idéia fixa, carvão<br />da emoção extinta, carvão<br />consumido nos sonhos.<br /><br />3. A luta branca sobre o papel<br />que o poeta evita,<br />luta branca onde corre o sangue<br />de suas veias de água salgada.<br /><br />A física do susto percebida<br />entre os gestos diários;<br />susto das coisas jamais pousadas<br />porém imóveis — naturezas vivas.<br /><br />E as vinte palavras recolhidas<br />nas águas salgadas do poeta<br />e de que se servirá o poeta<br />em sua máquina útil.<br /><br />Vinte palavras sempre as mesmas<br />de que conhece o funcionamento,<br />a evaporação, a densidade<br />menor que a do ar.<br />Ademir da Guia <br />Ademir impõe com seu jogo<br />o ritmo do chumbo (e o peso),<br />da lesma, da câmara lenta,<br />do homem dentro do pesadelo.<br /><br />Ritmo líquido se infiltrando<br />no adversário, grosso, de dentro,<br />impondo-lhe o que ele deseja,<br />mandando nele, apodrecendo-o.<br /><br />Ritmo morno, de andar na areia,<br />de água doente de alagados,<br />entorpecendo e então atando<br />o mais irrequieto adversário.<br />Fábula de um Arquiteto <br />A arquitetura como construir portas,<br />de abrir; ou como construir o aberto;<br />construir, não como ilhar e prender,<br />nem construir como fechar secretos;<br />construir portas abertas, em portas;<br />casas exclusivamente portas e teto.<br />O arquiteto: o que abre para o homem<br />(tudo se sanearia desde casas abertas)<br />portas por-onde, jamais portas-contra;<br />por onde, livres: ar luz razão certa.<br /><br />2.<br />Até que, tantos livres o amedrontando,<br />renegou dar a viver no claro e aberto.<br />Onde vãos de abrir, ele foi amurando<br />opacos de fechar; onde vidro, concreto;<br />até refechar o homem: na capela útero,<br />com confortos de matriz, outra vez feto.<br />O Sol no Senegal <br />Para quem no Recife<br />se fez à beira-mar,<br />o mar é aquilo de onde<br />se vê o sol saltar.<br />Daqui, se vê o sol<br />não nascer, se enterrar:<br />sem molas, alegria,<br />quase murcho, lunar;<br />um sol nonagenário<br />no fim da circular,<br />abúlico, incapaz<br />de um limpo suicidar.<br />Aqui, deixa-se manso<br />corroer, naufragar;<br />não salta como nasce:<br />se desmancha no mar.<br />Menino de Engenho <br />A cana cortada é uma foice.<br />Cortada num ângulo agudo,<br />ganha o gume afiado da foice<br />que a corta em foice, um dar-se mútuo.<br /><br />Menino, o gume de uma cana<br />cortou-me ao quase de cegar-me,<br />e uma cicatriz, que não guardo,<br />soube dentro de mim guardar-se.<br /><br />A cicatriz não tenho mais;<br />o inoculado, tenho ainda;<br />nunca soube é se o inoculado<br />(então) é vírus ou vacina.<br />Graciliano Ramos: <br />Falo somente com o que falo:<br />com as mesmas vinte palavras<br />girando ao redor do sol<br />que as limpa do que não é faca:<br /><br />de toda uma crosta viscosa,<br />resto de janta abaianada,<br />que fica na lâmina e cega<br />seu gosto da cicatriz clara.<br /><br />***<br /><br />Falo somente do que falo:<br />do seco e de suas paisagens,<br />Nordestes, debaixo de um sol<br />ali do mais quente vinagre:<br /><br />que reduz tudo ao espinhaço,<br />cresta o simplesmente folhagem,<br />folha prolixa, folharada,<br />onde possa esconder-se a fraude.<br /><br />***<br /><br />Falo somente por quem falo:<br />por quem existe nesses climas<br />condicionados pelo sol,<br />pelo gavião e outras rapinas:<br /><br />e onde estão os solos inertes<br />de tantas condições caatinga<br />em que só cabe cultivar<br />o que é sinônimo da míngua.<br /><br />***<br /><br />Falo somente para quem falo:<br />quem padece sono de morto<br />e precisa um despertador<br />acre, como o sol sobre o olho:<br /><br />que é quando o sol é estridente,<br />a contrapelo, imperioso,<br />e bate nas pálpebras como<br />se bate numa porta a socos.<br />O Sertanejo Falando <br />A fala a nível do sertanejo engana:<br />as palavras dele vêm, como rebuçadas<br />(palavras confeito, pílula), na glace<br />de uma entonação lisa, de adocicada.<br />Enquanto que sob ela, dura e endurece<br />o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,<br />dessa árvore pedrenta (o sertanejo)<br />incapaz de não se expressar em pedra.<br /><br />2.<br />Daí porque o sertanejo fala pouco:<br />as palavras de pedra ulceram a boca<br />e no idioma pedra se fala doloroso;<br />o natural desse idioma fala à força.<br />Daí também porque ele fala devagar:<br />tem de pegar as palavras com cuidado,<br />confeitá-las na língua, rebuçá-las;<br />pois toma tempo todo esse trabalho.<br />Rios sem Discurso <br />A Gabino Alejandro Carriedo<br /><br />Quando um rio corta, corta-se de vez<br />o discurso-rio de água que ele fazia;<br />cortado, a água se quebra em pedaços,<br />em poços de água, em água paralítica.<br />Em situação de poço, a água equivale<br />a uma palavra em situação dicionária:<br />isolada, estanque no poço dela mesma,<br />e porque assim estanque, estancada;<br />e mais: porque assim estancada, muda,<br />e muda porque com nenhuma comunica,<br />porque cortou-se a sintaxe desse rio,<br />o fio de água por que ele discorria.<br /><br />*<br /><br />O curso de um rio, seu discurso-rio,<br />chega raramente a se reatar de vez;<br />um rio precisa de muito fio de água<br />para refazer o fio antigo que o fez.<br />Salvo a grandiloquência de uma cheia<br />lhe impondo interina outra linguagem,<br />um rio precisa de muita água em fios<br />para que todos os poços se enfrasem:<br />se reatando, de um para outro poço,<br />em frases curtas, então frase e frase,<br />até a sentença-rio do discurso único<br />em que se tem voz a seca ele combate.<br />Paisagem pelo Telefone <br />Sempre que no telefone <br />me falavas, eu diria<br />que falavas de uma sala<br />toda de luz invadida,<br /><br />sala que pelas janelas,<br />duzentas, se oferecia<br />a alguma manhã de praia,<br />mais manhã porque marinha,<br />a alguma manhã de praia<br />no prumo do meio-dia,<br />meio-dia mineral<br />de uma praia nordestina,<br />Nordeste de Pernambuco,<br />onde as manhãs são mais limpas,<br />Pernambuco do Recife,<br />de Piedade, de Olinda,<br />sempre povoado de velas,<br />brancas, ao sol estendidas,<br />de jangadas, que são velas<br />mais brancas porque salinas,<br />que, como muros caiados<br />possuem luz intestina,<br />pois não é o sol que as veste<br />e tampouco as ilumina,<br />mais bem, somente as desveste<br />de toda sombra ou neblina,<br />deixando que livres brilhem<br />os cristais que dentro tinham.<br />Pois, assim, no telefone<br />tua voz me parecia<br />como se de tal manhã<br />estivesse envolvida,<br />fresca e clara, como se<br />telefonasses despida,<br />ou, se vestida, somente<br />de roupa de banho, mínima,<br />e que por mínima, pouco<br />de tua luz própria tira,<br />e até mais, quando falavas<br />no telefone, eu diria<br />que estavas de todo nua,<br />só de teu banho vestida,<br />que é quando tu estás mais clara<br />pois a água nada embacia,<br />sim, como o sol sobre a cal<br />seis estrofes mais acima,<br />a água clara não te acende:<br />libera a luz que já tinhas.<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto<br />Gênese e história da obra <br />Morte e Vida Severina foi escrito em 1954/55, por encomenda de Maria Clara Machado, então diretora do grupo O Tablado, que não pôde levar ao palco a peça. Publicado inicialmente no livro Duas Águas (1956), o texto foi finalmente montado pelo grupo do TUCA (Teatro da Universidade Católica de São Paulo), dirigido por Roberto Freire e Silnei Siqueira, com música de Chico Buarque de Holanda, e obteve sucesso mundial numa turnê em 1966. A partir daquele ano, passou a integrar o volume Poemas em Voz Alta, que reúne a parcela mais comunicativa da obra do "poeta engenheiro". <br />As duas águas de João Cabral de Melo Neto <br />João Cabral de Melo Neto (Recife, 1920) dividiu sua obra em duas "águas", duas facetas como as do telhado de uma casa: a primeira seria a da comunicação restrita, elaborada e de difícil consumo; a segunda, uma poesia mais popular, de compreensão mais imediata, de comunicação com um público mais amplo e menos cultivado. Nesta última se incluem os seus "poemas em voz alta", que foram escritos para serem lidos a um público ouvinte. O poema dramático Morte e Vida Severina com certeza pertence à segunda ''água", pois, embora tenha algumas características fundamentais do poeta cerebral que é João Cabral como o rigor formal da metrificação variada e aproximativa e das rimas toantes e o "falar com coisas", a utilização de imagens contundentes e concretas foi escrito com o intuito de alcançar um público maior e recorre a diversas fontes da poesia popular na sua elaboração. <br />Um Auto de Natal Pernambucano - influências <br />O subtítulo do livro revela seu débito aos autos sacramentais da tradição ibérica medieval, dos quais herda o teor poético e alegórico, assim como uma tendência à justaposição das cenas e à sátira dos costumes. Além de se inspirar na antiga poesia narrativa ibérica, os romances, João Cabral reelabora parodicamente, nas cenas do presépio final a poesia do folclore pernambucano. Outra influência clara na concepção do livro é o Regionalismo de 30, com sua preocupação realista de observação, crítica e dunúncia social que podemos encontrar em autores como José Américo de Almeida, Rachel de Queirós e, principalmente, Graciliano Ramos. <br />O enredo: da morte à vida severina <br />A inversão do sintagma "vida e morte" no título da peça demonstra o percurso do retirante Severino: parte da morte no Sertão para encontrar a vida em Recife. Severino acompanha o rio Capibaribe e só vai encontrando pobreza e morte pelo caminho. Chegando a Recife, foz do rio, o mesmo se repete. Desesperançado, pensa em cometer suicídio atirando-se ao rio, quando testemunha o nascimento de uma criança que devolve a esperança à vida severina. Tanto morte quanto vida são "severinas", adjetivo neológico formado a partir do nome próprio, pois ambas se aplicam a todos os "severinos" quase anônimos do Sertão nordestino. <br />Estrutura geral <br />Morte e Vida Severina se divide em 18 cenas ou fragmentos poéticos, todos precedidos por um título explicativo de seu conteúdo, praticamente resumos do que encontramos nos poemas em si. Podemos separá-los em dois grandes gupos: as primeiras 12 cenas descrevem a peregrinação de Severino. Trata-se do Caminho ou Fuga da Morte. Nesta parte o poeta habilmente alterna monólogos de Severino com diálogos que trava ou escuta no caminho; as últimas 6 cenas apresentam O Presépio ou O Encontro com a Vida, em que é descrito o nascimento do filho de José, mestre carpina, em clara alusão ao nascimento de Jesus. <br />As cenas da morte <br />1- Severino se apresenta. Tem dificuldades para se diferenciar dos outros "severinos", pois são "iguais em tudo na vida". Este Severino representa a todos. <br />2. Conversa com dois homens carregando um defunto numa rede. <br />3. Teme se perder porque o rio Capibaribe secou com o verão. <br />4- Ouve cantarem excelências para um defunto dentro de uma casa, enquanto um homem, do lado de fora, vai ironizando as palavras dos cantadores. <br />5 Cansado da viagem e desiludido, pensa interrompê-la por algum tempo e procurar trabalho ali onde se encontra. <br />6. Dirige-se a uma mulher na janela em busca de trabalho, mas esta, rezadeira, diz que por lá não há serviço para lavradores como ele, só para quem lida profissionalmente com a morte. <br />7 .Chega, maravilhado, à Zona da Mata, região de vegetação mais rica, que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem. <br />8. Assiste ao enterro de um lavrador e ouve os amigos do morto dizerem, com ironia, que agora sim este tinha a sua terra, a terra da cova rasa. <br />9. Cercado pela morte, resolve apressar os passos para chegar logo a Recife, na esperança de uma mudança para melhor. <br />10. Chegando a Recife, senta-se para descansar ao pé do muro de um cemitério e ouve, sem ser notado, a conversa pessimista de dois coveiros.<br />11. Desiludido, aproxima-se de um dos cais do Capibaribe e pensa em se atirar ao rio para acabar de vez com seu sofrimento. <br />12. Conversa com José, mestre carpina, morador de um dos mocambos à margem do rio, e lhe pergunta se não é melhor se atirar logo ao rio e à morte. <br />O presépio: encontro com a vida <br />13. Uma mulher, da porta da casa de José, anuncia-lhe que seu filho nascera. <br />14. Os vizinhos, os amigos, duas ciganas, etc. cantam em louvor ao menino. <br />15. Falam as pessoas que trazem presentes de todos os tipos e de todos os cantos de Pernambuco para o recém-nascido. <br />16. Falam as duas ciganas que haviam aparecido com os vizinhos. Uma prevê uma vida enlameada de pescador pobre, outra de operário um pouco menos pobre. <br />17. Todos cantam a beleza do recém-nascido. Beleza da novidade, da vida que se multiplica e renova, incansável. <br />18. O carpina responde à pergunta que Severino fizera, reafirmando o valor da vida, mesmo que seja "severina". <br />Resumo<br />Severino é um retirante: ele é como muitos outros e que está partindo para o litoral, fugindo da seca, da morte. A vida na Capital parece mais atraente, mais "vida", menos "severina". Em suas andanças, entretanto, Severino se depara a todo momento não com a vida, mas sim com o que já conhece como coisa vulgar: a morte e o desespero que a cerca. <br />Em seu primeiro encontro com ela, o retirante topa com dois homens carregando um defunto até sua última morada. Durante uma conversa, descobre que o pobre coitado havia sido assassinado e que o motivo fora ter querido expandir um pouco suas terras, que praticamente não eram produtíveis. O retirante segue sua viagem e percebe que na região onde se encontra, nem o rio Capibaribe - seco no verão - consegue cumprir o seu papel. Severino sente medo de não conseguir chegar ao seu destino. <br />Escuta, então, uma cantoria e, aproximando-se, vê que está sendo encomendado um defunto. Pela primeira vez, Severino pensa em interromper sua "descida" para o litoral e procurar trabalho naquela vila. Ao dirigir-se a uma mulher, descobre que tudo que sabe fazer não serve ali, e o único trabalho existente e lucrativo é o que ajuda na morte: médico, rezadeira, farmacêutico, coveiro. E o lucro é certo nessas profissões, pois não faltam fregueses, uma vez que ali a morte também é coisa vulgar. <br />Se não há como trabalhar, mais uma vez Severino retoma seu rumo e chega à Zona da Mata, onde novamente pensa em interromper sua viagem e se fixar naquela terra branda e macia, tão diferente da solo do Sertão. Mais do que isso: começou a acreditar que não via ninguém porque a vida ali deveria ser tão boa, que todos estavam de folga e que ninguém deveria conhecer a morte em vida, a vida severina. Ilusão de quem está à procura do paraíso: logo Severino assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério. Severino se dá conta que ali as privações são as mesmas que ele conhece bem e que também a única parte que pode ser sua daquela terra é uma cova para sepultura, nada mais . <br />O retirante resolve então apressar o passo para chegar logo ao Recife. Severino senta-se para descansar ao pé de um muro alto e ouve uma conversa. É mais uma vez a morte rondando, são dois coveiros que lhe dão a má notícia: toda a gente que vai do Sertão até ali procurando morrer de velhice, vai na verdade é seguindo o próprio enterro, pois logo que chegam, são os cemitérios que os esperam . <br />Severino nunca quis muito da vida, mas está desiludido: esperava encontrar trabalho, trabalho duro mas agora - desespero! - já se imagina um defunto como aqueles que os coveiros descreviam, faltava apenas cumprir seu destino de retirante. <br />Nesse momento, aproxima-se de Severino seu José, mestre carpina, morador de um dos mocambos que havia entre o cais e a água do rio. O retirante, desesperançado, revela ao mestre carpina sua intenção de suicídio, de se jogar naquele rio e ter uma mortalha "macia e líquida". Se José tenta convencer Severino que ainda vale a pena lutar pela vida, mesmo que seja vida severina. Mas Severino não vê mais diferença entre vida e morte e lança a pergunta: "que diferença faria/ se em vez de continuar/tomasse melhor saída:/a de saltar, numa noite,/ fora da ponte e da vida?" <br />Da porta de onde havia saído o mestre carpina, surge uma mulher, que grita uma notícia. Um filho nascera, o filho de seu José! Chegam vizinhos, amigos, pessoas trazendo presentes ao recém-nascido. Vêm também duas ciganas, que fazem a previsão do futuro do menino: ele crescerá aprendendo com os bichos e no futuro trabalhará numa fábrica, lambuzado de graxa e, quem sabe, poderá morar num lugar um pouco melhor. <br />Severino assiste ao movimento, ao clima de euforia com a vinda do menino. O carpina se aproxima novamente do retirante e reata a conversa que estavam levando. Diz que não sabe a resposta da pergunta feita, mas, melhor que palavras, o nascimento da criança podia ser uma resposta: a vida vale a pena ser defendida.