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sexta-feira, 5 de junho de 2009

CRÍTICA LITERÁRIA



CRÍTICA LITERÁRIA
Por "crítica literária" pode-se entender a produção de um discurso acerca de um texto literário individual ou da obra global de um autor, independentemente da situação de comunicação que desencadeia e/ou particulariza esse discurso. Este entendimento da noção de "crítica literária" permite conjugar quatro vectores fundamentais. Em primeiro lugar, e na linha construtivista de autores como René Wellek (veja-se sobretudo R. Wellek, 1963 e 1981) e J. W. Atkins (veja-se Atkins 1934), salvaguarda a possibilidade de se identificar uma narrativa interna da crítica literária que, desde a Antiguidade até aos nossos dias, se orientou para a visibilidade relevante do crítico enquanto protagonista de um comentário acerca de textos considerados artísticos. Em segundo lugar, e na linha de autores como Northrop Frye (veja-se sobretudo N. Frye, 1970), aquele entendimento não desvincula a situação de ensino da literatura do exercício da crítica literária. Em terceiro lugar, afasta a noção de crítica literária da disputa estéril (desconstrucionista vs. Formalista) acerca do seu estatuto de "arte" ou de "ciência". Em quarto lugar, permite contemplar realidades no exercício moderno da crítica literária como as que decorrem do protagonismo assumido pelo crítico nos meios de comunicação, e que, no essencial, assentam em convicções como a de Albert Thibaudet quando assegurava que «a crítica tal como a conhecemos e praticamos é um produto do século XIX» (ª Thibaudet, 1930: 7).
A crítica literária tem um papel relevante na dinâmica interna de qualquer cultura nacional, na medida em que é por ela que se articula o diálogo entre as propriedades das obras e as exigências literárias de um determinado período. É através das apreciações críticas que melhor se pode discernir os dispositivos de recepção e as configurações de valor estético em jogo numa determinada situação histórico-literária. Esta irrecusável historicidade da crítica torna-a um dos instrumentos mais vivos de que se pode dispor para compreender as tensões actuantes num tempo político, num lugar social e numa tradição cultural.
Dependente como está dos quadros de referência, de conhecimento e de experiência do próprio crítico, a crítica literária está condenada à interpretação e, consequentemente, nunca pode ser neutra nem inocente. Mesmo as pretensas virtudes de uma crítica académica fundada em critérios de cientificidade e/ou articulada por uma linguagem universalizante e objectiva estão hoje em dia despidas de credibilidade, tanto teórica como prática. Porque invariavelmente se confunde o que é científico com algo que é meramente tecnológico, misturando nesse processo rigor com tecnicidade, essas virtudes são meras ilusões que só encontram eco numa outra piedosa ilusão: a de uma epistemologia inocente da investigação universitária.
Porque não é inocente o seu olhar, o crítico literário, seja qual for o plano institucional em que se coloque (académico ou jornalístico) relaciona-se com a literatura, sobretudo com aquela que é sua contemporânea, através de um certo grau de cegueira, como bem observou Paul de Man (P. de Man, 1971), ou através de uma espécie de cegueira interessada que leva o crítico a unicamente ver aquilo que quer ou pode ver. No domínio da crítica literária, faz plenamente sentido a afirmação de M. Merlau-Ponty de que "só encontramos nos textos aquilo que colocamos neles" (1962: viii). Esta é uma realidade inexorável, embora de aceitação difícil quando somos (e nos sentimos) actores culturais coetâneos de uma qualquer prática crítica. No entanto, é ela que agencia a heterogeneidade litigante do conhecimento, e com ela o pulsar agonístico por que uma cultura nacional vive internamente cada um dos seus tempos próprios numa intensa conversação entre diferentes comunidades interpretativas, recorrendo ao conceito de Stanley Fish (S. Fish, 1980), isto é, entre diferentes crenças, diferentes interesses ideológicos, políticos, sociais, sexuais, estéticos; em suma, entre diferentes feixes de estratégias e de normas culturalmente institucionalizadas que coexistem numa relação reciprocamente definidora.
Ao actuar em sinédoque no interior de um quadro literário nacional, o crítico literário torna-se o protagonista mais visível de uma comunidade interpretativa que nele se reconhece por oposição a outros olhares (outras sinédoques) de outros críticos (outras comunidades). Neste sentido, os discursos de todos esses críticos, quando vistos na sua relação contraditória, tornam-se uma espécie de erros necessários que, por si mesmos, não traçam o perfil de uma época. Contudo, na medida em que não emergem de indivíduos isolados, embora por eles se revelem, mas de um ponto de vista público e convencional, esses erros contribuem decididamente para a configuração do perfil de verdade de uma época, pois, na sua contingência, representam (reforçam) horizontes intersubjectivos de crenças e de valores actuantes no seio de uma sociedade. É por isso que os conflitos mais ou menos apaixonados que ciclicamente surgem no seio da comunidade literária (portuguesa ou qualquer outra) ultrapassam em muito as questões consideradas especificamente artísticas, incorporando no debate, de um modo mais ou menos explícito, argumentos (isto é, crenças e valores) de carácter ideológico, político, filosófico ou religioso.
A importância de que a literatura ainda se reveste nos nossos dias decorre do facto de que ela, através da sua capacidade intrínseca de representação, continua a conter em si as possibilidades de um conhecimento insubstituível do homem e do mundo. Nada existe no mundo que a literatura não possa exprimir. Por outro lado, é ainda através da literatura que melhor podemos ter acesso à experiência de vida de uma época ou à interioridade do seu tempo social e cultural.
Esta dimensão fascinante do literário impõe a prioridade inescapável da vinculação do texto a uma realidade que, ao lhe preexistir, estabelece as condições de inteligibilidade solidária através da qual o texto literário oferece o seu dizer no seio de uma cultura. E é exactamente por essa mesma dimensão que o gesto crítico também ganha relevo intelectual e significado cultural. Ao se constituir inevitavelmente em interpretação de um texto literário, a crítica outra coisa não faz que reconhecer a construção e a permanência da literatura como interpretação (interpelação) de estratos do conflito humano nela representado. Cada uma nutre-se da interpretação da outra num diálogo intelectual nem sempre pacífico, mas inexoravelmente dinâmico e activo, ou tão dinâmico e tão activo quanto as circunstâncias culturais e históricas o permitem ou exigem. Em suma, pode-se afirmar que é pelo cruzamento da literatura com a crítica, numa representatividade mútua feita de encontros e desencontros com a verdade de cada uma delas, que a vivacidade do rosto de uma época se torna mais nítida nos seus contornos culturais.
ÁANÁLISE; EXEGESE; HERMENÊUTICA; POÉTICA
BIB.: Albert Thibaudet: Phisiologie de la Critique, Paris: Nouvelle Revue Critique, 1930; J. W. Atkins: Literary Criticism in Antiquity (2 vols.), London, 1934; Maurice Merlau-Ponty: Phenomenology of Perception, London, 1962; Northrop Frye: The Stubborn Structure, London, 1970; Paul de Man: Blindness and Insight. Essays in the Rhetoric of Contemporary Criticism, Minneapolis, 1971; René Wellek: (a) "The Term and Concept of Literary Criticism", in Concepts of Criticism, New Haven, 1963; (b) "Literary Criticism --A Historical Perspective", in What is Criticism, Paul Hernadi (org.), Bloomington, 1981; Stanley Fish: Is There a Text in This Class? The Authority of Interpretative Communities, Cambridge (Mass.), 1980.
Manuel Frias Martins

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