<br />Trechos do Poema:<br />1- O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI <br />- O meu nome é Severino, <br />como não tenho outro de pia. <br />Como há muitos Severinos, <br />que é santo de romaria, <br />deram então de me chamar <br />Severino de Maria; <br />como há muitos Severinos <br />com mães chamadas Maria, <br />fiquei sendo o da Maria <br />do finado Zacarias. <br />Mais isso ainda diz pouco: <br />há muitos na freguesia, <br />por causa de um coronel <br />que se chamou Zacarias <br />e que foi o mais antigo <br />senhor desta sesmaria. <br />Como então dizer quem falo <br />ora a Vossas Senhorias? <br />Vejamos: é o Severino <br />da Maria do Zacarias, <br />lá da serra da Costela, <br />limites da Paraíba. <br />Mas isso ainda diz pouco: <br />se ao menos mais cinco havia <br />com nome de Severino <br />filhos de tantas Marias <br />mulheres de outros tantos, <br />já finados, Zacarias, <br />vivendo na mesma serra <br />magra e ossuda em que eu vivia. <br />Somos muitos Severinos <br />iguais em tudo na vida: <br />na mesma cabeça grande <br />que a custo é que se equilibra, <br />no mesmo ventre crescido <br />sobre as mesmas pernas finas <br />e iguais também porque o sangue, <br />que usamos tem pouca tinta. <br />E se somos Severinos <br />iguais em tudo na vida, <br />morremos de morte igual, <br />mesma morte severina: <br />que é a morte de que se morre <br />de velhice antes dos trinta, <br />de emboscada antes dos vinte <br />de fome um pouco por dia <br />(de fraqueza e de doença <br />é que a morte severina <br />ataca em qualquer idade, <br />e até gente não nascida). <br />Somos muitos Severinos <br />iguais em tudo e na sina: <br />a de abrandar estas pedras <br />suando-se muito em cima, <br />a de tentar despertar <br />terra sempre mais extinta, <br />a de querer arrancar <br />alguns roçado da cinza. <br />Mas, para que me conheçam <br />melhor Vossas Senhorias <br />e melhor possam seguir <br />a história de minha vida, <br />passo a ser o Severino <br />que em vossa presença emigra. <br />2 - ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS<br />ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUEM MATEI NÃO!" <br />A quem estais carregando, <br />irmãos das almas, <br />embrulhado nessa rede? <br />dizei que eu saiba. <br />A um defunto de nada, <br />irmão das almas, <br />que há muitas horas viaja <br />à sua morada. <br />E sabeis quem era ele, <br />irmãos das almas, <br />sabeis como ele se chama <br />ou se chamava? <br />Severino Lavrador, <br />irmão das almas, <br />Severino Lavrador, <br />mas já não lavra. <br />- E de onde que o estais trazendo, <br />irmãos das almas, <br />onde foi que começou <br />vossa jornada? <br />- Onde a Caatinga é mais seca, <br />irmão das almas, <br />onde uma terra que não dá <br />nem planta brava. <br />- E foi morrida essa morte, <br />irmãos das almas, <br />essa foi morte morrida <br />ou foi matada? <br />- Até que não foi morrida, <br />irmão das almas, <br />esta foi morte matada, <br />numa emboscada. <br />- E o que guardava a emboscada, <br />irmão das almas <br />e com que foi que o mataram, <br />com faca ou bala? <br />- Este foi morto de bala, <br />irmão das almas, <br />mas garantido é de bala, <br />mais longe vara. <br />- E quem foi que o emboscou, <br />irmãos das almas, <br />quem contra ele soltou <br />essa ave-bala? <br />- Ali é difícil dizer, <br />irmão das almas, <br />sempre há uma bala voando <br />desocupada. <br />- E o que havia ele feito <br />irmãos das almas, <br />e o que havia ele feito <br />contra a tal pássara? <br />- Ter um hectare de terra, <br />irmão das almas, <br />de pedra e areia lavada <br />que cultivava. <br />- Mas que roças que ele tinha, <br />irmãos das almas <br />que podia ele plantar <br />na pedra avara? <br />- Nos magros lábios de areia, <br />irmão das almas, <br />os intervalos das pedras, <br />plantava palha. <br />- E era grande sua lavoura, <br />irmãos das almas, <br />lavoura de muitas covas, <br />tão cobiçada? <br />- Tinha somente dez quadras, <br />irmão das almas, <br />todas nos ombros da serra, <br />nenhuma várzea. <br />- Mas então por que o mataram, <br />irmãos das almas, <br />mas então por que o mataram <br />com espingarda? <br />- Queria mais espalhar-se, <br />irmão das almas, <br />queria voar mais livre <br />essa ave-bala. <br />- E agora o que passará, <br />irmãos das almas, <br />o que é que acontecerá <br />contra a espingarda? <br />- Mais campo tem para soltar, <br />irmão das almas, <br />tem mais onde fazer voar <br />as filhas-bala. <br />- E onde o levais a enterrar, <br />irmãos das almas, <br />com a semente do chumbo <br />que tem guardada? <br />- Ao cemitério de Torres, <br />irmão das almas, <br />que hoje se diz Toritama, <br />de madrugada. <br />- E poderei ajudar, <br />irmãos das almas? <br />vou passar por Toritama, <br />é minha estrada. <br />- Bem que poderá ajudar, <br />irmão das almas, <br />é irmão das almas quem ouve <br />nossa chamada. <br />- E um de nós pode voltar, <br />irmão das almas, <br />pode voltar daqui mesmo <br />para sua casa. <br />- Vou eu que a viagem é longa, <br />irmãos das almas, <br />é muito longa a viagem <br />e a serra é alta. <br />- Mais sorte tem o defunto <br />irmãos das almas, <br />pois já não fará na volta <br />a caminhada. <br />- Toritama não cai longe, <br />irmãos das almas, <br />seremos no campo santo <br />de madrugada. <br />- Partamos enquanto é noite <br />irmãos das almas, <br />que é o melhor lençol dos mortos <br />noite fechada. <br />3 - O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR POR SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, <br />- Antes de sair de casa <br />aprendi a ladainha <br />das vilas que vou passar <br />na minha longa descida. <br />Sei que há muitas vilas grandes, <br />cidades que elas são ditas; <br />sei que há simples arruados, <br />sei que há vilas pequeninas, <br />todas formando um rosário <br />cujas contas fossem vilas, <br />de que a estrada fosse a linha. <br />Devo rezar tal rosário <br />até o mar onde termina, <br />saltando de conta em conta, <br />passando de vila em vila. <br />Vejo agora: não é fácil <br />seguir essa ladainha; <br />entre uma conta e outra conta, <br />entre uma e outra ave-maria, <br />há certas paragens brancas, <br />de planta e bicho vazias, <br />vazias até de donos, <br />e onde o pé se descaminha. <br />Não desejo emaranhar <br />o fio de minha linha <br />nem que se enrede no pêlo <br />hirsuto desta caatinga. <br />Pensei que seguindo o rio <br />eu jamais me perderia: <br />ele é o caminho mais certo, <br />de todos o melhor guia. <br />Mas como segui-lo agora <br />que interrompeu a descida? <br />Vejo que o Capibaribe, <br />como os rios lá de cima, <br />é tão pobre que nem sempre <br />pode cumprir sua sina <br />e no verão também corta, <br />com pernas que não caminham. <br />Tenho que saber agora <br />qual a verdadeira via <br />entre essas que escancaradas <br />frente a mim se multiplicam. <br />Mas não vejo almas aqui, <br />nem almas mortas nem vivas; <br />ouço somente à distância <br />o que parece cantoria. <br />Será novena de santo, <br />será algum mês-de-Maria; <br />quem sabe até se uma festa <br />ou uma dança não seria? <br />4 - NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO<br />UM HOMEM, DO LADO DE FORA, VAI PARODIANDO A PALAVRAS DOS CANTADORES <br />- Finado Severino, <br />quando passares em Jordão <br />e o demônios te atalharem <br />perguntando o que é que levas... <br />- Dize que levas cera, <br />capuz e cordão <br />mais a Virgem da Conceição. <br />- Finado Severino, etc... <br />- Dize que levas somente <br />coisas de não: <br />fome, sede, privação. <br />- Finado Severino, etc... <br />- Dize que coisas de não, <br />ocas, leves: <br />como o caixão, que ainda deves. <br />- Uma excelência <br />dizendo que a hora é hora. <br />- Ajunta os carregadores <br />que o corpo quer ir embora. <br />- Duas excelências... <br />-...dizendo é a hora da plantação. <br />- Ajunta os carreadores... <br />-...que a terra vai colher a mão. <br />5 - CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR<br />TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA. <br />- Desde que estou retirando <br />só a morte vejo ativa, <br />só a morte deparei <br />e às vezes até festiva; <br />só a morte tem encontrado <br />quem pensava encontrar vida, <br />e o pouco que não foi morte <br />foi de vida severina <br />(aquela vida que é menos <br />vivida que defendida, <br />e é ainda mais severina <br />para o homem que retira). <br />Penso agora: mas por que <br />parar aqui eu não podia <br />e como Capibaribe <br />interromper minha linha? <br />ao menos até que as águas <br />de uma próxima invernia <br />me levem direto ao mar <br />ao refazer sua rotina? <br />Na verdade, por uns tempos, <br />parar aqui eu bem podia <br />e retomar a viagem <br />quando vencesse a fadiga. <br />Ou será que aqui cortando <br />agora minha descida <br />já não poderei seguir <br />nunca mais em minha vida? <br />(será que a água destes poços <br />é toda aqui consumida <br />pelas roças, pelos bichos, <br />pelo sol com suas línguas? <br />será que quando chegar <br />o rio da nova invernia <br />um resto de água no antigo <br />sobrará nos poços ainda?) <br />Mas isso depois verei: <br />tempo há para que decida; <br />primeiro é preciso achar <br />um trabalho de que viva. <br />Vejo uma mulher na janela, <br />ali, que se não é rica, <br />parece remediada <br />ou dona de sua vida: <br />vou saber se de trabalho <br />poderá me dar notícia. <br />6 - DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS, DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ <br />- Muito bom dia, senhora, <br />que nessa janela está; <br />sabe dizer se é possível <br />algum trabalho encontrar? <br />- Trabalho aqui nunca falta <br />a quem sabe trabalhar; <br />o que fazia o compadre <br />na sua terra de lá? <br />- Pois fui sempre lavrador, <br />lavrador de terra má; <br />não há espécie de terra <br />que eu não possa cultivar. <br />- Isso aqui de nada adianta, <br />pouco existe o que lavrar; <br />mas diga-me, retirante, <br />o que mais fazia por lá? <br />- Também lá na minha terra <br />de terra mesmo pouco há; <br />mas até a calva da pedra <br />sinto-me capaz de arar. <br />- Também de pouco adianta, <br />nem pedra há aqui que amassar; <br />diga-me ainda, compadre, <br />que mais fazias por lá? <br />- Conheço todas as roças <br />que nesta chã podem dar; <br />o algodão, a mamona, <br />a pita, o milho, o caroá. <br />- Esses roçados o banco <br />já não quer financiar; <br />mas diga-me, retirante, <br />o que mais fazia lá? <br />- Melhor do que eu ninguém <br />sei combater, quiçá, <br />tanta planta de rapina <br />que tenho visto por cá. <br />- Essas plantas de rapina <br />são tudo o que a terra dá; <br />diga-me ainda, compadre <br />que mais fazia por lá? <br />- Tirei mandioca de chãs <br />que o vento vive a esfolar <br />e de outras escalavras <br />pela seca faca solar. <br />- Isto aqui não é Vitória <br />nem é Glória do Goitá; <br />e além da terra, me diga, <br />que mais sabe trabalhar? <br />- Sei também tratar de gado, <br />entre urtigas pastorear; <br />gado de comer do chão <br />ou de comer ramas no ar. <br />- Aqui não é Surubim <br />nem Limoeiro, oxalá! <br />mas diga-me, retirante, <br />que mais fazia por lá? <br />- Em qualquer das cinco tachas <br />de um bangüê sei cozinhar; <br />sei cuidar de uma moenda, <br />de uma casa de purgar. <br />- Com a vinda das usinas <br />há poucos engenhos já; <br />nada mais o retirante <br />aprendeu a fazer lá? <br />- Ali ninguém aprendeu <br />outro ofício, ou aprenderá; <br />mas o sol, de sol a sol, <br />bem se aprende a suportar. <br />- Mas isso então será tudo <br />em que sabe trabalhar? <br />vamos, diga, retirante, <br />outras coisas saberá. <br />- Deseja mesmo saber <br />o que eu fazia por lá? <br />comer quando havia o quê <br />e, havendo ou não, trabalhar. <br />- Essa vida por aqui <br />é coisa familiar; <br />mas diga-me retirante, <br />sabe benditos rezar? <br />sabe cantar excelências, <br />defuntos encomendar? <br />sabe tirar ladainhas, <br />sabe mortos enterrar? <br />- Já velei muitos defuntos, <br />na serra é coisa vulgar; <br />mas nunca aprendi as rezas, <br />sei somente acompanhar. <br />- Pois se o compadre soubesse <br />rezar ou mesmo cantar, <br />trabalhávamos a meias, <br />que a freguesia bem dá. <br />- Agora se me permite <br />minha vez de perguntar: <br />como senhora, comadre, <br />pode manter o seu lar? <br />- Vou explicar rapidamente, <br />logo compreenderá: <br />como aqui a morte é tanta, <br />vivo de a morte ajudar. <br />- E ainda se me permite <br />que volte a perguntar: <br />é aqui uma profissão <br />trabalho tão singular? <br />- É, sim, uma profissão, <br />e a melhor de quantas há: <br />sou de toda a região <br />rezadora titular. <br />- E ainda se me permite <br />mais outra vez indagar: <br />é boa essa profissão <br />em que a comadre ora está? <br />- De um raio de muitas léguas <br />vem gente aqui me chamar; <br />a verdade é que não pude <br />queixar-me ainda de azar. <br />- E se pela última vez <br />me permite perguntar: <br />não existe outro trabalho <br />para mim nesse lugar? <br />- Como aqui a morte é tanta, <br />só é possível trabalhar <br />nessas profissões que fazem <br />da morte ofício ou bazar. <br />Imagine que outra gente <br />de profissão similar, <br />farmacêuticos, coveiros, <br />doutor de anel no anular, <br />remando contra a corrente <br />da gente que baixa ao mar, <br />retirantes às avessas, <br />sobem do mar para cá. <br />Só os roçados da morte <br />compensam aqui cultivar, <br />e cultivá-los é fácil: <br />simples questão de plantar; <br />não se precisa de limpa, <br />de adubar nem de regar; <br />as estiagens e as pragas <br />fazemos mais prosperar; <br />e dão lucro imediato; <br />nem é preciso esperar <br />pela colheita: recebe-se <br />na hora mesma de semear <br />7 - O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM. <br />- Bem me diziam que a terra <br />se faz mais branda e macia <br />quando mais do litoral <br />a viagem se aproxima. <br />Agora afinal cheguei <br />nesta terra que diziam. <br />Como ela é uma terra doce <br />para os pés e para a vista. <br />Os rios que correm aqui <br />têm água vitalícia. <br />Cacimbas por todo lado; <br />cavando o chão, água mina. <br />Vejo agora que é verdade <br />o que pensei ser mentira <br />Quem sabe se nesta terra <br />não plantarei minha sina? <br />Não tenho medo de terra <br />(cavei pedra toda a vida), <br />e para quem lutou a braço <br />contra a piçarra da Caatinga <br />será fácil amansar <br />esta aqui, tão feminina. <br />Mas não avisto ninguém, <br />só folhas de cana fina; <br />somente ali à distância <br />aquele bueiro de usina; <br />somente naquela várzea <br />um bangüê velho em ruína. <br />Por onde andará a gente <br />que tantas canas cultiva? <br />Feriando: que nesta terra <br />tão fácil, tão doce e rica, <br />não é preciso trabalhar <br />todas as horas do dia, <br />os dias todos do mês, <br />os meses todos da vida. <br />Decerto a gente daqui <br />jamais envelhece aos trinta <br />nem sabe da morte em vida, <br />vida em morte, severina; <br />e aquele cemitério ali, <br />branco de verde colina, <br />decerto pouco funciona <br />e poucas covas aninha. <br />8 -ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE<br />O LEVARAM AO CEMITÉRIO <br />- Essa cova em que estás, <br />com palmos medida, <br />é a cota menor <br />que tiraste em vida. <br />- É de bom tamanho, <br />nem largo nem fundo, <br />é a parte que te cabe <br />neste latifúndio. <br />- Não é cova grande. <br />é cova medida, <br />é a terra que querias <br />ver dividida. <br />- É uma cova grande <br />para teu pouco defunto, <br />mas estarás mais ancho <br />que estavas no mundo. <br />- É uma cova grande <br />para teu defunto parco, <br />porém mais que no mundo <br />te sentirás largo. <br />- É uma cova grande <br />para tua carne pouca, <br />mas a terra dada <br />não se abre a boca. <br />- Viverás, e para sempre <br />na terra que aqui aforas: <br />e terás enfim tua roça. <br />- Aí ficarás para sempre, <br />livre do sol e da chuva, <br />criando tuas saúvas. <br />- Agora trabalharás <br />só para ti, não a meias, <br />como antes em terra alheia. <br />- Trabalharás uma terra <br />da qual, além de senhor, <br />serás homem de eito e trator. <br />- Trabalhando nessa terra, <br />tu sozinho tudo empreitas: <br />serás semente, adubo, colheita. <br />- Trabalharás numa terra <br />que também te abriga e te veste: <br />embora com o brim do Nordeste. <br />- Será de terra <br />tua derradeira camisa: <br />te veste, como nunca em vida. <br />- Será de terra <br />a tua melhor camisa: <br />te veste e ninguém cobiça. <br />- Terás de terra <br />completo agora o teu fato: <br />e pela primeira vez, sapato. <br />- Como és homem, <br />a terra te dará chapéu: <br />fosses mulher, xale ou véu. <br />- Tua roupa melhor <br />será de terra e não de fazenda: <br />não se rasga nem se remenda. <br />- Tua roupa melhor <br />e te ficará bem cingida: <br />como roupa feita à medida. <br />- Esse chão te é bem conhecido <br />(bebeu teu suor vendido). <br />- Esse chão te é bem conhecido <br />(bebeu o moço antigo) <br />- Esse chão te é bem conhecido <br />(bebeu tua força de marido). <br />- Desse chão és bem conhecido <br />(através de parentes e amigos). <br />- Desse chão és bem conhecido <br />(vive com tua mulher, teus filhos) <br />- Desse chão és bem conhecido <br />(te espera de recém-nascido). <br />- Não tens mais força contigo: <br />deixa-te semear ao comprido. <br />- Já não levas semente viva: <br />teu corpo é a própria maniva. <br />- Não levas rebolo de cana: <br />és o rebolo, e não de caiana. <br />- Não levas semente na mão: <br />és agora o próprio grão. <br />- Já não tens força na perna: <br />deixa-te semear na coveta. <br />- Já não tens força na mão: <br />deixa-te semear no leirão. <br />- Dentro da rede não vinha nada, <br />só tua espiga debulhada. <br />- Dentro da rede vinha tudo, <br />só tua espiga no sabugo. <br />- Dentro da rede coisa vasqueira, <br />só a maçaroca banguela. <br />- Dentro da rede coisa pouca, <br />tua vida que deu sem soca. <br />- Na mão direita um rosário, <br />milho negro e ressecado. <br />- Na mão direita somente <br />o rosário, seca semente. <br />- Na mão direita, de cinza, <br />o rosário, semente maninha, <br />- Na mão direita o rosário, <br />semente inerte e sem salto. <br />- Despido vieste no caixão, <br />despido também se enterra o grão. <br />- De tanto te despiu a privação <br />que escapou de teu peito à viração. <br />- Tanta coisa despiste em vida <br />que fugiu de teu peito a brisa. <br />- E agora, se abre o chão e te abriga, <br />lençol que não tiveste em vida. <br />- Se abre o chão e te fecha, <br />dando-te agora cama e coberta. <br />- Se abre o chão e te envolve, <br />como mulher com que se dorme 9 - O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE <br />- Nunca esperei muita coisa, <br />digo a Vossas Senhorias. <br />O que me fez retirar <br />não foi a grande cobiça; <br />o que apenas busquei <br />foi defender minha vida <br />de tal velhice que chega <br />antes de se inteirar trinta; <br />se na serra vivi vinte, <br />se alcancei lá tal medida, <br />o que pensei, retirando, <br />foi estendê-la um pouco ainda. <br />Mas não senti diferença <br />entre o Agreste e a Caatinga, <br />e entre a Caatinga e aqui a Mata <br />a diferença é a mais mínima. <br />Está apenas em que a terra <br />é por aqui mais macia; <br />está apenas no pavio, <br />ou melhor, na lamparina: <br />pois é igual o querosene <br />que em toda parte ilumina, <br />e quer nesta terra gorda <br />quer na serra, de caliça, <br />a vida arde sempre com <br />a mesma chama mortiça. <br />Agora é que compreendo <br />por que em paragens tão ricas <br />o rio não corta em poços <br />como ele faz na Caatinga: <br />vive a fugir dos remansos <br />a que a paisagem o convida, <br />com medo de se deter, <br />grande que seja a fadiga. <br />Sim, o melhor é apressar <br />o fim desta ladainha, <br />o fim do rosário de nomes <br />que a linha do rio enfia; <br />é chegar logo ao Recife, <br />derradeira ave-maria <br />do rosário, derradeira <br />invocação da ladainha, <br />Recife, onde o rio some <br />e esta minha viagem se fina. <br />10 - CHEGANDO AO RECIFE O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS <br />- O dia hoje está difícil; <br />não sei onde vamos parar. <br />Deviam dar um aumento, <br />ao menos aos deste setor de cá. <br />As avenidas do centro são melhores, <br />mas são para os protegidos: <br />há sempre menos trabalho <br />e gorjetas pelo serviço; <br />e é mais numeroso o pessoal <br />(toma mais tempo enterrar os ricos). <br />- pois eu me daria por contente <br />se me mandassem para cá. <br />Se trabalhasses no de Casa Amarela <br />não estarias a reclamar. <br />De trabalhar no de Santo Amaro <br />deve alegrar-se o colega <br />porque parece que a gente <br />que se enterra no de Casa Amarela <br />está decidida a mudar-se <br />toda para debaixo da terra. <br />- É que o colega ainda não viu <br />o movimento: não é o que se vê. <br />Fique-se por aí um momento <br />e não tardarão a aparecer <br />os defuntos que ainda hoje <br />vão chegar (ou partir, não sei). <br />As avenidas do centro, <br />onde se enterram os ricos, <br />são como o porto do mar; <br />não é muito ali o serviço: <br />no máximo um transatlântico <br />chega ali cada dia, <br />com muita pompa, protocolo, <br />e ainda mais cenografia. <br />Mas este setor de cá <br />é como a estação dos trens: <br />diversas vezes por dia <br />chega o comboio de alguém. <br />- Mas se teu setor é comparado <br />à estação central dos trens, <br />o que dizer de Casa Amarela <br />onde não para o vaivém? <br />Pode ser uma estação <br />mas não estação de trem: <br />será parada de ônibus, <br />com filas de mais de cem. <br />- Então por que não pedes, <br />já que és de carreira, e antigo, <br />que te mandem para Santo Amaro <br />se achas mais leve o serviço? <br />Não creio que te mandassem <br />para as belas avenidas <br />onde estão os endereços <br />e o bairro da gente fina: <br />isto é, para o bairro dos usineiros, <br />dos políticos, dos banqueiros, <br />e no tempo antigo, dos bangüezeiros <br />(hoje estes se enterram em carneiros); <br />bairro também dos industriais, <br />dos membros das associações patronais <br />e dos que foram mais horizontais <br />nas profissões liberais. <br />Difícil é que consigas <br />aquele bairro, logo de saída. <br />- Só pedi que me mandasse <br />para as urbanizações discretas, <br />com seus quarteirões apertados, <br />com suas cômodas de pedra. <br />- Esse é o bairro dos funcionários, <br />inclusive extranumerários, <br />contratados e mensalistas <br />(menos os tarefeiros e diaristas). <br />Para lá vão os jornalistas, <br />os escritores, os artistas; <br />ali vão também os bancários, <br />as altas patentes dos comerciários, <br />os lojistas, os boticários, <br />os localizados aeroviários <br />e os de profissões liberais <br />que não se libertaram jamais. <br />- Também um bairro dessa gente <br />temos no de Casa Amarela: <br />cada um em seu escaninho, <br />cada um em sua gaveta, <br />com o nome aberto na lousa <br />quase sempre em letras pretas. <br />Raras as letras douradas, <br />raras também as gorjetas. <br />- Gorjetas aqui, também, <br />só dá mesmo a gente rica, <br />em cujo bairro não se pode <br />trabalhar em mangas de camisa; <br />onde se exige quepe <br />e farda engomada e limpa. <br />- Mas não foi pelas gorjetas, não, <br />que vim pedir remoção: <br />é porque tem menos trabalho <br />que quero vir para Santo Amaro; <br />aqui ao menos há mais gente <br />para atender a freguesia, <br />para botar a caixa cheia <br />dentro da caixa vazia. <br />- E que disse o Administrador, <br />se é que te deu ouvido? <br />- Que quando apareça a ocasião <br />atenderá meu pedido. <br />- E do senhor Administrador <br />isso foi tudo que arrancaste? <br />- No de Casa Amarela me deixou <br />mas me mudou de arrabalde. <br />- E onde vais trabalhar agora, <br />qual o subúrbio que te cabe? <br />- Passo para o dos industriários, <br />que também é o dos ferroviários, <br />de todos os rodoviários <br />e praças-de-pré dos comerciários. <br />- Passas para o dos operários, <br />deixas o dos pobres vários; <br />melhor: não são tão contagiosos <br />e são muito menos numerosos. <br />- É, deixo o subúrbio dos indigentes <br />onde se enterra toda essa gente <br />que o rio afoga na preamar <br />e sufoca na baixa-mar. <br />- É a gente sem instituto, <br />gente de braços devolutos; <br />são os que jamais usam luto <br />e se enterram sem salvo-conduto. <br />- É a gente dos enterros gratuitos <br />e dos defuntos ininterruptos. <br />- É a gente retirante <br />que vem do Sertão de longe. <br />- Desenrolam todo o barbante <br />e chegam aqui na jante. <br />- E que então, ao chegar, <br />não tem mais o que esperar. <br />- Não podem continuar <br />pois têm pela frente o mar. <br />- Não têm onde trabalhar <br />e muito menos onde morar. <br />- E da maneira em que está <br />não vão ter onde se enterrar. <br />- Eu também, antigamente, <br />fui do subúrbio dos indigentes, <br />e uma coisa notei <br />que jamais entenderei: <br />essa gente do Sertão <br />que desce para o litoral, sem razão, <br />fica vivendo no meio da lama, <br />comendo os siris que apanha; <br />pois bem: quando sua morte chega, <br />temos que enterrá-los em terra seca. <br />- Na verdade, seria mais rápido <br />e também muito mais barato <br />que os sacudissem de qualquer ponte <br />dentro do rio e da morte. <br />- O rio daria a mortalha <br />e até um macio caixão de água; <br />e também o acompanhamento <br />que levaria com passo lento <br />o defunto ao enterro final <br />a ser feito no mar de sal. <br />- E não precisava dinheiro, <br />e não precisava coveiro, <br />e não precisava oração <br />e não precisava inscrição. <br />- Mas o que se vê não é isso: <br />é sempre nosso serviço <br />crescendo mais cada dia; <br />morre gente que nem vivia. <br />- E esse povo de lá de riba <br />de Pernambuco, da Paraíba, <br />que vem buscar no Recife <br />poder morrer de velhice, <br />encontra só, aqui chegando, <br />cemitério esperando. <br />- Não é viagem o que fazem <br />vindo por essas caatingas, vargens; <br />aí está o seu erro: <br />vêm é seguindo seu próprio enterro <br />11 - O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE <br />- Nunca esperei muita coisa, <br />é preciso que eu repita. <br />Sabia que no rosário <br />de cidade e de vilas, <br />e mesmo aqui no Recife <br />ao acabar minha descida, <br />não seria diferente <br />a vida de cada dia: <br />que sempre pás e enxadas <br />foices de corte e capina, <br />ferros de cova, estrovengas <br />o meu braço esperariam. <br />Mas que se este não mudasse <br />seu uso de toda vida, <br />esperei, devo dizer, <br />que ao menos aumentaria <br />na quartinha, a água pouca, <br />dentro da cuia, a farinha, <br />o algodãozinho da camisa, <br />ao meu aluguel com a vida. <br />E chegando, aprendo que, <br />nessa viagem que eu fazia, <br />sem saber desde o Sertão, <br />meu próprio enterro eu seguia. <br />Só que devo ter chegado <br />adiantado de uns dias; <br />o enterro espera na porta: <br />o morto ainda está com vida. <br />A solução é apressar <br />a morte a que se decida <br />e pedir a este rio, <br />que vem também lá de cima, <br />que me faça aquele enterro <br />que o coveiro descrevia: <br />caixão macio de lama, <br />mortalha macia e líquida, <br />coroas de baronesa <br />junto com flores de aninga, <br />e aquele acompanhamento <br />de água que sempre desfila <br />(que o rio, aqui no Recife, <br />não seca, vai toda a vida). <br />12 - APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO <br />- Seu José, mestre carpina, <br />que habita este lamaçal, <br />sabes me dizer se o rio <br />a esta altura dá vau? <br />sabes me dizer se é funda <br />esta água grossa e carnal? <br />- Severino, retirante, <br />jamais o cruzei a nado; <br />quando a maré está cheia <br />vejo passar muitos barcos, <br />barcaças, alvarengas, <br />muitas de grande calado. <br />- Seu José, mestre carpina, <br />para cobrir corpo de homem <br />não é preciso muito água: <br />basta que chega o abdome, <br />basta que tenha fundura <br />igual à de sua fome. <br />- Severino, retirante <br />pois não sei o que lhe conte; <br />sempre que cruzo este rio <br />costumo tomar a ponte; <br />quanto ao vazio do estômago, <br />se cruza quando se come. <br />- Seu José, mestre carpina, <br />e quando ponte não há? <br />quando os vazios da fome <br />não se tem com que cruzar? <br />quando esses rios sem água <br />são grandes braços de mar? <br />- Severino, retirante, <br />o meu amigo é bem moço; <br />sei que a miséria é mar largo, <br />não é como qualquer poço: <br />mas sei que para cruzá-la <br />vale bem qualquer esforço. <br />- Seu José, mestre carpina, <br />e quando é fundo o perau? <br />quando a força que morreu <br />nem tem onde se enterrar, <br />por que ao puxão das águas <br />não é melhor se entregar? <br />- Severino, retirante, <br />o mar de nossa conversa <br />precisa ser combatido, <br />sempre, de qualquer maneira, <br />porque senão ele alarga <br />e devasta a terra inteira. <br />- Seu José, mestre carpina, <br />e em que nos faz diferença <br />que como frieira se alastre, <br />ou como rio na cheia, <br />se acabamos naufragados <br />num braço do mar miséria? <br />- Severino, retirante, <br />muita diferença faz <br />entre lutar com as mãos <br />e abandoná-las para trás, <br />porque ao menos esse mar <br />não pode adiantar-se mais. <br />- Seu José, mestre carpina, <br />e que diferença faz <br />que esse oceano vazio <br />cresça ou não seus cabedais <br />se nenhuma ponte mesmo <br />é de vencê-lo capaz? <br />- Seu José, mestre carpina, <br />que lhe pergunte permita: <br />há muito no lamaçal <br />apodrece a sua vida? <br />e a vida que tem vivido <br />foi sempre comprada à vista? <br />- Severino, retirante, <br />sou de Nazaré da Mata, <br />mas tanto lá como aqui <br />jamais me fiaram nada: <br />a vida de cada dia <br />cada dia hei de comprá-la. <br />- Seu José, mestre carpina, <br />e que interesse, me diga, <br />há nessa vida a retalho <br />que é cada dia adquirida? <br />espera poder um dia <br />comprá-la em grandes partidas? <br />- Severino, retirante, <br />não sei bem o que lhe diga: <br />não é que espere comprar <br />em grosso tais partidas, <br />mas o que compro a retalho <br />é, de qualquer forma, vida. <br />- Seu José, mestre carpina, <br />que diferença faria <br />se em vez de continuar <br />tomasse a melhor saída: <br />a de saltar, numa noite, <br />fora da ponte e da vida? <br />13 - UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ <br />- Compadre José, compadre, <br />que na relva estais deitado: <br />conversais e não sabeis <br />que vosso filho é chegado? <br />Estais aí conversando <br />em vossa prosa entretida: <br />não sabeis que vosso filho <br />saltou para dentro da vida? <br />Saltou para dento da vida <br />ao dar o primeiro grito; <br />e estais aí conversando; <br />pois sabeis que ele é nascido. <br />14 - APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS, ETC <br />- Todo o céu e a terra <br />lhe cantam louvor. <br />Foi por ele que a maré <br />esta noite não baixou. <br />- Foi por ele que a maré <br />fez parar o seu motor: <br />a lama ficou coberta <br />e o mau-cheiro não voou. <br />- E a alfazema do sargaço, <br />ácida, desinfetante, <br />veio varrer nossas ruas <br />enviada do mar distante. <br />- E a língua seca de esponja <br />que tem o vento terral <br />veio enxugar a umidade <br />do encharcado lamaçal. <br />- Todo o céu e a terra <br />lhe cantam louvor <br />e cada casa se torna <br />num mocambo sedutor. <br />- Cada casebre se torna <br />no mocambo modelar <br />que tanto celebram os <br />sociólogos do lugar. <br />- E a banda de maruins <br />que toda noite se ouvia <br />por causa dele, esta noite, <br />creio que não irradia. <br />- E este rio de água, cega, <br />ou baça, de comer terra, <br />que jamais espelha o céu, <br />hoje enfeitou-se de estrelas. <br />15 - COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO <br />- Minha pobreza tal é <br />que não trago presente grande: <br />trago para a mãe caranguejos <br />pescados por esses mangues; <br />mamando leite de lama <br />conservará nosso sangue. <br />- Minha pobreza tal é <br />que coisa alguma posso ofertar: <br />somente o leite que tenho <br />para meu filho amamentar; <br />aqui todos são irmãos, <br />de leite, de lama, de ar. <br />- Minha pobreza tal é <br />que não tenho presente melhor: <br />trago este papel de jornal <br />para lhe servir de cobertor; <br />cobrindo-se assim de letras <br />vai um dia ser doutor. <br />- Minha pobreza tal é <br />que não tenho presente caro: <br />como não posso trazer <br />um olho d'água de Lagoa do Cerro, <br />trago aqui água de Olinda, <br />água da bica do Rosário. <br />- Minha pobreza tal é <br />que grande coisa não trago: <br />trago este canário da terra <br />que canta sorrindo e de estalo. <br />- Minha pobreza tal é <br />que minha oferta não é rica: <br />trago daquela bolacha d'água <br />que só em Paudalho se fabrica. <br />- Minha pobreza tal é <br />que melhor presente não tem: <br />dou este boneco de barro <br />de Severino de Tracunhaém. <br />- Minha pobreza tal é <br />que pouco tenho o que dar: <br />dou da pitu que o pintor Monteiro <br />fabricava em Gravatá. <br />- Trago abacaxi de Goiana <br />e de todo o Estado rolete de cana. <br />- Eis ostras chegadas agora, <br />apanhadas no cais da Aurora. <br />- Eis tamarindos da Jaqueira <br />e jaca da Tamarineira. <br />- Mangabas do Cajueiro <br />e cajus da Mangabeira. <br />- Peixe pescado no Passarinho, <br />carne de boi dos Peixinhos. <br />- Siris apanhados no lamaçal <br />que já no avesso da rua Imperial. <br />- Mangas compradas nos quintais ricos <br />do Espinheiro e dos Aflitos. <br />- Goiamuns dados pela gente pobre <br />da Avenida Sul e da Avenida Norte<br />16 - FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS <br />- Atenção peço, senhores, <br />para esta breve leitura: <br />somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura. <br />Vou dizer todas as coisas <br />que desde já posso ver <br />na vida desse menino <br />acabado de nascer: <br />aprenderá a engatinhar <br />por aí, com aratus, <br />aprenderá a caminhar <br />na lama, como goiamuns, <br />e a correr o ensinarão <br />os anfíbios caranguejos, <br />pelo que será anfíbio <br />como a gente daqui mesmo. <br />Cedo aprenderá a caçar: <br />primeiro, com as galinhas, <br />que é catando pelo chão <br />tudo o que cheira a comida; <br />depois, aprenderá com <br />outras espécies de bichos: <br />com os porcos nos monturos, <br />com os cachorros no lixo. <br />Vejo-o, uns anos mais tarde, <br />na ilha do Maruim, <br />vestido negro de lama, <br />voltar de pescar siris; <br />e vejo-o, ainda maior, <br />pelo imenso lamarão <br />fazendo dos dedos iscas <br />para pescar camarão. <br />- Atenção peço, senhores, <br />também para minha leitura: <br />também venho dos Egitos, <br />vou completar a figura. <br />Outras coisas que estou vendo <br />é necessário que eu diga: <br />não ficará a pescar <br />de jereré toda a vida. <br />Minha amiga se esqueceu <br />de dizer todas as linhas; <br />não pensem que a vida dele <br />há de ser sempre daninha. <br />Enxergo daqui a planura <br />que é a vida do homem de ofício, <br />bem mais sadia que os mangues, <br />tenha embora precipícios. <br />Não o vejo dentro dos mangues, <br />vejo-o dentro de uma fábrica: <br />se está negro não é lama, <br />é graxa de sua máquina, <br />coisa mais limpa que a lama <br />do pescador de maré <br />que vemos aqui vestido <br />de lama da cara ao pé. <br />E mais: para que não pensem <br />que em sua vida tudo é triste, <br />vejo coisa que o trabalho <br />talvez até lhe conquiste: <br />que é mudar-se destes mangues <br />daqui do Capibaribe <br />para um mocambo melhor <br />nos mangues do Beberibe. <br />17 - FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES, ETC <br />- De sua formosura <br />já venho dizer: <br />é um menino magro, <br />de muito peso não é, <br />mas tem o peso de homem, <br />de obra de ventre de mulher. <br />- De sua formosura <br />deixai-me que diga: <br />é uma criança pálida, <br />é uma criança franzina, <br />mas tem a marca de homem, <br />marca de humana oficina. <br />- Sua formosura <br />deixai-me que cante: <br />é um menino guenzo <br />como todos os desses mangues, <br />mas a máquina de homem <br />já bate nele, incessante. <br />- Sua formosura <br />eis aqui descrita: <br />é uma criança pequena, <br />enclenque e setemesinha, <br />mas as mãos que criam coisas <br />nas suas já se adivinha. <br />- De sua formosura <br />deixai-me que diga: <br />é belo como o coqueiro <br />que vence a areia marinha. <br />- De sua formosura <br />deixai-me que diga: <br />belo como o avelós <br />contra o Agreste de cinza. <br />- De sua formosura <br />deixai-me que diga: <br />belo como a palmatória <br />na caatinga sem saliva. <br />- De sua formosura <br />deixai-me que diga: <br />é tão belo como um sim <br />numa sala negativa. <br />- É tão belo como a soca <br />que o canavial multiplica. <br />- Belo porque é uma porta <br />abrindo-se em mais saídas. <br />- Belo como a última onda <br />que o fim do mar sempre adia. <br />- É tão belo como as ondas <br />em sua adição infinita. <br />- Belo porque tem do novo <br />a surpresa e a alegria. <br />- Belo como a coisa nova <br />na prateleira até então vazia. <br />- Como qualquer coisa nova <br />inaugurando o seu dia. <br />- Ou como o caderno novo <br />quando a gente o principia. <br />- E belo porque o novo <br />todo o velho contagia. <br />- Belo porque corrompe <br />com sangue novo a anemia. <br />- Infecciona a miséria <br />com vida nova e sadia. <br />- Com oásis, o deserto, <br />com ventos, a calmaria. <br />18 - O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE DE NADA <br />- Severino, retirante, <br />deixe agora que lhe diga: <br />eu não sei bem a resposta <br />da pergunta que fazia, <br />se não vale mais saltar <br />fora da ponte e da vida; <br />nem conheço essa resposta, <br />se quer mesmo que lhe diga <br />é difícil defender, <br />só com palavras, a vida, <br />ainda mais quando ela é <br />esta que vê, severina <br />mas se responder não pude <br />à pergunta que fazia, <br />ela, a vida, a respondeu <br />com sua presença viva. <br />E não há melhor resposta <br />que o espetáculo da vida: <br />vê-la desfiar seu fio, <br />que também se chama vida, <br />ver a fábrica que ela mesma, <br />teimosamente, se fabrica, <br />vê-la brotar como há pouco <br />em nova vida explodida; <br />mesmo quando é assim pequena <br />a explosão, como a ocorrida; <br />como a de há pouco, franzina; <br />mesmo quando é a explosão <br />de uma vida severina. <br />Filme:• Morte e Vida Severina<br />Direção: Zelito Vianna – Brasil, 1976. <br />O filme nos faz pensar sobre uma condição de vida miserável que existe para milhares de brasileiros e que é geralmente ignorada (temos muita coisa para fazer na esfera privada, e quando nos sentimos culpados, reclamamos, doamos roupas, alimentos e dinheiro que geralmente são desviados e nos fantasiamos de jovens revolucionários, ora pregadores da reforma agrária, ora temerosos em perder os privilégios). Belas paisagens, sem contar com a excelente interpretação dos os atores.<br />http://www.detetivez.hpg.ig.com.br/literatura/resumo_livro/severina2.htm<br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />José Paulo Paes <br />(Taquaritinga SP 1926 - São Paulo SP 1998) <br />Publicou seu primeiro livro de poesia, O Aluno, em 1947. No ano seguinte completou o curso superior de Química Industrial em Curitiba PR. No período, colaborou na revista Joaquim e participou no II Congresso Brasileiro de Escritores, em Belo Horizonte MG, como membro da delegação do Paraná. Nas décadas posteriores foi colaborador de vários periódicos, entre os quais Folha de S.Paulo, Jornal de Notícias e Revista Brasiliense. Em 1967 organizou, com Massaud Moisés, o Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira. Foi tradutor prestigiado; verteu para o português obras de escritores como Laurence Sterne, Lewis Carroll e Nikos Kazantzákis. Em 1987 tornou-se diretor da oficina de tradução de poesia no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Publicou diversos livros de ensaio, além de obras para crianças; foi laureado com prêmios como o Jabuti de Literatura Infantil, concedido em 1991 para seu livro Poemas para Brincar. Sua obra poética inclui os livros Meia Palavra (1973), Resíduo (1980), A meu Esmo (1995) e Socráticas (2001), entre outros. Sobre a poesia de José Paulo Paes, que é de tendência contemporânea, afirmou o crítico Alfredo Bosi: “o metro curto, o ritmo rápido, a sintaxe cortada e o tom menor vedam o texto a qualquer inflexão épica. (...) Canto chão dos revoltosos, epitáfio de indomados, descobre o lado subterrâneo da sátira e o veio amargo do seu pathos." <br />Passarinho Fofoqueiro<br />Um passarinho me contou <br />que a ostra é muito fechada, <br />que a cobra émuito enrolada, <br />que a arara é uma cabeça oca, <br />e que o leão marinho e a foca.. <br />xô , passarinho! chega de fofoca! <br />Acidente<br />Atirei um pau no gato, <br />mas o gato <br />não morreu, <br />porque o pau pegou no rato <br />que eu tentei salvar do gato <br />e o rato <br />(que chato!) <br />foi quem porreu.<br />Convite<br />Poesia <br />é brincar com palavras <br />como se brinca <br />com bola, papagaio, pião. <br />Só que <br />bola, papagaio,pião <br />de tanto brincar <br />se gastam. <br />As palavras não: <br />quanto mais se brinca <br />com elas <br />mais novas ficam. <br />Como a água do rio <br />que é água sempre nova. <br />Como cada dia <br />que é sempre um novo dia. <br />Vamos brincar de poesia? <br />Acima de Qualquer Suspeita<br />a poesia está morta <br />mas juro que não fui eu <br />eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la <br />imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres car- <br />los drummond de andrade manuel bandeira murilo <br />mendes vladmir maiakóvski joão cabral de melo neto <br />paul éluard oswald de andrade guillaume appolinaire <br />sosígenes costa bertolt brecht augusto de campos <br />não adiantou nada <br />em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou <br />incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada <br />de ferro araraquarense <br />porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro <br />araraquarense foi extinta e josé paulo paes parece <br />nunca ter existido <br />nem eu <br />Elegia Holandesa<br />águamolepedradura <br />águaáolepedradura <br />águaáglepedradura <br />águaáguepedradura <br />águaáguapedradura <br />águaáguaáedradura <br />águaáguaágdradura <br />águaáguaáguradura <br />águaáguaáguaadura <br />águaáguaáguaádura <br />águaáguaáguaágura <br />águaáguaáguaágura <br />águaáguaáguaáguaa <br />águaáguaáguaáguaá<br />Lisboa: Aventuras<br />tomei um expresso <br />cheguei de foguete <br />subi num bonde <br />desci de um elétrico <br />pedi cafezinho <br />serviram-me uma bica <br />quis comprar meias <br />só vendiam peúgas <br />fui dar à descarga <br />disparei um autoclisma <br />gritei "ó cara!" <br />responderam-me "ó pá!" <br />positivamente <br />as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá <br />Anatomia do Monólogo<br />ser ou não ser?<br />er ou não er?<br />r ou não r?<br />ou não?<br />onã?<br />Madrigal<br />Meu amor é simples, Dora,<br />Como a água e o pão.<br />Como o céu refletido<br />Nas pupilas de um cão.<br />L'Affaire Sardinha<br />O bispo ensinou ao bugre<br />Que pão não é pão, mas Deus<br />Presente na eucaristia.<br />E como um dia faltasse<br />Pão do bugre, ele comeu<br />O bispo, eucaristicamente.<br />Bucólica<br />O camponês sem terra<br />Detêm a charrua<br />E pensa em colheitas<br />Que nunca serão suas.<br />Epitáfio para Rui<br />... e tenho dito<br />Bravos!<br />(mas o que foi mesmo que ele disse?)<br />Um Sonho Americano<br />CIA limitada A Verdadeira Festa (12 de junho - namorados)<br />mas pra que fogueira<br />rojão<br />quentão?<br />basta o fogo nas veias<br />e a escuridão<br />coração.<br />Curitiba<br />O inventor no estado<br />era um pinheiro inabalável<br />inabaláveis pinheiros igualmente<br />o secretário da segurança pública<br />o presidente da academia de letras<br />o dono do jornal<br />o bispo o arcebispo o magnífico reitor<br />ah se naqueles tempos<br />a gente tivesse<br />(armando glauco dalton)<br />um bom machado!<br />Pisa: A torre<br />em vão se inclinas pedagogicamente<br />o mundo jamais compreenderá a abliqüidade dos<br />bêbados ou o mergulho dos suicidas.<br />EPITÁFIO PARA UM BANQUEIRO<br />negócio<br />ego<br />ócio<br />cio<br />o<br />CANÇÃO DO ADOLESCENTE<br />Se mais bem olhardes<br />notareis que as rugas<br />umas são postiças<br />outras literárias.<br />Notareis ainda<br />o que mais escondo:<br />a descontinuidade<br />do meu corpo híbrido.<br />Quando corto a rua<br />para me ocultar<br />as mulheres riem<br />(sempre tão agudas!)<br />do meu corpo.<br />Que força macabra<br />misturou pedaços<br />de criança e homem<br />para me criar?<br />Se quereis salvar-me<br />desta anatomia,<br />batizai-me depressa<br />com as inefáveis<br />as assustadoras<br />águas do mundo.<br />OUTRO RETRATO<br />O laço de fita<br />que prende os cabelos<br />da moça do retrato<br />mais parece uma borboleta.<br />Um ventinho qualquer<br />e sai voando<br />rumo a outra vida<br />além do retrato.<br />Uma vida onde os maridos<br />nunca chegam tarde<br />com um gosto amargo<br />na boca.<br />À TINTA DE ESCREVER<br />Ao teu azul fidalgo mortifica<br />registrar a notícia, escrever<br />o bilhete, assinar a promissória<br />esses filhos do momento. Sonhas<br />mais duradouro o pergaminho<br />onde pudesses, arte longa em vida breve<br />inscrever, vitríolo o epigrama, lágrima<br />a elegia, bronze a epopéia.<br />Mas já que o duradouro de hoje nem<br />espera a tinta do jornal secar,<br />firma, azul, a tua promissória<br />ao minuto e adeus que agora é tudo História.<br />Raridade<br />A arara<br />é uma ave rara<br />pois o homem não pára<br />de ir ao mato caçá-la<br />para a pôr na sala<br />em cima de um poleiro<br />onde ela fica o dia inteiro<br />fazendo escarcéu<br />porque já não pode voar pelo céu.<br />E se o homem não pára<br />de caçar arara,<br />hoje uma ave rara,<br />ou a arara some<br />ou então muda seu nome<br />para arrara.<br />Poética<br /><br />Não sei palavras dúbias. Meu sermão<br />Chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão.<br /><br />Com duas mãos fraternas, cumplicio<br />A ilha prometida à proa do navio.<br /><br />A posse é-me aventura sem sentido.<br />56 compreendo o pão se dividido.<br /><br />Não brinco de juiz, não me disfarço em réu.<br />Aceito meu inferno, mas falo do meu céu<br />Canção do Exílio Facilitada<br />... sabiá<br />...papá<br />...maná<br />... sofá<br />... sinhá<br />... cá? <br />bah!<br />MUNDO NOVO<br />Como estás vendo, não valeu a pena tanto esforço:<br />a urgência na construção da Arca<br />o rigor na escolha dos sobreviventes<br />a monotonia da vida a bordo desde os primeiros dias<br />a carestia aceita com resmungos nos últimos dias<br />os olhos cansados de buscar um sol continuamente adiado.<br />E no entanto sabias de antemão que seria assim. Sabias que a pomba iria trazer não um ramo de oliva mas de espinheiro.<br />Sabias e não disseste nada a nós, teus tripulantes, que ora vês lavrando com as mesmas enxadas de Caim e Abel a terra mal enxuta do Dilúvio.<br />Aliás, se nos dissesses, nós não te acreditaríamos.<br />A CASA<br />Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.<br />Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com corações de purpurina.<br />Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo.<br />Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos.<br />No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.<br />Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão.<br />Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.<br />Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.<br />No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.<br />E no telhado um menino medroso que espia todos eles; só que está vivo: trouxe- até ali o pássaro dos sonhos.<br />Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.<br />Antes que ele acorde e se descubra também morto.<br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Lêdo Ivo <br />(Maceió AL 1924) <br />Publicou seu primeiro livro de poesia, As Imaginações, em 1944. Na época, cursava Direito na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro RJ. Nas décadas seguintes publicou 5 romances, 14 livros de ensaios sobre literatura e traduziu poemas das obras de Guy de Maupassant, Rimbaud e Dostoiévski. Em 1957 ocorreu a publicação de seu livro de crônicas A Cidade e os Dias. Escreveu também uma novela, O Sobrinho do General, lançada em 1964. Seu livro de poesia Finisterra (1972) recebeu vários prêmios, entre os quais o Prêmio Jabuti de Poesia, em 1973. Em 1982 recebeu o Prêmio Mário de Andrade, pelo conjunto de obra, concedido pela Academia Brasileira de Letras. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1986. Recebeu, em 1991, o Troféu Juca Pato - Intelectual do Ano, concedido pela União Brasileira dos Escritores. Entre suas obras poéticas estão Cântico (1949), Magias (1960), O Sinal Semafórico (1974), Crepúsculo Viril (1990) e O Rumor da Noite (2000). A poesia de Lêdo Ivo filia-se à terceira geração do Modernismo. Para o crítico Carlos Montemayor, "como todos os poetas da sua geração, Lêdo Ivo tem uma alta consciência da linguagem; porém a sua consciência é muito mais ampla, uma consciência amazônica que implica não só o seu envolvimento, mas também a sua libertação, sua erupção, suas explosões flamejantes”.<br />Acontecimento do Soneto<br /><br />À doce sombra dos cancioneiros<br />em plena juventude encontro abrigo.<br />Estou farto do tempo, e não consigo<br />cantar solenemente os derradeiros<br /><br />versos de minha vida, que os primeiros<br />foram cantados já, mas sem o antigo<br />acento de pureza ou de perigo<br />de eternos cantos, nunca passageiros.<br /><br />Sôbolos rios que cantando vão<br />a lírica imortal do degredado<br />que, estando em Babilônia, quer Sião, <br /><br />irei, levando uma mulher comigo,<br />e serei, mergulhado no passado, <br />cada vez mais moderno e mais antigo.<br />Canto Grande<br /><br />Não tenho mais canções de amor.<br />Joguei tudo pela janela. <br />Em companhia da linguagem <br />fiquei, e o mundo se elucida.<br /><br />Do mar guardei a melhor onda<br />que é menos móvel que o amor.<br />E da vida, guardei a dor<br />de todos os que estão sofrendo.<br /><br />Sou um homem que perdeu tudo<br />mas criou a realidade, <br />fogueira de imagens, depósito<br />de coisas que jamais explodem.<br /><br />De tudo quero o essencial:<br />o aqueduto de uma cidade, <br />rodovia do litoral, <br />o refluxo de uma palavra.<br /><br />Longe dos céus, mesmo dos próximos,<br />e perto dos confins da terra, <br />aqui estou. Minha canção<br />enfrenta o inverno, é de concreto.<br /><br />Meu coração está batendo<br />sua canção de amor maior.<br />Bate por toda a humanidade,<br />em verdade não estou só.<br /><br />Posso agora comunicar-me<br />e sei que o mundo é muito grande.<br />Pela mão, levam-me as palavras<br />a geografias absolutas.<br />Soneto Presunçoso<br /><br />Que forma luminosa me acompanha<br />quando, entre o lusco e o fusco, bebo a voz<br />do meu tempo perdido, e um rio banha<br />tudo o que caminhei da fonte à foz?<br /><br />Dos homens desde o berço enfrento a sanha<br />que os difere da abelha e do albatroz.<br />Meu irmão, meu algoz! No perde-e-ganha<br />quem ganhou, quem perdeu, não fomos nós.<br /><br />O mundo nada pesa. Atlas, sinto<br />a leveza dos astros nos meus ombros.<br />Minha alma desatenta é mais pesada.<br /><br />Quer ganhe ou perca, sou verdade e minto.<br />Se pergunto, a resposta é dos assombros.<br />No sol a pino finjo a madrugada.<br />Planta de Maceió<br /><br />O vento do mar rói as casas e os homens.<br />Do nascimento à morte, os que moram aqui<br />andam sempre cobertos por leve mortalha<br />de mormaço e salsugem. Os dentes do mar<br />mordem, dia e noite, os que não procuram<br />esconder-se no ventre dos navios<br />e se deixam sugar por um sol de areia.<br />Penetrada nas pedras, a maresia<br />cresta o pêlo dos ratos perdulários<br />que, nos esgotos, ouvem o vômito escuro<br />do oceano esvaído em bolsões de mangue<br />e sonham os celeiros dos porões dos cargueiros.<br />Foi aqui que nasci, onde a luz do farol<br />cega a noite dos homens e desbota as corujas.<br />A ventania lambe as dragas podres,<br />entra pelas persianas das casas sufocadas<br />e escalavra as dunas mortuárias<br />onde os beiços dos mortos bebem o mar.<br />Mesmo os que se amam nesta terra de ódios<br />são sempre separados pela brisa<br />que semeia a insônia nas lacraias<br />e adultera a fretagem dos navios.<br />Este é o meu lugar, entranhado em meu sangue<br />como a lama no fundo da noite lacustre.<br />E por mais que me afaste, estarei sempre aqui<br />e serei este vento e a luz do farol,<br />e minha morte vive na cioba encurralada.<br />Os Peixes<br /><br />Os peixes estão no lago, os dardos escondidos.<br />Entre as pedras e o lodo eles avançam<br />túrgidos como o amor.<br />Venha a mão do desejo turvar a água clara<br />e eles serão o amor, o sol que penetra em gretas<br />nupciais,<br />as espadas cobertas de saliva. <br />Haicai<br /><br />Noite de Domingo<br /><br />Acabou-se a festa.<br />Resta, no silêncio, <br />o rumor da floresta.<br />O Lago Habitado<br /><br />Na água trêmula<br />freme a pálida<br />anêmona.<br />A Marmita<br /><br />Em sua marmita <br />não leva o operário <br />qualquer metafísica. <br />Leva peixe frito, <br />arroz e feijão.<br />Dentro dela tudo<br />tem lugar marcado.<br />Tudo é limitado <br />e nada é infinito. <br />A caneca d'água <br />tem espaço apenas <br />para a sua sede. <br />E a marmita é igual <br />à boca do estômago, <br />feita sob medida <br />para a sua fome. <br />E quando termina <br />sua refeição,<br />ele ainda cata<br />todas as migalhas, <br />todo esse farelo <br />de um pão que suasse <br />durante o trabalho.<br />Tudo quanto ganha <br />o operário aplica <br />como um capital <br />em sua marmita.<br />E o que ele não ganha <br />embora trabalhe <br />é outro capital <br />que também investe: <br />palavra que diz <br />em seu sindicato, <br />frase que se escreve <br />no muro da fábrica, <br />visão do futuro <br />que nasce em seus olhos <br />que só com fumaça <br />se enchem de lágrimas. <br />Em sua marmita <br />não leva o operário <br />o caviar de <br />qualquer metafísica. <br />E sendo ele o mais <br />exato dos homens<br />tudo nele é físico<br />e material,<br />tem seu nome e forma, <br />seu peso e volume,<br />pode-se pegar.<br />Seu amor tem saia <br />pêlos e mucosas<br />e, fecundo, faz <br />novos operários. <br />As coisas se medem <br />pelo seu tamanho:<br />sono, mesa, trave. <br />No trem ou no bonde<br />nenhum operário <br />pode se espalhar<br />sem fazer esforço. <br />É como no mundo:<br />— tem que empurrar.<br />Vasilhame cheio <br />de matéria justa, <br />sua vida é exata <br />como uma marmita. <br />Nela cabe apenas <br />toda a sua vida. <br />E não cabe a morte <br />que esta não existe, <br />não sendo manual,<br />não sendo uma peça <br />de recauchutar. <br />(Artigo infinito, <br />sem ferro e sem aço, <br />qualquer um a embrulha <br />sem usar barbante <br />ou papel almaço.)<br />Fabril e imanente <br />o operário vive <br />do que sabe e faz <br />e, sendo vivente, <br />respira o que vê. <br />O tempo que o suja <br />de óleo e fuligem <br />é o mesmo que o lava, <br />tempo feito de água <br />aberta na tarde <br />e não de relógio. <br />E a própria marmita <br />também é lavada. <br />E quando ele a leva <br />de volta pra casa <br />ela, metal, cheira <br />menos a comida <br />do que a operário.<br />Os Morcegos <br /><br />Os morcegos se escondem entre as cornijas <br />da alfândega. Mas onde se escondem os homens, <br />que contudo voam a vida inteiro no escuro, <br />chocando-se contra as paredes brancas do amor?<br /><br />A casa de nosso pai era cheia de morcegos <br />pendentes, como luminárias, dos velhos caibros <br />que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas.<br />"Estes filhos chupam o nosso sangue", suspirava meu pai.<br /><br />Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero <br />que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos <br />(meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige <br />o suor do semelhante mesmo na escuridão?<br /><br />No halo de um seio jovem como a noite<br />esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz<br />do farol<br />o homem guarda as moedas douradas de seu amor.<br />Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda<br />o dia ofendido.<br /><br />Ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos)<br />a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas. <br />Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos.<br />E entre os <br />nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.<br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />As cerejas - Lygia Fagundes Telles<br />Aquela gente teria mesmo existido? Madrinha tecendo a cortina de crochê com um anjinho a esvoaçar por entre rosas, a pobre Madrinha sempre afobada, piscando os olhinhos estrábicos, “vocês não viram onde deixei meus óculos?” A preta Dionísia a bater as claras de ovos em ponto de neve, a voz ácida contrastando com a doçura dos cremes, “esta receita é nova...” Tia Olívia enfastiada e lânguida, abanando-se com uma ventarola chinesa, a voz pesada indo e vindo ao embalo da rede, “fico exausta no calor...” Marcelo muito louro - por que não me lembro da voz dele? - agarrado à crina do cavalo, agarrado à cabeleira de tia Olívia, os dois tombando lividamente azuis sobre o divã. “Você levou as velas à tia Olívia?”, perguntou Madrinha lá embaixo. O relâmpago apagou-se. E no escuro que se fez, veio como resposta o ruído das cerejas se despencando no chão.<br />A casa em meio do arvoredo, o rio, as tardes como que suspensas na poeira do ar - desapareceu tudo sem deixar vestígios. Ficaram as cerejas, só elas resistiram com sua vermelhidão de loucura. Basta abrir a gaveta: algumas foram roídas por alguma barata e nessas o algodão estoura, empelotado, não, tia Olívia, não eram de cera, eram de algodão suas cerejas vermelhas.<br />Ela chegou inesperadamente. Um cavaleiro trouxe o recado do chefe da estação pedindo a charrete para a visita que acabara de desembarcar.<br />- É Olívia! - exclamou Madrinha. - É a prima! Alberto escreveu dizendo que ela viria, mas não disse quando, ficou de avisar. Eu ia mudar as cortinas, bordar umas fronhas e agora!... Justo Olívia. Vocês não podem fazer idéia, ela é de tanto luxo e a casa aqui é tão simples, não estou preparada, meus céus! O que é que eu faço, Dionísia, me diga agora o que é que eu faço!<br />Dionísia folheava tranqüilamente um livro de receitas. Tirou um lápis da carapinha tosada e marcou a página com uma cruz. <br />- Como se já não bastasse esse menino que também chegou sem aviso...<br />O menino era Marcelo. Tinha apenas dois anos mais do que eu mas era tão alto e parecia tão adulto com suas belas roupas de montaria, que tive vontade de entrar debaixo do armário quando o vi pela primeira vez.<br />- Um calor na viagem! - gemeu tia Olívia em meio de uma onda de perfumes e malas. - E quem é este rapazinho?<br />- Pois este é o Marcelo, filho do Romeu - disse Madrinha. - Você não se lembra do Romeu? Primo-irmão do Alberto...<br />Tia Olívia desprendeu do chapeuzinho preto dois grandes alfinetes de pérola em formado de pêra. O galho de cerejas estremeceu no vértice do decote da blusa transparente. Desabotoou o casaco.<br />- Ah, minha querida, Alberto tem tantos parentes, uma família enorme! Imagine se vou me lembrar de todos com esta minha memória. Ele veio passar as férias aqui?<br />Por um breve instante Marcelo deteve em tia Olívia o olhar frio. Chegou a esboçar um sorriso, aquele mesmo sorriso que tivera quando Madrinha, na sua ingênua excitação, nos apresentou a ambos, “pronto, Marcelo, aí está sua priminha, agora vocês poderão brincar juntos”. Ele então apertou um pouco os olhos. E sorriu. <br />- Não estranhe, Olívia, que ele é por demais arisco - segredou Madrinha ao ver que Marcelo saía abruptamente da sala. - Se trocou comigo meia dúzia de palavras, foi muito. Aliás, toda a gente de Romeu é assim mesmo, são todos muito esquisitos. Esquisitíssimos!<br />Tia Olívia ajeitou com as mãos em concha o farto coque preso na nuca. Umedeceu os lábios com a ponta da língua.<br />- Tem charme...<br />Aproximei-me fascinada. Nunca tinha visto ninguém como tia Olívia, ninguém com aqueles olhos pintados de verde e com aquele decote assim fundo.<br />- É de cera? - perguntei tocando-lhe uma das cerejas. <br />Ela acariciou-me a cabeça com um gesto distraído. Senti bem de perto seu perfume. <br />- Acho que sim, querida. Por quê? Você nunca viu cerejas?<br />- Só na folhinha.<br />Ela teve um risinho cascateante. No rosto muito branco a boca parecia um largo talho aberto, com o mesmo brilho das cerejas.<br />- Na Europa são tão carnudas, tão frescas.<br />Marcelo também tinha estado na Europa com o avô. Seria isso? Seria isso que os fazia infinitamente superiores a nós? Pareciam feitos de outra carne e pertencer a um outro mundo tão acima do nosso, ah! como éramos pobres e feios. Diante de Marcelo e tia Olívia, só diante dos dois é que eu pude avaliar como éramos pequenos: eu, de unhas roídas e vestidos feitos por Dionísia, vestidos que pareciam as camisolas das bonecas de jornal que Simão recortava com a tesoura do jardim. Madrinha, completamente estrábica e tonta em meio das suas rendas e crochês. Dionísia, tão preta quanto enfatuada com as tais receitas secretas.<br />- Não quero é dar trabalho - murmurou tia Olívia dirigindo-se ao quarto. Falava devagar, andava devagar. Sua voz foi se afastando com a mansidão de um gato subindo a escada. - Cansei-me muito, querida. Preciso apenas de um pouco de sossego...<br />Agora só se ouvia a voz de Madrinha que tagarelava sem parar: a chácara era modesta, modestíssima, mas ela haveria de gostar, por que não? O clima era uma maravilha e o pomar nessa época do ano estava coalhado de mangas. Ela não gostava de mangas? Não?... Tinha também bons cavalos se quisesse montar, Marcelo poderia acompanhá-la, era um ótimo cavaleiro, vivia galopando dia e noite. Ah, o médico proibira? Bem, os passeios a pé também eram lindos, havia no fim do caminho dos bambus um lugar ideal para piqueniques, ela não achava graça num piquenique?<br />Fui para a varanda e fiquei vendo as estrelas por entre a folhagem da paineira. Tia Olívia devia estar sorrindo, a umedecer com a ponta da língua os lábios brilhantes. Na Europa eram tão carnudas... Na Europa.<br />Abri a caixa de sabonete escondida sob o tufo de samambaia. O escorpião foi saindo penosamente de dentro. Deixei-o caminhar um bom pedaço e só quando ele atingiu o centro da varanda é que me decidi a despejar a gasolina. Acendi o fósforo. As chamas azuis subiram num círculo fechado. O escorpião rodou sobre si mesmo, erguendo-se nas patas traseiras, procurando uma saída. A cauda contraiu-se desesperadamente. Encolheu-se. Investiu e recuou em meio das chamas que se apertavam mais.<br />- Será que você não se envergonha de fazer uma maldade dessas?<br />Voltei-me. Marcelo cravou em mim o olhar feroz. Em seguida, avançando para o fogo, esmagou o escorpião no tacão da bota. <br />- Diz que ele se suicida, Marcelo...<br />- Era capaz mesmo quando descobrisse que o mundo está cheio de gente como você.<br />Tive vontade de atirar-lhe a gasolina na cara. Tapei o vidro.<br />- E não adianta ficar furiosa, vamos, olhe para mim! Sua boba. Pare de chorar e prometa que não vai mais judiar dos bichos.<br />Encarei-o. Através das lágrimas ele pareceu-me naquele instante tão belo quanto um deus, um deus de cabelos dourados e botas, todo banhado de luar. Fechei os olhos. Já não me envergonhava das lágrimas, já não me envergonhava de mais nada. Um dia ele iria embora do mesmo modo imprevisto como chegara, um dia ele sairia sem se despedir e desapareceria para sempre. Mas isso também já não tinha importância. Marcelo, Marcelo! chamei. E só meu coração ouviu.<br />Quando ele me tomou pelo braço e entrou comigo na sala, parecia completamente esquecido do escorpião e do meu pranto. Voltou-lhe o sorriso.<br />- Então é essa a famosa tia Olívia? Ah, ah, ah.<br />Enxuguei depressa os olhos na barra da saia.<br />- Ela é bonita, não?<br />Ele bocejou.<br />- Usa um perfume muito forte. E aquele galho de cerejas dependurado no peito. Tão vulgar.<br />- Vulgar?<br />Fiquei chocada. E contestei mas em meio da paixão com que a defendi, senti uma obscura alegria ao perceber que estava sendo derrotada.<br />- E, além do mais, não é meu tipo - concluiu ele voltando o olhar indiferente para o trabalho de crochê que Madrinha deixara desdobrado na cadeira. Apontou para o anjinho esvoaçando entre grinaldas. - Um anjinho cego.<br />- Por que cego? - protestou Madrinha descendo a escada. Foi nessa noite que perdeu os óculos. - Cada idéia, Marcelo!<br />Ele debruçara-se na janela e parecia agora pensar em outra coisa.<br />- Tem dois buracos em lugar dos olhos.<br />- Mas crochê é assim mesmo, menino! No lugar de cada olho deve ficar uma casa vazia - esclareceu ela sem muita convicção. Examinou o trabalho. E voltou-se nervosamente para mim. - Por que não vai buscar o dominó para vocês jogarem uma partida? E vê se encontra meus óculos que deixei por aí.<br />Quando voltei com o dominó, Marcelo já não estava na sala. Fiz um castelo com as pedras. E soprei-o com força. Perdia-o sempre, sempre. Passava as manhãs galopando como louco. Almoçava rapidamente e mal terminava o almoço, fechava-se no quarto e só reaparecia no lanche, pronto para sair outra vez. Restava-me correr ao alpendre para vê-lo seguir em direção à estrada, cavalo e cavaleiro tão colados um ao outro que pareciam formar um corpo só.<br />Como um só corpo os dois tombaram no divã, tão rápido o relâmpago e tão longa a imagem, ele tão grande, tão poderoso, com aquela mesma expressão com que galopava como que agarrado à crina do cavalo, arfando doloridamente na reta final.<br />Foram dias de calor atroz os que antecederam à tempestade. A ansiedade estava no ar. Dionísia ficou mais casmurra. Madrinha ficou mais falante, procurando disfarçadamente os óculos nas latas de biscoitos ou nos potes de folhagens, esgotada a busca em gavetas e armários. Marcelo pareceu-me mais esquivo, mais crispado. Só tia Olívia continuava igual, sonolenta e lânguida no seu negligê branco. Estendia-se na rede. Desatava a cabeleira. E com um movimento brando ia se abanando com a ventarola. Às vezes vinha com as cerejas que se esparramavam no colo polvilhado de talco. Uma ou outra cereja resvalava por entre o rego dos seios e era então engolida pelo decote.<br />- Sofro tanto com o calor...<br />Madrinha tentava animá-la.<br />- Chovendo, Olívia, chovendo você verá como vai refrescar.<br />Ela sorria umedecendo os lábios com a ponta da língua.<br />- Você acha que vai chover?<br />- Mas claro, as nuvens estão baixando, a chuva já está aí. E vai ser um temporal daqueles, só tenho medo é que apanhe esse menino lá fora. Você já viu menino mais esquisito, Olívia? Tão fechado, não? E sempre com aquele arzinho de desprezo.<br />- É da idade, querida. É da idade.<br />- Parecido com o pai. Romeu também tinha essa mesma mania com cavalo.<br />- Ele monta tão bem. Tão elegante.<br />Defendia-o sempre enquanto ele a atacava, mordaz, implacável: “É afetada, esnobe. E como representa, parece que está sempre no palco”. Eu contestava, mas de tal forma que o incitava a prosseguir atacando.<br />Lembro-me de que as primeiras gotas de chuva caíram ao entardecer, mas a tempestade continuava ainda em suspenso, fazendo com que o jantar se desenrolasse numa atmosfera abafada. Densa. Pretextando dor de cabeça, tia Olívia recolheu-se mais cedo. Marcelo, silencioso como de costume, comeu de cabeça baixa. Duas vezes deixou cair o garfo.<br />- Vou ler um pouco - despediu-se assim que nos levantamos.<br />Fui com Madrinha para a saleta. Um raio estalou de repente. Como se esperasse por esse sinal, a casa ficou completamente às escuras enquanto a tempestade desabava.<br />- Queimou o fusível! - gemeu Madrinha. - Vai, filha, vai depressa buscar o maço de velas, mas leva primeiro ao quarto de tia Olívia. E fósforos, não esqueça os fósforos!<br />Subi a escada. A escuridão era tão viscosa, que se eu estendesse a mão poderia senti-la amoitada como um bicho por entre os degraus. Tentei acender a vela mas o vento me envolveu. Escancarou-se a porta do quarto. E em meio do relâmpago que rasgou a treva, vi os dois corpos completamente azuis, tombando enlaçados no divã.<br />Afastei-me cambaleando. Agora as cerejas se despencavam sonoras como enormes bagos de chuva caindo de uma goteira. Fechei os olhos. Mas a casa continuava a rodopiar desgrenhada e lívida com os dois corpos rolando na ventania.<br />- Levou as velas para a tia Olívia? - perguntou Madrinha.<br />Desabei num canto, fugindo da luz do castiçal aceso em cima da mesa. <br />- Ninguém respondeu, ela deve estar dormindo.<br />- E Marcelo?<br />- Não sei, deve estar dormindo também.<br />Madrinha aproximou-se com o castiçal.<br />- Mas que é que você tem, menina? Está doente? Não está com febre? Hem?! Sua testa está queimando... Dionísia, traga uma aspirina, esta menina está com um febrão, olha aí!<br />Até hoje não sei quantos dias me debati esbraseada, a cara vermelha, os olhos vermelhos, escondendo-me debaixo das cobertas para não ver por entre clarões de fogo milhares de cerejas e escorpiões em brasa, estourando no chão.<br />- Foi um sarampo tão forte - disse Madrinha ao entrar certa manhã no quarto. - E como você chorava, dava pena ver como você chorava! Nunca vi um sarampo doer tanto assim.<br />Sentei-me na cama e fiquei olhando uma borboleta branca pousada no pote de avencas da janela. Voltei-me em seguida para o céu limpo. Havia um passarinho cantando na paineira. Madrinha então disse:<br />- Marcelo foi-se embora ontem à noite, quando vi, já estava de mala pronta, sabe como ele é. Veio até aqui se despedir, mas você estava dormindo tão profundamente.<br />Dois dias depois, tia Olívia partia também. Trazia o costume preto e o chapeuzinho com os alfinetes de pérola espetados no feltro. Na blusa branca, bem no vértice do decote, o galho de cerejas.<br />Sentou-se na beirada da minha cama.<br />- Que susto você nos deu, querida - começou com sua voz pesada. - Pensei que fosse alguma doença grave. Agora está boazinha, não está?<br />Prendi a respiração para não sentir seu perfume.<br />- Estou.<br />- Ótimo! Não te beijo porque ainda não tive sarampo - disse ela calçando as luvas. Riu o risinho cascateante. - E tem graça eu pegar nesta altura doença de criança?<br />Cravei o olhar nas cerejas que se entrechocavam sonoras, rindo também entre os seios. Ela desprendeu-as rapidamente. <br />- Já vi que você gosta, pronto, uma lembrança minha. <br />- Mas ficam tão lindas aí - lamentou Madrinha. - Ela nem vai poder usar, bobagem, Olívia, leve suas cerejas!<br />- Comprarei outras.<br />Durante o dia seu perfume ainda pairou pelo quarto. Ao anoitecer, Dionísia abriu as janelas. E só ficou o perfume delicado da noite.<br />- Tão encantadora a Olívia - suspirou Madrinha sentando-se ao meu lado com sua cesta de costura. - Vou sentir falta dela, um encanto de criatura. O mesmo já não posso dizer daquele menino. Romeu também era assim mesmo, o filho saiu igual. E só às voltas com cavalos, montando em pêlo, feito índio. Eu quase tinha um enfarte quando via ele galopar.<br />Exatamente um ano depois ela repetiria, num outro tom, esse mesmo comentário ao receber a carta onde Romeu comunicava que Marcelo tinha morrido de uma queda de cavalo.<br />- Anjinho cego, que idéia! - prosseguiu ela desdobrando o crochê nos joelhos. - Já estou com saudades de Olívia, mas dele?<br />Sorriu alisando o crochê com as pontas dos dedos. Tinha encontrado os óculos.<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />A Estrutura da Bolha de Sabão - Lygia Fagundes Teles - resumo<br />Alguns livros possuem uma história própria que se agrega ao próprio texto literário, aumentando ainda mais o seu encanto. Esse é justamente o caso de A estrutura da bolha de sabão, livro de contos de Lygia Fagundes Telles.<br />"Em 1973, o Paulo Emílio (Paulo Emílio Salles Gomes marido da autora) contou que tinha um amigo que estudava a estrutura da bolha de sabão. Aquilo me lembrou a minha infância, soprando bolhas e correndo atrás delas com o instinto perverso de estourá-las. Então comecei a imaginar que a bolha seria um símbolo do amor, que é frágil como película, fácil de ser rompida, e ao mesmo tempo é beleza e plenitude", revela Lygia. <br />O livro levou quatro anos para ser escrito. A inspiração foi abalada em 1977, com a morte de Paulo Emílio. A coletânea somente seria publicada em 1978, com uma alteração. A pedido do editor, ele foi lançado com o título Filhos pródigos, sem obter grande repercussão.<br />Até que quase 20 anos depois, Lygia Fagundes Telles recebe uma carta de uma editora francesa interessada no livro, mas pedindo para mudar o título para La structure de la bulle de savon. Seria acaso? Não para Lygia: "Eu acredito demais em histórias circulares, uma espécie de predestinação: o livro recuperou seu nome original, inclusive no Brasil, onde foi reeditado em 1995."<br />Através da leitura de A estrutura da bolha de sabão é fácil entender por que a obra da autora é considerada uma das mais expressivas do país. São contos afiados e cruéis, que têm o acaso e a ruptura como temas centrais. Em contos como "A medalha", "O espartilho" (abordando preconceitos) e "A testemunha" (sobre a loucura) a crueldade das personagens transparece como uma característica feminina: "As mulheres, devido ao longo tempo em que foram tão abafadas, se desenvolveram como bichos no escuro. Criaram certas armas de defesa, que parecem cruéis e imprevistas para os homens." <br />Por vezes são armas pontiagudas. Perfeitas para estourar bolhas de sabão.<br />Em A Estrutura da Bolha de Sabão (contos) são abordados a rejeição e a formação da identidade do ser, mas em cada um deles esses elementos estão aliados a outros e são encarados diversamente pelas personagens. <br />O livro apresenta mais uma vez uma personagem feminina sem nome que reencontra uma antiga paixão: um físico, casado que estuda a estrutura da bolha de sabão. No momento em que ele, acompanhado de sua mulher, a encontra, ela, automaticamente lembra da infância dos dois, em que brincavam com as bolhas de sabão produzidas com canudos de mamoeiro: “A estrutura da bolha de sabão, compreende? Não compreendia. Não tinha importância. Importante era o quintal da minha meninice com seus verdes canudos de mamoeiro, quando cortava os mais tenros, que sopravam as bolas maiores, mais perfeitas. Uma de cada vez. Amor calculado, porque na afobação o sopro desencadeava o processo e um delírio de cachos escorriam pelo canudo e vinham rebentar na minha boca.” <br />Embora muito tempo já tivesse passado, e ele já tivesse casado, ela ainda se sentia atraída pelo físico; atração que fica evidente e acaba por fazer com que a esposa do físico sinta ciúmes. <br />Ocorre um segundo encontro numa exposição de pintura. Novamente a paixão aflora na personagem. Novamente os ciúmes afloram na esposa do físico. É nesta festa que a personagem descobre, através de um amigo em comum, que seu amado está doente. Preocupada com que ele poderia ter, ela decide ir até sua casa. Lá, diferentemente do que esperava, ela é tratada com muita cordialidade e sem nenhuma sombra de ciúmes pela esposa do físico. Tamanha foi a cordialidade, que a esposa acaba tendo que se ausentar por alguns minutos, “preciso ir aqui na casa da mamãezinha e minha empregada está fora, você não se importa em ficar mais um pouco.” E sai deixando-os a sós.<br />A protagonista de A Estrutura da Bolha de Sabão possui uma entidade definida e a sua luta é dirigida no sentido de impor-se à outra mulher na posse do objeto de desejo. É uma mulher madura que age em igualdade de condições e que só tem como adversário o acaso.<br />A Estrutura da Bolha de Sabão pode ser considerado uma coletânea de contos marcado para repensar a realidade da mulher e a busca da emancipação feminina. Mas não se trata de um livro inteiramente feminista. A figura do homem também é trabalhada a fundo, marcando sobretudo o aspecto da fragilidade e das carências masculinas. <br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Ciranda de Pedra -Lygia Fagundes Telles- resumo<br />Ciranda de Pedra, publicado em 1954, é o primeiro romance de Lygia Fagundes Telles. O livro, que basicamente conta a história de Virgínia, estabelece em duas etapas, o trajeto cheio de conflitos da vida da menina, desde a infância até os vinte anos de idade.<br />Virgínia tem uma infância solitária; filha de um casal separado, é obrigada a dividir-se entre dois ambientes familiares que contrastam radicalmente: Laura e Natércio. Virgínia vive com Laura, sua mãe, separada do marido, Natércio - advogado convencional, severo, seco de gestos e de afeto. Sua infância é marcada pela tristeza e solidão. Quando da separação, Laura foi viver em casa de Daniel, seu antigo médico, levando consigo Virgínia. Em casa de Daniel, Laura conta com Luciana, empregada antiga e dedicada, para os cuidados tanto do dia-a-dia doméstico, quanto para com Virgínia, que é ainda muito jovem. Luciana exerce grande influência no espírito da menina. Laura, já muito doente, tem seu estado de saúde agravado, apesar de todos os cuidados e desvelo que Daniel concede a ela, inclusive recorrendo a todos os seus recursos financeiros para as despesas de saúde que exigem o estado de sua querida paciente. Sendo assim, a infância de Virgínia é marcada por grandes dificuldades: de um lado, as financeiras que não permitem à menina realizar pequenos desejos e sonhos (trocar a mobília, por exemplo), posto que todos os recursos de Daniel são voltados principalmente para os cuidados com sua mãe; de outro lado, a solidão em que vive e o profundo sentimento de rejeição pois ela não se sente aceita sequer na casa de Natércio por ocasião das visitas semanais que lhe faz. <br />Estes sentimentos e conflitos nos são apresentados quando vamos conhecendo detalhes como o fato de Virgínia possuir duas irmãs, Bruna e Otávia que vivem em companhia do pai, Natércio, advogado conceituado que desfruta de bons recursos econômicos, conseqüentemente vivendo estas últimas em condições (econômicas) mais confortáveis que Virgínia (que, entre outras coisas, usa roupas reformadas da mãe, ou das irmãs, bem como os móveis de seu quarto, que são "sobras" do quarto reformado de Otávia). Seu sofrimento e amargura se afloram tanto mais quando de suas visitas à casa de Natércio, muito grande e bonita, com vasto jardim onde existe uma ciranda de anões de pedra com uma fonte, local que ela costuma com freqüência visitar. Mas, apesar da ciranda de anões que ela ama, Virgínia sente-se muito desconfortável na presença das irmãs que a hostilizam e nas quais ela só vê qualidades, enquanto que ela, Virgínia, ao seu modo de ver, só tem defeitos. Sente-se desconfortável também por não conseguir de Natércio, gestos de carinho e afeto de que ela tanto necessita e que ele não oferece, posto que é um homem muito convencional e severo. Angústia e solidão. São estes os sentimentos que Virgínia conhece quer na casa de Natércio quer na casa de Daniel. Nesta última, a menina não pode sequer aproximar-se da mãe pois esta tem raros momentos de lucidez e encontra-se em estado físico e mental bastante precários. <br />Distante também é seu relacionamento com Daniel, com quem até hesita em alguns momentos, entre o desejo de ter alguma atitude mais afetuosa, porém recuando sempre, na dúvida de como seria recebido seu gesto. O sonho de Virgínia, nessa época, se resume entre o desejo de ir morar com o pai e as irmãs, e, o que seria a realização máxima, a recuperação de sua mãe com o conseqüente retorno das duas para aquela casa e a família novamente reunida. Porém, o estado de saúde de Laura se agrava, fazendo com que Virgínia realize parte de seu sonho: ela volta a morar naquela casa, passando a conviver com as irmãs, Bruna e Otávia, com Fraulein Herta (a governanta), e os amigos Conrado (por que é apaixonada), Letícia (irmã de Conrado) e Afonso. No momento em que Virgínia volta a morar naquela casa, ela se dá conta de que aquele ambiente familiar com o qual ela sonhava, era uma ilusão. Sentindo-se rejeitada pelas irmãs que criticam a mãe por ter-se separado do pai, e sem receber de Natércio o afeto, apoio e carinho que esperava, a menina percebe que não há lugar para ela nesse fechado círculo. Compara a ciranda de anões de pedra do jardim, que era sua paixão, com o grupo tão fechado formado por Bruna, Otávia, Afonso, Letícia e Conrado. <br />É nesse conflito de sensações que, duas semanas após a sua chegada àquela casa, Virgínia recebe a notícia da morte da mãe, seguida do suicídio de Daniel. É também nessa circunstância que Luciana (que era apaixonada por Daniel), num momento de profunda dor, revela à menina, durante uma visita, que Daniel era seu verdadeiro pai. Sente-se, então, mais sozinha do que nunca e, dando-se conta que jamais seria aceita no grupo, da maneira que desejava, pede a Natércio que a interne no colégio, pedido este que é por ele aceito. <br />A segunda parte do romance tem início com uma Virgínia já adulta deixando o colégio e voltando para a casa de Natércio. Acreditando que já havia superado todas as suas angústias chega àquela casa, mas não demora a perceber que o grupo continua fechado: uma ciranda de pedra mais rígida que nunca. Bruna, ainda mais moralista, havia se casado com Afonso. Otávia, alienada, dedicava-se à pintura e a alguns amantes ocasionais. Natércio, envelhecido, já não trabalhava mais. Frau Herta estava doente, só e abandonada em um cômodo sujo e pobre de um bairro afastado. Letícia, agora, dedicava-se ao esporte: uma tenista premiada e que se interessava apenas por mulheres. Por fim, Conrado, seu grande amor de infância, amor que ardia ainda em seu coração, vivia isolado, recuado, com sérios problemas sexuais. O retorno de Virgínia ao convívio com o círculo familiar reabriu-lhe as antigas feridas. Mas é neste momento também que ela percebe a real face de cada componente da ciranda, suas fraquezas, suas amarguras. Cada máscara se rompe. Ela se dá conta do que, na verdade, se escondia por trás daquela hostilidade e rejeição: ela era desejada por todos ao mesmo tempo e, por isso, temida. Aos poucos, então, vai-se apresentando uma Virgínia mais amadurecida e forte, independente e segura. Ela abandona, por fim, as tentativas de sua entrada nesse círculo fechado, decidindo-se por uma longa viagem, sem perspectiva de volta. Não mais a ciranda de pedra, não mais o desejado jardim, não mais os sonhos. Nem mesmo Conrado. Tudo havia ficado no passado. Mas, como uma rocha, em suas lembranças estaria gravado. "...um dia, um besouro caiu de costas. E besouro que cai de costas não se levanta nunca mais".<br /><br /><br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Moacyr Felix <br />(Rio de Janeiro RJ, 1926) <br />Terminou o curso de Direito em 1948, mesmo ano em que foi lançado seu primeiro livro de poesia, Cubo de Trevas. Entre 1950 e 1953 estudou na Faculdade de Letras da Universidade de Sorbonne, em Paris (França), onde também fez estudos de Filosofia no Collége de France. Até 1954 foi redator e locutor de um programa da Radiodifusão e Televisão Francesa para a América Latina. De volta ao Brasil, foi redator da revista literária Marco e redator e locutor de um programa semanal sobre poesia e literatura na Rádio Ministério da Educação e Cultura. Ainda nos anos 50 colaborou em vários periódicos, entre os quais Correio da Manhã, Diário de Notícias, Alguma Poesia e Revista do Brasil. Em 1962 e 1963 foi organizador e prefaciador dos três volumes da série Violão de Rua, para o Centro Popular de Cultura da UNE. Foi preso pelo regime militar, em 1966, por suas manifestações a favor da liberdade de expressão. Dirigiu a coleção Poesia Hoje, da Ed. Civilização Brasileira, entre 1963 e 1971. Colaborou na revista Le Scarabée International, em 1982. É sócio-fundador da Associação Brasileira de Crítica Literária. Entre suas obras estão O Pão e o Vinho (1959), com o qual ganhou o prêmio Alphonsus de Guimaraens de melhor livro de poesia, em 1960, e Em Nome da Vida, que recebeu o prêmio de melhor livro de poesia no país em 1982, concedido pela APCA. Moacyr Félix pertence à segunda geração do modernismo brasileiro. Segundo o crítico Alceu Amoroso Lima, “o socialismo poético-libertário de Moacyr Félix representa uma face perene do sentimento de solidão do poeta, como todo exílio, mas também o protesto e a reivindicação social de um futuro melhor para sua gente e sua terra.”<br />Cantiga para os Pescadores de Alto-Mar tais como o de Hemingway <br />A Tereza e Ferreira Gullar<br /><br />Eia, que eu vou pescar um peixe<br />de ver meu barco virar!<br />Eia, que outro peixe não serve<br />quando mais terra não há,<br />que a morte só tem valia<br />no gesto que encontra o mar,<br />que tudo é vida se o homem<br />é onda de um renovar<br />que se renova a si mesmo<br />sem nunca ter que parar!<br /><br />Na espuma branca das ondas<br />onde o vento lambe o sal,<br />no meu orgulho de homem<br />que prova o bem, prova o mal,<br />noites de álcool e de areia<br />se erguerão, farpas lançadas<br />contra a morte universal<br />(isto é triste, mas não mata<br />esta alegria infernal<br />de eu havê-las arrancado<br />qual grande peixe de prata<br />deste nada tão central).<br /><br />Eia, que eu vou pescar um peixe<br />de ver meu barco virar,<br />que tudo é vida se o homem<br />é onda de um renovar<br />que se renova a si mesmo<br />sem nunca ter que parar.<br /><br />(...)<br />O Poema <br />Ou se vive por inteiro<br />ou pela metade a gente<br />escreve a vida<br />que não viveu.<br /><br />E o papel em branco então serve<br />como serve ao prisioneiro<br />a parede branca do cárcere.<br /><br />O que não foi é o ser que é<br />no poema, esse ato mágico<br />de uma chama que não se vê<br />tanto mais quanto ela queima<br />no ar de uma cela vazia<br />o homem que é posto em pé<br />sobre os mortos do seu dia.<br />O Poeta <br />O poeta se perdia em símbolos.<br />O poeta se perdia em signos.<br />O poeta se perdia em palavras.<br />O poeta se perdia nele próprio<br />sem que espelho algum lhe trouxesse<br />o que dele assim ex-fato se perdia.<br />O poeta foi sempre um perdedor<br />com a tola ambição de achar-se um dia<br />sem a necessidade de fazer poemas<br />sobre a existência que lhe escapulia.<br /><br />O poeta é uma besta inglória<br />entre a beleza de uma laranja<br />e o riso de todas as árvores mortas.<br />ÀS MARGENS DESTE RIO CANTAREI <br />a Luiz Paiva de Castro<br />Às margens deste rio cantarei com alegrias e tristezas <br />várias faces de todo o ser do homem. De pé, atrás dos [ponteiros <br />onde a vida é desnuda e o sangue não pergunta, <br />eu tentarei cravar entre os ossos do meu tempo <br />o pesadíssimo lamento do silêncio dentro das coisas. <br />Linha dos horizontes, o coração se estende <br />ao lado dos amantes e colhe o mel das luas <br />que aclararam o mar de amor entre dois corpos. <br />Assim surge a promessa e o fundamento de uma utopia <br />que minhas auroras cavoucam no que ainda não tem fala. <br />Cisne em rio noturno, se o coração se põe<br />em marcha e bebe os vinhos deste vento <br />que sopra o último adeus dos fuzilados <br />em direção a nós, <br />os rumos, de tão claros, arrancam choro e sangue <br />no canto que os celebra. <br />II <br />Às margens deste rio <br />cantarei <br />os pobres e os humildes <br />e a aurora sempre a mesma <br />no olhar dos que conduzem <br />os pobres e os humildes. <br />E as estradas tão longas <br />no coração dos velhos <br />e a navegante mesa <br />dos ébrios, e o sapato <br />imóvel dos defuntos, <br />e o férreo marche-marche <br />dos trens cruzando as pontes <br />cantarei como poeta às margens deste rio <br />que os ricos armadores sombrearam de navios <br />carregados de urânio e de ouro negro <br />e de perguntas prisioneiras. <br />III <br />Inalterável, eu, que atravessei o tempo <br />com a mensagem triste dos velhos outonos <br />presa no meu relógio, <br />eu, védica sandália, Atenas grave e trágica <br />ou doce fruto de uma dor hebraica, <br />às margens deste rio <br />cantarei no que fui como criança <br />a lenda <br />de uma princesa adormecida <br />(tão bela como a vida) <br />que dormia e dormia<br />(tão bela como a vida) <br />até que a despertaram <br />tão bela como a vida. <br />CANTO PARA AS TRANSFORMAÇÕES DO HOMEM * <br />A Ênio de Silveira, <br />M. Cavalcanti Proença <br />Moacir Werneck de Castro e Miguel Arraes de Alencar<br />A todos os que sonham e trabalham por um mundo melhor, libertado dos obscurantismos e dos dogmas, do apodrecimento da própria existência pela <br />miséria física e da perda dos valores dos humanismo pela miséria moral. <br />(I) INICIAÇÃO <br />- Meu pai, o que é a liberdade? <br />- É o seu rosto, meu filho, <br />o seu jeito de indagar <br />o mundo a pedir guarida <br />no brilho do seu olhar. <br />A liberdade, meu filho, <br />é o próprio rosto da vida <br />que a vida quis desvendar. <br />É sua irmã numa escada <br />iniciada há milênios <br />em direção ao amor, <br />seu corpo feito de nuvens <br />carne, sal, desejo, cálcio <br />e fundamentos de dor. <br />A liberdade, meu filho, <br />é o próprio rosto do amor. <br />- Meu pai, o que é a liberdade? <br />A mão limpa, o copo d’água <br />na mesa qual num altar <br />aberto ao homem que passa <br />com o vento verde do mar. <br />É o ato simples de amar <br />o amigo, o vinho, o silêncio <br />da mulher olhando a tarde <br />- laranja cortada ao meio, <br />tremor de barco que parte, <br />esto de crina sem freio. <br />- Meu pai, o que é a liberdade? <br />È um homem morto na cruz <br />por ele próprio plantada, <br />é a luz que sua morte expande <br />pontuda como uma espada. <br />É Cuauhtemoc a criar <br />sobre o brasileiro que o mata <br />uma rosa de ouro e prata <br />para altivez mexicana. <br />São quatro cavalos brancos <br />quatro bússolas de sangue <br />na praça de Vila Rica <br />e mais Felipe dos Santos <br />de pé a cuspir nos mantos <br />do medo que a morte indica. <br />É a blusa aberta do povo <br />bandeira branca atirada <br />jardim de estrelas de sangue <br />do céu de maio tombadas <br />dentro da noite goyesca. <br />É a guilhotina madura <br />cortando o espanto e o terror <br />sem cortar a luz e o canto <br />de uma lágrima de amor. <br />É a branca barba de Karl <br />a se misturar com a neve <br />de Londres fria e sem lã, <br />seu coração sobre as fábricas <br />qual gigantesca maçã. <br />É Van Gogh e sua tortura <br />de viver num quarto em Arles <br />com o sol preso em sua pintura. <br />É o longo verso de Whitman <br />fornalha descomunal <br />cozendo o barro da Terra <br />para o tempo industrial. <br />É Federico em Granada. <br />É o homem morto na cruz <br />por ele próprio plantada <br />e a luz que sua morte expande <br />pontuda como uma espada. <br />- Meu pai, o que é a liberdade? <br />A liberdade, meu filho, <br />é coisa que assusta: <br />visão terrível (que luta!) <br />da vida contra o destino <br />traçado de ponta a ponta <br />como já contada conta <br />pelo som dos altos sinos. <br />É o homem amigo da morte <br />Por querer demais a vida <br />- a vida nunca podrida. <br />É sonho findo em desgraça <br />desta alma que, combalida, <br />deixou suas penas de graça <br />na grade em que foi ferida... <br />a liberdade, meu filho, <br />é a realidade do fogo <br />do meu rosto quando eu ardo <br />na imensa noite a buscar <br />a luz que pede guarida <br />nas trevas do meu olhar. <br /><br />(II) ENREDO <br />I <br />Onde se destrói o mundo em que vivo <br />aí estou. <br />Onde há destruição, aí se define o meu caminho. <br />Onde os deuses se desmoronam é que apareço <br />sem rosto <br />atrás de suas formas feitas de noite e de medo. <br />Onde se morre, onde se nasce. <br />Onde se morre é que eu renasço. <br />- Stirb und werde!<br />- “Morre e transmuda-te!” <br />Está não é, meu velho Goethe, a verdade das verdades, a [ignorada <br />pelos que apenas <br />“um hóspede triste sobre a escura terra”?! <br />A morte e o fogo e a humilhação e o ódio <br />em vida e verde devem ser devolvidos. <br />II <br />Depois de silenciar o vozerio das cores <br />nas coisas cinzas que não dizem mais <br />do olhar humano que as fizera humanas, <br />a chama desce, e em rodopios tontos <br />retorna ao calor íntimo da terra, <br />ao berço rubro, à causa que realiza <br />este mistério grande de existir <br />o peixe e a estrela, o movimento e a cor <br />e o som do homem a se querer de amor. <br />Medo e humilhação e ódio <br />Assim alimentados serão devolvidos. <br />III <br />Medo e humilhação e ódio <br />devem ser devolvidos: <br />infenso ao homem é guardá-los em sua alma <br />receptáculo de coisas maiores <br />(como as águas da lua a perlavar a noite <br />num rosto de criança que dorme <br />ou numa anca macia de mulher nua). <br />Porque emudeceu a voz mais alta de minha infância? <br />Que ternura imunda rouba <br />A fala do mar dos pés de uma criança? <br />Que nos faz sobreviver, adultos <br />somente em medo e humilhação e ódio? <br />Querer-me novo é querer-me mais que morto <br />em mim ou nesta existência que me olha. <br />É querer-me outro que não este em que me instalaram. <br />É não parar, não querer parar os eixos <br />desta roda de luz <br />- plural de eternidades <br />a dissolver o bronze entre os escombros do que eu era. <br />Nesta banda podre do tempo <br />A água não inventa rios <br />nem ouve os cantos do mar. <br />Nestas escarpa onde habitam os dourados senhores do sul <br />ninguém nasce, ninguém agoniza mais de uma vez. <br />Aqui o sangue se enclausura <br />numa ordem arrumada como a das geladeiras. <br />E não sabe mais a ciência do orvalho numa alegria de flor. <br />Aqui a morte interrompe apenas o esforço de durar. <br />Aqui <br />Medo e humilhação e ódio <br />não devem ser recebidos <br />Muitas vezes essa é a única forma concreta de amar <br />aqui. <br />IV <br />Quando ensolarada pelas raízes do fogo, a vida <br />é o coração ligado ao velocíssimo novelo das galáxias <br />e na fúria de uma lágrima, senhores, e no desejo <br />de todo amor que se descobre <br />fogo e movimento e transformação <br />eu poderia doar-vos o acontecimento ilimitado, <br />o reinado da ordem e do caos anteriores a todos os deuses. <br />Porém a treva, a treva deste mundo em que eu escuto <br />estilhaçar-se a vida em seu cristal escuro, <br />[a treva <br />só me permite em vossas mãos (e nas minhas) <br />apenas com esses parcos cacos de mim próprio... <br />Os vossos mitos são fortes, senhores, muito fortes. V <br />Nos álbuns de família quem ganha e perde <br />és tu, sombra de Heráclito, <br />a transformar em chuva o sol em nossos rios. <br />Nos álbuns de família com brasões, a sepultura ideal <br />dos que já morreram <br />tantas vezes <br />quantas as que se deixaram fotografar <br />singulares <br />sobre uma data, uma conquista ou uma verdade <br />que pensaram imóveis. <br />Se o camponês não possui maquinas <br />Fotográficas <br />Para re-saltar o instante de sua morte como servo, <br />que família imóvel é essa que se quer sagrada? <br />Ignora ela a vazia tristeza dos seus domingos, <br />quando os cupins também a devoram ao lado da Casa [Grande? <br />Nos álbuns de família, qual a vida que está neles? <br />Se em cada página o tempo ri <br />velho devasso, avô caduco <br />a negar ajuda e mão <br />estranha-mente <br />aos netos acordados pelo dor em fundo chão. <br />Nos álbuns de família quem ganha e perde <br />és tu, sombra de Heráclito, <br />a transformar em chuva o sol de nossos rios. <br />VI <br />De repartição em repartição a poesia <br />fugiu, tentou fugir <br />do engavetado mundo das mesas <br />alinhadas <br />como leitos fúnebres <br />à disposição das <br />necrófilas orgias de generais e beatas e banqueiros <br />e exporta-dores. <br />Ah, o clima de cemitério que reina nos ministérios! <br />Ah, a essencial recusa da poesia, <br />suas explosões de sangue naufragando <br />o destino e a infiníta infância da vida <br />entre os ruídos do mar e a rouquidão dos homens <br />[agachados. <br />Agachados <br />sob o pensamento natimorto dos que divinizam <br />o Poder, o Estado, e a Política. <br />Ah, a aurora guardada no tinteiro dos poetas <br />em que o amor apenas autoriza o dia <br />na praça <br />sem o discurso hipócrita <br />ou na cidade sem bancos e sem forças armadas. <br />VII <br />Assim como defende <br />a perfeição da flor <br />acabada <br />e em si mesma fechada, <br />o poeta não defende <br />até hoje governo algum: <br />seu lado é o lado do povo <br />sempre e sempre roubado <br />por mil, por cem ou por um. <br />O pelego se untou <br />nas banhas do negocista <br />e engordou engordou <br />tanto <br />que a sua barriga tão grande <br />esmagou <br />a menina do povo <br />que vinha com a flor, <br />que vinha com a flor. <br />O poeta defende <br />o direito de andar <br />até o outro lado da vida <br />em que o homem é o seu avesso <br />o chão de seu próprio mar <br />e a verdade a rosa nua <br />solta na praia e na rua <br />como um convite a bailar. <br />O poeta defende <br />o direito de amar. <br />VIII <br />Do princípio e do fim das horas que o dinheiro envilece <br />foi então que chegaram os matadores de pássaros, <br />os que invadiram a minha ilimitada gaiola de ossos <br />e arrastaram de lá o poeta <br />para os depósitos de preços ou de presos. <br />A roda dos olhos quebrada ou o acanalhamento. <br />O mundo, ou o interior do exterior, tinha que ser quebrado <br />alguma coisa, a vida, tinha que ser quebrada <br />já que os homens inteiros estavam ainda no ventre <br />dos que reivindicavam uma história nova <br />nos campos e nas fábricas. <br />Ou no pensamento daqueles que sabiam escutar, mas <br />com um punhal na cintura, <br />o abraço das coisas e dos seres. <br />De re-partição em re-partição a poesia <br />Comprimiu o poeta no coração de uma bala. <br />IX <br />Segregada pelos amiantos do medo nos comutadores <br />e nos lustres, a luz <br />despe-se de todo berro e toda flama, <br />enquanto no morno ritual da sala <br />a saltar de colarinhos e colares <br />a palavra do homem assassina o homem: repetição de [quando <br />o sílex, afiado, trazia a morte para as suas carótidas. <br />Os antigos porém, desconheciam os terríveis cortejos <br />a enterrar na tarde movida pela fala inglesa <br />a mudez de um Cristo sempre de madeira <br />e a histórica possibilidade de liberdade na existência. <br />E não gelavam o sangue da palavra injustiça <br />Em fáceis copos de uísque. <br />Nem mediam também a construção do homem pelo número [de suas latrinas<br />sabiam eles, os antigos, pelo menos a diferença <br />entre o conforto das jaulas e o fogo aceso no topo das [montanhas. <br />Mais alto do que eles, o coração do povo tem que saber [isso! <br />Mais alto do que eles, o carvão que faz a noite <br />vestir a chama do silêncio em chamas<br />escreve <br />na estupidez moderna destes nossos muros <br />indicações escritas pelo sol nos mapas do futuro. <br />X <br />O homem, os homens <br />São vitórias da morte a circular as vidas <br />ou sombras opacas de uma Vida <br />em que esse anti-salto, a morte <br />não existe e nem nunca existiu <br />a não ser em seu não-ser de ser <br />desvão ao lado de desvão na ponte? <br />Se os câes falassem, ah, como ririam <br />(em frente ao sol) <br />dos nossos medrosos altares. <br />(III) CONCLUSÃO <br />É inútil querer parar o Homem, <br />o que transforma a pedra em piso, <br />o piso em casa e a casa em fonte <br />de novas músicas da carne <br />sob as velocidades da luz e da sombra. <br />É inútil querer parar o Homem <br />acolher sempre um pouco de si próprio <br />no mistério da vida a cavalgar <br />os cavalos aéreos da semântica <br />sob uma indeferida eternidade. <br />É inútil querer parar o Homem <br />e o impulso que o transforma sempre <br />na pátria sem fim do ato livre <br />que arranca a vida e o tempo e as coisas <br />do espelho imóvel dos conceitos. <br />Ah, que mistério maior é este <br />que liga a liberdade e o homem <br />e une o homem a outros homens <br />como o curso de um rio ao mar! <br />(quando a noite é una e indivisível, <br />nos olhos da mulher que eu amo <br />acende-se o deus deste segredo <br />-e uma sombra só nos transporta <br />ao fundo sem nome da vida.) <br />É inútil querer parar o Homem. <br />Do que morre fica o gesto alto <br />a ser o germe de outro gesto <br />que ainda nem vemos no tempo. <br />Isto as crianças nos lembram <br />quando rodam em nossas portas <br />os ossos do dia que foi nosso <br />e agora são os eixos do pedalar <br />nas bicicletas com que os deuses <br />as vão levando para outros dias <br />do acaso, do desejo e do fazer <br />em que não seremos mais, eternamente. <br />É inútil querer parar o Homem <br />e o seu sonho a dar longas voltas <br />ou a inventar estradas no cárcere, <br />o seu sonho mais essencial <br />a destruir e a enferrujar <br />metais de qualquer ditadura. <br />É inútil querer parar o Homem <br />e o seu sonho, o mais de flor, <br />de apagar dos lábios da terra <br />o ricto do medo que estica <br />no céu de aço a bomba atômica; <br />o seu sonho, que é o seu movimento <br />onde a razão dança mais bela, <br />de ver no armário dos museus <br />o manual oco e sem asas <br />que aprisiona o corpo e o sexo <br />en desrazões dadas na infância <br />e os livros de Deve & Haver <br />dos poderosos de Manhattan <br />comerciando Deus e o mundo. <br />É inútil querer parar o Homem <br />e o seu sonho de enterrar <br />sob o verde passo de uma história livre <br />os dogmas do stalinismo <br />grudado como esparadrapo <br />sobra a boca múltipla da vida <br />(e a subdesenvolvida farda <br />dos tiranos que bebem uísque <br />pago com o sangue de sua pátria). <br />É inútil querer parar o Homem: <br />em tudo que de amor cantar <br />o seu sonho caminhará <br />a encaminhá-lo na direção dele próprio <br />inteirado quando históricamente liberto <br />do econômmico em que ora o algemam. <br />É inútil querer parar o Homem, <br />o que transforma a pedra em piso, <br />o piso em casa e a casa em fonte <br />de novas músicas de carne. <br />A andar em formas de palavras <br />sob os arvoredos da vida <br />o sonho do Homem caminhará <br />do pensamento para as mãos <br />e das mãos para o pensamento, <br />noite e dia caminhará. <br />até tornar as mãos em pássaros <br />livres, inteiramente livres, para amar <br />o azul ou as várias almas do céu <br />dentro do Homem que se movimenta <br />na liberdade, no amor e no desejo <br />em que a si próprio inventa. <br />CRÔNICA DA ESCANDINÁVIA PARA UMA SUECA CHAMADA BIRGITTA <br />I <br />Olha, querida, como o céu é simples <br />atrás das ilhas em que amor fizemos. <br />A proa dos barcos a recortar as ondas como seios <br />que se dissolvem, espuma e sonhos marinheiros <br />para os nossos olhos libertados. <br />Olha a bússola dos homens, seus desígnios <br />na ciência em que procuram tanto a vida <br />entre as escamas do salmão e a luz de Vênus. <br />Vê <br />na tarde deste sol os grãos da noite escura, <br />e vence com sua mais loira fome, a que é do ventre, <br />a POSSESSIVA SOMBRA desses vários morros <br />atrás dos quais a morte se sabe nossa dona <br />e espera. <br />II <br />Azeitonados tetos, largos azinhavres, mugidos <br />cor de bronze <br />espetados na perfeição letárgica da neve; <br />torres ogivais, circulatura eslava, sombras <br />de Absalom e Tor, paradas <br />no sólido silêncio que governa <br />das ameias dos castelos <br />Copenhague, Copenhague de bronze e sangue <br />com sua cerca de guindastes e seu longo quebra-mar... <br />O que é partir, o que é chegar <br />quando a vida se desmancha em pleno mar <br />e os nossos vários rostos acabados <br />são um estranho recordar <br />de urgências nunca realizadas?! <br />Ah! As gaivotas, o apito de outras barcas, <br />o cais ficando longe, e já dentro de nós <br />o tempo, mudo pássaro de vidro, a estilhaçar-se <br />- Copenhague! <br />neste irreal terrível que é o ato de lembrar-te <br />Copenhague, Copenhague de bronze e sangue <br />com sua cerca de guindastes e seu longo quebra-mar... <br />III <br />Sim, apenas um homem com o seu frio <br />há mais de vinte séculos sob a chuva, <br />sua necessária garrafa de Aalborg, seu olho preso <br />à falsa cruz dos advérbios, cruz onde sufoca <br />informe e una a relação dos mundos. <br />Sim, apenas o homem e seu salgado desencanto <br />a dissolver-se nas veias de mais um novo encantamento. <br />Apenas um homem que nasce e morre sempre <br />dentro da noite como a luz <br />de um farol que se apaga e que se acende. <br />IV <br />No vilarejo de Mörlanda <br />o domingo parava <br />entre jardins e casas <br />quadradinhas. Tudo era paz <br />no vilarejo de Mörlanda. <br />E o médico dinamarquês dizia <br />que à noite a consulta era mais cara, <br />mas que os doentes da noite não queria <br />pois o imposto, que também subia, <br />não lhe compensava o esforço, e não valiam. <br />Tinha um rosto bom, e como um bom sorria <br />a seus filhos junto aos meus cruzando o dia <br />com os olhares presos no filme em que o homem é <br />informaticamente ensinado para ser <br />cada vez mais sem consciência o lobo de outros homens... <br />Entre jardins e casas <br />quadradinhas, tudo era paz <br />no vilarejo de Mörlanda. <br />Entre jardins e casas quadradinhas <br />dentro da paz cumprimentou-me a guerra <br />no vilarejo de Mörlanda. <br />V <br />Com o coração de pé para colher <br />a flor azul que percorre <br />o que só de amor não morre <br />no quarteto em ré menor <br />de Ludwig van Beethoven, <br />eu, a noite e a dor que é minha <br />te exigimos inteirinha <br />sem vestido e sem calcinha. <br />Verdade de mulher nua, <br />teu corpo branco - pureza! – <br />distendeu-se em quatro luas <br />repletas de treva acesa, <br />em quatro esferas de seda <br />onde - animal exato <br />preso aos fios do seu tato – <br />foi que teci essa tua <br />manta de orgasmo ou de fúria <br />saudosa da vida crua. <br />(No peito minha dor atlântica <br />repousou como borboleta <br />na flor azul que percorre <br />o quarteto em ré menor <br />de Ludwig van Beethoven.) <br />VI <br />Sobre a torturada árvore sem folhas <br />os vidros da janela consentiam ainda <br />nuvens e aves, e um tremor de sol. <br />Mais um anoitecer em Ellestad, <br />mais um lucilar de despedida, <br />mais uma lâmpada <br />sem ruídos partida e repartida <br />pela avessa emoção de um tempo imóvel <br />se movendo e nos movendo <br />no difícil mar sem nossos rios <br />e onde - razão ou dor? - nos conferimos <br />fragmentos de um sol queimado em tardes. <br />Em suas molduras douradas os espelhos <br />mais uma vez <br />ofereceram seus túmulos sem fundo <br />- e sepultaram o sol sem grandes pompas. <br />VII <br />Túmulo, túmulo é a lei que rói <br />entre meus ossos verdades impossíveis <br />agora, somente agora. <br />Amor e morte, aqui me instalo em homem. <br />Amor, se entendes isto, as mais belas amoras do meu sangue <br />ofertarei a ti, <br />aos secos labirintos de tua infância. <br />E as minhas noites, as nossas noites <br />no âmago da própria noite <br />serão canais abertos <br />a esta sombra viva, a esta sombra clara <br />do nosso avesso humano subitamente recomposto <br />pelos nossos jogos abissais de verbo e carne. <br />Karlshamn, 1960 <br /><br /><br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Péricles Eugênio da Silva Ramos <br />(Lorena SP, 1919 - São Paulo SP, 1992) <br />Teve seus primeiros poemas publicados no jornal carioca Diário de Notícias, em 1936. Estudou Direito em São Paulo, concluindo o curso em 1943. Na faculdade, ocorreu a publicação de seus poemas na antologia Poesia Sob as Arcadas, organizada, em 1940, por Ulysses Guimarães. Em 1947 fundou a Revista Brasileira de Poesia, com Domingos Carvalho da Silva e João Acioli, entre outros. Criou, a partir da revista, o Clube de Poesia de São Paulo, do qual foi presidente em 1952 e entre 1958 e 1963. Nos anos seguintes traduziu várias obras, entre elas poemas de Byron, François Villon e Góngora. Também organizou antologias de diversos poetas e publicou os livros de ensaios O Verso Romântico e Outros Ensaios e Do Barroco ao Modernismo. Entre 1966 e 1992 lecionou Literatura Portuguesa e Técnica Redatorial na Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Em 1970 exerceu o cargo de diretor técnico do Conselho Estadual de Cultura; foi um dos criadores do Museu de Arte Sacra de São Paulo, do Museu da Imagem e do Som e do Museu da Casa Brasileira. Recebeu, em 1988, o prêmio de Poesia, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, pelo livro A Noite da Memória (1988). Sua obra poética, vinculada à terceira geração do Modernismo, inclui os livros Lamentação Floral (1946), Sol sem Tempo (1953), Lua de Ontem (1960), Futuro (1968) e Poesia quase Completa (1972). A respeito de sua obra, o poeta Cassiano Ricardo escreveu: "pela natureza mesma de vossa poesia, tanto em Lamentação Floral como em Sol Sem Tempo, sois um criador de figuras não só de linguagem senão ainda de figuras corpóreas: 'remarei sobre teus seios, galera branca de lua'.".<br />Dezessete horas<br />1 <br />Arde a tarde, <br />nua. <br />Nua como um rosto, <br />nua como um seio <br />no ar. <br />2 <br />Há um rumor <br />nos troncos <br />maduros de mel. <br />Zumbe a noite <br />(a noite? A noite), <br />zumbe a noite, <br />opaca. Misteriosa. Indevassável. <br />Próxima. <br />Duas Horas<br />ou<br />Da vida<br />Silêncio. Escuridão. <br />Um grito <br />em meio às trevas. <br />Um grito rápido. Um grito triste. <br />Lâmina. <br />Por que rápido? Por que triste? <br />E de novo o silêncio: <br />nenhuma explicação.<br />Cabelos, os Meus Cabelos <br />Cabelos, los meus cabelos,<br />El-rei m'enviou por elos.<br />JOÃO ZORRO<br /><br />Cabelos, os meus cabelos,<br />que fontes de negro espanto!<br />descendo por minhas costas<br />com segredos de floresta:<br /><br />meus peitos, meus peitos altos,<br />são tochas em meio às trevas,<br />ardendo com seus perfumes,<br />queimando com fogos claros;<br /><br />trago uma lua nos ombros,<br />cascatas pelo meu corpo,<br />e as sombras da madrugada<br />no topo de minhas coxas.<br /><br />Meus peitos, meus peitos nus,<br />para o amado os tenho virgens:<br />se ele os pudesse colher,<br />duros ramos de alecrins!<br /><br />Teria em corpo desnudo<br />a ternura do bom Deus,<br />as mãos derramando trigo<br />sobre papoulas dormidas.<br /><br />Cabelos, os meus cabelos,<br />el-rei os mandou buscar<br />para os prender em seu leito:<br />meu corpo, o triste, vai junto.<br /><br />Não mais verei os meus bosques,<br />não mais os trevos em flor:<br />minh'alma geme na estrada,<br />anoitecendo os caminhos.<br /><br />Quer el-rei os meus cabelos,<br />e quer também o meu corpo:<br />arderei nas madrugadas,<br />rosa austera em grave leito.<br /><br />Meu alvo corpo desnudo,<br />deserto avaro de estrelas,<br />um sonho de areias brancas<br />em brancas dunas a pique...<br /><br />Arderei nas madrugadas,<br />sofrendo amargos carinhos:<br />meu coração, o infeliz,<br />suspira, pombo ferido.<br /><br />Cabelos, os meus cabelos,<br />el-rei deseja o meu corpo:<br />sangrarei sobre seus linhos<br />como uma rola flechada.<br /><br />Cabelos, os meus cabelos,<br />meus peitos, meus peitos altos,<br />meu virgem corpo desnudo<br />já não será para o amado. Céus Nossos <br />Céus nossos, terra nossa,<br />nossa é a graça,<br />a graça de existir por um momento.<br /><br />Chamas, ensinai-nos a lição<br />de iluminar morrendo.<br />Fonte <br />Passado, sombra de uma nuvem<br />na água trêmula<br />Joana Madalena <br />1<br />Cega, chuleava roupa.<br />Não via, mas chuleava.<br />E tinha noventa<br />anos. E era<br />cega.<br /><br />Hoje talvez enxergue;<br />mas as cinzas não trabalham.<br /><br />2<br />És a lua de ontem,<br />minha avó.<br />Ausente à vista, certa na memória;<br />tranquila na lembrança<br />como o pão e a roupa,<br />os livros que me deste.<br /><br />E és um presente ao homem,<br />àquele que hoje sou,<br />feito de velhos dias:<br /><br />com teus lençóis sem mancha<br />nas tardes de Lorena —<br />onde há lençóis, nuvens lavadas<br />em céus também lavados.<br /><br />3<br />Tarde adentro a voz se ouvia<br />na varanda,<br />tarde adentro<br />(a tarde era profunda):<br />"O fim é que é triste.<br />Um belo romance, A Filha do Diretor do Circo.<br />Como a Dejanira lia bonito!<br />Leia um pouco, meu neto."<br />E o menino lia.<br /><br />Colibris revoavam no alpendre,<br />das canangas e dos manacás e dos bambus do Japão<br />subia um meigo aroma,<br />e havia em tudo um sabor de fonte e de jambo,<br />e tudo era idílico e doce,<br />mesmo a voz das corruíras pelas calhas,<br />mesmo o coaxar das rãs na terra úmida.<br />Crescia o musgo nas paredes<br />e havia papoulas e jasmins-do-cabo e rosas-chá<br />e flores de araruta como borboletas brancas:<br />tudo tão distante...<br /><br />Ó minha avó, ó lua de ontem,<br />ensinarei teu nome aos pássaros em fuga<br />Prenúncio <br />1<br />Passa o vento,<br />as folhas tremem:<br />a sombra se inquieta.<br /><br />2<br />Do topo dos ipês<br />cai a sombra:<br />rendada, sonhadora, espiritual.<br /><br />O sol, os ipês, a sombra;<br />o tempo, o homem, sua sombra:<br />breve passagem pela terra,<br />e a grande sombra,<br />constelar, definitiva, irmã das pedras.<br />Epitáfio <br /><br />As ondas nascem, <br />as ondas morrem, <br />num só minuto; <br />mas o pensamento <br />pode eternizá-las. <br /><br />As rosas nascem, <br />as rosas morrem; <br />mas o pensamento <br />pode concebê-las imortais. <br /><br />Por isso eu vos tirei do mar, <br />ó vagas! <br /><br />Por isso eu vos tirei do lodo, <br />ó rosas! <br /><br />Porém voz fiz etéreas e flamantes, <br />para brilhardes sobre a poeira em que me tornarei. <br /><br /><br />ORFEU SPAM APOSTILAS<br />[Volta à Página Principal]<br />Renata Pallottini <br />(São Paulo SP, 1931) <br />Cursou Direito na Universidade de São Paulo (USP) entre 1949 e 1953, onde publicou seus primeiros poemas, nas revistas da faculdade. Também fez o Curso de Filosofia Pura na Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), concluído em 1951. No ano seguinte publicou Acalanto, seu primeiro livro de poesia. Em 1960 ocorreu a montagem de sua peça A Lâmpada, com direção de Teresa Aguiar, em Campinas SP. Lecionou História do Teatro Brasileiro na Escola de Arte Dramática da USP, em 1964. Um ano depois foi encenada sua peça O Crime da Cabra, sob direção de Carlos Murtinho, sua estréia no teatro profissional. Entre 1969 e 1982 publicou oito peças de teatro, foi roteirista do programa infantil Vila Sésamo e diretora da Escola de Arte Dramática da USP. Nas décadas de 1970 e 1980 trabalhou como tradutora e roteirista de telenovelas e séries para a TV, entre as quais Malu Mulher (TV Globo). Publicou livros de contos, poesia infantil e ensaios. Em 1997 recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura, concedido pela Câmara Brasileira do Livro. Sua obra poética inclui os livros A Faca e a Pedra (1962), Os Arcos da Memória (1971), Noite Afora (1978), Esse Vinho Vadio (1988) e A Menina que Queria Ser Anja (1987). A poesia de Renata Pallatini vincula-se à terceira geração do Modernismo. Para o crítico Wilson Martins, "poeta independente das escolas transitórias e modas efêmeras, Renata Pallottini restituiu à poesia brasileira o elemento de emoção pessoal e literária de que começou perigosamente a se despojar com João Cabral (...), assim como, e por isso mesmo, passou a evidenciar uma integração cada vez mais sensível na vida coletiva, na existência política do Brasil enquanto nação, pagando o tributo inevitável, oneroso e paradoxal de restringir o alcance de sua poesia no ato mesmo de parecer expandi-lo". <br />Finisterrae<br /><br />Aqui começa o fim<br />Feito de vento.<br /><br />Enlouqueceu a bússola<br />Do tempo.<br /><br />Naufragam as certezas<br />Do infinito.<br /><br />Aqui se acaba o mapa<br />Nasce o mito.<br /><br />Aqui começa a morte<br />Em naves findas .<br /><br />Aqui começa o medo.<br />Como um grito.<br />Cântico dos Cânticos - 2:16 <br />(O meu amor é meu e eu sou dele; ele apascenta<br />o seu rebanho entre os lírios.)<br /><br />O meu amor é meu e eu sou dele.<br />O linho horizontal é nossa casa<br />e eu me aninho a dormir sob sua asa;<br />amo-o com minha boca e minha pele.<br /><br />Ele é quem vela, e não me diz que vele<br />porque sua é a chama e minha a brasa.<br />O seu fervor ao meu fervor se casa,<br />clara coma de luz que nos impele.<br /><br />Desci ao campo raso: ele é meu campo<br />onde me deito e a erva se derrama;<br />é meu olhar que voa, pirilampo.<br /><br />Sem terra irei por terra: ele me chama.<br />Vou sem saber por onde, ao mar ou monte.<br />Sem sua boca eu já não sei ser fonte.<br />Chocolate Amargo<br /><br />No mapa imaginário de todas as terras<br />Aí estás, país do grande sol,<br />Dos animais gigantes e das árvores sagradas<br />Terra da cachoeira de diamantes e<br />Do ouro sangrado<br /><br />Continente sangrante<br />Teus filhos adormecem sem saber se ainda vivem<br />Depois que a liberdade abandonou as tribos<br />E os deuses de Mahoma, mais os deuses de <br />Cristo<br />E os deuses-orixás, mais os deuses perdidos<br />A ti te abandonaram , doce terra de elefantes,<br />Macia terra de desertos.<br /><br />Ninguém te libertou, nem a deusa-Libéria<br />Nem a cor de Nigéria, de chocolate amargo,<br />A tua dor não para, ela se exaure em malatías<br />Em doenças exânimes, de sangue ,<br />Continente sangrado...<br /><br />Lutando enlouqueceste e te fizeste algoz<br />Dos teus irmãos em preto e alma , em negro<br />E lama<br />As crianças armaste para despertá-las<br />Mas elas adormeceram<br />Como flores cortadas<br /><br />E aí estão, em ti, carregando suas armas<br />Brinquedos terminais, <br />Se suicidando...<br /><br />No mapa das desgraças, cartografia antiga,<br />Brilhas em negativo, com teus machos moldados<br />Homens esculturais, reis de toda corrida,<br />Reis do jogo e do corpo e da má sobrevida Reis da fuga [humilhada<br />Do trabalho submisso<br /><br />Escravo bom de sempre, quando te eriças<br />E empoas teu cabelo e foges para o mato<br />Buscam-te, seu cavalo, buscam-te, sua mina<br />Buscam em ti o seu desejo de reaver a serventia<br />Buscam a mão, a perna, o sexo<br />A carapinha<br />Que depois vão negar nas gerações futuras<br />Com um pé na cozinha...<br /><br />No mapa dos exércitos, rebrilhas com teu riso<br />De quem não sabe mais a quem pedir auxílio<br /><br />Queremos teus diamantes, queremos o teu óleo,<br />Queremos tua pele, queremos teu sabor<br />De carne de macaco, de serpente, de água.<br /><br />Queremos destruir-te para depois chorarmos<br />A imensa mancha negra que ficará<br />nos mapas.<br /><br />Só minha avó, agora, me consolaria<br />com sua cor romana de pão perfumado.<br /><br />Só a avó e o pão duro que eu beijo <br />e o vinho roxo o vinho que me foge<br />podem me consolar<br />de haver perdido o jogo<br />que para todos os demais<br />para os normais<br />era só um brinquedo de crianças<br />a mais.<br /><br />Ou então, ou então<br />Talvez a amiga<br />Que sabe todas as palavras escondidas<br /><br />Podíamos passear no Cambuci<br />Lembrando o morro do Piolho e a Bastilha .<br />Podíamos chorar, se não fosse que ela<br />Tem pejo de chorar<br />E se não fosse assim<br />Já teria morrido de chorar<br />Decerto.<br /><br />A amiga está tão longe<br />No deserto ...<br />Macunaíma <br />(...)<br />Meu filho, cresce ligeiro,<br />para ir pra São Paulo<br />e ganhar dinheiro.<br /><br />Adeus mato cheiroso orvalho da manhã<br />adeus água de prata cascata<br />adeus ramo de arruda hortelã<br />a mata está a pique de acabar<br />jandaia buriti jussara aracuã<br />cresce depressa pra dandar<br />meu filho<br />pra ganhar<br />vintém<br />cresce depressa e entrega a mata<br />ao invasor<br />meu filho pra ganhar<br />vintém<br />Quanta floresta! É ouro verde na divisa<br />brasileiro vai ganhar<br />vintém<br /><br />cresce depressa e sem caráter brasileiro<br />e vende a mata<br />pra ganhar<br />vintém<br /><br />Na cidade das máquinas doente<br />Macunaíma sobrevive e pensa:<br />nas ruas, cipoal de muita gente,<br />só o ato de brincar<br />é que compensa.<br /><br />Para a tristeza, o amor;<br />para a preguiça<br />o amor, e para a febre<br />mordidas de saúva da paixão.<br /><br />Muita saudade<br />e muita pouca ação<br />os males do Brasil<br />são.<br /><br />Macunaíma, audaz tumucumaque,<br />menino inventador, herói de araque,<br />lá vai ele, criador de boi-bumbá;<br />voltando para a terra antes que acabe,<br /><br />para o seu galho em antes que desabe,<br />para as florestas<br />cada vez mais menos,<br />para as montanhas, já<br />montes de Vênus,<br />para os campos,<br />agora mais pequenos...<br /><br />Macunaíma encolhe igual sanfona<br />na charanga brasílico-amazona.<br />(...) Noite Afora <br />A quem devo dizer que em tua carne<br />se sobreleva o tempo e o duradouro,<br />mancha de óleo no azul, alaga e intensifica<br />o contratempo a que chamei amor?<br /><br />A quem devo dizer dos meus perigos<br />quando, o corcel furioso, olhei ao longe<br />e não vi mais limites que o oceano<br />nem mais convites que o das ondas frias?<br /><br />Como antepor o corte nas montanhas<br />— Liberdade — ao dever que a si mesma impõe a terra<br />de estender-se conforme o espaço havido?<br /><br />Malícia do destino, ardil composto outrora...<br />Arde a grama da noite em que te vais embora,<br />e essa chama caminha, essa chama, essas vinhas,<br /><br />essas uvas, cortadas noite afora.<br />Poema da Rua Maria Antonia <br />Por sobre o muro<br />voam bombas e garrafas incendiadas<br />pedras agudas e palavras<br />duras.<br />Por sobre o muro<br />voa a lembrança de um amor que houve<br />uma visão passada e deslocada<br />que tenta ultrapassar o muro e do alto<br />proclamar-se intocada.<br />Mas as garrafas incendeiam tudo<br />e a palavras<br />tornam menos urgente o amor antigo<br />e mais urgente o aviso:<br />esta é a guerra das guerras<br />guerra civil dos que foram amigos.<br />Por sobre o muro<br />espio com espanto o pátio incendiado<br />os jovens que se atingem entre lágrimas<br />os feridos e os gestos e os detalhes.<br />Minha cabeça ponho sobre o muro.<br />É uma cabeça desligada do seu corpo<br />como a cabeça de um guilhotinado<br />de olhos abertos.<br />Com meus olhos abertos sobre o muro<br />vejo o sangue e a fumaça da contenda.<br />Não posso distinguir qual dos lados do muro<br />é o mais claro, o mais limpo, o mais certo, o mais justo.<br />Meus olhos na cabeça decepada,<br />Buscam ansiosamente sobre o muro<br />o caminho mais curto, a razão mais sensata,<br />ou pelo menos a mais desinteressada.<br />Meus olhos, na cabeça desnorteada<br />procuram com inútil desespero<br />a arma de lutar, a faca de se defender<br />o punho de atacar.<br />Na cabeça infeliz meus olhos são culpados<br />de verem o que aos mortos foi negado.<br />Vestibular <br />De novo acomodo o corpo<br />(que de novo me incomoda)<br />na carteira de pau áspero;<br />de novo tomo a caneta.<br /><br />De novo passo entre as filas<br />ponho a mão no ombro trêmulo<br />de alguma estudante tímida<br />(e agora sou professora).<br /><br />De novo é aquela angústia,<br />não saber o que se sabe<br />ser de novo examinada<br />e de novo posta à prova.<br /><br />De novo adivinho o amor,<br />olho-me e olho; já fui<br />o que hoje sou. Já sofri<br />o que sofro. E vem de novo<br /><br />esse temor, como novo.<br />Ensino, ou sou ensinada?<br />Estou acima, ou me afogo?<br />De novo perco o respiro<br />ou já domino a questão?<br /><br />De novo sofro e transpiro<br />porque hoje sou a mestra<br />tão escassa como sempre<br />e como sempre carente.<br /><br />Olho-me quieta de novo<br />e vejo toda essa gente.<br />Passas de novo a meu lado<br />e me pões a mão no ombro<br /><br />e me marcas com teu sopro<br />e me deixas tua sombra.<br />Retorno a Ítaca<br />I<br />De volta a Ítaca,<br />Ferido a faca o sentimento<br />E os sonhos cortados, <br />O homem avalia as ondas que o conduzem <br />montanhas <br />(ninguém sabe a que semelham horizontes).<br /><br />De longe vê o nada e pensa : será visto ?<br />Que mulher ainda espera<br />O homem ingrato ?<br />Que voto a castidade o infiel reivindica ?<br /><br />E que merece um homem , semelhante<br />Aos deuses, sim, mas igualmente impuro ?<br /><br />II<br />Já resta pouco tempo<br />Ao ardiloso Ulisses .<br />Os pés estão molhados<br />E pesam-lhe os cabelos.<br /><br />Ninguém o reconhece<br />Nem vem ao seu encontro.<br />Quarenta vezes chama.<br />Quarenta vezes sua voz exígua<br />Busca encontrar o caminho da casa.<br /><br />Ulisses sente a falta de sementes de açúcar. <br />De súbito, uma sombra<br />Velho pedaço de manto perdido<br />Madeira de naufrágio<br />Surge e de rastos, vem vindo e se agacha;<br />Fareja-lhe os artelhos<br />E lambe os seus pés frios.<br /><br />Um cão, sozinho,<br />Argos, melhor que os homens,<br />Eleva o seu amor como uma chama.<br /><br />O cão responde com o que lhe resta.<br />Pode Ulisses agora morrer quarenta vezes.<br />Podemos nós morrer <br />Frágeis peças de carne. <br /><br />“A um cão não restam muitas<br />Maneiras de expressar-se.<br />Somos úmidos, ásperos e nossa língua<br />É suja, às vezes.<br />Urinamos humildemente e nem sabemos<br />Esconder nossas fezes.<br /><br />Porem o coração de um cão é primoroso<br />Com sua profundidade abstrata<br />E sem contornos.<br /><br />O coração de um cão é sempre aquele ,<br />Nunca postergará seu sentimento.<br /><br />Os restos que lhe atiram<br />Se é a mão que os atira a doce mão amada<br />São suaves manjares.<br />O amor de um cão é sempre insaciável. “<br /><br />IV<br />Ulisses, sua face exposta por vinte anos <br />à face ardente e fluida dos ventos<br />Encontra um patamar inesperado :<br /><br />Argos, o cão, pode morrer . Está cumprido.<br />É difícil, porém, matar um cão para sempre.<br />Essa fidelidade abstrata volta<br />Todo dia à lembrança, como um sol.<br /><br />Voltará quando o amigo o abandone.<br />Voltará quando o filho o desconheça.<br />Quarenta vezes volta a dor da traição.<br /><br />Seu coração no teu, Ulisses,<br />Pulsará<br />No mesmo chão.<br />Bagdad, 20 de março, 2003<br /><br />Onde nasceu o mundo<br />morre o mundo.<br /><br />O oriente amanhece<br />no meu quarto.<br /><br />Soldados nunca falam.<br />Matam e escrevem cartas.<br /><br />Correspondentes de guerra<br />se arriscam por uma imagem.<br /><br />As mulheres e as crianças<br />essas<br />morrem caladas.<br />O Cântaro<br /><br />"Então, Jacó beijou Raquel e, <br />levantando a voz, <br />chorou."<br />Gênesis, 20: l l<br />O cântaro poreja a água amena<br />que do poço brotou, e adoça a areia <br />e que corre nos ombros, e que enleia <br />pelas espáduas seu frescor moreno.<br /><br />O lácteo manto que uma brisa ondeia <br />desenha formas, cujo talho apenas <br />a tamareira imita, a flor receia, <br />o vento afaga e a solidão serena.<br /><br />Vê-la é um momento, desejá-la um sopro, <br />ouvir-lhe a voz uma doçura eleita, <br />roçar-lhe a fronte uma revelação.<br /><br />O amante, incertas mãos, trêmulo corpo, <br />beija-lhe os olhos, cuja flor desfeita <br />catorze anos de vida pagarão.PROFESSOR FLUVIO SANTOShttp://www.blogger.com/profile/12541528314244690654noreply@blogger.com0